Lendas e Narrativas (Tomo II) - 11

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hora em que vão celebrar-se os divinos mysterios, que os meus
honrados parochianos vem tecer disputas e travar-se de razões, em
vez de guardarem a compostura e devoção com que devem preparar-se
para o tremendo sacrificio do altar? Rixas e apupadas no dia do
bem-aventurado S. Pantaleão?! Não o soffro. Vamos, expliquem-me
a causa de tal barulho. Que foi isto?"
"São estas descaradas...."--gritou Bartholomeu.
"Saiba vossenhoria....--acudiu ao mesmo tempo a tia Jeronyma.
"É este insolente..."--interrompeu Perpetua Rosa.
"Não é nada, padre prior; não é nada:"--diziam conjuntamente o
Manuel e a Bernardina, mais com a mão, fazendo um gesto negativo,
que com as palavras, enredadas inintelligivelmente com as do
moleiro, da ama, e da lavadeira.
"Fale um!"--gritou o prior.--"Assim fico jejuando."
"Foi....."--disseram todos ao mesmo tempo.
"Peior!"--acudiu o parocho.--"Cada um por sua vez. Vamos."
"Saiba vossenhoria..."--vociferou o moleiro, ganiu Perpetua Rosa,
flautou a ama, murmurou o Manuel, pipitou Bernardina, clamaram
os circumstantes.
"Visto isso, é impossivel saber de que se tracta?"--interrompeu
de novo o prior.--"Está bom... Não importa! Depois da festa
averiguaremos o caso. Tudo para dentro já! Vá tomar o seu logar,
Bartholomeu. Estão os mesarios á espera, e você entretido aqui
com estas toleironas! Vamos. Nem mais uma palavra."
E dizendo e fazendo, recolhia-se para a sacristia. No relogio de
sol o gnomon estendia exactamente a sua sombra sobre o ponto de
intersecção marcado pelo X. As rebecas soltaram a sua chiadeira
quasi harmonica, e o grupo, desfazendo-se, escoou-se pelo portal
tricentrico, cujas pedras a broxa vandalica havia amarellado; e
dentro de poucos instantes o adro ficou silencioso e deserto.
Os instrumentos tambem fizeram silencio passados alguns minutos,
e sussurrou lá dentro uma voz humana, cansada e debil, que entoava
com suave melopea:
"_Introibo ad altare Dei._"
* * * * *

VIII
GLORIA AO PADRE PRIOR.

Estamos á porta da igreja. A saloiada mettemo-la dentro. O padre
mestre Prazeres, o padre Chaparro, e o padre prior não sei se
d'aqui os vêm na capella-mór. Fr. Narciso gyra, mira, vira, revira
tudo, na credencia, no altar, na banqueta. O ceremonial romano
é um mundo de idéas, que elle dispoz nos diversos repartimentos
cerebraes, com uma comprehensão, um tino, uma logica de por ahi
além. Fr. Narciso tem d'olho o padre Chaparro, que foi toda a
vida um tonto em liturgia, e assim ha-de morrer. General naquelle
conflicto, Fr. Narciso está álerta; nem seiscentos Chaparros
seriam capazes de lhe entortarem uma ou mil missas cantadas. Em
semelhantes occasiões o veterano mestre de ceremonias contempla
impassivel da altura da sciencia as evoluções dos seus subordinados:
tudo abrange, tudo prevê, tudo dirige tranquillo. E não solta uma
voz unica: não reprehende, não incita, não ameaça. Uns beiços
estendidos e inclinados á esquerda fazem parar o missal, que ía a
ser extemporaneamente arrebatado da banda da epistola para a do
evangelho; uns olhos trasbordando pelas palpebras, acompanhados de
um oscillar de cabeça rapido, horisontal e fugitivo, inteiriçam os
joelhos que vão a vergar em genuflexão deslocada. Emfim, para que
estarmo-nos a matar? Como o nome de Fr. Timotheo na parenetica, o
de Fr. Narciso na liturgia será o nome que a historia transportará
ás mais remotas eras, emquanto as glorias da familia arrabida
durarem na posteridade.
O _introibo_ entoou-se: o negocio está agora em mãos de mestre:
podemos ficar descançados com a festividade. Como o calor da igreja
é muito, venhamos, eu e o leitor, conversar um pouco á fresca
sombra dos plátanos do adro. Tenho explicações indispensaveis que
lhe fazer; dê por onde der, embora ouçamos a missa descabeçada.
Sou homem de bofes lavados, como diziam os nossos velhos, e não
gósto de que me estejam a morder na pelle por causa de lacunas,
mysterios, ou contradicções nas minhas narrativas. Menos isso. A
historia é a historia, e não se hão-de deixar por aqui e por alli
obscuridades e incertezas, que façam suar o topete ás academias
futuras: muito mais que ha ahi uns quidams, cujo officio é esmiuçar,
anatomisar e criticar os escriptos alheios, e que lhes fazem os mais
crueis e desalmados processos verbaes, que é possivel imaginar, não
lhes escapando periodo nem linha, ponto nem virgula. Critica rosnada
pelos cantos é a destes, semelhante ao bisbilhotar da cozinheira
com a creada da vizinha, á janella do saguão, sobre os talhos
que a ama deu ao presunto, ou sobre o mais ou menos acogulado da
medida dos feijões fradinhos. É por isso que a taes criticas chamo
eu verbaes; verbaes, porque seus auctores d'ahi não podem passar.
Coitados! escreveriam vinte heresias se copiassem o padre-nosso.
São os alcaiotes dos _lapsus linguæ_, os mexeriqueiros dos actos
de memoria. No vento e com vento compõem: vivem de epigrammas
agudos como tranca: morrem sem deixar vestigio. Litteratos a barbas
enxutas, eruditos lendo ainda por baixo, passam nas trevas como
a coruja; mas bem como a coruja roçando as azas, que salpicou
na alampada, pela alva toalha do altar a deixa ennodoada, assim
a pagina pura, affagada de tanto amor do artista, estudada com
tão sincera consciencia, lá recebe, na tertulia de parvos, a
dedada torpe e sebenta de um chapadissimo tolo.
Não sou dos mais queixosos; todavia guardo acatamento profundo a
essas caricaturas de adibe, que, á falta de dentes para devorarem
carniça, contentam-se de fazer empolas e brotoeja na pelle do
proximo. Respeito-os a todos, altissimos e baixissimos; que os
ha de todas as riscas da craveira social, no civil, no militar
e no ecclesiastico. Estou, por isso, sempre com o credo na bôca
quando escrevo uma linha, e antes quero que se queixem da frequencia
dos prologos do que me condemnem sem me ouvirem.
Disse já que tinha de fazer uma explicação ao leitor. Tenho; e
é indispensavel. Estou ouvindo um melenas arguir assim:--"Como
soube a tia Jeronyma que as peças do padre prior se haviam
esgueirado, com tanta magua sua, só para dotar Bernardina? Como
o souberam os noivos, e Perpetua Rosa? Não se passou tudo
particularmente entre o prior e o moleiro, ambos interessados
no segredo do negocio, um por virtude, outro por avareza? Foi
um duende que veio revelá-lo? Mas isso é fazer como Eugenio Sue,
que logo desde o principio das suas novellas arranja um homem
humanamente impossivel, e até uma entidade immortal, para nos
casos difficultosos se desembrulhar das aperturas da situação.
Isso é empalmar; isso não vale. Queremos saber por onde transpirou
a generosa acção do velho parocho; mas por meios naturaes. Não
admittimos tergiversação, nem milagres."
Tá, tá! Nem eu, falando de telhas abaixo. E era para explicar
este mysterio naturalissimamente, que chamava agora o leitor para
a fresca sombra dos plátanos do presbyterio. O caso foi este:
Quando o prior, dominado pela idéa de remediar a todo o custo a
rapaziada que fizera o Manuel da Ventosa, deu comsigo ao romper
da manhan no moinho de Bartholomeu, lembrados estarão de que o
velho, accedendo aos desejos manifestados pelo seu parocho de
ficar a sós com elle, pozera fóra da porta os moços com o grito
de _rua_! Se o homem fizesse como Polyphemo, quando tinha Ulysses
e os seus camaradas encapoeirados no antro com os carneiros e
como carneiros, o qual, á falta do unico olho que possuia e que
lhe haviam vasado, ía apalpando e contando os que saíam, segundo
mais largamente narra Homero, não succederia o que succedeu, e já
as embrulhadas, picuinhas, dicterios e descomposturas _ad faciem
ecclesiæ_, de que antecedentemente dei conta, não teriam sobrevindo,
com escandalo das pessoas graves e tementes a Deus. Era, como
no logar competente deixei especificado, grande o tráfego no
moinho á chegada do prior: duas récuas de machos a enquerir á
porta; moços para dentro e moços para fóra; saccos de farinha a
rolarem e a empoeirarem a atmosphera; bulha, encontrões, sapateada,
arres, xós, pragas, diabos; um pandemonio, emfim, em miniatura. A
chegada do prior foi tão inesperada e subita, que Bartholomeu,
azoinado, não reparou nos que saíam á sua voz de commando. D'aqui
o damno. Uma testemunha ficava ahi, sem que Bartholomeu désse
por tal.
Esta testemunha era Gabriel. O pobre rapaz tinha andado, até
á meia noite, do moinho para a fonte e da fonte para o moinho,
com um macho e dous barris, a carrear agua. Depois, estirou-se a
dormir atrás de uma pilha de saccos de trigo, com aquelle valente
somno da primeira juventude, a que se não resiste nem n'um campo
de batalha. Dormiu, dormiu, dormiu. Rompia a alva e ainda elle
era pedra em poço. O grito de Bartholomeu despertou-o, na verdade;
mas não teve animo de erguer-se: bocejou, bufou, espriguiçou-se,
estendeu os braços para diante com os punhos cerrados, virou-se de
barriga para o chão, metteu o nariz debaixo do sovaco, e proseguiu
na interrompida tarefa. Felizmente para o pobre do moço, que se
fosse presentido pelo moleiro teria de acordar de todo com o
despertador infallivel de dous pontapés, Gabriel não resonava,
ainda no mais profundo somno. Crendo estarem sós, os dous travaram
a larga conversação que no principio desta famosa historia ficou
fielmente trasladada.
Não faço eu tão fraca idéa de mim ou do leitor, que supponha
assás falta de interesse a minha narrativa, ou o tenha a elle
por um tal cabeça de vento, que se esquecesse da estrondosa
gargalhada que desandou o padre prior ao manhoso saloio, quando
este lhe propoz désse o dote a sua sobrinha Joanna, á falta de
outra mais digna. A descommunal risada é que o somno de Gabriel,
se não partido inteiramente, ao menos já estalado pelo grito de
Bartholomeu, não pôde resistir. O rapaz fez uma viravolta, abriu
os olhos, deu uma guinada ao corpo, ficou assentado, com as pernas
estendidas, e a cabeça inclinada sobre o peito, meditabundo por
alguns momentos, e immovel como um daquelles santões de que resa
Fernão Mendes Pinto. Depois, levando as mãos á cabeça, começou
a coçar rapido d'alto a baixo por cima das orelhas. Pouco durou,
todavia, essa primeira furia. Como o som da harpa d'Ossian,
alongando-se e esmorecendo por entre a nebrina das serras, aquelle
coçar d'alma affrouxou e desvaneceu-se gradualmente; as mãos,
confrangidas em fórma de garra, espalmaram-se flexiveis, os braços
hirtos e erguidos despenharam-se mortaes ao longo do tronco, e a
cabeça somnolenta balouçou á direita, depois á esquerda, depois
pendeu de chofre para diante, e resaltou quasi ao bater sobre os
joelhos, semelhante ao judeu martyrisado pela sancta inquisição,
quando ao descer pendurado da polé, a corda, atada mais curta
que o espaço médio entre o chão e a roldana, o desconjunctava,
retendo-o subitamente alguns palmos acima do pavimento. Assim se
desconjunctou aquella machina de somno, e Gabriel abriu seis
vezes a bôca, engradou-a com outras tantas cruzes, esfregou os
olhos com a parte anterior do canhão da jaqueta, mirou por entre
os saccos os dous velhos, embasbacou de vêr alli o prior, e,
sem tugir nem mugir, poz-se a escutar o dialogo, que se travára
entre ambos.
Qual este foi e o seu desfecho sabe-o o leitor tão bem como eu.
Apenas o prior se despediu, encaminhando-se pela encosta abaixo,
Bartholomeu recolhendo as setenta peças, que elle deixára sobre
a arca das maquias, poz logo tudo em movimento; e Gabriel, por
cuja falta naquelle primeiro impeto o moleiro não dera, teve
arte de se confundir com os outros moços, que entravam e saíam,
sem que o amo nem por sombras suspeitasse que havia uma terceira
pessoa sabedora do importante negocio que se acabava de compôr,
e sobre o qual, no meio do seu mandar, e ralhar, e lidar, já
a ambição lhe ia alevantando na phantasia muitos castellos de
vento.
Segredo em bôca de rapaz, outros dizem de mulher (eu, por decencia
e pelos meus principios, sustento a moção relativa aos rapazes) é
manteiga em nariz de cão. Elle, na verdade, contou-o com variantes
para mais e para menos, mas contou-o, que é o caso. E a quem o
havia de ir metter no bico? Á pessoa que mais interessada suppunha
na historia; á senhora Perpetua Rosa, mas pedindo-lhe pela alma
das suas obrigações e pela fortuna da sua Bernardina que não
dissesse nada, porque o patrão, se tal soubesse, era capaz de
esganá-lo. Prometteu-lh'o Perpetua Rosa; jurou-o e tresjurou-o.
Pulava a boa da velha de contente, e a primeira vez que levou roupa
á cidade fez das fraquezas forças, e trouxe de mimo a Gabriel um
pião novo, uma gaiola de grilos cousa d'espavento, e uma abáda
de castanhas do Maranhão e de figos passados, com que o bom do
rapaz se regalou de pôr a bôca n'uma lastima. E o mais é que teve
palavra. Apenas contou o caso a duas ou tres freguezas antigas
de Lisboa, e á tia Jeronyma, com quem desde a mestra, podia-se
dizer, era unha com carne. Aqui é que foram as ancias. Pelos
domingos tiram-se os dias-sanctos. A ama do prior fez-se fula
quando tal ouviu. A lanceta que sangrára a meia do forro da escada
apparecia finalmente; e a tia Jeronyma, sem lhe importar o ver
a mortificação da pobre Perpetua Rosa, desabafou á sua vontade;
mas passado o primeiro estouro da dor, levou de seu brio nunca
mais tornar a bulir nesta desagradavel materia.
Eis a verdade nua e crua de como se aventou o segredo. A alhada
da porta da igreja, nascida daquellas tafularias tolas do Manuel
da Ventosa e da sua companheira, acabou de divulgar o negocio,
sem que n'isto andasse o fradinho de mão furada, nem os jesuitas,
gente de poder mysterioso e terrivel, nem, finalmente, o judeu
errante, que tantas maravilhas obra actualmente na terra. Mas se
n'isto não entraram os irmãos do quinto voto, nem o caminheiro
Ahasvero, com as suas sapatas tauxiadas de pregos em cruz e com os
seus alforges de cholera morbus, entrou, a meu vêr, a Providencia,
mas uma Providencia natural e simples nos seus meios, como ella
o é sempre, sem milagres nem bruxarias. Cuidava o prior que a
sua nobre e evangelica generosidade ficasse occulta; cuidava
Bartholomeu que trévas perpetuas cobrissem a torpe cubiça e a
sórdida avareza com que se houvera neste negocio. Vae, que faz
Deus? Serve-se de um pobre rapaz, que ninguem tinha em conta
de nada, e põe tudo ao olho do sol. E fique desde aqui dicto
que essa é a moralidade da minha historia: a virtude exaltada,
e o vicio punido. Nem mais nem menos, como o desfeixo daquellas
grandes comedias, que, ha vinte ou trinta annos, eram as delicias
de nossos paes, e a gloria dos nossos dramaturgos das tres unidades,
que Deus haja... As tres unidades, entenda-se bem; porque os
dramaturgos, esses o Senhor no-los conserve, emquanto podér ser,
para nosso regalo e consolação.
Quem disse lá que as velhotas, testemunhas dos _items_ do moleiro
com as personagens que mais conjunctas lhe eram, entraram para
a igreja e se pozeram a ouvir o cantar dos padres, e a musica do
coreto, e o esbravejar do prégador? Por um oculo! Á sombra da sua
victima, que fôra e que ía seu; á sombra de Bartholomeu, a quem
todos abriam caminho para o deixarem approximar-se do banco dos
festeiros, ellas atravessaram a mó dos homens, unidos como sardinha
em tigela dos estrados para baixo até o guardavento, e chegaram
ao meio do mulherio. Haja o apertão que houver, ainda não consta
que saloia deixasse de fazer praça para si na igreja. Verdade é
que a tia Jeronyma ía em frente com a cara de arremetter que
Deus lhe dera, e que mais rebarbativa se tornára com a anterior
refrega. Quem deixaria de dar campo á ama do prior, e, sobre tudo,
áquella carranca? Seguiam-na os noivos, encolhidos e vergonhosos
do escandalo que tinham causado, tornadas em fel e absintho as
tão risonhas esperanças que, pouco havia, punham no seu garbo e
bizarria; que n'isto vem a acabar muitas vezes as vanglorias do
mundo. (Mais moralidade). Após elles vinha Perpetua Rosa, e após
a lavadeira vinha a Veronica do Tiago, padeira gorda, vermelha
e reverendaça, a Engracia Ripa, mulher do fogueteiro da aldeia,
magra, alta, côr de enxofre, a Eufrasia Tasquinha, tia do Gabriel,
e varias outras, mais anchas ou mais esguias, mais esgrouviadas
ou mais repolhudas, que não sou eu nenhum Homero para estar, nem
antes nem depois da batalha, a tecer catalogos de guerreiros.--"Dê
licença!..."--"Ai, que me pisou!..."--"Perdoe!..."--"Não vê?..."--Eis
o que se ouviu murmurar por alguns instantes. E no meio daquelle
mar de cabeças adornadas de lenços de côr, listrados, e brancos,
avultava a pinha das recem-vindas, que tentavam ajoelhar; pinha
semelhante á embarcação rota a ponto de submergir-se, que balouça
vacillante, e se atufa lentamente nas aguas. Manuel da Ventosa,
que ficára em pé no topo inferior do estrado, sentia apertar-se-lhe
o coração vendo a sua Bernardina no meio daquelle cahos de capotes
e roupinhas, como uma avesinha do céu no meio de ninhada de sapos.
As sedas, o chapéu, as flores, a romeira rangiam, achatavam-se,
engorovinhavam-se entaladas entre aquellas baetas, pannos, camelões
e durantes, do mesmo modo que sobre o cadaver da virgem se achatam
e quebram as alvas roupas da innocencia e a corôa de rosas, debaixo
da terra aspera, pesada, immunda, que o coveiro atira brutalmente
sobre os restos do que foi bello, delicado e puro.--"Mas que
remedio?--pensou Manuel. As cousas assim hão-de ser sempre, porque
assim foram desde o principio do mundo."--Elle, de feito, cria que
desde esse tempo existiam missas cantadas, saloias e apertões.
Mas emfim ajoelharam, persignaram-se, e a festa principiou.
Não a descreverei eu. Quem não sabe o que é uma festividade de
orago, e o que é a missa solemne celebrada n'um templo catholico?
Ha ahi alguem, crente ou não-crente na fé que seus paes lhe
ensinaram, que não tenha bem vivos na memoria esses dias festivos
da sua meninice; esse culto, que sabe elevar o espirito para o
céu com as pompas de espectaculo sensual, que parece deveriam
faze-lo descer para a terra? Quem se não lembra daquelles bons
dias sanctos dos doze annos, em que o sol era mais formoso que
nos dias de trabalho, sem exceptuar a folgada quinta-feira do
sueto escholastico? Quem se não lembra da epocha, em que o nosso
parocho era para nós um ente quasi divino; porque, pobres creanças,
ainda ignoravamos os caminhos por onde esses homens, chamados a
uma existencia de sancta e sublime poesia, sabem vir despenhar-se
no charco das miserias e torpezas humanas, e revolver-se ahi
com aquelles de que deviam ser esperança, salvação e exemplo?
Quem não se recorda com saudade do tempo em que o altar só lhe
apparecia a certa distancia, com o seu frontal broslado e a sua
toalha alvissima, assoberbado pela catadupa de lumes de um throno,
perfumado pelas jarras de flores, involto no ambiente turvo pelos
rolos de fumo raro e pallido do incenso, symbolo do mysterio? A
quem não murmura ainda nos ouvidos o rythmo monotono e severo do
psalmear sacerdotal, mais accorde com as doces tristezas do coração,
que toda a musica sentida e dolorosa dos espectaculos scenicos, e
que estes, na impotencia de o vencer, têm ido humildemente imitar
nas creações dos modernos artistas (porque Meyerbeer, para ser o
rei das harmonias, foi invadir o templo)? Quem, finalmente, não
refugiu uma vez, cansado de scepticismo, para as memorias infantis
das commoções geradas pela religião dos primeiros annos, religião
toda de affectos, de inspirações, sem sciencia nem raciocinio,
os quaes, semelhantes ao sal espalhado sobre a terra, podem
fertilisar algum coração, mas esterilisam os mais delles? As
impressões indestructiveis das festas religiosas guardam-nas
os que crêm, como consolação do passado, e como esperança de
regosijo futuro; e os que não crêm tambem as guardam, no longo
crepusculo da sua alma, como guardamos no inverno as plantas
odoriferas já murchas, que, debaixo de céu pardo e frio, ao pé
da veiga nua e da arvore desfolhada, nos recordam o halito suave
dos campos ao pôr do sol de um dia sereno do estio.
Eis-ahi porque não descrevo a festa. Era especular descaradamente
com os leitores: era como se ao Bartholomeu se lhe mettesse em
cabeça ir ensinar o ceremonial romano ao incomparavel Fr. Narciso.
E que terá Fr. Narciso, que já escarrou duas vezes, já se assoou
quatro, já bufou seis, já arregalou os olhos para o corpo da
igreja oito? É que as attenções estão distrahidas. Fortes brutos!
Uma perfeição de ceremonias, que nem na capella sixtina no dia da
benção _urbi et orbi_!--"Olha o que lá vae! o que lá vae!--rosnava
elle cheio de indignação.--Aquellas endiabradas... Quem vos decepára
as linguas, tarameleiras! Até aqui! Louvado seja Deus! É de mais.
Psiuhhhh!"
Tinha razão. Era um zum zum na igreja, que quasi galgava por cima
das rebecas; e mais chiavam e desafinavam com alma. O arrastado
psiuhhhh de Fr. Narciso restabeleceu, porém, a ordem, que nem
n'um motim popular uma carga de cavallaria.
Mas para se restabelecer a ordem é necessario haver desordem.
Quero vêr se tambem dizem os parvos que esta proposição é uma
das minhas esquisitices, ou excentricidades, para lhes falar
na sua algaravia. A cousa tinha saído do logar onde estavam a
tia Jeronyma, Perpetua Rosa e a Bernardina. Qual cousa? Isso
é o que não diz a historia. O que é certo é que era um bis bis
que partia do centro para a circumferencia, como os circulos
concentricos que encrespam a superficie do lago ao meio do qual
se atirou uma pedra, e era ao mesmo tempo um balouçar de pontas de
lenços sobre os cabeções dos capotes, um rir abafado, um sussurro,
uma agitação entre o mulherío, tal, que attrahira a attenção e
logo a colera de Fr. Narciso. O mais que se pôde perceber foram
alguns fragmentos de dialogo entre a tia Jeronyma e a Engracia
do Estanislau fogueteiro.
"Padre nosso que estaes nos céus:--dizia Engracia Ripa, deixando
correr um dos bugalhos de umas contas da terra sancta que tinha
nas mãos.--Ora essa!--Sanctificado seja o vosso nome.--Forte
tractante!--Venha a nós o vosso reino.--E uma pessoa com a sua
áquella de que era um home como se quer!--Seja feita a vossa
vontade.--Safa!--Assim na terra como nos céus.--Com que então
setenta?"
"Entregadinhas!--_Ave Maria, gracia plena_:--respondeu a tia Jeronyma,
que latinisava furiosamente á força de viver com o prior.--Como
lh'o hei-de dizer?--_Domisteco._--Foi o demo que o tentou.--_Benedités
tu..._"
Neste ponto a interessante conversação das duas matronas foi
interrompida pelo psiu! raivoso de Fr. Narciso. Não podemos dizer
sobre que ella versava, nem aonde iria dar comsigo: e quando
n'uma chronica profunda e grave, como esta, faltam fundamentos
plausiveis, é dever do chronista ser sobrio, ou antes abster-se
de conjecturas. Direi só que ao saír a gente da festa, não havia
cão nem gato que não soubesse tim-tim por tim-tim a historia
do Manuel da Ventosa e da Bernardina.
Mais moralidade:--é o que elles tiraram das suas tolas tafularias.
Quando o prior saíu da igreja os rapazes desbarretavam-se, ainda
com mais signaes de cortezia e respeito do que era costume; as
raparigas affagavam-n'o com um sorrir e volver d'olhos affectuoso,
que fazia scismar o bom do parocho. Todos olhavam para elle e
falavam em voz baixa. O prior estava zangadissimo.
Mas qual foi o seu pasmo ao vêr chegarem-se a elle muitos velhos
de cabeça branca (eram varios lavradores seus freguezes, hourados
paes de familia) e beijarem-lhe a mão com os olhos arrasados de
agua! Estava fumando. Uma onda se lhe ía outra se lhe vinha de
destampar com tudo aquillo, e pregar uma descompostura solemne
e por atacado nos velhos, nos rapazes, e nas raparigas.
E para isso não lhe faltava metralha. Mas lembrou-se de que era
o dia do orago da aldeia, e teve mão em si. Só lá perguntava
aos seus botões qual seria a causa deste destempero e doudice.
Como havia elle de atinar, se tinha o costume de esquecer-se
do bem que fazia, porque, sendo fraco de memoria, reservava-a
toda para o bem que recebia?
A historia do casamento feito pelo velho parocho, segundo depois
me contaram (era eu pequeno, e lembra-me como se fosse hoje),
chegou aos ouvidos do prelado diocesano, o qual disse ao famulo
do famulo do seu secretario, um dia em que se levantou de dormir a
sésta com vontade de galhofar, que na primeira visita que fizesse
á diocese havia de elogiar publicamente aquelle digno pastor.
Nunca, porém, houve occasião para a primeira visita, porque esta
costumeira velha tinha passado já de moda. Eram pieguices só boas
para os Bartholomeus dos Martyres e para os Caetanos Brandões;
pobres homens, a quem Deus fale na alma, se é que valiam a pena
d'isso.
Ajuda--novembro de 1844.


DE JERSEY A GRANVILLE.
(1831)

Abandonavamos, emfim, o solo d'Inglaterra. Sería pela volta do
meio dia quando saltámos no chasse-marée que devia conduzir-nos
de Jersey a Saint-Maló, atravessando aquella estreita porção
do canal que nos separava da França. Sentimentos encontrados
eram nesse momento os meus. O sol resplandecia brilhante, e o
ar estava puro e sereno: era um dia d'outono, tão bello como
o que mais o fosse em Portugal. De um lado alteava-se a ilha
com os seus outeiros e valles, solo anfractuoso semelhante ao
nosso, e a povoação com os seus edificios cobertos de telha,
que nos faziam esquecer aquelles horriveis tectos inglezes de
lousa negra, especie de tabuletas do _spleen_, penduradas pelos
bretões sobre as suas cidades, e em que parece ler-se a inscripção
de Dante:
_Per me si va nella cittá dolente._
Do outro lado estendia-se o mar, chão e espelhado, que se interpunha
entre nós e a França; entre nós e esse paiz, que para a mocidade
das nações occidentaes da Europa é como uma segunda patria; porque
lá está o centro das idéas que hoje agitam os espiritos, tanto
no que respeita ás questões sociaes, como no que interessa á
sciencia e á litteratura; porque lá vivem os escriptores que
melhor conhecemos; que, até, amâmos como se foram nossos: paiz,
a cujos habitos, tradições, successos e glorias nos têm associado
os seus livros, sem o sentirmos, sem, talvez, o querermos. Ao
approximarmo-nos da França o coração não bate violento, nem se
derramam lagrymas, como ao avistar a terra em que nascemos; mas o
animo desaffoga-se, e abre-se á esperança; vamos tractar homens,
que nunca vimos, mas com quem de largo tempo vivemos pelas intimas
relações dos affectos e da intelligencia.
Eramos seis portuguezes a bordo do chasse-marée, além de dous
marinheiros francezes e um grumete, entidades analogas aos nossos
antigos desembargadores; porque cada um delles cumulava seis
ou sete cargos daquella vacillante e pequena republica, cargos
disparatados, que, todavia, as tres personagens desempenhavam
perfeitamente, destruindo assim, em parte, a analogia radical,
que tinham com esses magistrados de pedante e pesada memoria, que
não desempenhavam bem nenhum. Um cão e tres inglezes completavam
a collecção dos animaes inclusos entre as quatro taboas da fragil
embarcação.
O chasse-marée é um transporte maritimo, que, na minha profunda
ignorancia das cousas navaes, me parece semelhante ao hiate
portuguez, ao menos na immundicie e na carencia absoluta de tudo
o que seja commodidade. N'isto, entre parenthesis, não sou eu
ignorante; porque tenho experimentado uns e outros, e posso asseverar
que sería mui difficultoso de resolver qual dos dous generos de
navios tem parentesco mais proximo com as rudes e acanhadas galés,
em que, ha sete seculos, Guilherme o conquistador transportou,
através daquelle mesmo canal, da Normandia para Inglaterra os
ascendentes da actual aristocracia britannica.
Commoda ou incommoda, era necessario aproveitar aquella detestavel
jangada para passarmos a França, e isto por duas razões
urgentissimas; a primeira, porque nenhuma outra embarcação havia
no porto de Saint-Hélier com destino immediato para a costa
fronteira: a segunda, porque o preço da passagem era apenas uma
libra esterlina, e uma libra esterlina era o folego maior que
podia saír da bôca das nossas bolsas, cuja phtysica pulmonar
ia já no ultimo periodo. Tendo-nos, portanto, ajustado com o
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