Lendas e Narrativas (Tomo II) - 03

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"_Kirie-eleyson ... Kirie-eleyson ... Kirie-eleyson!_"--garganteava
d'ahi a pouco D. Çolleima, revestido dos habitos episcopaes,
juncto ao altar da capella-mór. O infante Affonso Henriques, o
Espadeiro e os dous pagens, de joelhos, ouviam missa com profunda
devoção.

5
Era noite. Em uma das salas mouriscas dos nobres paços de Coimbra
havia grande sarau. Donas e donzellas, assentadas ao redor do
aposento, ouviam os trovadores repetindo ao som da viola e em
tom monotono suas magoadas endechas, ou folgavam e riam com os
arremedilhos satyricos dos truões e farcistas. Os cavalleiros em
pé, ou falavam de aventuras amorosas, de justas e de bofordos,
ou de fossados e lides por terras de mouros fronteiros. Para um
dos lados, porém, entre um labyrintho de columnas, que davam
saída para uma galeria exterior, quatro personagens pareciam
entretidas em negocio mais grave do que os prazeres de noite de
folguedo o permittiam. Eram estas personagens Affonso Henriques,
Gonçalo Mendes da Maia, Lourenço Viegas, e Gonçalo de Sousa o
Bom. Os gestos dos quatro cavalleiros davam mostras de que elles
estavam vivamente agitados.
"É o que affirma, senhor, o mensageiro--dizia Gonçalo de Sousa--que
me enviou o abbade do mosteiro de Tibães, onde o cardeal dormiu
uma noite para não entrar em Braga. Dizem que o papa o envia
a vós, porque vos suppõe hereje. Em todas as partes por onde
o legado passou, em França e em Hespanha, vinham a lhe beijar
a mão reis, principes e senhores: a eleição de D. Çolleima não
póde por certo ir ávante..."
"Irá, irá!--respondeu o principe em voz tão alta que as suas
palavras reboaram pelas abobadas do vasto aposento.--Que o legado
tenha tento em si! Não sei eu se haveria ahi cardeal, ou
apostolico[5] que me estendesse a mão para eu lh'a beijar, que
pelo cotovello lh'a não cortasse fóra a minha boa espada. Que
me importam a mim vilezas dos outros reis e senhores? Vilezas,
não as farei eu!"
Isto foi o que se ouviu daquella conversação: os tres cavalleiros
falaram com o principe ainda por muito tempo: mas em voz tão
baixa, que ninguem percebeu mais nada.

6
Dous dias depois o legado do papa chegava a Coimbra: mas o bom
do cardeal tremia em cima da sua nedia mula, como se maleitas
o houveram tomado. As palavras do infante tinham sido ouvidas
por muitos, e alguem as havia repetido ao legado.
Todavia, apenas passou a porta da cidade, revestindo-se de animo,
encaminhou-se direito ao alcacer real.
O principe saíu a recebe-lo acompanhado de senhores e cavalleiros.
Com modos cortezes guiou-o á sala de seu conselho, e ahi se passou
o que ora ouvireis contar.
O infante estava assentado em uma cadeira de espaldas: diante
delle o legado em um assento raso, posto em cima de um estrado
mais elevado: os senhores e cavalleiros cercavam o filho do conde
Henrique.
"Dom cardeal,--começou o principe--que viestes vós fazer a minha
terra? Posto que de Roma só mal me tenha vindo, creio me trazeis
agora algum ouro, que de seus grandes haveres me manda o senhor
papa para estas hostes que faço, e com que guerreio noite e dia
os infiéis da frontaria. Se isto trazeis, acceitar-vo-lo-hei:
depois, desembaraçadamente podeis seguir vossa viagem."
No animo do legado a colera sobrepujou o temor, quando ouviu as
palavras do principe, que eram de amargo escarneo.

"Não a trazer-vos riquezas,--atalhou elle--mas a ensinar-vos a fé
vim eu; que della parece vos esquecestes, tractando violentamente
o bispo D. Bernardo, e pondo em seu logar um bispo sagrado com
vossas manoplas, victoriado só por vós com palavras blasphemas
e maldictas..."
"Calae-vos, dom cardeal,--gritou Affonso Henriques--que mentís
pela gorja! Ensinar-me a fé?! Tão bem em Portugal como em Roma
sabemos que Christo nasceu da Virgem; tão certo como vós outros
romãos cremos na sancta Trindade. Se a outra cousa vindes, ámanhan
vos ouvirei: hoje podeis-vos ir."
E ergueu-se: os olhos chammejavam-lhe de furor. Toda a ousadia
do legado desappareceu como fumo, e, sem atinar com resposta,
saíu do alcacer.

7
O gallo tinha cantado tres vezes: pelo arrebol da manhan o cardeal
partia aforradamente de Coimbra, cujos habitantes dormiam ainda
repousadamente.
O principe foi um dos que despertaram mais tarde. Os sinos
harmoniosos da sé costumavam acorda-lo tocando ás ave-marias:
mas naquelle dia ficaram mudos; e quando elle se ergueu havia
mais de uma hora que o sol subia para o alto dos ceus da banda
do oriente.
"Misericordia! misericordia!"--gritavam devotamente homens e mulheres
á porta do alcacer, com alarido infernal. O principe ouviu aquelle
ruido.
"Que vozes são estas que soam?"--perguntou elle a um pagem.
O pagem respondeu-lhe chorando:
"Senhor, o cardeal excommungou esta noite a cidade, e partiu:
as igrejas estão fechadas; os sinos já não ha quem os toque;
os clerigos fecham-se em suas pousadas. A maldicção do sancto
padre de Roma cahiu sobre nossas cabeças."
Outra vez soou á porta do alcacer:--Misericordia! Misericordia!"
"Que enfreiem e selem um cavallo de batalha. Pagem, que enfreiem
e selem o meu melhor corredor!"
Isto dizia o principe, encaminhando-se para a sala d'armas. Ahi
envergou á pressa um saio de malha, e pegou em um montante, que
apenas dous portuguezes dos de hoje valeriam a alevantar do chão.
O pagem tinha saído, e d'alli a pouco o melhor cavallo de batalha
que havia em Coimbra tropeava e rinchava á porta do alcacer.

8
Um clerigo velho, montado em uma alentada mula branca, vindo de
Coimbra seguia o caminho da Vimieira, e de instante a instante
espicaçava os ilhaes da cavalgadura com seus acicates de prata:
em duas outras mulas íam ao lado delle dous mancebos com caras
e meneios de beatos, vestidos de opas e tonsurados, mostrando
em seu porte e idade que aprendiam ainda as pueris ou ouviam
as grammaticaes[6]. Eram o cardeal, que se ía a Roma, e dous
sobrinhos seus que o haviam acompanhado.
Entretanto o principe partíra de Coimbra sósinho. Quando pela
manhan Gonçalo de Sousa e Lourenço Viegas o procuraram em seus
paços, souberam que era partido após o legado. Temendo o caracter
violento de Affonso Henriques, os dous cavalleiros seguiram-lhe
a pista á redea solta, e íam já muito longe quando viram o pó
que elle levantava correndo ao longo da estrada, e o scintillar
do sol batendo-lhe de chapa na cervilheira semelhante ao dorso
de um crocodilo.
Os dous fidalgos esporearam com mais força os ginetes e breve
alcançaram o infante.
"Senhor, senhor, aonde ides sem vossos leaes cavalleiros, tão
cedo e açodadamente?"
"Vou pedir ao legado do papa que se amercêe de mim..."
A estas palavras os cavalleiros transpunham uma assomada que
encobria o caminho: pela encosta abaixo ía o cardeal com os dous
mancebos das opas e cabellos tonsurados.
"Oh!..--disse o principe. Esta unica interjeição lhe fugiu da
bôca; mas que discurso houvera ahi que a igualasse? Era o rugido
de prazer do tigre, no momento em que salta do fojo sobre a prêa
descuidada.
"_Memento mei, Domine, secundùm magnam misericordiam tuam!_"--resou
o cardeal em voz baixa e trémula, quando ouvindo o tropear dos
cavallos, voltou os olhos, e conheceu Affonso Henriques.
Em um instante este o havia alcançado. Ao perpassar por elle,
travou-lhe do cabeção do vestido, e em um relance ergueu o montante:
felizmente os dous cavalleiros arrancaram as espadas, e cruzaram-nas
debaixo do golpe que já descia sobre a cabeça do legado: os tres
ferros feriram fogo; mas a pancada deu em vão, aliás o craneo
do pobre clerigo teria ido fazer mais de quatro redemoinhos nos
ares.
"Senhor, que vos perdeis, e nos perdeis, ferindo o ungido de
Deus:"--gritaram os dous fidalgos com vozes afflictas.
"Principe"--disse o velho chorando--"não me faças mal; que estou
á tua mercê!"--Os dous mancebos tambem choravam.
Affonso Henriques deixou descahir o montante, e ficou em silencio
alguns momentos.
"Estás á minha mercê:--disse elle por fim.--Pois bem! Viverás, se
desfizeres o mal que causaste. Que seja alevantada a excommunhão
lançada sobre Coimbra, e jura-me em nome do apostolico, que nunca
mais em meus dias será posto interdicto nesta terra portugueza,
conquistada aos mouros por preço de tanto sangue. Em refens deste
pacto ficarão teus sobrinhos. Se no fim de quatro mezes de Roma
não vierem letras de bençam, tem tu por certo que as cabeças
lhes voarão de cima dos hombros. Apraz-te este contracto?"
"Senhor, sim!--respondeu o legado com voz sumida.
"Juras?"
"Juro."
"Mancebos, acompanhae-me,"
Dizendo isto, o infante fez um aceno aos sobrinhos do legado,
que com muitas lagrymas se despediu delles, e sósinho seguiu
o caminho da terra de Sancta Maria.
D'ahi a quatro mezes D. Colleima dizia missa pontifical na
capella-mór da sé de Coimbra, e os sinos da cidade repicavam
alegremente. Tinham chegado letras de bençam de Roma; e os sobrinhos
do cardeal, montados em boas mulas, íam cantando devotamente pelo
caminho da Vimieira o psalmo que começa:
_In exitu Israel de Ægypto._
Conta-se, todavia, que o papa levára a mal no principio, o pacto
feito pelo legado; mas que por fim tivera dó do pobre velho,
que muitas vezes lhe dizia:
"Se tu, sancto padre, víras sobre ti um cavalleiro tão bravo
ter-te pelo cabeção, e a espada nua para te cortar a cabeça; e
seu cavallo tão feroz arranhar a terra, que já te fazia a cova
para te enterrar, não sómente deras as letras, mas o papado e
a cadeira apostolical."

* * * * *

NOTA
A lenda precedente é tirada das chronicas de Acenheiro, rol de
mentiras e disparates publicado pela nossa Academia, que teria
procedido mais judiciosamente em deixa-las no pó das bibliothecas,
onde haviam jazido em paz por quasi tres seculos. A mesma lenda
tinha sido inserida pouco anteriormente na chronica de Affonso
Henriques por Duarte Galvão, formando a substancia de quatro
capitulos, que foram supprimidos na edição deste auctor, e que
mereceram da parte do academico D. Francisco de S. Luiz uma _grave_
refutação. Toda a narrativa da prisão de D. Theresa, das tentativas
_opposicionistas_ do bispo de Coimbra, da eleição do bispo negro,
da vinda do cardeal, e da sua fuga contrastam a historia daquella
epocha. A tradição é falsa a todas as luzes: mas tambem é certo
que ella se originou de algum acto de violencia praticado nesse
reinado contra algum cardeal legado. Um historiador coevo, e, posto
que estrangeiro, bem informado geralmente ácerca dos successos do
nosso paiz, o inglez Rogerio de Hoveden, narra um facto acontecido
em Portugal, que, pela analogia que tem com o conto do bispo
negro, mostra a origem da fabula. A narrativa do chronista está
indicando que o acontecimento fizera certo ruído na Europa, e a
propria confusão de datas e de individuos, que apparece no texto
de Hoveden, mostra que o successo era anterior e andava já alterado
na tradição. O que é certo é que o achar-se esta conservada fóra
de Portugal desde o seculo duodecimo por um escriptor que Ruy
de Pina e Acenheiro não leram (porque só foi publicado no seculo
decimo-setimo) prova que ella remonta entre nós, por maioria de
razão, tambem ao seculo duodecimo, embora desfigurada como já a
vemos no chronista inglez. Eis a notavel passagem a que alludimos,
e que se lê a pag. 640 da edição de Hoveden, por Savile:
"No _mesmo anno_ (1187) o cardeal _Jacintho_, então legado em toda
a Hespanha, depôs muitos prelados _(abbates)_ ou por culpas delles
ou por impeto proprio, e como quizesse depôr o bispo de Coimbra,
o rei _Affonso_ (Henriques) não consentiu que elle fosse deposto,
e mandou ao dicto cardeal que saísse da sua terra, quando não
cortar-lhe-hia um pé."
* * * * *
[1] A sé velha de Coimbra é no todo, ou na maxima parte
uma edificação dos fins do seculo duodecimo; mas acceitámos aqui
a tradição que lhe attribue uma remotissima antiguidade.
[2] Hoje Terra da Feira, proxima do Porto, na estrada
de Coimbra.
[3] É notavel coincidencia a seguinte: Em 1088 _um
presbytero, por nome Zoleima,_ fez uma doação _á sé de Coimbra_.
Desta doação se lembra Fr. Antonio Brandão M. L. P. 3.ª L. 8.º
Cap. 5.º pag. 13 col. 2.ª in fine.
[4] _Clerigo_ naquella epocha não significava só o
ecclesiastico revestido do sacerdocio, mas sim qualquer individuo
empregado no serviço do culto. D'ahi a frequente menção nos
documentos, de _clerigos casados_.
[5] Papa.
[6] Estudos menores ou preparatorios. Assim parece se
chamavam na idade média. _Darin lernt ich puerilia,_ diz Hans Sachs
no seu _Lebensbeschreibung_, e o bispo do Porto, D. Pedro Affonso,
affirma de seu predecessor D. João Gomes: _erat bonus homo, et
sinè aliqua malitia, sed jura aliqua non audiverat, immò nec
grammaticalia, quod est plus_.


A MORTE DO LIDADOR
(1170)

1
"Pagens! que arreiem o meu ginete murzello; e vós dae-me o meu
lorigão de malha de ferro, e a minha boa toledana. Senhores
cavalleiros, hoje contam-se noventa e cinco annos que recebi o
baptismo, oitenta que visto armas, setenta que sou cavalleiro, e
quero celebrar tal dia fazendo uma entrada por terras da frontaria
dos mouros."
Isto dizia na sala de armas do castello de Béja Gonçalo Mendes
da Maia, a quem, pelas muitas batalhas que pelejára, e por seu
valor indomavel chamavam o Lidador. Affonso Henriques, depois do
infeliz successo de Badajoz, e feitas pazes com elrei de Leão,
o nomeára fronteiro da cidade de Béja, de pouco conquistada aos
mouros. Os quatro Viegas, filhos do bom velho Egas Moniz, estavam
com elle, e outros muitos cavalleiros afamados, entre os quaes
D. Ligel de Flandres, e Mem Moniz, tio dos quatro Viegas.
"A la fé--disse Mem Moniz---que a festa de vossos annos, senhor
Gonçalo Mendes, será mais de mancebo cavalleiro, que de capitão
encanecido e prudente. Deu-vos elrei esta frontaria de Béja para
bem a haverdes de guardar, e não sei eu se arriscado é saír hoje
á campanha, que dizem os escutas, chegados ao romper d'alva,
que o famoso Almoleimar corre por estes arredores com dez vezes
mais lanças do que todas as que estão encostadas nos lanceiros
desta sala de armas."
"Voto a Christo--atalhou o Lidador--que não cria eu que o senhor
rei me houvesse posto nesta torre de Béja para estar assentado á
lareira da chaminé, como uma velha dona, a espreitar de quando
em quando por uma séteira, se cavalleiros mouros vinham correr
té a barbacan, para lhes cerrar as portas, e ladrar-lhes do cimo
da torre da menagem, como usam os villãos. Quem achar que são
duros de mais os arnezes dos infiéis póde ficar-se aqui."
"Bem dicto! bem dicto!"--clamaram, dando grandes risadas, os
cavalleiros mancebos.
"Por minha boa espada!"--gritou Mem Moniz, atirando com o
guante-ferrado ás lageas do pavimento--"que mente pela gorja quem
disser que eu ficarei aqui, havendo dentro de dez leguas em redor
lide com mouros. Senhor Gonçalo Mendes, podeis montar em vosso
ginete, e veremos qual das nossas lanças bate primeiro em adarga
mourisca."
"A cavallo, a cavallo!"--gritou outra vez a chusma, com grande
alarido.
D'alli a pouco ouvia-se o retumbar dos sapatos de ferro de muitos
cavalleiros descendo os degraus de marmore da torre de Béja,
e passados alguns instantes soava só o tropear dos cavallos
atravessando a ponte levadiça das fortificações exteriores, que
davam para a banda da campanha, por onde costumava apparecer
a mourisma.

2
Era um dia do mez de Julho, duas horas depois da alvorada, e
tudo estava em grande silencio dentro da cerca de Béja: batia o
sol nas pedras esbranquiçadas dos muros e torres que a defendiam:
ao longe, pelas immensas campinas, que avizinham o teso, sobre
que a povoação está assentada, viam-se ondear as searas maduras,
cultivadas por mãos de agarenos para seus novos senhores christãos.
Regados por lagrymas de escravos tinham sido esses campos quando
em formoso dia de inverno os sulcou o ferro do arado; por lagrymas
de servos seriam outra vez humedecidos, quando no mez de Agosto
a paveia, cerceada pela fouce, pendesse sobre a mão do ceifeiro:
chôro de amargura havia ahi, como cinco seculos antes o houvera:
então de christãos conquistados, hoje de mouros vencidos. A cruz
basteava-se outra vez sobre o crescente quebrado; os corucheus
das mesquitas convertiam-se em campanarios de sés, e a voz do
almuhaden trocava-se por toada de sinos, que chamavam á oração
entendida por Deus. Era esta a resposta dada pela raça goda aos
filhos d'Africa e do Oriente, que diziam mostrando os alfanges:--"é
nossa a terra de Hespanha."--O dicto do arabe foi desmentido; mas a
resposta gastou oito seculos a escrever-se: Pelaio entalhou com a
espada a primeira palavra della nos cerros das Asturias; a ultima
gravaram-na Fernando e Isabel com os pelouros de suas bombardas
nos pannos das muralhas da formosa Granada: e a esta escriptura,
estampada em alcantis de montanhas, em campos de batalha, nos
portaes e torres dos templos, nos lanços dos muros das cidades
e castellos, accrescentou no fim a mão da providencia:--"assim
para todo o sempre!"
Nesta lucta de vinte gerações andavam lidando as gentes do Alemtejo.
O servo mouro olhava todos os dias para o horisonte, onde se
enxergavam as serranias do Algarve: de lá esperava elle salvação,
ou ao menos vingança; ao menos um dia de combate, e corpos de
christãos estirados na veiga para pasto dos açores bravios. A
vista do sangue enxugava-lhes por algumas horas as lagrymas,
embora os valentes d'Africa houvessem de fugir vencidos; embora
as aves de rapina tivessem tambem abundante ceva em cadaveres
de seus irmãos! E este ameno dia de julho devia ser um desses
dias porque suspirava o servo ismaelita.
Almoleimar descêra com seus cavalleiros ás campinas de Béja.
Pelas horas mortas da noite viam-se as almenáras das suas atalaias
nos pincaros das serras remotas, semelhantes ás luzinhas, que
em descampados e tremedaes accendem as bruxas em noites de seus
folguedos; bem longe éstavam as almenáras, mas bem perto sentiam
os escutas o resfolegar e o tropear de cavallos, e o ranger de
folhas seccas, e o tinir a espaços de alfange batendo em ferro
de canelleira, ou de coxote. Ao romper d'alva os cavalleiros
do Lidador saíam mais de dous tiros de bésta alem das velhas
muralhas de Béja; tudo, porém, estava em silencio, e só aqui e
alli as searas calcadas davam rebate de que por aquelles sitios
tinham vagueado almogaures mouros, como o leão do deserto rodeia
pelo quarto de modorra as habitações dos pastores alem das encostas
do Atlas.
No dia em que Gonçalo Mendes da Maia, o velho fronteiro de Béja,
cumpria os noventa e cinco annos, ninguem saíra, pelo arrebol da
manhan, a correr o campo; e, todavia, nunca tão de perto chegára
Almoleimar; porque uma frecha fôra pregada á mão em um grosso
carvalho, que sombreava uma fonte, a pouco mais de tiro de funda
dos muros do castello. Era que nesse dia deviam ir mais longe os
cavalleiros christãos: o Lidador pedíra aos pagens o seu lorigão
de malha de ferro, e a sua boa toledana.

3
Trinta fidalgos, flor da cavallaria, corriam á redea solta pelas
campinas de Béja; trinta, não mais, eram elles; mas orçavam por
trezentos os homens d'armas, escudeiros e pagens que os acompanhavam.
Entre todos avultava em robustez e grandeza de membros o Lidador,
cujas barbas brancas lhe ondeavam como frocos de neve sobre o
peitoral da cota d'armas, e o terrivel Lourenço Viegas, a quem
pelos espantosos golpes da sua espada chamavam o Espadeiro. Era
formoso espectaculo e esvoaçar dos balsões e signas, fóra de suas
fundas, e soltos ao vento, o scintillar das cervilheiras, as
cores variegadas das cotas, e as ondas de pó, que se alevantavam
debaixo dos pés dos ginetes, como as alevanta o bulcão de Deus,
varrendo a face da campina resequida, em tarde ardente de verão.
Ao largo, muito ao largo, dos muros de Béja vai a atrevida cavalgada
em demanda dos mouros; e no horisonte não se vêem senão os topos
pardo-azulados das serras do Algarve, que parece fugirem tanto
quanto os cavalleiros caminham. Nem um pendão mourisco, nem um
albornoz branco alveja ao longe sobre um cavallo murzello. Os
corredores christãos volteiam na frente da linha dos cavalleiros,
correm, cruzam para um e outro lado, embrenham-se nos matos, e
transpõem-nos em breve; entram pelos cannaviaes dos ribeiros;
apparecem, somem-se, tornam a saír ao claro: mas no meio de tal
lidar apenas se ouve o trote compassado dos ginetes, e o grito
monotono da cigarra, pousada nos raminhos da giesteira.
A terra que pisam é já de mouros; é já além da frontaria. Se
olhos de cavalleiros portuguezes soubessem olhar para trás indo
em som de guerra, os que para trás de si os volvessem a custo
enxergariam Béja. Bastos pinhaes começavam já a cobrir mais ondeado
territorio, cujos outeirinhos aqui e alli se alteavam suaves como
seio de virgem em viço de mocidade. Pelas faces tostadas dos
cavalleiros cobertos de pó corria o suor em bagas, e os ginetes
alagavam de escuma as redes de ferro acaireladas de ouro, que
os defendiam. A um signal do Lidador a cavalgada parou; era
necessario repousar, que o sol ía no zenith e abrazava a terra:
descavalgaram todos á sombra de um azinhal, e sem desenfrear os
ginetes deixaram-nos pascer alguma relva, que crescia nas bordas
de um arroio vizinho.
Tinha passado meia hora: por mandado do velho Fronteiro de Béja
um almogavar montou a cavallo, e aproximou-se á rédea solta de
uma selva extensa, que corria á mão direita: pouco, porém, correu;
uma frecha despedida dos bosques sibilou no ar: o almogavar gritou
por Jesus: a frecha tinha-se-lhe embebido no lado: o cavallo
parou de repente, e elle, erguendo os braços ao ar com as mãos
abertas, cahiu de bruços, tombando para o chão, e o ginete partiu
desenfreado através das veigas, e desappareceu na selva. O almogavar
dormia o ultimo somno dos valentes em terra de inimigos, e os
cavalleiros da frontaria de Béja viram o seu trance do repousar
eterno.
"A cavallo! a cavallo!"--bradou a uma voz toda a lustrosa companhia
do Lidador; e o tinido dos guantes ferrados, batendo na cobertura
de malha dos ginetes, soou unisono, quando todos os cavalleiros
cavalgaram de um pulo: e os ginetes rincharam de prazer, como
aspirando os combates.
Uma grita medonha troou ao mesmo tempo além do pinhal da
direita.--"Allah! Almoleimar!"--era o que dizia a grita.
Enfileirados em uma longa linha, os cavalleiros arabes saíram á
rédea solta de trás da escura selva que os encubria: o seu numero
excedia cinco vezes o dos soldados da cruz: as suas armaduras
lisas e polidas contrastavam com a rudeza das dos christãos,
apenas defendidos por pesadas cervilheiras de ferro, e por grossas
cotas de malha do mesmo metal: mas as lanças destes eram mais
robustas, e as suas espadas mais volumosas do que as cimitarras
mouriscas. A rudeza e a força da raça gothico-romana íam ainda
mais uma vez provar-se com a destreza e com a perícia arabes.

4
Como uma longa fita de muitas côres, recamada de fios d'ouro, e
reflectindo ao longe mil accidentes de luz, a extensa e profunda
linha dos cavalleiros mouros sobresaía na veiga entre as searas
pallidas que cubriam o campo: defronte delles os trinta cavalleiros
portuguezes, com trezentos homens d'armas, pagens, e escudeiros
cubertos dos seus escuros involtorios, e lanças em riste, esperavam
o brado de accommetter. Quem visse aquelle punhado de christãos,
diante da copia d'infiéis que os esperavam, diria que, não com
brios de cavalleiros, mas com fervor de martyres, se offereciam
a desesperado trance. Porém, não pensava assim Almoleimar, nem os
seus soldados, que bem conheciam a têmpera das espadas e lanças
portuguezas, e a rijeza dos braços que as meneavam. De um contra
dez devia ser o eminente combate; mas se havia ahi algum coraçâo
que batesse descompassado, algumas faces descoradas, não era
entre os companheiros do Lidador que tal coração batia ou que
taes faces descoravam.
Pouco a pouco a planura que separava as duas hostes tinha-se
embebido debaixo dos pés dos cavallos, como no torculo se embebe
a folha de papel saindo para o outro lado convertida em estampa
primorosa. As lanças iam feitas: o Lidador bradára Sanctiago; e
o nome de Allah soára em um só grito por toda a fileira mourisca.
Encontraram-se! Duas muralhas fronteiras, balouçadas por violento
terremoto, desabando, não fariam mais ruido, ao bater em pedaços
uma contra a outra, que este recontro de infiéis e christãos: as
lanças topando em cheio nos escudos tiravam delles um som profundo,
que se misturava com o estalar das que voavam despedaçadas. Do
primeiro encontro muitos cavalleiros vieram ao chão: um mouro
robusto foi derribado por Mem Moniz, que lhe falsou as armas,
e traspassou o peito com o ferro de sua grossa lança.
Deixando-a depois cahir, o velho desembainhou a espada, e gritou
ao Lidador, que perto delle estava:
"Senhor Gonçalo Mendes, alli tendes, no peito daquelle perro,
aberta a séteira por onde eu, velha dona assentada á lareira,
costumo vigiar a chegada de inimigos, para lhes ladrar como alcateia
de villãos do cimo da torre de menagem."
O Lidador não lhe pôde responder. Quando Mem Moniz proferia as
ultimas palavras, elle topára em cheio com o terrivel Almoleimar.
As lanças dos dous contendores haviam-se feito pedaços, e o alfange
do mouro cruzou-se com a boa toledana do Fronteiro de Béja.
Como duas torres de sete seculos, cujo cimento o tempo petrificou,
os dous capitães inimigos estavam um defronte do outro, firmes
em seus possantes cavallos: as faces pallidas e enrugadas do
Lidador tinham ganhado a immobilidade que dá, nos grandes perigos,
o habito de os affrontar: mas no rosto de Almoleimar divisavam-se
todos os signaes de um valor colerico e impetuoso. Cerrando os
dentes com força, descarregou um golpe tremendo sobre o seu
adversario: o Lidador recebeu-o no escudo, onde o alfange se
embebeu inteiro, e procurou ferir Almoleimar entre o fraldão e
a couraça; mas a pancada falhou, e a espada desceu, faiscando,
pelo coxote do mouro, que já desencravára o alfange. Tal foi a
primeira saudação dos dous cavalleiros inimigos.
"Brando é o teu escudo, velho infiel; mais bem temperado é o
metal do meu arnez. Veremos agora se na tua touca de ferro se
embotam os fios deste alfange."
Isto disse Almoleimar, dando uma risada; e a cimitarra bateu
em cima da cervilheira do Lidador com a mesma violencia com que
bate no fundo do valle penedo desconforme desprendido do pincaro
da montanha.
O Fronteiro vacillou, deu um gemido, e os braços ficaram-lhe
pendentes: a espada ter-lhe-hia cahido no chão, se não estivesse
presa ao punho do cavalleiro por uma cadeia de ferro: o ginete,
sentindo as redeas frouxas, fugiu um bom pedaço pela campanha
a todo o galope.
Mas o Lidador tornou a si: uma forte soffreada avisou o ginete
de que seu senhor não morrêra. Á redea solta lá volta o Fronteiro
de Béja; escorre-lhe o sangue, involto em escuma, pelos cantos
da bôca: traz os olhos torvos de ira: ai de Almoleimar!
Semelhante ao vento de Deus, Gonçalo Mendes da Maia passou por
entre christãos e mouros: os dous contendores viram-se, e, como
o leão e o tigre, correram um para o outro: as espadas reluziram
no ar: mas o golpe do Lidador era simulado, e o ferro, mudando
de movimento no ar, foi bater de ponta no gorjal de Almoleimar,
que cedeu á violenta estocada; e o sangue, saindo ás golfadas,
cortou a ultima maldicção do agareno.
Mas a espada deste tambem não errára o golpe: vibrada com ancia,
colhêra pelo hombro esquerdo o velho Fronteiro, e, rompendo a
grossa malha do lorigão, penetrára na carne até o osso; e ainda
mais uma vez a mesma terra bebeu nobre sangue godo misturado
com sangue arabe.
"Perro maldicto! Sabe lá no inferno que a espada de Gonçalo Mendes
é mais rija que a sua cervilheira."
E, dizendo isto, o Lidador cahiu amortecido: um dos seus homens
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