Lendas e Narrativas (Tomo II) - 07

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os dentes, e com a mão agarrada á maçaneta do catre. D'ahi a
pouco vinha-lhe outra enfiada de imaginações, e d'ahi outra,
e outra, até que por fim a idéa de que as setenta peças eram
suas lhe ficava de tal modo encravada e enraizada na alma, que
o arrancar-lh'a de lá seria o mesmo que metter-lhe no bucho uma
apoplexia. Então punha-se a scismar no pensamento capital e gerador
de todas essas imagens bemaventuradas que lhe luziam no olho, o
como chamaria á muxilla as setenta do dote. Abafa-las? Nega-las
ao prior? Estremeceu horrorisado; porque Bartholomeu era homem
de probidade, a seu modo, que, sem malicia seja dicto, vinha
a ser um modo como o de tantos homens honrados que todos nós
conhecemos. Nada! Era preciso um meio natural, decente, legitimo
de arranjar o negocio. Caíu então no que o prior queria que elle
caísse. Casou _in mente_ o seu Manuel com a Bernardina. Feito isto,
as peças eram suas; suas porque o Manuel pellava-se com medo
delle, e casado ou solteiro havia de ficar-lhe sempre debaixo
dos cabeções. Assentado este ponto, o moleiro sentia um certo
refrigerio interior que o consolava. Não tardou a adormecer no
somno do justo, e em placidos sonhos balouçou-se todo o resto
da noite entre a azenha do Ignacio Codeço e o casal de seu irmão
Barnabé. Saía ás vezes desta hesitação beatifica sonhando no
gatazio que ía pregar ao Agostinho, e ria com um rir de innocencia.
Era um sancto velho aquelle Bartholomeu da Ventosa!
O leitor deve estar já sufficientemente aborrecido de tão comprida
historia do moleiro, da lavadeira e do prior; por isso não o farei
assistir ás explicações entre o pae e o filho. Mais repousado
o sangue com o dormir, Bartholomeu reflectiu pela manhan que o
propor ao parocho o seu Manuel para noivo de Bernardina tinha
suas parecenças com o haver-lhe proposto para ser dotada sua
sobrinha Joanna, idéa maldicta que lhe tinha custado uma risada
nas suas barbas e um revértere com texto de Biblia. Por outra
parte pensava que Manuel era o seu unico herdeiro, e que se
Bernardina trazia para a ceia, elle levaria para o jantar, principio
consagrado pela philosophia saloia, talvez desde o tempo dos
mouros. Emfim o pae nestes vaivens, e o filho com os receios que
o leitor póde imaginar, fizeram ao declararem-se uma verdadeira
scena de comedia. Ao cabo, porém, de tudo entenderam-se. Assim
o padre prior, á custa das suas economias de quarenta annos,
teve a consolação de fazer tres sermões, um a Bartholomeu sobre
a cubiça e avareza, outro a Manuel sobre o trabalho, sobriedade
e mais virtudes annexas á condição de pae de familia, outro
finalmente a Bernardina sobre a honestidade, modestia e sujeição
das mulheres casadas. Depois, quando veio a paschoa, regalou-se
de atar o laço matrimonial entre os dous amantes, acabando por
uma vez com as interpellações das lavadeiras, com as espreitaduras
dos curiosos, e com as murmurações do beaterio. Custou-lhe a
brincadeira setenta peças, e o atirar á rua o sermão sobre a
avareza, porque o Bartholomeu continuou a ser sovina até a hora
da morte, na qual piamente se deve crer o catrafilou o diabo,
não só por ser unhas de fome, mas por ter refinado a ponto, que,
perdendo a vergonha, já começava a sizar nas maquias, com escandalo
dos freguezes, e grande mortificação de seu filho Manuel.
Agora duas palavras sobre a festa do orago da parochia, o meu
rico S. Pantaleão. O leitor vio o padre prior caminhando pela
estrada dolorosa da moral evangelica: é necessario que o veja
tambem radiante no meio das pompas do culto.
* * * * *
[1] Assim se denominava ainda ha poucos annos uma casa, na
proximidade da cada uma das aldeias vizinhas de Lisboa, emprestada
por algum ricaço ou alugada, em que se ajunctava nas noites dos
domingos para _brincar_ (dançar) a mocidade aldeian.
[2] Nu saí do ventre de minha mãe, e nu voltarei para
alli. Job: cap. 1, v. 21.

IV
ALHOS E BUGALHOS.

S. Pantaleão era, como disse, o orago da freguezia aldeian, cujos
habitantes mais conspicuos o leitor já conhece, e por via dos
quaes o puz em contacto com as differentes classes de que se
compunha aquelle mundozinho, ou, para melhor dizer, e falar de
modo que não me entendam, aquelle _microcosmo_. Esse grecismo
expremeu-mo do espirito S. Pantaleão, que, conforme o que bem
pondera a folhinha, foi medico, e os medicos finam-se por grego.
O padre prior e o sacristão representam a igreja espiritual e
materialmente, o Agostinho da tenda o commercio, o Barnabé a
agricultura, a senhora Perpetua Rosa a industria, e finalmente
o honrado Bartholomeu da Ventosa representa nos seus sonhos a
industria-agricola, ou a agricultura-industrial, genero de existencia
lembrado pelos economistas da Alemanha para salvar as classes
laboriosas do horrivel futuro com que as ameaça o vapor; porque
se ha-de advertir que alguns restos de prudencia e juizo que
ainda havia cá por esta nossa Europa varreu-os Deus para aquelle
canto do mundo, a que nós chamamos a terra das theorias e das
chimeras; nós os homens do meio dia, que fazemos phalansterios
e não sei quantas mais comedias politicas capazes de fazer rir...
quem direi eu? O proprio mirradissimo S. Pantaleão da cidade
eterna.
Eterna, entenda-se, até que o primeiro cometa venha embrulhar
na cauda este nosso _microcosmo_ tão caturra e parvo chamado o
orbe terraqueo.
Celebra-se a festa de S. Pantaleão a vinte-sete de julho; data
preciosa e averiguada por mim em largas vigilias, consumidas
em revolver breviarios, antiphonarios, legendarios, missaes,
sanctoraes, e livros historiaes, na phrase daquelle grande rhetorico
Gomes Eannes. Está a folhinha pontualissima; podem acreditar-me!
Celebrou-se, celebra-se e ha-de celebrar-se a festa de S. Pantaleão,
o bemaventurado physico, todos os vinte-sete de julho, até a
consummação dos seculos; salvo o caso de ninguem se lembrar d'aqui
a cem ou duzentos annos de que existiu no mundo o meu rico sancto;
mas espero tal não aconteça ficando lançada a sua memoria nestas
paginas, ás quaes incontestavelmente pertence a immortalidade.
"Mas--acudirão os leitores--que nos importa a nós que essa
commemoração seja a vinte-sete ou a vinte-oito: seja em julho ou
em dezembro? Vamos á festa, e deixemo-nos de historias."--Devagar,
devagar! É justamente porque isto é uma historia grave, sisuda,
erudita, que eu não me havia de metter abrutadamente na narração, sem
deixar averiguada, esmiuçada e fixada a data precisa e irrecusavel
do meu _recontamento_. Sabem o que é uma data? Uma data é, depois de
uma questão de orthographia, do talho e feitura de uma judia, a que
os nossos velhos chamavam uma aljuba, e depois de um phalansterio, a
que os dictos velhos chamariam uma sandice, a cousa mais importante
que conheço neste valle de lagrymas. No caso presente, supponhamos
que eu fosse um cabeça de vento, que atirasse com S. Pantaleão
para vinte-sete de dezembro. Ficavamos aceiados; não tem duvida!
Ahi se me ía metter a segunda oitava do Natal com o meu sancto
martyr; e eu a querer revestir o padre prior para a missa cantada
e a vêr-me doudo na escolha da vestimenta. Vermelho? Saltava-me
a canzoada dos criticos:--Fóra ignorantão! Vermelho na segunda
oitava da Natividade!? Vae ler o Claudio de Vert, alarve! vae ler
o Campello, o Gavanto, o Lambertini."--Atarantado com a grita,
atirava-me ao gavetão da vestimenta branca. Peior! Vinha-me outra
surriada de sotavento:--Olha a alimaria! Não querem ver? A um
martyr vestimenta branca! Hypocrita! que nos anda aqui a prégar
sermões a favor dos padres e dos frades, e ainda não sabe qual é
a sua vestimenta direita. Ahi tem os taes escrevedores d'agua
doce, que se riem á socapa das arcadias, e das odes pindaricas,
e da sciencia em notas, e das chronologias dos academicos. A
gente que fazia essas cousas trazia as vestimentas na ponta da
lingua: distinguia-as como _hora horae_ de _servus servi_. Vae ler,
oh taboa rasa de Locke, vae ler o Prado, o Clericato, o Bauldry,
o..."
E eu, que não podia ir ler tanto calhamaço em folio, em quarto,
em oitavo, e em doze, estacava, punha-me a gaguejar, perdia o
fio da narrativa, e não proseguia nesta notavel historia do padre
prior, a qual me abriria as portas do Instituto Historico de
París, se eu fosse tão creança que me resolvesse a pagar não sei
quantos francos por anno para gosar dessa incomparavel honra.
Por isto façam os leitores idéa das deploraveis consequencias de
um erro de data!--"Porém--replicarão elles--quem te obrigava a
tractares essa questão chronologica, superior talvez ás forças do
teu entendimento? Não foste andando até aqui sem te metteres nesses
debuxos? Porque não descreves a festa, deixando aos entendidos em
calendario o pô-la na epocha propria?"--Bonissimos leitores, pensaes
vós que eu sou o Manuel da Ventosa, que me deixe assim esmagar por
uma saraivada de perguntas? Enganaes-vos! A resposta vae caír dos
bicos desta penna como as frechas de Apollo _longe-asseteador_ caíam
no campo dos argivos, segundo resa Homero no capitulo primeiro da
sua chronica das birras do Pelida e do Atrida: a minha tréplica
vae tombar sobre os prelos convincente, irresistivel, irreplicavel.
Ei-la. Finjamos por um momento que, em vez de consultar os
respectivos auctores sobre a verdadeira casa de S. Pantaleão no
taboleiro do calendario, nem sequer pensava nisso, e começava _ex
abrupto_ a scena da festa aldeian. Que succedia? Como estamos no
inverno, e eu gósto do inverno, principalmente quando ruge uma boa
nortada (são gostos), punha-me a descrever um destes formosos dias
de dezembro ou de janeiro, em que o firmamento parece retincto de
novo no seu tão lindo azul; em que a verdura infantil das searas
á flor da terra sorri estirando-se dos topos arredondados dos
outeiros pelo pendor de recostos levemente inclinados; em que a
relva se mira á luz vermelha da aurora no espelho do caramelo,
que envidraça a superficie dos pegos e remansos dos regatos.
Falar-vos-hia de uma abençoada missa do gallo na aldeia em noite
de luar, missa mil e quinhentas vezes mais poetica do que toda
a poesia protestante desde Luthero, o pae do protestantismo,
até Strauss, que hoje lhe tira as derradeiras consequencias;
falar-vos-hia, emfim, de mil cousas, muito bonitas, muito viçosas,
muito brilhantes, mas que viriam tanto a proposito de S. Pantaleão,
como o anho paschal daquella sancta velha da tia Jeronyma viria
a pello da Natividade com o seu caldo tradicional de perú, ou
como o estylo do nosso drama moderno se casa com a linguagem
da sociedade cujo transumpto deve ser. É por esta razão que em
cousas serias, quaes a presente narrativa, eu sou muito pechoso
em averiguar tudo quanto póde contribuir para a perfeição de
obras em que a fórma de modo nenhum ha-de vencer a substancia:--e
a essa classe pertencem estes estudos moraes.
Resolvida e assentada a questão de tempo e logar, sem o que não
ha obra litteraria, segundo affirmam os glossadores e espivitadores
daquella famosa embrulhada de Horacio chamada a Epistola aos
Pisões, resta dizer alguma cousa ácerca de S. Pantaleão. Por muita
importancia que eu ligue á feira, aos foguetes, aos buscapés, ás
jarras de flores, aos tocheiros accesos, ao sacristão, á musica,
aos festeiros, e ao padre prior, ligo muita mais á memoria daquelle
cuja festa trazia n'um rodopio toda a aldeia, e até tivera a
influencia magnetica de alargar os fechos da bolça ao veneravel
moleiro Bartholomeu. Tenham, portanto, paciencia; que já agora
hei-de dizer-lhes duas palavras ácerca do meu rico sancto. São
reminiscencias do sermão, o qual, desde aqui fique sabido, foi feito
e prégado por Fr. Timotheo, o fradalhão arrabido de mendicante e
espoliada memoria. É pouco mais ou menos um resumo da historia do
sancto como a contou Fr. Timotheo. Parece-me que o estou ouvindo!
S. Pantaleão era um medico de Nicomedia: o bispo Hermolau converteu-o
ao christianismo. Desde então elle reduziu o seu receituario á
invocação do nome do Senhor. Seguiram-se d'aqui duas consequencias
graves: as suas curas foram mais baratas e mais rapidas, ao mesmo
tempo que as offertas dos doentes escaceavam nos templos pagãos,
e os sacerdotes de Esculapio começavam a morrer litteralmente
de fome. O resultado foi um clamor geral contra o pobre sancto:
os sacerdotes accusavam-n'o de impio e de bruxo, os medicos de
charlatão. O odio contra elle chegou ao ultimo auge: só faltava
uma occasião para a vingança: esta não tardou a apparecer.
"Não, que não havia de chegar!--rosnou o barbeiro, que, espécado
em frente do pulpito, meneava a cabeça laudativamente de quando
em quando, em honra da eloquencia de Fr. Timotheo, que, narrando
a vida do sancto, esbravejava como um possesso.--Não, que não
havia de chegar! Bastavam os medicos. Os medicos e os cirurgiões!
Posto que até certo ponto pertença á faculdade, hei-de dize-lo:
é a classe mais invejosa do merito, que eu conheço."
O barbeiro pensava assim havia muitos annos: desde que fôra
cruelmente arranhado por tres raposas, que os lentes do Hospital
lhe tinham largado ás pernas em um exame de sangrador. Boas ou
más, eram as suas doutrinas.
Entretanto o arrabido continuava a lenda de S. Pantaleão: as idéas
que della conservo são as seguintes:
Neste meio tempo veio a Nicomedia o imperador Maximiano. S. Pantaleão
restituiu perante elle a um paralytico o uso dos membros, o que
nem os sacerdotes pagãos, nem os medicos tinham podido fazer,
mostrando assim quanto era poderoso o Deus dos nazarenos. Mostrar
aos poderosos que se tem razão contra elles é o maior dos perigos
do mundo. S. Pantaleão experimentou-o. Lançaram-n'o ás feras no
circo: mas as feras, em vez de o devorar, vieram lamber-lhe os
pés. Cresceu a colera do imperador. Mandou ata-lo a uma grande
roda e solta-lo por uma ladeira abaixo; mas as prisões quebraram-se
e o suppliciado ficou illeso. Então ordenou que o degolassem. O
sancto, segundo parece, estava já saciado de prodigios: ao golpe
do algoz a cabeça voou-lhe dos hombros, e a sua alma, subindo
ao ceu, viu o proprio nome escripto no livro dos martyres. O
inferno e a tyrannia tinham sido mais uma vez vencidos.
Tal é em poucas palavras a historia do sancto orago da aldeia,
que constituia os dominios espirituaes do padre prior.
A noite que precedeu á grande solemnidade da parochia foi semelhante
naquelle anno em que succedeu o caso da Bernardina ao que havia
sido no anno antecedente; semelhante ao que costumam ser taes
noites nos campos deste nosso bom Portugal. Um coreto coberto de
velhos razes alteava-se á porta da igreja: delle resfolgava uma
selvagem e, ás vezes, atrozmente desentoada musica, e em baixo
crepitavam as fogueiras. Como faltariam fogueiras no mez de julho
e em festa saloia? Os fogos nocturnos são o symbolo da alegria;
mas cumpre que se repintem no ceu diaphano e estrellado. Debaixo
de uma atmosphera crassa e negra o seu reflexo tem o que quer que
seja soturno e infernal. O sentimento poetico está mais vivo e
puro nas almas habituadas ás harmonias campestres, do que em nós
os habitantes das grandes cidades: é por isto que os camponezes
accendem no estio as fogueiras festivas, usança que, como todos
sabem, offende o nosso profundissimo e estupidissimo senso-commum.
Eu, por mim, que, graças a Deus, não tenho a honra de pertencer
á classe desses que lidam, contentes de si, por se bambolearem
no vertice da animalidade pura, e que se chamam homens da vida
positiva, digo que, por mais ardente que vá o estio, amo uma
fogueira no arraial em vespera de festa, e aquelle estourar e
chispar dos foguetes que roçam rapidos pelo manto escuro da noite.
Sei tambem que o consumir-se polvora em esbombardear cidades, e
em alastrar de cadaveres um campo de batalha é cousa muito mais
philosophica e sisuda, do que desbarata-la nas festividades
supersticiosas do povo. Mas nem todos podemos ser philosophos,
e eu tenho quéda particular para a superstição.
E que quereis? O catholicismo é jovial: o seu culto, como o vulgo
o entende, é ruidoso, e risonho, e brilhante, e attractivo, e
sociavel, e por isso debalde trabalharieis por arranca-lo ao
povo, que vive e morre no meio do trabalho, dos cuidados, das
privações. O domingo, o dia sancto, o orago da parochia são os
seus dias de contentamento e repouso. Abençoado quem inventou os
oragos! Pois as invocações da Virgem, e a advocacia dos sanctos?!
Mil vezes bemdito quem os multiplicou! Ride-vos, se vos aprouver,
dos que crêem que tal Senhora obra mais maravilhas que todas as
outras Senhoras junctas; que tal sancto é remedio infallivel
para esta ou para aquella enfermidade. As preces levam pelo menos
uma vantagem ás drogas dos physicos: não custam nada, e são mais
ricas de esperança; e a esperança é a maior, quasi a unica virtude
dos medicamentos. E depois as devoções, as promessas geraram
as romarias, as festas, e logo as feiras e todo esse franco e
alegre folgar das multidões, que voltam de lá contentes, sem
tedio e sem remorsos, o que nem sempre nos acontece nos nossos
prazeres das cidades, a que bem longe estamos de associar nenhum
pensamento de Deus.
Alguns economistas destes tempos dizem--"as feiras vão-se"--como
certos doutores de ha uns annos diziam, alludindo ao christianismo
--"_os deuses vão-se_."--Oh semsaborões de meus peccados! Nem os
deuses, nem as feiras se vão! Tudo isso fica, porque o abriga e
salva a egide encantada do amor popular: vós é que tendes seguro
o passardes; e se fizerdes o vosso ablativo de viagem n'alguma
aldeia como a do meu padre prior, lá do adro, onde haveis de jazer,
alevantae a caveira descarnada, no dia de S. Pantaleão, ou do
sancto influente do logar, qualquer que elle seja, e vereis o
foguete subir aos ares, e os Manueis e as Bernardinas de então a
feirarem-vos em rebemdita sobre as cinzas, que as ventanias terão
espalhado, e ouvireis o ramram da guitarra, e o cantar ao desafio,
e o bradar dos leilões de cargos, e aviventar-vos-ha o olfacto o
cheiro do incenso, involto em rolos de fumo, que, espalmando-se
nas faces dos gordos cherubins pintados no tecto, surdirão pelo
portal da velha igreja remoçada d'ochre, e virão embalsamar os
ares: inclinae, não as orelhas, que não as tereis, mas os ouvidos
em osso, e escutae o futuro padre prior alevantando o _Gloria_, e o
prégador--"ai! já não será um fradalhão arrabido!..."--contando, voz
em grita, as maravilhas do martyr. Então reconhecereis a vaidade
das vossas doutrinas, e morder-vos-heis e damnar-vos-heis, dizendo
com as vossas costellas esbrugadas, á falta de botões:--"Bem nos
prégava aquelle grande chronista do padre prior! Aquillo é que
era homem de juizo! _Miserere mei, Deus, quia asinificavimus!_
Compadece-te de nós, Senhor, porque asneámos!"
Agora por asnear, acudamos a um reparo antes de ir mais longe.
Já ouço um destes oragos de botequim (tambem aquelles templos
tem seus oragos); um destes eruditos em Balzac e Marryat, em Paul
de Kock e Dickens, sacudir a melena annelada, affastar da bôca
o charuto apertado entre o pae-de-todos e o fura-bolos, salivar
com os dentes cerrados, dando um som de espirro de gato, tomar a
postura solemne que estudou n'uma gravura em madeira do Antony de
Dumas, e dizer-me em tom pausado e soturno:--Oh malfeliz, malfeliz!
que em vez de empregares esses raios do fogo ceruleo e invisivel
das inspirações estheticas, que, da mysteriosa solidão em que se
dilata o halito celeste da summa intelligencia, desceu aos abysmos
íntimos da tua essencia, em depurares o sentimento religioso das
suas formulas materialisadas para o transportares ás regiões
ideaes do culto íntimo, seguindo os vestigios das notabilidades
mais remarcaveis da intellectualidade actual que fluctuam nos
grandes centros de luz progressiva chamados París e Londres,
vertes os teus sarcasmos baixos, triviaes, e desgostantes, sobre
o espiritualismo pantheistico, apoias o fetichismo, e poetisas
(crês poetisar, digo eu) essas festas da populaça, e esses prazeres
gordureiros das massas, que sublevam o coração daquelle que adora
o supremo architecto no silencio interior, em quanto os seus
labios estão immoveis como se elles fossem de marmore explorado
nas carreiras de Paros! Escriptor retrogrado e condemnavel, que
em logar de combateres a barbarie do paiz, pretendes atacar mais
o povo ao obscurantismo, que dirão as summidades do jornalismo
estrangeiro e os toiristas e impressionistas viageiros quando
lançarem seu golpe d'olho d'aguias para o Portugal, e virem sua
materialisação supersticiosa inculcada, e suas tradições grosseiras
exaltadas? Repetirão o que o immortal marido de Lady Byron dizia
de nós a proposito de uns cachações com que o massacraram certa
noite á saída de S. Carlos:
"Nação impando de ignorancia e orgulho,
Que lambe e odeia a mão que brande a espada
Que do Gallo assanhado á zanga o rouba[1]...
* * * * *
Onde é sujo o palacio ao par da choça,
E o hospede forçado em lama trepa;
Onde nobres, plebeus nunca pensaram
Em ter limpa a casaca ou roupa branca[2],
Posto que a lepra egypcia os cubra e rôa,
Intacta d'agua a pelle, e a grenha hirsuta.
Servos torpes e vis[3], bem que nascidos
Nas pompas da creação. Tola és, natura,
Com defunctos ruins em gastar cera.
Eis o que elles dirão lendo a tua inconscienciosa defeza dos
costumes e credulidades dos tempos do jesuitismo e da inquisição."
Tal reparo antevejo eu que me ha-de ser feito pelos pensadores
da nossa terra, por estas ou por outras palavras. Respondo--o
que escrevi escrevi. A primeira vez que puz os olhos naquelles
bonitos versos do Child Harold, impei. Fui vivendo e lendo, e
affiz-me ás injurias de estranhos. Livros, jornaes serramadeiras,
jornaes populares, jornaes atoalhados, jornaes lençoes, em se
tocando em Portugal, sancta Barbara, advogada dos trovões, nos
acuda! Fervem as calumnias, os motejos, as accusações de todo o
genero; o que inquestionavelmente é grande, é nobre, é generoso!
O dar é assim!--n'uma nação cuja lingua, pouco conhecida na Europa,
torna impossiveis as represalias. E se fosse a verdade só! Muitas
verdades amargas nos poderiam dizer, como se podem dizer a todas
as nações do mundo; mas a calumnia tem mais pilheria; e Portugal
é um thema em que até os inglezes querem ter graça! Os francezes
ainda alguma vez por engano nos fazem justiça: elles nunca. Em
Inglaterra não ha nenhum tolo que não faça um livro de _tourist_,
nenhum architolo que não o faça sobre Portugal: estes livros e
os sermões constituem o grosso da sua litteratura[4]. Assim,
oh philosopho idealista progressivo, eu sei tão bem como tu o
que nos ha-de custar a festa de S. Pantaleão, quando esta famosa
historia for caír nas mãos dos criticos d'alem-mar. Mas pensas
que me faltará moeda para dar troco ás miserias de revisteiros,
touristas, magazineiros, e fazedores de livros em sarapatel mascavado
de normando e teutonico, surripiado por metade em cada palavra
na melodiosa pronunciação britannica? Enganas-te, oh caricatura
viva do Anthony morto! Enganas-te! Quando os inglezes se rirem
de elles terem muito dinheiro e nós pouco, torçamos a orelha, e
choremos como creanças pelas barbas abaixo. Quando elles compararem
o Strand ou Regent-Street com os arruamentos da nossa cidade
baixa, agachemo-nos. Quando perfilarem as suas estradas com as
nossas azinhagas reaes, cubramos a cara. Mas quando compararem as
venturas do homem de trabalho inglez com a triste sorte do peão
portuguez, risada. Quando oppozerem as virtudes e illustrações
das suas classes infimas á barbaria e estupidez das nossas, duas
risadas. Quando encherem as bochechas das suas velhas liberdades
(do tempo de Ricardo III, de Henrique VIII, de Isabel, de Cromwell
e de Carlos II), das suas leis de propriedade em particular, e
da clareza, simplicidade, e rectidão de todas as suas leis em
geral, e nos atirarem á cara o absolutismo dos nossos antigos
monarchas, a bruteza da nossa ordenação, a intolerancia dos
inquisidores, trinta risadas. Quando, emfim, nos offerecerem
em escambo das nossas crenças, dos nossos costumes religiosos,
os seus costumes e a sua crença, que esborôa ha mais de dous
seculos em quatrocentas crençasinhas, com seus nomes muito
arrevesadinhos, quatrocentas risadas ou antes uma risada só,
mas retumbante, macissa, inextinguivel, como aquellas famosas
gargalhadas dos deuses de Homero. O caso é d'isso! Se caíssemos
na troca ficavamos logrados. Traziam-nos de involta na carregação
dos sermões domingueiros os dizimos e as bruxas, de que ha muito
estamos livres pela misericordia divina, e que são os dous maiores
flagellos da Inglaterra, depois da lei dos cereaes e dos
arrendamentos das terras, que ahi alugam, até por semana, a dez
milhões de esfaimados quatrocentos mil proprietarios gordos e
anafados.
Ao menos são quatrocentas mil barrigas de uma amplidão respeitavel,
campeando entre dez milhões de irmãos nossos, que não foram formados
de barro, como nós e Adão, mas de massa insonsa de batatas.
* * * * *
[1] Isto escrevia o nobre Lord em 1809, quando os inglezes
reivindicavam dos francezes o throno de Beresford 1.º occupado
pelo usurpador Junot 1.º--_(Nota do gamenho que fala)._
[2] Estylo epico em Inglaterra e na Cafraria.
[3] _Poor paltry slaves!_--_Pobre_ na livre Inglaterra é
synonimo de _desprezivel e vil_, por isso traduzo assim.--_(Nota
do gamenho orador)._
[4] Não me persuado de que nenhum leitor tome ao pé da
letra este brinco litterario. A Inglaterra é uma grande nação,
e possue no seu gremio muitos homens honestos, sabios, e por
todos os modos respeitaveis. Mas a essa classe não pertencem
por certo aquelles, que, propondo-se illustrar o povo, escrevem
ácerca de uma pobre nação, que nunca os offendeu, toda a casta
de absurdos e mentiras insulsas.

V
EXCURSO PATRIOTICO.

Falemos serio: não comtigo, philosopho
esthetico-romantico-progressivo, que não vales a pena d'isso,
mas com o povo portuguez, que fala portuguez chão e intelligivel.
Falemos serio, porque estas materias de crença e de culto são
cousas graves e sanctas. Saber resistir á violencia é forte, mas
vulgar; saber resistir á calumnia e aos motejos é maior esforço
e mais raro. Envergonhemo-nos do que houver mau e corrupto nos
nossos costumes; envergonhemo-nos de muitas vezes não seguirmos na
vida practica os dictames do christianismo: não nos envergonhemos,
porém, do culto dos sete seculos da monarchia. A lingua e a religião
são as duas cadeias de bronze, que unem no correr dos tempos as
gerações passadas ás presentes; e estes laços que se prolongam
através das eras são a patria. A patria não é a terra; não é o
bosque, o rio, o valle, a montanha, a arvore, a bonina; são-no
os affectos que esses objectos nos recordam na historia da vida:
é a oração ensinada a balbuciar por nossa mãe, a lingua em que
pela primeira vez ella nos disse:--"meu filho!"--A patria é o
crucifixo com que nosso pae se abraçou moribundo, e com que nós
nos abraçaremos tambem antes de ir dormir o grande somno, ao pé
do que nos gerou, no cemiterio da mesma aldeia em que elle e
nós nascemos. A patria é o complexo de familias enlaçadas entre
si pelas recordações, pelas crenças, e até pelo sangue. Tomae, de
feito, as duas dellas que vos parecerem mais estranhas, collocadas
nas provincias mais oppostas de um paiz: examinae as relações
de parentesco de uma com outra familia, quaes as desta com uma
terceira, e assim por diante. Dessa primeira, que tão estranha
vos pareceu á ultima, achareis um fio, enredado sim, talvez
inextricavel, mas sem solução de continuidade. Uma nação não
é só metaphoricamente uma grande familia: é-o tambem no rigor
da palavra.
A oração que consolou nossos avós nos consola no dia da amargura:
o gesto com que imploramos a providencia é mais vehemente quando
nos foi transmittido por aquelles que pedem por nós a Deus. É
por esse meio que os homens apertam mais os laços invisiveis
que os unem aos seus maiores; porque o sentimento mysterioso da
familia, e portanto da nacionalidade, se purifica e fortalece
quando se prende no céu.
Vêde na historia a prova de que a religião póde por si só crear
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