Lendas e Narrativas (Tomo II) - 05

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Carlos, ou um cocheiro com estrigas de linho na cabeça e chapeu
triangular.
A portada da igreja, de arco tricentrico firmado em pilares
polystylos de meio relevo, era o mais claro testemunho da idade
provecta do presbyterio. A residencia parochial, originariamente
do mesmo estylo, estava já civilisada: uma porta rectangular
substituíra a antiga. Esquadriadas estavam tambem as duas janellas
do sobrado de differentes dimensões, e affastadas uma da outra;
e nos seus postigos da esquerda via-se o moderno conforto das
vidraças. Não quero dizer com este elogio á morada do padre prior
que a igreja tinha resistido, teimosa como um velho caturra, aos
progressos da civilisação. Pelo contrario. Estava mais alindada
ainda. Uma irmandade, ou não sei quem, que entendia na fabrica,
havia pintado de ochre tudo o que era pedra, de vermelhão tudo
o que era azulejo. As camaras municipaes das grandes cidades,
os conegos das collegiadas e sés ainda não passaram do ochre;
e uma pobre irmandade da aldeia já tinha ha vinte annos vencido
a méta a que apenas hoje chegam o municipio e a cathedral.
O que, porém, escapou ao ochre e ao vermelhão dos mesarios do
burgo foram dous seculares e formosos platanos que sombreavam o
portal do presbyterio: na febre amarella, que grassa tão furiosa
pelo senso esthetico dos nossos magistrados populares e das nossas
dignidades ecclesiasticas, admira que tenha esquecido estender o
beneficio da caiadura gemada aos troncos rugosos e carrancudos
das velhas arvores, que rodeiam os edificios ou as praças. Verdade
é que todos os dias alguma desaba sob os golpes do machado. Isto
é melhor: mas porque não haveis de remoçar as que vão escapando
com as lindezas e alegrias canonico-municipaes?
Bellos e veneraveis eram os dous platanos. O adro, cubriam-no
todo com as suas sombras fechadas, e só pela volta da tarde,
principalmente no outono, é que algumas resteas açafroadas do
sol no poente se estiravam por debaixo delles, e lá íam bater
frouxas no limiar da igreja pulído do contínuo perpassar, e na
porta de um vermelho desbotado, onde nesse tempo começavam a
alvejar os remendos brancos com que as revoluções converteram
os áditos dos templos em pelourinhos eleitoraes.
Á entrada do adro alevantava-se uma grande cruz de madeira pintada
de preto, em cuja haste mãos devotas tinham atado um ramo de
flores, e este ramo, no meio do qual havia um pé de perpetuas, era
a imagem das vaidades do mundo ao redor da religião do calvario,
immutavel no meio dellas. As outras flores tinham-nas mirrado os
ardores do estio: só restavam do morto ramilhete as immarcessiveis
perpetuas.
Era n'um poial que servia de base á cruz, onde áquella hora do
pôr do sol o padre prior vinha muitas vezes sentar-se; e alli
estava tempo esquecido, ora alongando os olhos pelas solidões
do mar, que lá em baixo no fundo do extenso valle quebrava nas
rochas, ora traçando attentamente na terra com a sua grande bengala
de castão de marfim diversas figuras, se geometricas não o sei
dizer, porque hoje não creio tanto na geometria do padre prior
como então cria nas suas terriveis revelações do outro mundo
tiradas do _Speculum Vitae_. O que, porém, eu sentia melhor do
que hoje, sem então o saber explicar, era a suave e profunda
poesia que respirava esse quadro do velho sacerdote juncto do
symbolo religioso, áquella luz moribunda da ultima hora do dia,
em que uma curta saudade melancholica vem como percursora da
noite pousar-nos sobre o coração. Não o imaginava nesse tempo,
mas imagino agora por onde vaguearia a mente do velho clerigo em
quanto a bengala ía d'um para outro lado cruzando linhas tortuosas
e incertas. Os ultimos instantes de moribundo, os quaes elle tinha
adoçado com as consolações da fé; a esmola tirada da escassa
congrua para enxugar lagrymas de viuvas e de orphãos; os conselhos
paternaes dados á mocidade, salva assim por elle de largos dias
de remorsos e amargura; os odios convertidos em perdão entre
inimigos; as dissensões domesticas pacificadas pela conciliação
do pastor; todo o bem, emfim, que por trinta ou quarenta annos
elle havia semeado na aldeia, desde as ultimas casinhas de colmo
que alvejavam caiadas na orla pallida dos campos até o altar
do presbyterio, fructificava talvez ante os olhos da sua alma,
n'esses momentos de extasi, em rica seára de esperanças, cujos
fructos enthesourava no céu. Depois, a cruz hasteada juncto delle
lhe viria lembrar o nada das diligencias que empregára, dos
sacrificios que fizera para verter algum balsamo de ventura nas
chagas dolorosas da vida; para remir da perdição as ovelhas
transviadas do pobre rebanho que lhe fôra confiado. A cruz negra
no seu eloquente silencio contava-lhe sacrificios infinitamente
mais arduos que os delle, feitos, não em proveito d'uma aldeia
ou d'um povo, mas para remir o genero-humano. Por isso lhe via
ás vezes deixar pender a fronte calva sobre o peito, e tomar-lhe
o rosto uma expressão singular, inexplicavel nessa epocha para
mim, mas que era o desalento que lhe gerava no espirito a terrivel
comparação das suas acções com as do Suppliciado do Calvario,
ao qual tomára por modelo, e que jurára imitar. Muitas vezes
espantava-me de que se conservasse assim engolfado em seus
pensamentos até que o sino das ave-marias o vinha despertar; e
na minha alegria da infancia, vendo-o tão triste e carrancudo,
pensava comigo, que o padre prior se ía tornando com a idade
tonto e aborrido. Todavia, era que o bom velho nesses momentos
de meditação volvia atraz os olhos para os caminhos da sua vida,
onde esperava achar alguns vestigios brilhantes de obras virtuosas;
mas esses caminhos, sumidos na penumbra da cruz, não os percebia
senão como uma nuvemsinha escura e duvidosa através da luz immortal
das virtudes e dos beneficios do Christo.
Ao tocar, porém, das ave-marias todas aquellas imaginações
desconsoladas, se elle as tinha, como hoje creio, desappareciam
por um movimento habitual do espirito e do corpo; este para se
erguer, aquelle para orar. Sobraçada a bengala, em pé, com as
mãos postas, segurando ao mesmo tempo entre ellas o seu chapéu
de tres ventos, com a cabeça um pouco inclinada para o chão, o
padre prior murmurava em voz baixa aquella tão poetica oração do
despedir do dia. Os trabalhadores, que, voltando das fadigas do
campo, acontecia passarem por ahi nessa occasião, descobriam-se
tambem, e encostando-se ao ancinho ou á enxada punham as mãos e
resavam até que o reverendo, acabando os latinorios, que elles
íam repetindo em vulgar, lhes dizia:--Boas noites, rapazes, vá
a cobrir."--E os ganha-pães cobriam-se, respondendo:--Guarde-o
Deus, padre prior:"--E partiam: e elle assentava-se outra vez a
olhar para o poente, onde o sol, que se affundíra no mar, deixava
entre si e a noite, precipitando-se após elle das alturas do
céu, uma barra de vermelhidão e ouro, que se estirava para um
e outro lado do horisonte como tentando embargar o caminho ás
trevas. E alli estava scismando até que a tia Jeronyma alçava
meia adufa de uma janella baixa, que dava claridade á cozinha,
e o chamava para a ceia, ao que promptamente obedecia, porque
cumpre advertir que o padre prior não só respeitava á carga cerrada
todas as tradições do catholicismo romano, mas tambem a sabedoria
tradicional do povo, que neste capitulo de ceia resa que deve
ser comida sem sol, sem luz, e sem moscas, momento fugitivo do
expirar do dia, que não consta deixasse jámais passar por alto
a boa da tia Jeronyma.
Nunca me ha-de esquecer aquella hora na aldeia, a luz crepuscular
da atmosphera, as gelosias dos aposentos inferiores da residencia
parochial, e a sancta velha da tia Jeronyma que teria proporcionado
mais um capitulo a Chateaubriand sobre a poesia das usanças
christans, se esse illustre escriptor houvesse uma vez saboreado
as filhós que ella compunha para celebrar o Carnaval;--e os seus
bolos da Natividade--e a sua ôlha e o seu anho assado da Paschoa.
Não!--Saudades de tudo isso, durante a minha vida inteira, em
qualquer fortuna, no meio das mais graves cogitações, nunca hei-de
affastar-vos impaciente quando vierdes, como creança travessa,
baralhar-me um periodo de trabalhada prosa, ou aleijar-me com um
verso parvo uma estrophe soffrivel. Vinde, meus amores antigos,
que para vós esta fronte não saberá arrugar-se; esta bôca não
terá esses monosyllabos duros e gelados com que se repellem
importunações d'indifferentes. Vinde, e demorae-vos comigo, e
palrae por uma hora, por um dia, por uma semana, que vos escutarei
sempre sorrindo; e quando fôr ao sol posto, que os ouvidos da
minha alma vos ouçam reproduzir vivas, harmoniosas, melancholicas
as lentas badaladas das ave-marias, não como agora as ouço ás
vezes no meio do ruído confuso, aspero, estridente do povoado,
mas partindo da aldeia ainda deserta dos seus moradores, rolando
pela veiga, espriguiçando-se pelo prado, rumorejando pelas quebradas
da encosta ou pelo pinhal do cabeço, e indo morrer lá muito ao
longe nas toadas duvidosas de uma cantiga de lavadeiras, ou no
tinir das esquillas de um rebanho de ovelhas, que se encaminham
pára o aprisco ao sibilar do pastor. Repeti-m'as assim, puras,
campestres, vibradas n'um ar puro e sonoro, livres por um horisonte
immenso, e ter-me-heis despertado um affecto consolador, o qual
valerá mais que todas as ambições, que todos os contentamentos,
que todas as esperanças do mundo.
Tem-se discutido os sinos, como se discute quanto ha no universo.
Desde a existencia objectiva ou material deste mundo até a
legitimidade do chocalho pendurado ao pescoço da cabra retouçando
pelas ruas de qualquer capital, que resta ainda ahi para se lhe
trazerem á praça os prós e os contras? Das definições possiveis
do homem uma só é verdadeira: o homem é o animal que disputa. Os
sinos têem tido amigos e inimigos: e porquê? Pela mesma razão
porque sobre tudo ha duas opiniões contradictorias. É que tudo
tem duas faces diversas. O vento sul é meigo para a arvore que
veceja no recosto septentrional da montanha, e açoute da que
vegeta no pendor opposto: o norte é o supplicio da primeira,
e grato para a segunda. N'isto está cifrada a historia das
contradicções humanas.
Os sinos, collocados em campanario de parochia aldeian, ou de
mosteiro solitario, são uma cousa poetica e sancta: os sinos,
pendurados nas torres garridas de garridissimas igrejas das cidades
de hoje, são uma cousa estupida e mesquinha. O sino é um instrumento
accorde com as vastas harmonias das serras e dos descampados.
Assim como o orgão foi feito para reboar pelas arcarias profundas
de uma cathedral gothica, para vibrar na atmosphera mal alumiada
pelas frestas estreitas e ogivaes, do mesmo modo o sino foi
perfilhado pelo christianismo para convocar os seus humildes
sectarios occupados nos trabalhos campestres. Quando se associou
o sino ao culto? Ignoramo-lo: ignoramo-lo, porque foi a religião
serva e perseguida que o sanctificou: e quando os poderosos da
terra a acceitaram para si, então entrou elle nas cidades soberbas.
Lá converteu-se n'uma cousa insignificante e impertinente. É mais
um ruído intoleravel para ajunctar aos outros ruídos discordes
que troam por essas ruas e praças. O sino, tornado cortesão e
fidalgo, é semelhante ao orgão trazido para o aposento do baile,
ou, o que vale quasi o mesmo, para essas salas ao divino, bonitas,
vaidosas, douradinhas, que insensatos edificam para as admirações
de parvos.
E com estas digressões esquecemo-nos do padre prior. Não importa.
Deixa-lo ceiar em paz, e resar o breviario. Eram estas, entre
outras, duas phases graves e sérias de todos os seus dias. Depois,
emquanto a velha Jeronyma punha em ordem a casa, elle pegava
em um livro da pequena estante que lhe ficava á cabeceira, e
lia ou uma lenda pia do Flos-Sanctorum de Rosario, ou um tracto
d'aquellas grandes historias de Fr. Bernardo de Brito, até que o
somno tranquillo de uma boa e san consciencia, apertando-lhe com
os dedos rosados as palpebras, o entregava aos sonhos placidos
que só a alvorada vinha interromper, quando o perigo imminente de
alguma das suas ovelhas o não obrigava a erguer-se alta noite,
ao som do resmungar malsoffrido e, até certo ponto, impio da
tia Jeronyma. No horisonte limpo e sereno destas duas vidas
innocentes, destes Philemon e Baucis celibatarios, que amparados
um no outro íam peregrinando contentes para o sepulchro, havia
um ponto negro e triste. O rendimento da parochia não consentia
que o padre prior _possuisse_ essa especie de ilota _in sacris_, de
servo de gleba sacerdotal, chamado o padre cura. As ventanias,
as chuvas, as noitadas através das serras revertiam como a congrua
e os benesses em beneficio, senão do corpo, ao menos da alma do
reverendo prior.
A sua congrua era maravilhosamente estitica: o grosso dos dizimos
da parochia, jogava-os á risca todas as noites em tertulias um
digno commendador não sei de que ordem. Ai, que a extincção dos
dizimos foi a morte da religião!
* * * * *

II
NOITADAS PAROCHIAES.

A vida do velho prior passava na verdade dura e trabalhosa! Como
todas as cousas deste mundo, o egoismo da tia Jeronyma não era
acabado e completo, ou, para falarmos em estylo de philosophia
fidalga, não era absoluto. O limitado e imperfeito é o signal
que o Creador estampou na fronte do homem e na face da terra
para nos recordar a todo o instante a nossa origem; é a barreira
que elle alevantou diante d'este grande mysterio de energia e
de audacia chamado a intelligencia. Sabedoria, força, paixões,
affectos, tudo tem um horisonte commensuravel; horisonte para as
virtudes como para a dor. O espirito mede e abrange o que ha mais
vasto e profundo, os ermos, os mares, o coração humano; porque ao
cabo d'isso tudo está o finito. Immensa, eterna, absoluta só ha
uma idéa, que está fora do universo. Esta é a idéa de Deus.
Por isso, grande é somente Deus!
Mas dizia eu que o egoismo da tia Jeronyma era incompleto: digo
mais; era incompletissimo. Quando o sacristão vinha alta noite
quebrar o dormir risonho e variamente resonado do padre prior;
quando á voz roufenha do ostiario aldeião, despertando o pastor
para ir levar as consolações extremas á ovelha moribunda, e tira-la
lá, porventura, dos dentes e garras do cão tinhoso, se ajunctava o
trovejar ao longe da tempestade, o fustigar da chuva nas vidraças
progressivas das meias janellas, e o ramalhar da ventania nos
dous platanos do adro, era sem duvida que o resmungar da tia
Jeronyma, apparecendo da banda da sua pocilga com a candeia mortiça
na mão e as roupinhas vermelhas do envez, tinha o que quer que
fosse repugnante e vil. A boa da velha pensava, acaso, que a
morte não seria tão descortez que negasse ao espirito do pobre
moribundo o tempo necessario para poder, ao abandonar o corpo,
subir como chammasinha tenue, e galgar para o céu sobre um raio
do sol nascente? Póde ser que sim. Não seria, porém, antes, que
ella preferisse o deixar frigir por alguns seculos nas caldeiras
do purgatorio aquella pobre alma christan, largando a sua veste
mortal sem os ultimos sacramentos, á necessidade de erguer-se
por noite fria e tempestuosa para tomar nos hombros uma parte
da cruz do ministerio parochial? Tambem isto póde ser. O que
se passava no abysmo da sua consciencia cousa era que ella não
revelava a ninguem; mas em todo o caso era um pensamento egoista.
Todavia é preciso confessar que com elle se misturava um sentimento
puro e nobre: dizia-o esse cuidado pressuroso com que a tia Jeronyma
trazia as botas de côr terrea, o berneo de saragoça, o capote de
barregana, o chapeirão oleado, e a aguardente de ginjas, sem um
copo da qual o prior não ousaria transpôr o limiar da porta, e
investir com as furias da noite procellosa: diziam-n'o a attenção
com que mirava se elle ía agasalhado, e as mil vezes repetidas
ponderações hygienicas, que lhe fazia com admiravel volubilidade
de lingua. A affeição da sancta velha mostrava-se em tudo isso
viva e sincera; e o seu resmonear, que no meio das idas e das
voltas, e do perguntar e do responder, ía rareando e abatendo como
o assobio do furacão pelo valle, perdia gradualmente a expressão
de egoismo, e convertia-se pouco a pouco na de um pensamento
moral.
E o padre prior calado!--Calado enfiava as botas; envergava o
gabinardo; cobria-se com o capote; punha o amplo sombreiro; enchia
um copinho do excellente cordial que a boa da ama lhe havia posto
diante; virava-o d'um golpe; fazia uma visagem fechando os olhos
com força e estendendo os beiços; dava um estalído com a lingua
no céu da bôca; exprimia o intimo conforto que n'elle gerára
o ethereo licor com um brrahhh prolongado; estendia a pequena
taça, cheia de novo, ao sacristão, que, mestre nos estylos de
cortezia, se curvava formando com o corpo um angulo obtuso de
noventa e cinco graus, despresadas as fracções, e arqueando o
braço para levar o copo á bôca sequiosa, como se curva e arqueia
um peralvilho de guedelhas sansimonianas e miolos de agua chilra,
ao conduzir em sala de baile a deusa dos seus affectos de vinte
e quatro horas ao meio do turbilhão doudo e (perdoe-se-nos a
blasphemia) um tanto parvo das valsas e contradanças.
Depois duas palavras magicas saíam da bôca do reverendo pastor:--"Até
logo!"--O seu effeito era instantaneo: o sacristão, pegando n'uma
lanterna, com as chaves da igreja na mão encaminhava-se para
o adro seguido do padre prior: a tia Jeronyma fechava a porta
após elles; e o tentador, como se estivesse esperando por esse
momento, travava-lhe novamente do espirito, e o resmoninhar da
impaciencia recomeçava em breve, acompanhado do ranger do linho na
roca, e do espirrar da candeia a espaços, e do respiro asthmatico
do nedio gato do presbyterio, que, enroscado na lareira, abria
de quando em quando os olhos amortecidos, e cerrava-os logo com
philosophica indifferença, emquanto a tia Jeronyma esperava por
seu velho amo, e se lhe apertava o coração sentindo o temporal
que passava lá fóra, e lembrando-se de que o enfermo poderia ter
guardado para hora mais decente e commoda a agonia do passamento.
E pela serra fóra, caminho de casal remoto, vae o velho prior:
adiante o sacristão com a lanterna e a ambula da extrema-unção,
e elle atrás com o ciborio. As poças de agua reflectem essa debil
claridade que as alumia, e fazem um continuo plach, plach, debaixo
dos pés dos dous caminhantes, cujo passo apressam as cordas de
chuva batida pelos furacões do sudoeste. Os pinheiros balouçando-se
gemem tristemente, e os enxurros, estrepitando pelos corregos,
tiram com o pinhal uma toada soturna.
No céu profundamente negro não apparece uma estrella: na terra
ao longe, bem ao longe, não se descortina uma luz. A natureza
debate-se comsigo mesma: tudo dorme, entretanto, nos casaes e
na aldeia, salvo o velho parocho e a familia daquelle que em
trances mortaes espera o representante do Christo, que lhe traz
as derradeiras consolações e esperanças. Entre a philantropia
humana e as agonias extremas dos pequenos e humildes a noite e a
tempestade ergueram uma barreira quasi insuperavel: esta barreira
desapparece, porém, diante da caridade que a todos nos ensina o
Evangelho, e que ao parocho impõem como dever imprescriptivel
a sua missão sacerdotal e o seu caracter de pae dos pobres e
affligidos.
A esta mesma hora, em que o velho prior assim vagueava por sendas
alpestres exposto ás inclemencias de noite invernosa, talvez em
aposento bem resguardado, no fim de ceia brilhante, entre as
taças cheias de vinhos generosos, no meio de mulheres formosas e
voluptuarias, embriagado em todos os deleites dos sentidos, algum
famoso espirito forte cirzia remendos das paginas soporiferas
d'Holbach ou de Diderot, e dissertava profundamente sobre a
mandriice, egoismo e cubiça do clero, ou carpia a superstição
do povo, que, para ser completamente feliz de nada mais precisa
do que de abandonar as crenças do christianismo e de amaldiçoar
as esperanças de Deus, o conforto unico da sua vida de miseria,
de trabalho e de amargura. E naturalmente os neophitos daquella
triste philosophia extasiavam-se em redor do sabio philantropo,
que, impando de iguarias delicadas, de vinhos custosos, e de
grossa sciencia, só lamentava a ignorancia daquelles a quem muitas
vezes faltava então, falta hoje, e faltará de futuro um bocado
de pão negro para matar a fome; extasiavam-se alli diante da
sensualidade e bruteza de um insensato vanglorioso, emquanto
a virtude do velho clerigo, exercitada nos desvios dos montes
e no silencio da noite, não tinha por testemunhas senão um céu
humido e cerrado, e o vulto impetuoso e bramidor da ventania;
mas que, em vez das lisonjarias de parvos, tinha para o applaudir
a voz sincera, consoladora e sancta da propria consciencia.
Havia, porém, no fim de tudo, uma differença entre o homem do
evangelho e o da falsa sciencia. Era o systema das compensações.
O padre prior, depois de cumprir com o seu dever, voltava ao
presbyterio tranquillamente: tirava o capote alagado, despia o
gabinardo felpudo, sacudia a uma distancia razoavel as ponderosas
botas, e enfiando-se entre os grosseiros lençoes, atava o fio do
somno no ponto em que o deixára; e emballado brandamente por
sonhos apraziveis, só acordava sol nado e alto, ao bradar da
tia Jeronyma, e ao cheiro da açorda fumegante; almoço que, como
tudo o que era consagrado pelos seculos e pela tradição, elle
profundamente respeitava.
E o nosso philosopho? O nosso philosopho, recolhendo-se alta
noite, ía todo o caminho provando a si mesmo que não ha diabos no
mundo, nem almas, nem talvez Deus; mas sentindo arripiarem-se-lhe
os cabellos ao vêr dançar a phosphorescencia d'algum marnel,
rezando o credo em cruz ao passar por algum cemiterio, benzendo-se
ao ouvir piar algum mocho. E depois de se deitar e adormecer
sonhava.... Em quê? Nas combinações infinitas da materia eterna
de que deve, _segundo as boas doutrinas_, ter rebentado o universo?
Não! Sonhava com as penas do inferno; e ao acordar pela manhan
com defluxo, pedia confissão e sacramentos.
Já lá vão vinte annos! Bom tempo era esse, ao menos para mim,
que ainda nem sabia da existencia do animal chamado philosopho,
classificavel entre os _rodentia_, pelo medroso e damninho. Em
vinte annos que voltas tem dado o mundo! Aquella especie vae-se
acabando de todo. Auctores de comedias apressae-vos! Antes que
se perca o typo, levae o incredulo ostentoso á scena. Dae-nos
algumas noites de rir doudo e inextinguivel.
Os dias do padre prior corriam assim placidamente para o seu viver
intimo, posto que o duro mister de parocho lhe entenebrecesse
muitas vezes os horisontes da vida material. E que importava,
se todos na aldeia lhe queriam bem; se todos o acatavam como a
summa bondade, e o que não era menos, como a summa intelligencia
da parochia? Até o barbeiro, o proprio barbeiro, homem entendido
e grave em materias de eloquencia sagrada, não constava houvesse
jámais torcido o nariz ás praticas e sermões do padre prior, que
elle, com a mão sobre a consciencia, punha acima dos melhores de
frei Timotheo, um fradalhão arrabido, cousa brava em gritarias ao
divino, que por via de regra se incumbia das domingas de quaresma
naquella freguezia e nas circumvizinhas com acceitação e applauso
universal do auditorio, mas cuja fama era offuscada pelos periodos
singelos do velho sacerdote, repassados de uncção, e daquella
eloquencia de missionario, que, apesar de rude, lá vae fazer
vibrar o coração do povo, afinado pela crença viva, como a harmonia
que se tira das cordas de dous instrumentos accordes.
Agora por isso, o que será feito de frei Timotheo?! Era naquelle
tempo um frade guapo e alentado! O que será feito delle? Se ainda
vive, tiraram-lhe o burel e a corda de esparto, o seu capital;
venderam-lhe o convento, o seu tonel de Diogenes; prohibiram-lhe o
capuz e as sandalias, o seu direito inauferivel de andar trajado como
lhe aprouvesse; e mandaram-no, desarmado de tudo isso, pedir para o
mendigo a esmola que se dava ao burel, ao esparto, ao convento, ao
capuz e ás sandalias. Bom passaporte para frei Timotheo transitar
pela valla plebea do cemiterio nos braços morbidos e suavissimos
da fome! Foi um progresso de civilisação, que se completou pelo
lado moral com o augmento das loterias, das casas de cambio, e
das traducções de novellas e dramas francezes. Bemaventurada
a tão esperta nação que assim comprehende o progresso!
Duas cousas, porém, mais que as práticas e sermões, serviam para
engrandecer e glorificar o padre prior, não só diante dos homens,
mas tambem diante de Deus. Era a primeira o incansavel zêlo com
que se applicava a apaziguar as rixas, a estabelecer a concordia
domestica, a prégar o trabalho, a guerrear a embriaguez, e sobretudo
a sanctificar pelo casamento as affeições illicitas: era a segunda
o fervor modesto e o innocente luxo com que procurava celebrar
as festas religiosas, principalmente a de S. Pantaleão, orago da
freguezia, e de quem tanto os aldeiões como o velho presbytero
criam affincadamente possuir o metacarpo da mão direita, o qual
devia ser de outro sancto, ou não-sancto, se acreditarmos (eu cá
pela minha parte acredito) os parochianos da sé do Porto, que
se gabam de ter debaixo de chave S. Pantaleão _in totum_, sem lhe
faltar dedo de pé nem de mão, quanto mais um metacarpo inteiro.
* * * * *

III
UMA ESCORREGADELA.

A proposito do que o padre prior era de casamenteiro ainda me
lembra uma velha viuva, a senhora Perpetua Rosa (Deus lhe fale
na alma!) que morava ao cabo do logar n'uma barraquinha á beira
do rio muito caiada, com seu rodapé de vermelhão, e sombreada
por cinco ou seis choupos que nasciam da agua. Tinha ella (a
velha, não a barraquinha) uma filha, formosa rapariga, chamada
Bernardina. Era uma das leiteiras mais desenxovalhadas de que
se gabavam os arredores de Lisboa: bonita, que não havia mais
dizer: alva como toalha de freira, airosa como pinheirinho de
quatro annos. Uns poucos de rapazes da aldeia andavam doudos
por ella. Nas noites dos domingos, em que havia dança e viola na
casa da brincadeira[1], a tia Jeronyma, que era capaz de espreitar
este mundo e o outro, mirando da sua rotula o que se passava á
entrada da rustica sala do baile, pouco distante do presbyterio,
notava que, apenas a Bernardina apparecia, os rapazes entravam
após ella com muita mais furia e pressa do que pela manhan haviam
corrido para a igreja ao ultimo toque da missa do dia. Antes
d'isso já a boa da velha tinha reparado no modo por que elles
se encostavam aos cajados para lados oppostos, em frente uns dos
outros, nos motejos do cantar ao desafio, no pôr dos barretes
á banda, nos olhares que mutuamente se lançavam, no pegarem em
seixos e atirarem-nos a grande distancia a modo de competencia, sem
dizerem palavra, como se cada um quizesse mostrar aos seus rivaes
a robustez do proprio braço. D'isto tudo tirava a tia Jeronyma
agouro de muita pancadaria,--"por amor daquella delambida--dizia
a ama do prior em suas caridosas murmurações--que anda toda
arrebicada por baralhotas, em quanto a pobre da mãe moureja todo
o sancto dia ao sol e á neve naquelle rio, para ganhar um bocado
de pão sem vergonha da cara. Havia de ser comigo!"
E o mais é que a tia Jeronyma não se enganava nas suas previsões.
Chegou vespera de Reis: houve á noite brincadeira ou baile
extraordinario: passou-se ahi tudo na melhor ordem: riu-se, tocou-se
viola, dançou-se, cantou-se ao desafio, e cada qual se recolheu
a esperar entre os lençoes os sanctos _Reis magnos_, designação
popular dos magos do Oriente, cuja vinda a Bethlem se memora
na Epiphania.
Houve, porém, nessa noite um saloio mais cortez, que esperou
vestido e ao relento, no caminho da serra, a vinda dos tres sanctos
personagens. Foi o Manuel da Ventosa, estendido com uma tremebunda e
magnifica massada, de que esteve ido, a ponto de dar ao padre prior
uma daquellas noitadas que suscitavam a colera da tia Jeronyma,
e de que já acima fiz honrosa e especifica menção.
O Manuel da Ventosa era filho unico d'um moleiro ricaço, chamado
Bartholomeu, velho honrado, mas avarento como seiscentos Satanáses.
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