Eurico, o presbytero - 02

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Com a profunda intelligencia de poeta, o Presbytero contemplava este
horrivel espectaculo de uma nação cadaver e, longe do bafo empestado
das paixões mesquinhas e torpes daquella geração degenerada, ou
derramava sobre o pergaminho em torrentes de fel, d'ironia e de colera
a amargura que lhe trasbordava do coração ou, recordando-se dos tempos
em que era feliz porque tinha esperança, escrevia com lagrymas os
hymnos de amor e de saudade. Das elegias tremendas do Presbytero alguns
fragmentos que duraram até hoje diziam assim:


IV
RECORDAÇÕES

Onde é que se escondeu enfraquecida a antiga fortaleza?
S. Eulogio: _Memorial dos Sanct. liv._ 3.^o
_Presbyterio de Carteia. Á meia noite
dos Idos de Dezembro de 748._

1
Era por uma destas noites vagarosas do inverno em que o brilho do céu
sem lua é vivo e tremulo; em que o gemer das selvas é profundo e longo;
em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano é absoluta e
tetrica.
Era a hora em que o homem está recolhido nas suas mesquinhas moradas;
em que pelos cemiterios o orvalho se pendura do topo das cruzes
e, sósinho, goteja das bordas das campas; em que só elle chora os
mortos. As larvas da imaginação e o gear nocturno affastam do campo
sancto a saudade da viuva e do orpham, a desesperação da amante, o
coração despedaçado do amigo. Para se consolarem, os infelizes dormiam
tranquillos em seus leitos macios!... em quanto os vérmes íam roendo
esses cadaveres amarrados pelos grilhões da morte. Hypocritas dos
affectos humanos, o somno enxugou-lhes as lagrymas!
E depois, as lousas eram já tão frias! Nos seios de um torrão humido o
sudario do cadaver tinha apodrecido com elle.
Haverá paz no tumulo? Deus sabe o destino de cada homem. Para o que ahi
repousa sei eu que ha na terra o esquecimento!
Os mares pareciam naquella hora recordar-se ainda do rugido harmonioso
do estio, e a vaga arqueiava-se, rolava e, espreguiçando-se pela praia,
reflectia a espaços nas golfadas de escuma a luz indecisa dos céus.
E o animal que ri e chora, o rei da creação, a imagem da divindade,
onde é que se escondera?
Tremia de frio em aposento cerrado, e sentia confrangido a brisa
fresca do norte que passava nas trevas e sibilava contente nas sarças
rasteiras dos maninhos desertos.
Sem dúvida, o homem é forte e a mais excellente obra da creação. Gloria
ao rei da natureza que tiritando geme!
Orgulho humano, qual és tu mais?--feroz, estupido ou ridiculo?

2
Não eram assim os godos do oeste quando, ora arrastando por terra as
aguias romanas, ora segurando com o seu braço de ferro o imperio que
desabava, imperavam na Italia, nas Gallias e nas Hespanhas, moderadores
e arbitros entre o Septemtrião e o Meio-dia:
Não era assim, quando o velho Theoderik, semelhante ao urso feroz da
montanha, combatia nos campos catalaunicos rodeiado de tres filhos
contra o terrivel Attila e ganhava no seu ultimo dia a sua ultima
victoria:
Quando a larga e curta espada de dous gumes se convertera em fouce de
morte nas mãos dos godos, e diante della retrocedia a cavallaria dos
gépidas, e os esquadrões dos hunos vacillavam, dando roucos gritos
d'espanto e terror.
Quando as trevas eram mais cerradas e profundas viam-se á claridade
das estrellas relampagueiar as armas dos hunos, volteiando em roda dos
seus carros, que lhes serviam de vallos. Como o caçador espreita o
leão tomado no fojo, os wisigodos os vigiavam, esperando o romper da
alvorada.
Lá, o sopro gelado da noite não fazia confranger nossos avós debaixo
das armaduras. Lá, a neve era um leito como outro qualquer, e o rugir
do bosque, debatendo-se nas azas da tempestade, era uma cantilena de
repouso.
O velho Theoderik cahira atravessado por uma frecha despedida pelo
ostrogodo Handags, que com os da sua tribu combatia pelos hunos.
Os wisigodos viram-no, passaram ávante e vingaram-no. Ao pôr do sol,
gépidas, ostrogodos, scyros, burgundos, thuringios, hunos, misturados
uns com outros, tinham mordido a terra catalaunica, e os restos da
innumeravel hoste d'Attila, encerrados no seu acampamento fortificado,
preparavam-se para morrer; porque Theoderik jazia para sempre, e o
frankisk dos wisigodos era vingador e inexoravel.
O romano Aecio teve, porém, piedade d'Attila e disse aos filhos de
Theoderik:--ide-vos, porque o imperio está salvo.
E Thorsmund, o mais velho, perguntou a seus dous irmãos Theoderik e
Friederik:--está acaso vingado o sangue de nosso pae?
De sobejo o estava elle! Ao apparecer do dia, por quanto os olhos
podiam alcançar, não se viam senão cadaveres.
E os wisigodos deixaram entregues a si os romanos, que, desde então,
não souberam senão fugir diante d'Attila.
Quem contará, porém, as victorias de nossos avós durante tres seculos
de gloria? Quem poderá celebrar o esforço d'Eurik, de Theudes, de
Leuwighild; quem saberá todas as virtudes de Rekkáred e de Wamba?
Mas, em qual coração resta hoje virtude e esforço no vasto imperio
d'Hespanha?

3
Era, pois, n'uma destas noites como a que desceu do céu depois do
desbarato dos hunos; era n'uma destas noites em que a terra, envolta
no seu manto d'escuridade, se povôa de terrores incertos; em que o
sussurro do pinhal é como um coro de finados, o despenho da torrente
como um ameaçar d'assassino, o grito da ave nocturna como uma
blasphemia do que não crê em Deus.
Nessa noite fria e humida, arrastado por agonia intima, vagava eu ás
horas mortas pelos alcantis escalvados das ribas do mar e enxergava ao
longe o vulto negro das aguas balouçando-se no abysmo que o Senhor lhes
deu para perpetua morada.
Por cima da minha cabeça passava o norte agudo. Eu amo o sopro do
vento, como o rugido do mar.
Porque o vento e o oceano são as duas unicas expressões sublimes do
verbo de Deus, escriptas na face da terra quando ainda ella se chamava
o cahos.
Depois é que surgiu o homem e a podridão, a arvore e o verme, a bonina
e o emmurchecer.
E o vento e o mar viram nascer o genero-humano, crescer a selva,
crescer a primavera;--e passaram, e sorriram-se.
E, depois, viram as gerações reclinadas nos campos do sepulchro,
as arvores derribadas no fundo dos valles seccas e carcomidas, as
flores pendidas e murchas pelos raios do sol do estio;--e passaram, e
sorriram-se.
Que tinham elles, de feito, com essas existencias, mais passageiras e
incertas que as correntezas de um e que as ondas buliçosas do outro?

4
O mundo actual nunca poderá entender plenamente o affecto que,
vibrando-me dolorosamente as fibras do coração, me arrastava para as
solidões marinhas do promontorio, quando os outros homens nos povoados
se apinhavam á roda do lar acceso e falavam das suas mágoas infantis e
dos seus contentamentos de um instante.
E que m'importa a mim isso? Virão um dia a esta nobre terra d'Hespanha
gerações que comprehendam as palavras do Presbytero.
Arrastava-me para o ermo um sentimento intimo, o sentimento de haver
acordado, vivo ainda, deste sonho febril chamado vida e de que hoje
ninguem acorda, senão depois de morrer.
Sabeis o que é esse despertar de poeta?
É o ter entrado na existencia com um coração que trasborda d'amor
sincero e puro por tudo quanto o rodeia, e ajunctarem-se os homens e
lançarem-lhe dentro do seu vaso d'innocencia lodo, fel e peçonha e,
depois, rirem-se d'elle:
É o ter dado ás palavras--virtude, amor patrio e gloria--uma
significação profunda e, depois de haver buscado por annos a realidade
dellas neste mundo, só encontrar ahi hypocrisia, egoismo e infamia:
É o perceber á custa de amarguras que o existir é padecer, o pensar
descrer, o experimentar desenganar-se e a esperança nas cousas da
terra uma cruel mentira de nossos desejos, um fumo tenue que ondeia em
horisonte áquem do qual está assentada a sepultura.
Este é o acordar do poeta. Depois disso, nos abysmos da sua alma só ha
para mandar aos labios um sorriso de desprezo em resposta ás palavras
mentidas dos que o cercam ou uma voz de maldicção desabridamente
sincera para julgar as acções dos homens.
É então que para elle ha unicamente uma vida real--a intima; unicamente
uma linguagem intelligivel--a do bramido do mar e do rugido dos ventos;
unicamente uma convivencia não travada de perfidia--a da solidão.

5
Tal era eu quando me assentei sobre as fragas; e a minha alma via
passar diante de si esta geração vaidosa e má, que se crê grande e
forte, porque sem horror derrama em luctas civis o sangue de seus
irmãos.
E o meu espirito atirava-se para as trévas do passado.
E o sopro rijo do norte affagava-me a fronte requeimada pela amargura,
e a memoria consolava-me das dissoluções presentes com a aspiração
suave do formoso e energico viver d'outr'ora.
E o meu meditar era profundo como o céu, que se arqueia immovel sobre
nossas cabeças; como o oceano, que, firmando-se em pé no seu leito
insondavel, braceja pelas bahias e enseadas, tentando esmigalhar e
desfazer os continentes.
E eu pude, emfim, chorar.

6
Que fora a vida, se nella não houvera lagrymas?
O Senhor estende o seu braço pesado de maldicções sobre um povo
criminoso: o pae que perdoara mil vezes converte-se em juiz inexoravel;
mas, ainda assim, a Piedade não deixa de orar juncto dos degráus do seu
throno.
Porque sua irman é a Esperança, e a esperança nunca morre nos céus. De
lá ella desce ao seio dos máus antes que sejam precítos:
E os desgraçados na sua miseria conservam sempre olhos que saibam
chorar.
A dor mais tremenda do espirito quebrantam-na e entorpecem-na as
lagrymas.
O Sempiterno as creou quando nossa primeira mãe nos converteu em
réprobos: ellas servem, porventura, ainda de algum refrigerio lá nas
trévas exteriores, onde ha o ranger dos dentes.
Meu Deus, meu Deus!--Bemdicto seja o teu nome, porque nos déste o
chorar.


V
A MEDITAÇÃO

Então os godos cahirão na guerra;
Então fero inimigo ha-de opprimi-los
Com ruinas sem conto, e o susto e a fome.
_Hymno de_ S. Isidoro _em_ Lucas de Tui. Chronicon liv. 3.^o
_No templo--Ao romper d'alva--Dia de Natal da era de 748._

1
Mais de sete seculos são passados depois que tu, oh Christo, vieste
visitar a terra.
E as tuas palavras foram escutadas pelos indomaveis filhos da Gothia, e
elles ajoelharam aos pés da cruz.
Era que nessas palavras divinas havia uma poesia celeste, a qual as
almas rudes mas virgens do septemtrião sentiam casar-se com as suas
primitivas virtudes.
Tu evangelisavas a liberdade e condemnavas todo o genero de tyrannia:
tu restituias ao valor a sua generosidade, á generosidade a sua
modestia; tu revelavas inauditos mysterios no esforço do morrer: a
constancia dos teus martyres escurecia a dos nossos guerreiros quando,
debaixo do punhal de inimigo victorioso, recusavam confessar-se
vencidos.
Tu convertias o amor, esse sentimento delicioso, até então limitado
ao goso material da mulher, em um grande e sublime affecto: alargavas
o ambito do coração por toda a terra, por tudo quanto nella vive e
respira, e davas-lhe para conquistar todas as existencias dos céus.
A generosidade, o esforço e o amor, ensinaste-os tu em toda a sua
sublimidade: só nas almas dos barbaros estavam elles em germen. Não
para os romanos corrompidos, mas para nós, os selvagens septemtrionaes,
era o christianismo. Para estes o evangelho assemelhava-se ao sol
que rompe d'além das serras e que illumina, aquece e alegra; para os
escravos abjectos dos cesares assemelhava-se ao sol mergulhando-se no
mar, que só deixa nos campos escuridão, frialdade e tristeza.
Por isso, emquanto elles voltavam as costas á tua cruz ou a lançavam
d'envolta com os idolos nos seus mesquinhos lararios, nós quebravamos
no fundo das selvas ou no topo das montanhas as imagens d'Odin, de Thor
e de Freda e corriamos a abraçarmo-nos com ella.
Tem compaixão de nós, oh Christo: lembra-te de que os ossos dos que
assim o fizeram ainda não são inteiramente cinzas debaixo das lousas;
porque só quatro seculos tem passado por cima delles.

2
Quem é hoje christão e godo nesta nossa terra d'Hespanha?
Uma geração degenerada pisa os restos d'heroes: homens sem crença,
blasphemos ou hypocritas, succederam aos que criam na grandeza moral do
genero-humano e na providencia de Deus.
D'antes, os principes do povo eram os capitães das hostes: a espada dos
reis a primeira que se tingia no sangue dos inimigos da patria.
D'antes, o sacerdote era o anjo da terra: os que passavam curvavam-se
para beijar a fimbria da sua stringe; porque a paz e a esperança
entravam em todas as moradas sobre que desciam as bençams delle.
D'antes, o juiz era o pae do opprimido, o tribunal o abrigo do
innocente, a justiça o nervo do imperio gothico.
D'antes, nos concelhos dos prelados, dos nobres, dos homens livres as
leis íam buscar a sancção da sabedoria e afferir-se pela utilidade
commum. Lá, o rei sabía que o poder lhe vinha de Deus e da vontade dos
godos, que o sceptro era cajado de pastor, não cutello d'algoz, e a
coroa uma carga pesada, não uma aureola de vangloria.
Hoje, nos paços de Toletum só retumba o ruido das festas, os frankos e
os vasconios talam as provincias do norte, e a espada dos guerreiros só
reluz nas luctas civís.
Hoje, os principes na embriaguez dos banquetes esqueceram-se das
tradições d'avós; esqueceram-se de que era aos capitães das hostes da
Germania que os romanos imbelles davam o nome de reis.
Hoje, a prostituição entrou no templo do Crucificado: os claustros das
cathedraes velam com o seu manto de pedra as abominações da torpeza, e
as mãos do sacerdote deixam muitas vezes humedecida a tela que veste os
altares com vestigios do sangue derramado covarde e vilmente.
Hoje, a cubiça assentou-se no logar da equidade: o juiz vende a
consciencia no mercado dos poderosos, como as mulheres de Babylonia
vendiam a pudicicia nas praças publicas aos que passavam, diante da luz
do dia.
Hoje, a espada substituiu o conselho dos prelados, dos nobres e dos
homens livres: a coroa é uma conquista, a lei uma vontade do deshonrado
vencedor de pelejas domesticas, a liberdade uma palavra mentida.
Imperio d'Hespanha, imperio d'Hespanha! porque foram os teus dias
contados?

3
O sol oriental que ora bate ridente no pavimento da igreja afflige a
minha alma, porque me parece que, alumiando esta terra condemnada, se
assemelha a homem cruel que viesse dar uma risada juncto ao leito do
moribundo.
Porque te havia eu de amar, oh sol, se tu és o inimigo dos sonhos do
imaginar; se tu nos chamas á realidade, e a realidade é tão triste?
Pela escuridão da noite, nos logares ermos e ás horas mortas do alto
silencio a phantasia do homem é mais ardente e robusta.
É então que elle dá movimento e vida aos penhascos, voz e entendimento
ás selvas que se meneiam e gemem á mercê da brisa nocturna.
É então que elle collige as suas recordações; une, parte, transmuda as
imagens das existencias que viu passar ante si e estampa nas sombras
que o rodeiam um universo transitorio, mas para elle real.
E é bello esse mundo de phantasmas aereos, por entre cujos labios
descorados não transpiram nem perjurio nem dobrez e a cujos olhos sem
brilho não assoma o reflexo de animos pervertidos.
Ahi ha o repouso, a paz e a esperança que desappareceram da terra;
porque o mundo das visões cria-o a mente pura do poeta: ella dá corpo
e vulto ao que já só é ideal, e o passado, deixando cahir o seu
immenso sudario, ergue-se em pé e, pondo-se diante do que medita,
diz-lhe:--aqui estou eu!
E este o compara com o presente e recúa d'involuntario terror:
Porque o cadaver que se alevanta do pó é formoso e sancto, e o presente
que vive e passa e sorri é horrendo e maldicto.
E o poeta atira-se chorando ao seio do cadaver e
responde-lhe:--esconde-me tu!
É lá que esta alma, arida como a urze, sente, quando ahi se abriga,
refrescá-la um como orvalho do céu.


VI
SAUDADE

Christo!--dá-me o perdão; dá-me remedio;
Que entre tão vario mal fraqueia a mente!
Eugenio Toledano: _Opusculos--XI._
_Na Ilha-verde. Ao pôr do sol das
kalendas de abril da era de 749._

1
O mar estava tranquillo, e o ar puro e diaphano. As costas d'Africa
fronteiras, lá na extremidade do horisonte, pareciam uma orla escura
bordada no manto azul do firmamento.
A aragem do norte encrespava suavemente a superficie das aguas: as
ondas vinham espraiar-se preguiçosas no areial da bahia.
O barqueiro Ranimiro dormia na sua barca amarrada na foz do Palmonio.
Uma saudade indizivel attrahia-me para o mar.
Saltei na barca; o ruido que fiz despertou Ranimiro.--«Ao
largo»--disse-lhe eu. Empunhou os remos, e partimos.
«Para onde, Presbytero?»--perguntou o barqueiro, depois de vogar alguns
momentos em silencio.
«Quero respirar o ar puro e fresco da tarde; mais
nada:--repliquei.--Leva-me para onde te approuver.»
--Se vos parece--tornou Ranimiro--rodeiaremos a Ilha Verde, entraremos
no canal, e saltareis na margem. Pelo tempo que vai, ella estará agora
esmaltada de verdura e boninas.»
Calei-me: o barqueiro tomou por approvação o meu silencio. Voltando a
proa para poente, corremos ao largo da ilha e, rodeiando a sua margem
occidental, abicámos em terra pelo lado da enseada que a separa do
continente.
Ranimiro não se enganara: como uma tapeçaria riquissima lançada ao som
das aguas, a superficie da ilha agitava-se trémula com a aragem da
terra, que curvava brandamente as flores e as folhinhas lanceoladas da
relva.
Assentado á sombra de uma rocha que formava um promontoriosinho do lado
do sul, lancei os olhos em volta até onde se descubria o horisonte.
Lá, no extremo do Estreito para a banda do mar interior, viam-se na
ponta da Africa os cimos das torres de Septum fronteiras aos cerros
escalvados do Calpe. De Septum para o occidente as costas africanas
contrastavam nas suas ondulações suaves com a penedia aspera das
ribas hispanicas, e, confrangido entre os dous continentes, o mar
balouçava-se resplandecente com os raios já inclinados do sol.
De roda de mim a atmosphera estava impregnada de um halito perfumado:
era a natureza que sorria affagada pela primavera. As aves aquaticas
redemoinhavam nos ares ou pousavam sobre as aguas e pareciam, nos seus
vôos incertos, ora vagarosos, ora rapidos, folgarem com os primeiros
dias da estação dos amores.
Uma melancholia suave se me erguia lentamente no coração, debaixo
daquelle céu puro, n'aquella atmosphera balsamica, ante aquelles
horisontes saudosos. As lagrymas rebentaram-me involuntariamente dos
olhos.
Era feliz neste momento, porque repousava d'amarguras. Olhei para a
barca: Ranimiro adormecera de novo á proa. Repousavam bem perto um do
outro a materia e o espirito.
Bemaventurado, pensei eu comigo, aquelle em quem os affagos de uma
tarde serena de primavera no silencio da solidão produzem o torpor dos
membros; porque nessa alma dormem profundamente as dores no meio do
ruido da vida!
E este pensamento trouxe-me pouco e pouco á memoria as tempestades do
passado. Ai de mim! Logo se me enchugaram as lagrymas, porque eram de
consolação, e essa lembrança as estancou!

2
Porque não adormeço eu, como o rude barqueiro, ao murmurio das vagas
somnolentas, ao sussurro da brisa do norte?
Porque mulher barbara não entendeu o que valia o amor d'Eurico; porque
velho orgulhoso e avaro sabía mais um nome de avós do que eu, e porque
nos seus cofres havia mais alguns punhados d'ouro do que nos meus.
As mãos imbelles de uma donzella e de um velho esmagaram e despedaçaram
o coração de um homem, como os caçadores covardes assassinam no fojo o
leão indomavel e generoso.
E, todavia, este coração sentia a voz da consciencia pregoar-lhe largos
destinos! Porque não emmudeceu essa voz quando do portico do templo
lancei ao mundo a maldicção da despedida?
Porque me lembra com saudade, aqui, a estas horas, o tempo das minhas
esperanças?
É porque o viver é o éculeo do espirito: a alma estorce-se como
agonisante no meio dos mais incomportaveis tormentos, sem nunca poder
expirar, e os seus affectos profundos são com ella; não lhes é dado o
morrer.
Paz e esquecimento, oh meu Deus!

3
Os raios derradeiros do sol desappareceram: o clarão avermelhado da
tarde vai quasi vencido pelo grande vulto da noite, que se alevanta do
lado de Septum. Nesse chão tenebroso do oriente a tua imagem serena e
luminosa surge a meus olhos, oh Hermengarda, semelhante á apparição do
anjo da esperança nas trevas do condemnado.
E essa imagem é pura e sorri; orna-lhe a frente a coroa das virgens;
sobe-lhe ao rosto a vermelhidão do pudor; o amiculo alvissimo da
innocencia, fluctuando-lhe em volta dos membros, esconde-lhes as fórmas
divinas, fazendo-as, porventura, suspeitar menos bellas que a realidade.
É assim que eu te vejo em meus sonhos de noites de atroz saudade: mas,
em sonhos ou desenhada no vapor do crepusculo, tu não és para mim mais
do que uma imagem celestial; uma recordação indecifravel; um consolo e
ao mesmo tempo um martyrio.
Não eras tu emanação e reflexo do céu? Porque não ousaste, pois, volver
os olhos para o fundo abysmo do meu amor? Verias que esse amor do poeta
é maior que o de nenhum homem; porque é immenso, como o ideal, que elle
comprehende; eterno, como o seu nome, que nunca perece.
Hermengarda, Hermengarda, eu amava-te muito! adorava-te só no
sanctuario do meu coração, emquanto precisava de ajoelhar ante os
altares para orar ao Senhor. Qual era o melhor dos dous templos?
Foi depois que o teu desabou, que eu me acolhi ao outro para sempre.
Porque vens, pois, pedir-me adorações quando entre mim e ti está a cruz
ensanguentada do Calvario; quando a mão inexoravel do sacerdocio soldou
a cadeia da minha vida ás lageas frias da igreja; quando o primeiro
passo alèm do limiar desta será a perdição eterna?
Mas, ai de mim! essa imagem que parece sorrir-me nas solidões do espaço
está estampada unicamente em minha alma e reflecte-se no céu do oriente
através destes olhos perturbados pela febre da loucura, que lhes
queimou as lagrymas.
Tu, Hermengarda, recordares-te?! Mentira!... Crês que morri, ou,
porventura, nem isso crês; porque para creres era preciso lembrares-te,
e nem uma só vez te lembrarás de mim!
Lá, no tumulto dos cortezãos, onde o amor é calculo ou sentimento
grosseiro, terás achado quem te chame sua, quem te aperte entre os
braços, quem tivesse para dar a teu pae o preço do teu corpo e te
comprasse como alfaia preciosa para serviço domestico. O velho estará
contente, porque trocou sua filha por ouro.
A isto chama prudencia o mundo estupido e ambicioso; a isto, que não é
mais do que uma prostituição abençoada sacrilegamente perante as aras
sacrosanctas.
Oh, quantas vezes esse pensamento repugnante me tem feito vagueiar
louco pelas montanhas, uivando como o lobo esfaimado e tentando
despedaçar os rochedos com as mãos, d'onde me goteja o sangue!
E tu folgas e ris! Oxalá nunca saibas quão intenso e atroz é o
meu tormento, que devo velar diante dos homens debaixo de aspecto
tranquillo, como se, em vez de martyrio, elle fosse um abominavel crime.

4
E quem te disse, Presbytero, que o teu amor não era um crime?
Tens razão, consciencia! Quando aos pés do veneravel Siseberto o
gardingo Eurico jurou que abandonava o mundo devia despir as paixões
que do mundo trouxera.
A luz brilhante d'affeições e esperanças a que vivia e que me povoava o
coração de felicidade devia apagar-se então, como a lampada do templo
ao amanhecer; porque eu voltava-me para o céu, buscando a luz do Senhor.
Mas o sol, apenas nasceu para mim, logo desappareceu no occaso, e os
que me creem alumiado mal pensam que vivo em trevas!
As minhas paixões não podiam morrer, porque eram immensas, e o que é
immenso é eterno.
E assim, nem ouso pedir a paz do sepulchro; porque para mim não haveria
paz, senão no anniquilamento!
O anniquilamento! Que mal te fiz eu, oh meu Deus, para me não deixares
cá dentro mais que uma idéa risonha, mais que um desejo capaz de encher
o abysmo da minha desventura? Que mal te fiz eu para que esse desejo,
essa idéa seja a que unicamente resta ao precíto que se revolve em
perpetuas angustias?
Mas para mim, como para elle, tal pensamento é vão e mentido!
Eternidade, eternidade, a alma do homem está encerrada e captiva no
illimitado do teu imperio!


VII
A Visão

No espelho da visão está a segurança da verdade.
_Codigo wisigothico--I-1-2._
_Presbyterio. Antemanhan. Oito dos idos d'abril da era de 749._

1
O somno ou a vigilia, que me importa esta ou aquelle? As horas da minha
vida são quasi todas dolorosas; porque a imaginação do homem não póde
dormir.
Para o povo, ignorante e impiamente credulo, a noite é cheia de
terrores; em cada folha que range na selva elle ouve um gemido de alma
que vagueia na terra; em cada sombra de arvore solitaria que se balouça
com a aragem sente o mover de um phantasma; as exhalações dos bréjos
são para elle luz de demonios, alumiando folgares de feiticeiras.
Mas, quando jaz no leito do repouso, o seu dormir é tranquillo. Ao
cruzar os umbraes domesticos esses terrores sumiram-se com os objectos
que os geraram. A sua alma parece despir-se da phantasia grosseira,
como o corpo se despe da stringe aspera que lhe resguarda os membros.
Não assim eu. Quando as palpebras, cerrando-se, m'escondem o mundo das
realidades, os olhos do espirito volvem-se para o mundo das existencias
ideaes. Ás vezes, a felicidade e a esperança vem consolar-me então;
muitas mais, porém, os sonhos maus me perseguem; e por bem alto preço
me saem os instantes de ventura transitoria trazidos por visões
consoladoras.
Esta foi para mim uma noite cruel. Ainda o suor frio que me corria da
fronte se não seccou; ainda o coração parece mal caber no peito, e o
pulso bate desordenado e violento.
Terribilissimos foram os sonhos que Deus mandou ao Presbytero; mas,
porventura, mais terrivel é a sua significação.
Diz-me voz intima que esse doloroso espectaculo a que assistiu a minha
alma é, oh Hespanha, o mysterio dos teus destinos.
E esta foi a visão:

2
Eram as horas das trevas profundas. Sem saber como, achava-me no viso
mais alto do Calpe: traspassava-me a medúla dos ossos o vento frio da
noite, e parecia-me que os membros hirtos se me haviam pregado no topo
da penedia.
Olhava fito ante mim, e os meus olhos rompiam a escuridão do horisonte,
como se a luz do sol o illuminasse.
O espectaculo maravilhoso que se passava nesse espaço insondavel
fazia-me erriçar os cabellos, que o norte me açoutava com o sopro
gelado.
Eis o que eu vi nessa hora de agonia, depois de estar alli alguns não
sei se instantes ou seculos.
O mar cessou de agitar-se e rugir, semelhante ao metal fervente
destinado para a feitura d'estatua colossal que resfriasse de subito em
vasta caldeira.
E era horribilissimo ver convertido em cadaver, de todo immovel e mudo,
o oceano; aquelle oceano que ha mais de quarenta seculos nem um só dia
deixou de revolver-se e bramir em torno dos continentes, como o tigre
ao redor da rez que jaz morta.
O sibillar das rajadas tambem cessou completamente. Parado sobre a face
da terra, o ar era semelhante ao lençol do finado a quem recalcaram a
gleba que o cobre, frio, humido, pesado, sem ranger, sem movimento,
cosido sobre o peito, onde acabou o bater do coração e o arfar
compassado dos pulmões.
Então, muito ao longe, uma vermelhidão tenuissima foi avultando pouco a
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