Eurico, o presbytero - 12

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terrores, ganhara em expressão, em reflexo dos íntimos pensamentos
o que perdera em viço e em toques d'innocencia. Bonina desabrochada
nos campos da vida, brilhara com todas as pompas do seu vecejar
á luz da manhan; o ardor intenso do meio-dia a fizera pender; a
viração da tarde lhe traria, talvez, ainda frescor e viveza; mas
a sua fragrancia perdia-se nas auras que passavam; nas suas côres
harmoniosas revia-se, apenas, o céu! Aquella alma fugia solitaria
pela terra n'um viver incompleto e volveria aos abysmos da creação
sem conhecer o mais profundo e energico dos affectos humanos, o amor,
que une dous espiritos como dous fragmentos de um todo, os quaes a
providencia separou ao lançá-los na terra, e que devem buscar-se,
unir-se, completar-se, até irem, depois da morte, formar, talvez, uma
só existencia de anjo no seio de Deus.
Mas quando Eurico se lembrou de que, porventura, isto era um sonho;
de que podia ser que essa alma não passasse na vida tão vazia e
solitaria como elle julgava, e que esse coração que poucas horas antes
pulsára tão perto do seu batia, acaso, por outrem, sentiu o suor frio
manar-lhe da fronte. A tocha baça e funebre que mal alumiava a irman
de Pelagio pareceu-lhe retincta em sangue; e, como o cedro arrancado
por tufão repentino, foi encostar-se á rocha lateral, cuja superficie
irregular lhe escondia Hermengarda. O vê-la despertara todo o delirio
do seu primeiro amor, e aquella idéa intoleravel, que tantas vezes o
atormentara nas solidões do Calpe, espremia-lhe agora o coração com
redobrado furor.
E assim ficou por alguns momentos mudo, anhelante, anniquilado.
Quem era, onde estava, porque viera alli, não o saberia dizer: os
pensamentos revolviam-se-lhe na mente, como as ondas n'um sorvedouro
maritimo, tempestuosos, rapidos e indistinctos.
De repente, um ai comprimido veio acordá-lo daquella especie de
torpor doloroso. Estremeceu. Era a voz de Hermengarda. Approximou-se
manso e manso, de modo que ella o não visse. Assentada sobre o leito,
demudado o gesto, e com o susto pintado no olhar, a irman de Pelagio
estendia os braços, voltando o rosto para o lado, como quem tentava
affastar visão medonha. Pelas suas palavras incoherentes e truncadas,
o guerreiro conheceu que um sonho máu a agitava, até que, inteiramente
desperta, essas palavras confusas se começaram a coordenar em periodos
intelligiveis. O pulsar do coração d'Eurico redobrava de violencia, ao
passo que o seu respirar se ia tornando cada vez mais imperceptivel.
«Sempre elle! sempre esta visão de remorso!--murmurou Hermengarda.--Meu
pae, meu pae! Perdoe-te o céu o orgulho com que repelliste o
gardingo... Perdoe-te o céu o haveres-me obrigado a sacrificar aos pés
desse orgulho o sentimento de amor que se alevantara neste coração.
Nós ambos assassinámos o desgraçado; mas a punição cahiu inteira sobre
mim! Embora. Eu não te amaldicçoarei, oh meu pae! A tua filha nunca te
accusará ante o supremo juiz.»
Depois, ficou por alguns instantes calada, com os olhos fitos no
rochedo fronteiro, em cuja face escabrosa as sombras pareciam dançar e
agitar-se á luz da tocha que ardia a curta distancia, e que a aragem
movia. Crera perceber perto de si um gemido abafado, cortando fugitivo
o grande silencio nocturno.
«Vai-te, vai-te!--proseguiu ella.--Que posso eu fazer-te, infeliz?...
Bem longo e atroz tem sido o meu martyrio, porque ainda não achei no
mundo alma com quem me fosse dado repartir o calis do infortunio; a
quem houvesse de contar os tormentos que ha tanto tempo me varreram dos
labios o sorrir. Se vivesses, sería tua; tua esposa, tua escrava!...
mas a benção nupcial não póde descer entre o tumulo e a vida.
Favila!... meu pae!... diante do throno do Senhor, onde são iguaes o
duque e o gardingo, jura-lhe que tua filha repelliu o seu amor por
obedecer-te: dize-lhe que o pranto correu destes olhos ao ouvir a nova
da sua morte. Oh, dize-lhe, dize-lhe que não fui eu que o assassinei!»
E aqui, deixando pender a cabeça sobre o peito, pareceu voltar ao
sentimento da realidade; mas aquella especie de terror febril que lhe
haviam gerado no espirito os trances, qual mais doloroso, por que
successivamente passara, se tornou a apossar della. Favoreciam-no o
logar, a hora, o silencio. Hermengarda alevantou de novo os olhos
desvairados e, firmando-se no rochedo, tentava erguer-se.
«Era Eurico!--murmurou ella.--Depois de dez annos, bem conheci a sua
voz! Mais triste, só: triste, como tantas vezes a tenho ouvido nos meus
sonhos de remorsos! Bem conheci o seu gesto! Mais pallido e carregado,
só: pallido e carregado, como tantas vezes tem surgido do sepulchro
para vir mudamente accusar-me, silencioso e quedo ante mim, por longas
e não dormidas noites. Era elle!... um espectro cujo coração eu sentia
bater, cujos braços me apertaram por cima do abysmo revolto, através da
floresta, pelos recostos das serranias. Dos seus olhos cahiu sobre o
meu seio uma lagryma! As lagrymas dos mortos queimam... devoram a vida;
porque bem sinto a morte chamar-me...»
Tinha-se posto de joelhos e, com as mãos estendidas, parecia implorar
piedade.
«Morrer! tão cedo! Quando apenas tórno a vêr meu irmão?!... Pelagio!
Pelagio! porque me deixaste? Vem despedir-te da tua pobre Hermengarda.
Eurico a espera para o noivado do sepulchro, e eu não posso tardar.»
E desvairada, poz-se em pé, chamando por Pelagio com voz suffocada.
Apenas, porém, dera os primeiros passos, soltou um gemido agudo e
ficou immovel. Diante della, realidade ou phantasma, estava a origem
dos seus terrores secretos. Era o gardingo que a amara, que ella cria
morto, e cuja imagem vingadora vinha mais uma vez atormentá-la. O vulto
cravara nella um olhar ardente, que a fascinava. Sorriso doloroso lhe
pousava nos labios. Estendeu o braço, segurando a mão de Hermengarda,
que pretendeu recuar e não pôde. Como petrificada, parecia que os pés
se lhe haviam enraizado no chão da caverna. Aquella mão, que segurava
a sua escaldando de febre, era gelada como a de um morto. A vida do
gardingo tinha-se concentrado toda no coração, que lhe despedaçavam
duas idéas, horriveis porque associadas: o amor correspondido e tornado
ao mesmo tempo maldicto, monstruoso, impossivel por uma palavra fatal,
que lá estava escripta em caracteres de fogo, e que elle via, escutava,
sentia--o sacerdocio!
«Oh, Deus t'o pague!--disse Eurico em voz baixa e lenta--que lançaste
na tão longa noite da minha alma um raio fugitivo de luz, luz sancta
e pura de contentamento e felicidade!... Ha dez annos que não me
alumia, e ella é tão bella, ainda quando passa como o relampago!»--E,
depois de estar calado alguns instantes, com um gesto de íntimo e
angustiado cogitar, proseguiu:--Não, Hermengarda, não! Os vermes ainda
não receberam a parte da sua herança que eu lhes retenho. Morri; porém
não para isso que, na linguagem mentirosa do mundo, se chama a vida.
Durante annos dei-a a devorar á desesperação, e a desesperação não
pôde consummi-la. Pendurei-a alta noite, pela espessura das trevas,
nas rochas escarpadas do mar do occidente, á beira dos precipicios,
e o mar e os precipicios não quizeram tragá-la. Atirei-a á torrente
impetuosa das batalhas, e o ferro embotou-se n'ella. O céu guardava-me
para te ouvir palavras de amor e arrependimento; essas palavras de
ineffavel doçura que nunca esperei escutar. É que na minha fronte
está gravada a maldicção de cima: é que ainda me faltava o derradeiro
martyrio... Ao menos posso acabar o teu: o pensá-lo é um refrigerio.
Hermengarda, eu vivo ainda! Vivi para te salvar da deshonra, e todo
o meu passado esqueci-o. Só uma cousa não, porque me subverteu para
sempre o futuro; porque, depois de passageira alegria, me recalcou mais
violentamente esperanças que ousaram um momento agitar-se no fundo
desta alma, tranquilla na desesperança. Agora, se ha repouso debaixo da
campa, posso ir buscar lá meu repouso. Mas dize-me; oh, dize-me, ainda
outra vez, que amas Eurico! Repete diante do que respira aquillo que
proferiste diante da sombra creada pelo teu terror. Essas palavras e o
morrer!... O teu amor e a morte; eis para mim a unica ventura possivel,
mas que não tem igual na terra.
E Hermengarda sentia ao contacto daquella mão fria e trémula apertando
a sua, no accento dessas phrases, tempestuosas como o oceano, tristes
como céu procelloso, que lá, no peito do vulto que tinha ante si,
havia um coração de homem vivo, onde chaga antiga e cancerosa vertia
ainda sangue. A especie de pesadelo em que se debatia desapparecera
com a realidade. O repentino impulso da sua alma foi lançar-se nos
braços de Eurico. Fora elle o objecto do seu quasi infantil e unico
amor, amor condemnado ao silencio antes do primeiro suspiro, antes do
primeiro volver d'olhos; era elle o cavalleiro negro, cujo nome se
tornara conhecido e glorioso por todos os angulos da Hespanha; era
elle, finalmente, o homem que duas vezes acabava de salva-la. Reteve-a,
todavia, o pudor e, talvez, aquella mysteriosa tristeza que escurecia
as idéas desordenadas vindas de tropel aos labios do guerreiro.
Procurando asserenar a violencia dos affectos que a agitavam,
Hermengarda respondeu com voz fraca e tremula:
«Bemdicta a mão do Senhor, que te salvou, Eurico, leal e nobre entre
os mais nobres e leaes filhos dos godos! Graças á piedade do céu, que
por meio de tantas desventuras e perigos nos uniu nos paços que restam
ao filho do duque de Cantabria! No devaneiar do terror revelei-te, sem
querer, o segredo do meu coração: a sua historia, ouviste-a. Perdoa á
memoria de meu pae, e, se de mim depende a tua felicidade, as palavras
que me saíram involuntariamente da boca te asseguram que serás feliz.
O orgulho que a ambos nos fez desgraçados não o herdou Pelagio. Que
o herdasse, mal caberia n'estas brenhas, na caverna dos fugitivos. E
depois, que nome ha hoje na Hespanha mais illustre que o do cavalleiro
negro, o nome de Eurico? Morreres?!... Oh, não? Salvaste Hermengarda do
opprobrio: se nunca te houvera amado, ella te diria como te diz hoje:
Sou tua, Eurico!»
A filha de Favila, cujo profundo e energico sentir mal poderia
comprehender quem só a houvera visto no momento em que timida recuava
diante do perigo mais apparente que real das margens do Sallia,
proferiu estas palavras com um tom de enthusiasmo, com uma expressão
affectuosa tão íntima, que o guerreiro cahiu a seus pés. A ventura
embargava-lhe a voz. O que lhe tumultuava no coração não tem nome
na linguagem dos homens: era mais que a loucura. Com um movimento
delirante, apertou contra os labios a mão da donzella. Queimavam!
Depois de largo silencio, elle murmurou emfim:
«Minha!... Quem ha na terra que possa roubar-m'a?... Annos de
tormentos, fostes como um dia de bonança e deleite! Imagem que
absorveste esta existencia inteira; anjo que me fazes surgir do meu
inferno para o teu céu, tu foste que me salvaste a mim! Oh, como é
bom ser feliz!... Tinha-me já esquecido!... Como o sol deve agora
ser bello, serena a aragem da tarde, meigo o murmurar do ribeiro,
viçosa a verdura do prado!... Tinha-me tambem esquecido! Tens razão,
Hermengarda. Quero viver: o viver é delicioso; delicioso, porque será
comtigo... ao pé de ti... a adorar-te sempre, sem me lembrar do que
existe, além de ti, no universo. Vem, minha amante, minha esposa! vem
jurar que me pertences, perante o altar e aos pés do sacerdote...»
A esta palavra fatal, um grito semelhante ao de homem ferido de morte,
rompeu agudo e rapido do seio do cavalleiro. A mão d'Eurico abandonou
a mão d'Hermengarda, e os seus olhos brilharam com fulgor infernal.
Recuou, affastando de si a irman de Pelagio, sobresaltada por aquelle
gesto subitamente demudado, por aquelle olhar ardente e vago. Ella
não podia comprehender a causa de semelhante mudança... Com o braço
esquerdo estendido, o guerreiro parecia querer arredá-la de si,
emquanto com a mão confrangida apertava a fronte, como se buscasse
esmagar um pensamento atroz que lhe surgia lá dentro.
«Affasta-te, mulher, que o teu amor me perdeu!--murmurou emfim.--Ha
entre nós um abysmo: tu o abriste; eu precipitei-me nelle. Um crime, só
um crime, póde unir-nos...» Fez uma pausa, e proseguiu:--E porque não
se commetterá elle? Talvez obtivessemos perdão!... Perdão? Oh meu Deus,
não o terias para o sacrilego... não!--Affasta-te, Hermengarda. Diante
de ti tens um desgraçado, um desgraçado que fizeste!»
A donzella uniu as mãos lavada em lagrymas, e exclamou:
«Eurico! Eurico! enlouqueceste?... Por piedade, explica-me este
horroroso mysterio! Porque me repelles? que te fiz eu... eu que te amo,
que sou tua, tua para sempre?!»
Mas os olhos scintillantes do cavalleiro tinham amortecido: derribado
na lucta que travara com o destino, o seu combater de tantos annos
terminava, finalmente. Um sorriso insensato substituiu-lhe no rosto as
contracções habituaes de melancholia. Affigurava-se-lhe que em roda
delle balouçava a caverna, e a luz fumosa da tocha que ardia segura no
braço de ferro cravado na pedra parecia-lhe faiscar em fitas cor de
sangue. Esvaído, vacillante, assentou-se n'um fragmento da rocha e,
estendendo a mão para Hermengarda, pegou de novo na della e, com um
sorriso indizivel, continuou em voz submissa:
«Dez annos!... Sabes tu, Hermengarda, o que é o passar dez annos
amarrado ao proprio cadaver? Sabes tu o que são mil e mil noites
consummidas a espreitar em horisonte illimitado a estrella polar da
esperança e, quando, no fim, os olhos cansados e gastos se vão cerrar
na morte, ver essa estrella reluzir um instante e, depois, desfechar
do céu nas profundezas do nada? Sabes o que é caminhar sobre silvados
pelo caminho da vida e achar ao cabo, em vez do marco milliario onde
o peregrino dê treguas aos pés rasgados e sanguentos, a borda de um
despenhadeiro, no qual é força precipitar-se? Sabes o que isto é?
É a minha triste historia! Estrella momentanea que me illuminaste,
cahiste no abysmo! Arbusto que me retiveste um instante, a minha mão
desfalecida abandonou-te, e eu despenhei-me! Oh, quanto o meu fado foi
negro!»
Hermengarda contemplava-o com assombro e terror... Como o entenderia
ella? Eurico proseguiu:
«Olha tu! Ao pôr do sol, no estio, ía eu assentar-me sobre um cerro
maritimo, alongando a vista pelo oceano tranquillo, e parecia-me
divisar-te desenhada na atmosphera a sorrir-me. Então, as lagrymas de
felicidade começavam a brotar-me dos olhos: depois, lembrava-me de quem
eu era, e essas lagrymas condensavam-se a meio das faces e queimavam
como se fossem de metal candente. A horas mortas, correndo pelos
desvios, quando o vento açoutava os arbustos enfezados da montanha,
cada sombra que se meneiava ao luar, sobre o chão pardacento, era a
tua sombra que eu via. Outras noites, em que mais tranquillo podia, a
sós comigo, engolfar-me nos pensamentos de Deus, a tua imagem vinha
interpôr-se entre mim e a lampada mortiça que me alumiava, e o hymno
do Presbytero de Carteia, que devia, talvez, escrever-se nos hymnarios
das cathedraes da Hespanha, ficava incompleto ou terminava por uma
blasphemia; porque, tambem, te via sorrir, mas a outrem, mas a homem
feliz com o teu amor, e eu tinha então sede... sede de sangue... Era
uma lenta agonia! E sempre tu ante mim: nas solidões das brenhas,
na immensidade das aguas, no silencio do presbyterio, nos raios
esplendidos do sol, no reflexo pallido da lua e, até, na hostia do
sacrificio... sempre tu!... e sempre para mim impossivel!»
«Mas deliras!...--interrompeu Hermengarda.--Que tens tu com o
Presbytero de Carteia; com esse illustre sacerdote, cujos hymnos sacros
reboavam ainda ha pouco pelos templos da Hespanha, e a quem, de certo,
o ferro impio dos arabes não respeitou? A tua gloria é outra e mais
bella; a gloria de seres o vencedor dos vencedores da cruz. A sua era
sancta e pacifica. Deus chamou-o para si, e tu vives para ser meu.
Ninguem existe hoje no mundo que possa embaraçá-lo. Esquece o passado;
esquece-o por amor de mim!»
O cavalleiro sorriu de novo dolorosamente, e disse-lhe:
«Que tenho eu com o Presbytero de Carteia?!... Hermengarda, lembras-te
do seu nome?»
Os labios da donzella fizeram-se brancos ao ouvir esta pergunta: um
pensamento monstruoso e incrivel lhe passara pelo espirito. Com voz
affogada e quasi imperceptivel replicou:
«Era.... era o teu, Eurico!... Mas que póde haver commum entre o
guerreiro e o sacerdote? Que importa um nome... uma palavra?.... que...»
O cavalleiro pôs-se em pé e, deixando descahir os braços e pender o
rosto sobre o peito, murmurou:
«Ha commum, que o guerreiro e o presbytero são um desgraçado só!...
Importa, que esse desgraçado é neste momento um sacerdote sacrilego. O
pastor de Carteia...»
«Oh não acabes!--interrompeu Hermengarda, com indizivel afflicção.
«Era Eurico, o gardingo!»
Proferindo estas palavras, que explicavam o mysterio da sua existencia,
o cavalleiro negro viu cahir como fulminada a filha de Favila. E elle
não se moveu. A sua imaginação tresvariada affigurou-lhe perto de si o
vulto suave e triste do veneravel Siseberto, que estendia a mão mirrada
entre ambos, como para os dividir em nome da religião, que os devia
salvar, e do sepulchro, a quem pertenciam.
Neste momento uma grande multidão de creanças, de velhos, de mulheres
penetraram na caverna com gritos e chóros de terror. No coração das
Asturias, entre alcantis intractaveis, no fundo de um vasto deserto,
repetia-se o grito que mil vezes tinha soado na devastada Hespanha: «Os
arabes!»
Amanhecera.
Aquelle sobresalto, tão impensado, revocou o cavalleiro ao sentimento
da sua situação. Ajoelhou juncto de Hermengarda e, pegando-lhe na mão
já fria, beijou-lh'a. Nas raias da vida, aquelle beijo, primeiro e
ultimo, era purificado pelo halito da morte que se approximava: era
innocente e sancto, como o de dous cherubins ao dizer-lhes o Creador:
«existí!»
Depois ergueu-se, vestiu a sua negra armadura, cingiu a espada, lançou
mão do frankisk e, rompendo por entre o tropel, que fizera silencio ao
vê-lo, desappareceu através da porta da gruta, cujas rochas tingia cor
de sangue a dourada vermelhidão da aurora.


XIX
CONCLUSÃO

Da morte ás trévas,
Immortal, te diriges!
Merobaude: _Poema de Christo_.

A ventura das armas mosselemanas tinha chegado ao apogeu, e a sua
declinação começava, finalmente. E na verdade, a ira celeste contra os
godos parecia dever estar satisfeita. O solo da Hespanha era como uma
ara immensa, onde as chammas das cidades incendiadas serviam de fogo
sagrado para consummir aos milhares as victimas humanas. O silencio do
desalento reinava por toda a parte, e os christãos viam com apparente
indifferença os seus vencedores polluirem as ultimas cousas que, até
sem esperança, ainda defende uma nação conquistada--as mulheres e os
templos. Theodemiro pagava bem caro o procedimento que o desejo de
salvar os seus subditos o movera a seguir. O pacto feito por elle
com os arabes não tardou a ser por mil modos violado, e o illustre
guerreiro teve de se arrepender, mas já debalde, por haver deposto
a espada aos pés dos infiéis, em vez de pelejar até a morte pela
liberdade. Fora isto o que Pelagio preferira, e a victoria coroou o seu
confiar no esforço dos verdadeiros godos e na piedade de Deus.
Os que tem lido a historia daquella epocha sabem que a batalha de
Cangas de Onis foi o primeiro élo dessa cadeia de combates que,
prolongando-se através de quasi oito seculos, fez recuar o koran para
as praias d'Africa e restituiu ao evangelho esta boa terra d'Hespanha,
terra, mais que nenhuma, de martyres. Na batalha de juncto do Auseba
foram vingados os valentes que pereceram nas margens do Chryssus;
porque mais de vinte mil sarracenos viram pela ultima vez a luz do
sol naquellas tristes solidões. Mas, nesse dia da punição, esta devia
abranger assim os infiéis, como os que lhes haviam vendido a patria e
que ainda vinham disputar a seus irmãos a dura liberdade de que gosavam
nas brenhas intractaveis das Asturias.
O ardil de Pelagio para resistir com vantagem aos mosselemanos, cem
vezes mais numerosos que os christãos, surtira o desejado effeito.
Ainda que muito a custo, os cavalleiros enviados em cilada para a
floresta á esquerda das gargantas de Covadonga poderam chegar ahi sem
serem sentidos dos arabes, que se haviam approximado mais cedo do que o
fizera crer a narração do velho Vellido. Os infiéis pararam nas bordas
do Deva, no sitio em que rompia do valle, e os seus almogaures tinham
ousado penetrar ávante. Os cavalleiros da cilada, que a pouca distancia
passavam manso e manso, ouviram distinctamente o tropeiar dos ginetes
inimigos.
Mas, quando, ao primeiro alvor da manhan, Pelagio se encaminhava com o
seu pequeno esquadrão para a garganta das serras, já os arabes rompiam
por ella e começavam a espraiar-se, como ribeira que, saindo de leito
apertado, se dilata pela campina. Os christãos recuaram, e os infiéis,
attribuindo ao temor esta fuga simulada, precipitaram-se após elles.
Pouco a pouco, o duque de Cantabria attrahiu-os para a entrada da
gruta de Covadonga. Chegado alli, pondo á boca a sua buzina, tirou um
som prolongado. Immediatamente os cimos dos rochedos, que pareciam
inaccessiveis, cubriram-se de fundibularios e frecheiros, e uma nuvem
de tiros choveu de toda a parte sobre os africanos e sobre os renegados
godos. Vacillaram; mas o desejo da vingança levou-os a apinharem-se,
esquadrões após esquadrões, á entrada da caverna, onde, finalmente,
encontravam desesperada resistencia. Então, como se despegassem do céu,
grandes rochedos começaram a rolar sobre elles dos cimos do precipicio
que lhes ficava sobranceiro. Mãos invisiveis os impelliam. Cada rocha
traçava no meio daquelle vulto informe que oscillava, naquella vasta
planicie de alvos turbantes e de capacetes reluzentes, uma escura
mancha, semelhante a chaga horrivel. Eram dez ou vinte guerreiros,
cujos membros esmagados, cujos ossos triturados, cujo sangue
confundido espirravam por cima das frontes dos seus companheiros. Era
medonho!--porque a esse espectaculo se ajunctava o grito de raiva
e desesperação dos pelejadores, grito feroz e agudo, só comparavel
ao bramido de cem leoas a quem os caçadores do Atlas houvessem, na
ausencia dellas, roubado os seus cachorrinhos.
Pela volta da tarde, apenas do numeroso e brilhante exercito dos arabes
alguns milhares de cavalleiros fugiam desalentados diante dos foragidos
das Asturias, que os perseguiam incansaveis além de Cangas de Onis.
Fora no momento em que Pelagio penetrava, na sua fingida fuga, sob o
vasto portal da gruta que o cavalleiro negro saía. O joven guerreiro
viu-o e estremeceu. Eurico tinha as faces encovadas, o rosto pallido e
transtornado, e havia em todo o seu gesto uma tão singular expressão
de tranquillidade que fazia terror. Emquanto os christãos defendiam
a entrada elle esteve quedo, como indifferente ao combate; mas, logo
que os arabes, acommettidos já pelas costas, principiaram a recuar, e
que Pelagio pôde combater na planicie, o cavalleiro, abrindo caminho
com o frankisk, desappareceu no meio dos inimigos. Desde esse momento,
debalde o duque de Cantabria o buscou: nem elle, nem ninguem mais o viu.
Era quasi ao pôr do sol. Seguindo a corrente do Deva, a pouco mais
de duas milhas das encostas do Auseba, dilatava-se nessa epocha
denso bosque de carvalhos, no meio do qual se abria vasta clareira,
onde sobre dous rochedos aprumados assentava um terceiro. Era,
provavelmente, uma ara celtica. Em frente de tosca ponte de pedras
brutas lançada sobre o rio, uma senda estreita e tortuosa atravessava
a selva e, passando pela clareira, continuava por meio dos outeiros
vizinhos, dirigindo-se, nas suas mil voltas, para as bandas da
Gallecia. Quatro cavalleiros, a pé e em fio, caminhavam por aquelle
apertado carreiro. Pelos trajos e armas, conhecia-se que eram tres
christãos e um sarraceno. Chegados á clareira, este parou de repente e,
voltando-se com aspecto carregado para um dos tres, disse-lhe:
«Nazareno, offereceste-nos a salvação, se te seguissemos: fiámo-nos
em ti, porque não precisavas de trahir-nos. Estavamos nas mãos dos
soldados de Pelagio, e foi a um aceno teu que elles cessaram de
perseguir-nos. Porém o silencio tenaz que tens guardado gera em mim
graves suspeitas. Quem és tu? Cumpre que sejas sincero, como nós. Sabe
que tens diante de ti Mugueiz, o amir da cavallaria arabe, Juliano, o
conde de Septum e Oppas, o bispo d'Hispalis.»
«Sabía-o:--respondeu o cavalleiro--por isso vos trouxe aqui. Queres
saber quem sou? Um soldado e um sacerdote do Christo!»
«Aqui!?... atalhou o amir, levando a mão ao punho da espada e lançando
os olhos em roda. Para que fim?»
«A ti, que não eras nosso irmão pelo berço; que tens combatido
lealmente comnosco, inimigos da tua fé; a ti que nos opprimes, porque
nos venceste com esforço e á luz do dia, foi para te ensinar um caminho
que te conduza em salvo ás tendas dos teus soldados. É por alli!... A
estes, que venderam a terra da patria, que cuspiram no altar do seu
Deus, sem ousarem francamente renegá-lo, que ganharam nas trevas a
victoria maldicta da sua perfidia, é para lhes ensinar o caminho do
inferno... Ide, miseraveis, segui-o!»
E quasi a um tempo dous pesados golpes de frankisk assignalaram
profundamente os elmos de Oppas e Juliano. No mesmo momento mais tres
ferros reluziram.
Um contra tres!--Era um combate calado e temeroso. O cavalleiro da cruz
parecia desprezar Mugueiz: os seus golpes retiniam só nas armaduras dos
dous godos. Primeiro o velho Oppas, depois Juliano cahiram.
Então, recuando, o guerreiro christão exclamou:
«Meu Deus! Meu Deus!--Possa o sangue do martyr remir o crime do
Presbytero!»
E, largando o frankisk, levou as mãos ao capacete de bronze e arrojou-o
para longe de si.
Mugueiz, cego de colera, vibrara a espada: o craneo do seu adversario
rangeu, e um jorro de sangue salpicou as faces do sarraceno.
Como tomba o abeto solitario da encosta ao passar do furacão, assim o
guerreiro mysterioso do Chryssus cahia para não mais se erguer!...
Nessa noite, quando Pelagio voltou á caverna, Hermengarda, deitada
sobre o seu leito, parecia dormir. Cansado do combate e vendo-a
tranquilla, o mancebo adormeceu, tambem, perto della, sobre o duro
pavimento da gruta. Ao romper da manhan, acordou ao som de cantico
suavissimo. Era sua irman que cantava um dos hymnos sagrados que muitas
vezes elle ouvira entoar na cathedral de Tárraco. Dizia-se que seu
auctor fora um Presbytero da diocese de Hispalis, chamado Eurico.
Quando Hermengarda acabou de cantar ficou um momento pensando.
Depois, repentinamente, soltou uma destas risadas que fazem erriçar
os cabellos, tão tristes, soturnas e dolorosas são ellas: tão
completamente exprimem irremediavel alienação d'espirito.
A desgraçada tinha, de feito, enlouquecido.

NOTAS

Pag. X

«Chronica-poema, lenda, ou o que quer que seja.»

Sou eu o primeiro que não sei classificar este livro; nem isso me
afflige demasiado. Sem ambicionar para elle a qualificação de poema
em prosa--que não o é por certo--tambem vejo, como todos hão-de ver,
que não é um romance historico, ao menos conforme o creou o modelo e
a desesperação de todos os romancistas, o immortal Scott. Pretendendo
fixar a acção que imaginei n'uma epocha de transição--a da morte do
imperio gothico, e do nascimento das sociedades modernas da Peninsula,
tive de luctar com a difficuldade de descrever successos e de retratar
homens que, se, por um lado, pertenciam a eras que nas recordações da
Hespanha tenho por analogas aos tempos heroicos da Grecia, precediam
immediatamente, por outro, a epocha a que, em rigor, podemos chamar
historica, ao menos em relação ao romance. Desde a primeira até a
ultima pagina do meu pobre livro caminhei sempre por estrada duvidosa
traçada em terreno movediço; se o fiz com passos firmes ou vacillantes,
outros, que não eu, o dirão.
Conhecemos, talvez, a sociedade wisigothica melhor que a d'Oviedo e
Leão, que a do nosso Portugal no primeiro periodo da sua existencia
como individuo politico. Sabemos melhor quaes foram as instituições dos
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