Eurico, o presbytero - 08

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tudo para a resolver a tentar a fuga. «Ainda na crypta fatal--concluia
Aldephonso--através das grades que me embargavam os passos, por
vós, pelas cinzas de vosso pae, lhe suppliquei de joelhos que me
acompanhasse. Os velhos buccellarios de Favila, no meio do tumulto, a
teriam, talvez, posto em salvo! Sorriu, porém, das minhas esperanças e
conservou-se firme no seu proposito. Mas Deus tinha ordenado que, em
vez de obter o martyrio, cahisse nas mãos dos agarenos. De todos os que
vinhamos em sua guarda, só eu, acaso, pude escapar, misturado com os
soldados de Transfretana. Assim, segui por algum tempo os arabes, que
se encaminham para o lado do Segisamon. Ao anoitecer, embrenhei-me nas
montanhas. Um pastor que encontrei me serviu de guia, até que cheguei
aos pés de meu senhor para lhe pedir a morte e para lhe jurar que estou
innocente.»
«De pé, cavalleiros! Aos infiéis, em nome de Christo!--gritou o duque
de Cantabria, com uma voz que retumbou nas profundezas da caverna.
Habituados ás subitas arrancadas nocturnas contra os arabes, quando
vagueiavam em correrias longinquas, os companheiros de Pelagio
ergueram-se de salto, ainda mal despertos, e por uma especie
d'instincto lançaram mão das armas penduradas por cima de suas
cabeças. Era solemne e tremendo o espectaculo que apresentava a gruta
naquelle alçar repentino de tantos homens, no brilho das armas que
relampagueiavam á luz da fogueira e tiniam umas nas outras. Entretanto
Pelagio ordenava a Gutislo que despertasse os homens d'armas espalhados
pelas choupanas do valle e fizesse dar o signal d'encavalgar. Era
necessario partir.
No meio, porém, da revolta, havia alguem que se conservava quedo e que
parecia tranquillo. Era o gardingo desconhecido. Encostado á parede
anfractuosa da gruta e demudado o gesto, contemplava aquella scena
com o vago olhar de quem alongara o pensamento para mui longe d'alli.
Emquanto todos os demais cavalleiros rodeiavam Pelagio, indagando
inquietos a causa daquelle subito apellidar para uma correria nocturna,
elle só ficara immovel e como indifferente ao tumulto que as vozes do
duque de Cantabria tinham excitado entre os seus guerreiros.
«Qual de vós outros cavalleiros--dizia Pelagio aos que o
rodeiavam--duvidará um momento de que, se um mensageiro chegasse e
lhe dissesse: «vossa esposa, vossa filha, vossa irman cahiu em poder
d'infiéis» eu hesitasse em ir ajudá-lo a arrancar essa victima querida
á bruteza cruel dos pagãos? Nenhum; porque mais d'uma vez tenho
arriscado a vida para curar saudades e amarguras dos desterrados como
eu. Deu-me o céu uma irman; deu-me o ultimo suspiro de meu pae uma
filha; deu-me a ternura por essa virgem, cuja imagem vive eterna neste
coração virgem como ella, uma esposa. Quando a triste innocente vinha
abrigar-se á sombra do escudo de seu irmão, os infiéis roubaram-ma.
Viuvo e orpham, appello para os ultimos corações generosos da Hespanha.
Por Deus, que me ajudeis a salvar a minha pobre Hermengarda. Como tua
filha Brunehilde, ella é formosa, Gudesteu! Como tua esposa Elvira,
ella é boa e carinhosa, Algimiro! Como tua irman, Munio, ella é
innocente e pura. Godos, por tudo quanto amaes, salvae-a, salvae a
mesquinha!»
O nobre esforço do mancebo desapparecera ante a idéa dolorosa da sorte
que a providencia reservara á desventurada filha de Favila. Elle
estendia as mãos unidas para os cavalleiros, como uma creança timida
que implora compaixão.
«Partamos!--exclamaram ao mesmo tempo os nobres foragidos.--Tua irman
será salva ou nenhum de nós voltará mais á gruta de Covadonga!»
Uma voz trémula, mas retumbante, trovejou por detrás delles:
«Não partireis d'aqui!»
Voltaram-se. Era o gardingo.
«Quem o ordena?--bradou Pelagio, com toda a energia que esta inesperada
resistencia despertara subitamente nelle.
«Um homem--replicou o desconhecido, atravessando o circulo dos
guerreiros que rodeiavam o duque de Cantabria e lançando em volta
olhos altivos;--um homem cujo coração é ha longo tempo morto, porque
as paixões o queimaram; mas cuja intelligencia por isso mesmo é mais
fria. Quantos sois vós? Quantos buccellarios dormem pelas tendas desse
valle? Apenas alguns centenares de lanças poderiam, ao todo, transpôr
comvosco os passos das serras. Os infiéis e os renegados que os servem
quantos são? Se podeis contar as estrellas que ora recamam o céu,
podereis dizer-me o numero delles. Tu, Pelagio, braço de ferro, coração
de bronze, quem és tu? O guardador das ultimas esperanças da cruz e da
patria. Quem te deu, pois, o direito de correres a morte certa? Quem te
deu o direito de apagar no sangue dos ultimos godos o unico facho que
alumia as trevas do futuro da escravisada Hespanha?»
«E a ti--interrompeu furioso e arrancando meia espada o violento
Sancion--quem te incumbiu de nos dizeres: «não saireis d'aqui? Quem és
tu, que, vindo não sei d'onde, pretendes dominar como senhor aquelles
que só obedecem a Deus?»
O desconhecido olhou para o movimento ameaçador de Sancion, e pelo
rosto passou-lhe um sorriso desdenhoso. Cruzou os braços e respondeu
com voz lenta e solemne:
«Por minha boca falaram milhares de godos que gemem no captiveiro e que
voltam de continuo os olhos para os cerros das Asturias, onde apenas
fulgura tenue o sancto fogo da liberdade: falaram por minha boca as
aras do Senhor calcadas pelos pés dos pagãos, as imagens do Christo
derribadas no lodo, os muros ennegrecidos das cidades incendiadas.
É isto tudo que vos diz:--não saireis d'aqui!--Perguntas quem sou?
Dir-t'o-hei. O ultimo homem que, juncto do Chryssus, viu, combatendo,
a face dos arabes vencedores, emquanto os valentes fugiam; o homem
que tentou morrer com a patria, e que a mão de Deus salvou para neste
momento vos dizer: «não saireis d'aqui! Queres saber quem eu sou? Lê,
Pelagio, o que escreveu ahi Theodemiro. Dize-lhe depois qual é o meu
nome!»
E, tirando da escarcella uma tira de pergaminho dobrada, abriu-a e
entregou-a a Pelagio.
O duque de Cantabria correu-a pelos olhos e, deixando-a cahir em terra,
murmurou:--«Meu Deus, o cavalleiro negro!»
Os godos apinhados em roda recuaram alguns passos, e houve um momento
de ancioso silencio.
«Anjo ou demonio, que nos explicas um mysterio por outro
mysterio--exclamou, emfim, Pelagio visivelmente perturbado:--christãos
e arabes lembram-se ainda das tuas incriveis façanhas nas margens do
Chryssus. Mil vezes eu proprio tenho dicto: dez como elle haveriam
salvado o imperio de Theoderik! Devemos obedecer-te, se és um homem,
como dizes, porque vales mais que nós. Se és o anjo que preside ao fado
da Hespanha, mais submisso ainda será o nosso obedecer. Mas que mal te
fez minha desgraçada irman?...»
«Que mal me fez tua irman?--atalhou com vehemencia o
gardingo.--Nenhum!... E quem te disse que não quero, que não posso
salva-la, eu que não sou anjo, que sou, como tu, um homem? Quaes
d'entre vós--proseguiu, voltando-se para os cavalleiros que o
rodeiavam--sois n'este mundo sós e não tendes quem na morte regue
com lagrymas a terra que vos cobrir? Quaes de vós sois, como eu,
desterrados no meio do genero-humano? Que os orphams de coração ergam
a dextra para o céu, onde só ha um seio que lhes receba os gemidos de
amargura, o seio immenso de Deus!»
Doze guerreiros, e entre elles o fero Sancion, alevantaram a dextra
para o ar á voz imperiosa do gardingo.
«A cavallo!--gritou este, apertando o largo cincto da espada e enfiando
no braço a ferrea cadeia do frankisk.--Pelagio! se dentro de oito dias
não houvermos voltado, ora ao Christo por nós, que teremos dormido o
nosso ultimo somno, e chora por tua irmã, cujo captiveiro já ninguem,
provavelmente, quebrará, senão o anjo da morte. Partamos!»
Proferindo estas palavras, o gardingo atravessou rapidamente a caverna
e desappareceu nas trevas exteriores: os doze guerreiros escolhidos
seguiram-no machinalmente, porque os seus meneios e gesto os tinham
fascinado, ao lembrarem-se de que este homem era o cavalleiro negro. O
duque de Cantabria, subjugado tambem pela especie de mysterio solemne
que cercava todas as acções d'este ente extraordinario, nem ousou
perguntar-lhe por que meio intentava salvar Hermengarda. Todavia, uma
voz intima e irresistivel lhe dizia: «resigna-te e confia». Confiado e
resignado esperou, portanto, o cumprimento das promessas do incognito
gardingo.


XIV
A NOITE DO AMIR

Arrebatada no pallor das trevas.
_Breviario Gothico--Hymno de S. Geroncio._

Era ao cahir do dia. O nordeste secco e regelado corria as campinas
do espaço, onde, através da atmosphera purissima, scintillavam as
estrellas. O clarão de Segisamon incendiada reflectia de longe nas
brancas tendas dos arabes, acampados a bastante distancia dos muros da
povoação destruida. Em volta do arraial, pelas coroas dos outeiros,
accendiam-se as almenaras, a cuja luz tenue, comparada com a do
incendio de Segisamon, se viam passar os atalaias nocturnos. Abdulaziz,
semelhante a cometa caudato, seguia a sua orbita d'exterminio,
deixando após si vestigios de fogo. O exercito devia ao romper da alva
internar-se nos valles da Tarraconense.
Segisamon tinha na vespera offerecido um espectaculo semelhante ao de
muitas outras cidades da Hespanha levadas á escala pelos mosselemanos.
Não só a cubiça e o desenfreiamento da soldadesca multiplicavam ahi
as scenas de rapina, de violencia e de sangue, mas tambem a politica
dos capitães arabes procurava augmentar a terribilidade desses dramas
repetidos para quebrar os animos dos godos e persuadi-los á submissão.
O dia precedente a esta noite que começava tinha sido consagrado
pelos vencedores ao repouso, depois de um duro lavor de morte e
ruinas. Os jogos, os banquetes, as dissoluções de todo o genero haviam
recompensado brutalmente o esforço brutal dos destruidores de Segisamon.
Ás cohortes do renegado Juliano tocava nesta noite a vigia do arraial:
eram godos os que guardavam o campo, onde as virgens da Hespanha tinham
sido violadas; onde a cruz captiva fora mais uma vez ludibriada; onde
os velhos sacerdotes haviam soffrido contentes o martyrio no meio
das affrontas. Aquelles homens perdidos, rodeiando esse montão de
abominações, ainda não fartos dos deleites infernaes em que tinham tido
parte com os infiéis, embriagavam-se, bebendo pelos vasos sagrados, e
escarneciam blasphemos a crença da sua infancia no meio de hedionda
ebriedade.
O murmurio immenso do arraial foi amortecendo gradualmente com o
fechar da noite. Em breve, não se ouviu nas tendas do Islam mais que o
respirar lento de tantos milhares d'homens adormecidos nos braços do
goso. Juncto, porém, das almenaras as risadas dos soldados do conde
de Septum, os cantos obscenos inspirados pela embriaguez, as disputas
ardentes do jogo, em que o ouro corria de mão em mão, soavam ainda
em volta do silencio do campo. Pouco e pouco, este mesmo ruído foi
affrouxando, ao passo que os fachos accesos nas chapadas dos outeiros
esmoreciam. A escuridão e o silencio reinaram, emfim, até nas atalaias.
Os soldados godos, cansados de dissoluções, haviam tambem repousado.
E para que prestaria velar? O terror que inspiravam os arabes era o
melhor guardador do arraial. Como ousariam os christãos, medrosos atrás
dos muros dos seus castellos, salteiar o campo de Abdulaziz? As vigias
e almenaras eram apenas uma velha formula militar, cuja significação
a serie não interrompida dos triumphos até então alcançados tornara
inintelligivel.
Pela calada, porém, da alta noite e no meio das trevas que cobrem, como
amplo manto, aquelle turbilhão d'homens de guerra, descansando então
para ao romper do sol rugir de novo impetuoso, vê-se ainda, através
das telas mal unidas de uma tenda mais vasta, reverberar vivo clarão,
e ouve-se o rir alegre, o altercar, o tinir argentino das taças; todos
os indicios, emfim, de que a orgia se prolongou ahi até mais tarde.
Ao redor da tenda jazem por terra, com os alfanges nús junctos a si,
alguns soldados da guarda de Abdulaziz, composta dos guerreiros mais
temidos do exercito, os negros do remoto paiz de Al-Sudan. Nos ouvidos
delles restruge debalde o alto ruído que soa do interior do pavilhão.
Dormem, tambem, profundamente, e apenas á porta da tenda um delles vela
immovel encostado á acha d'armas.
A tenda era, de feito, a do esforçado filho de Musa. A mesa do banquete
ainda vergava com os restos das iguarias: os brandões já gastos e os
candieiros mortiços derramavam uma claridade suave pelo aposento.
Reclinado sobre um almatrah cuberto de preciosa alcatifa do oriente, o
amir escutava o mais moço dos cheiks que estavam juncto delle, o qual,
ora cantava os versos voluptuosos de Zohèir, que accendiam a imaginação
do joven guerreiro, ora lhe repetia os antigos poemas licenciosos e
satyricos de Ibn-Hagiar, que elle applaudia com estrondosas risadas.
O conde de Septum e os mais capitães godos alliados dos agarenos
conservavam-se ainda nos logares que haviam occupado durante o
banquete. Para aquella extremidade da vasta mesa viam-se algumas
amphoras tombadas e outras ainda cheias dos vinhos mais preciosos da
Hespanha: as taças que gyravam ao redor eram as que produziam o tinir
que soava fóra, no meio do ruído das falas, dos gritos, e dos cantos
monotonos do cheik Abdallah.
Um guerreiro, cuja barba crespa e cerrada lhe cahia como frócos de neve
sobre os anneis dourados do saio de malha, estava assentado á direita
de Juliano. A brancura dos seus cabellos era o unico signal que se lhe
enxergava de uma larga peregrinação na terra; porque o rosado da tez,
a viveza dos olhos azues, o garbo nos meneios e a robustez dos membros
agigantados mostravam n'elle mais que muito a compleição vigorosa de
homem de boa idade. Era Oppas, o bispo Oppas, que se esquecera do
sacerdocio, como se havia esquecido da patria, e que, habituado á vida
solta dos arraiaes, excedia já na violencia de paixões ignobeis os mais
desenfreiados e barbaros chefes das tribus semi-selvagens da Africa.
Muitos outros tiuphados e quingentarios, assentados ao longo da mesa,
davam mostras de infernal alegria, despejando as taças de prata, que os
libertos lhes enchiam de novo para de novo rapidamente se esgotarem.
«Vêde os nazarenos maldictos--dizia Abdulaziz em voz baixa ao cheik
Abdallah, olhando de través para os godos.--O amor da embriaguez nunca
os deixará ver a luz que mana das paginas do divino koran. Para elles
o fructo da vide será sempre a ponte estreita, da qual, ao passarem na
morte, se despenharão no inferno.»
«E que nos importam as suas almas tisnadas--replicou Abdallah--se elles
nos ajudam a sujeitar á lei do sancto propheta o imperio de Andalús?
Sem Deus e sem patria, deixae-lhes ao menos a sua bruteza.»
O bispo d'Hispalis percebeu que falavam delle e dos outros godos,
porque os cheiks haviam volvido para lá os olhos. Erguendo-se então com
a taça em punho, exclamou em arabico:
«Ao invencivel Abdulaziz; a um dos mais nobres vingadores de Witiza!»
«Alfaqui dos romanos--respondeu o amir--a lei do propheta não consente
que eu acceite a saudação que atravessou por labios tinctos no licor
amaldicçoado por elle.»
«E que montam as maldicções do teu propheta?--replicou Oppas em tom
de gracejo.--Devemos nós por isso deixar de saudar o illustre filho
de Musa com o abençoado e generoso vinho dos ferteis outeiros da
Hespanha?...»
«Infiel!...--interrompeu o amir, em cujos olhos scintillara o despeito.
Depois, reportando-se, proseguiu em tom brando, mas firme, como quem
queria ser promptamente obedecido:--Nobres cavalleiros do Gharb,
valentes cheiks do Negid, de Berryah, e d'Almoghreb, a noite vai alta,
e ao romper da manhan é necessario partir. Que o somno vos desça sobre
as palpebras nas vossas tendas de guerra!»
A estas palavras, godos e arabes, alevantando-se, foram sahindo da
tenda vagarosamente e em silencio. Só o bispo d'Hispalis, apertando a
mão de Juliano, murmurou:--«Oh, quanto fel se mistura com o prazer da
vingança! Mas cumpra-se o nosso fado.»
Ao atravessarem o arraial, os dous filhos renegados da Hespanha
notaram que nos cabeços das almenaras a escuridão era tão profunda
como no resto do campo. Tudo, porém, estava tranquillo. Apenas a pouca
distancia lhes pareceu verem passar como sombra um cavalleiro, que se
encaminhava para o lado do pavilhão de Abdulaziz. Era, provavelmente,
algum soldado d'Al-Sudan, que, transnoitado, se retrahia para o seu
alojamento juncto da tenda do amir.
Entretanto este, apenas só, começou a caminhar agitado e a passos
largos de uma até outra extremidade do aposento, que ricos pannos da
Syria dividiam dos que occupavam os servos. No seu gesto, turbado por
affectos encontrados, passavam successivamente os vestigios destes:
ora a indignação lhe pesava nos sobrolhos confrangidos; ora lhe
sorria nos olhos um pensamento voluptuoso; ora a compaixão parecia
suavisar-lhe esse feroz sorrir. Por fim, o moço Abdulaziz, como vencido
pela tempestade da sua alma, assentou-se no almatrah e cobriu o rosto
com ambas as mãos. Conservou-se assim por largo tempo, em silencio e
quedo, até que, a final, as suas paixões triumpharam e rebentaram com
violencia.
Batendo as palmas, o amir bradou:--«Al-Fehri!»
Um dos pannos que dividiam a tenda em varias quadras alevantou-se de
um lado, e um vulto negro e disforme, que parecia arrastar-se com
difficuldade, encaminhou-se para o amir. Era como um tronco de gigante
pelo espadaúdo do corpo, pela amplidão do ventre e pela desmesurada
grossura da cabeça, onde só lhe alvejavam os olhos embaciados. O
monstro, apenas deu alguns passos, parou, cruzando sobre o peito os
braços grossos e curtos, semelhantes a dous madeiros informes.
«Eunucho--disse Abdulaziz com voz agitada--conduze aqui a ultima das
minhas captivas que especialmente confiei de ti.»
O vulto recuou e, franzindo a especie de reposteiro que lhe dera
passagem, desappareceu. Passados alguns momentos, tornou. Uma figura
de mulher, cujas fórmas mal se podiam adivinhar através d'um raro
cendal que a cubria até os pés, acompanhava-o. Com passo firme, ella se
encaminhou para Abdulaziz, e o eunucho desappareceu de novo.
«Filha dos christãos--disse em lingua romana o amir--os dous dias
que me pediste para chorares o teu captiveiro passaram. Resolveste,
finalmente, ser a mais amada entre as mulheres de Abdulaziz; ser a
invejada das donzellas do oriente e quasi a rainha das provincias de
Andalús, porque acima de Abdulaziz só dous homens existem na terra, o
amir d'Almoghreb, aquelle que me gerou, e o descendente do propheta, o
que rege todo o imperio dos crentes?»
«A minha resolução é morrer, quando te approuver:--replicou a captiva
com serenidade;--porque essa resolução ha muito que eu a tomei.
Enganei-te, pagão, quando te pedi dous dias para chorar! Escarneci de
ti, porque te abomino. Esperava que um braço de guerreiro que vale
mais que o teu viesse arrancar-me do captiveiro. Ai de ti, se elle
soubesse qual tinha sido o meu fado! Folga, pagão, de que a sentença
fulminada por Deus contra os filhos da Hespanha me abrangesse tambem.
Nesta hora não fora eu; foras tu quem deveria perecer. Mas elle não
pôde salvar-me: só me resta dizer-te: infiel, tu és maldicto de Deus:
principe dos arabes, tu és servo dos demonios: homem que me pedes amor,
sabe que eu te detesto.»
«Dize tudo:--interrompeu o amir, apertando com força o braço da
captiva e fitando nella os olhos, onde luctavam amor profundo e colera
violenta:--exhala em injurias a tua dôr orgulhosa: sê, até, blasphema;
mas não digas que detestas Abdulaziz; não digas que amas um godo e que
elle fora capaz de te vir roubar da minha tenda. Desgraçado do nazareno
que se lembrasse de amar-te depois que Abdulaziz te chamou sua. Onde
se iria esconder esse malaventurado filho de uma raça vil e covarde,
que podesse escapar a este braço, o qual ao estender-se arranca pelos
fundamentos os vossos castellos e reduz a pó os templos do vosso Deus e
os muros das vossas cidades?»
«Aquelle que eu cria viesse em meu soccorro--tornou com voz firme
a captiva--não se esconderá de ti no dia em que estiverem em volta
delle todos os seus irmãos em esforço e amor da terra natal; porque
nesse dia das grandes vinganças vê-lo-has face a face. Muitas vezes os
teus guerreiros têem fugido diante delle; muitas vezes o incendio dos
arraiaes pagãos tem ajudado o incendio das nossas cidades a alumiar as
trevas da noite, e a sua mão foi a que lançou o facho sobre a tenda
do agareno. Esse, ao menos, se ainda se esconde, não é por temor de
ti, nem dos teus cavalleiros, que, tantos por tantos e ainda em dobro,
muitas vezes tem visto fugir.»
«Entendo-te, altiva filha dos godos:--replicou Abdulaziz.--Falas do
que vós outros chamaes Pelagio, e que só de noite ousa saír das suas
solidões das montanhas para acommetter as tribus d'Almoghreb que
fizeram assento no conquistado Gharb ou para assassinar os cavalleiros
do deserto transviados. Apenas Sarkosta e Tarkuna vissem fluctuar
sobre as suas muralhas os estandartes do Islam, eu iria arrancá-lo dos
seus escondrijos para o punir. Mas tu abbreviaste os dias do foragido
nazareno. Dentro de pouco o seu cadaver servirá de pasto ás aves do
céu, porque amou aquella que eu escolhi.»
«Deus defenderá meu irmão:--disse titubeiando a donzella, cuja firmeza
começava a abandona-la, receiando ver cumprida a ameaça do amir.
«Irman de Pelagio?! Oh, repete-o mil vezes! São as prisões do sangue
que te unem ao cruel inimigo dos crentes?»
«Porque finges ignora-lo? Os velhos cavalleiros que me acompanhavam
e que comigo foram captivos no mosteiro que profanaste já o terão
revelado.»
«Nem as promessas, nem os tormentos poderam tirar de suas bocas o teu
nome e a tua jerarchia. Mas jura-me que és a irman de Pelagio, e elle
poderá esquivar, se quizeres, o seu tremendo destino.»
«Fora inutil negar o que eu propria confessei. O meu nome é
Hermengarda: o duque de Cantabria, Favila, foi meu pae, e Pelagio é o
filho e successor de Favila.»
O amir ficou alguns momentos calado com o braço d'Hermengarda preso na
mão robusta, que ella sentia tremula com o tumultuar dos affectos que
agitavam o coração do arabe. Este, por fim, exclamou:
«Pelo precursor do sancto propheta; por Issa[1], Hermengarda, que, se
amas teu irmão, me digas:--eu serei tua. Estas palavras o farão senhor
da mais rica provincia do Andalús, daquella que elle escolher para
reinar como amir: os guerreiros que o seguem serão os walis das suas
cidades, os kaiyds dos seus castellos: dos meus thesouros metade será
delle. As escravas que muito hei amado não mais verão sorrir-lhes o
rosto de seu senhor. Tu serás rainha do meu coração; rainha sem rival;
senhora de tudo sobre quanto se estende o poder de Abdulaziz, do filho
querido do invencivel Musa. Profere só essas palavras, e a sorte de
Pelagio será invejada pelos nossos mais illustres guerreiros!...»
No gesto do agareno todos os vestigios da colera tinham desapparecido:
só nelle se lia a anciedade de um amor immenso, que precisa, mais que
do goso brutal, de um sentimento accorde com os proprios sentimentos.
Mas Hermengarda só vira affronta e opprobrio nas palavras do amir, e
o odio a este homem, cuja natural fereza e orgulho o amor convertera
em brandura e, talvez, em submissão, tornou-se ainda maior ao ouvi-lo.
Recobrando toda a energia da sua alma, que por um momento vacillara,
respondeu, olhando para Abdulaziz com ar de desprezo:
«Nem sempre os valentes conquistadores da Hespanha podem achar
traidores que vendam por ouro e honras infames os sepulchros de seus
paes e os altares do Senhor. Não! Pelagio não acceitará nunca um logar
entre os filhos de Witiza e o conde de Septum; porque Deus o guarda
para vingador de seus trahidos irmãos. Infiel, grande era o preço que
davas por uma filha da serva raça dos godos: guarda-o para o empregares
melhor; para comprares as nobres e livres donzellas do teu paiz. Tudo o
que me offereces é vil; porque vem de ti, maldicto. Só uma offerta te
acceito; ha muito que t'a pedi: a morte... a morte, e que seja breve.
Abomino-te, destruidor da Hespanha... Não! Enganei-me! Desprezo-te,
salteador do deserto.»
Com os labios brancos e o olhar desorientado, o amir ouvia as palavras
d'Hermengarda, e a sua fronte enrugava-se como a face do oceano ao
passar do furacão. Tremendo silencio reinou por alguns momentos na
tenda. Com um rir abafado e diabolico, o amir o rompeu por fim:
«A morte?--Não terás a morte: juro-t'o pelo sepulchro do propheta.
Porque a abelha zumbiu aos ouvidos do caçador faminto, arrojará elle
para longe o mel do seu favo e esmagará o insecto? Tu serás minha,
mulher orgulhosa; porque o meu amor é, como o meu odio, inexoravel
e fatal. Depois, quando o incendio que me devora estiver extincto;
quando o tedio morar para mim nos teus braços, irás cevar nas tendas
dos bereberes a sensualidade brutal dessa soldadesca selvagem. Póde ser
que teu nobre irmão venha entretanto salvar-te!... Guarda para então as
suberbas; que hoje, pobre escrava, só te resta obedecer á voz do teu
senhor.»
Ao dizer isto, Abdulaziz, segurando com a dextra o braço d'Hermengarda,
apertou-o com tanta violencia que a desgraçada deu um grito de agonia e
cahiu de joelhos aos pés do arabe. O amir ergueu-a e, impellindo-a com
força, ao mesmo tempo que despedaçava com a esquerda o raro cendal que
lhe velava o rosto, a fez cahir pallida e trémula sobre o almatrah. Os
labios da donzella quizeram ainda proferir algumas palavras--porventura
uma supplica; mas apenas murmurou sons inarticulados, que expiraram em
arquejar doloroso.
No seu furor, o filho de Musa não sentira um rugido de colera que
respondera ao grito d'Hermengarda, nem um ai passageiro e sumido,
que, segundo era intimo, parecia de homem a quem a ponta de um punhal
rasgara subitamente o coração. Nas telas, porém, que dividiam o
aposento do logar d'onde pouco antes saíra o eunucho e que ficavam
fronteiras á entrada principal da tenda uma figura humana se estampou
negra sobre o chão brilhante da tapeçaria. O amir, volvendo casualmente
os olhos, a viu. Crescia rapida. Escutou. Passos ligeiros soavam no
vasto aposento. Voltou-se. Mas apenas pôde erguer o braço: vira reluzir
no ar um ferro: vira um vulto cuberto d'armas semelhantes ás dos
cavalleiros d'Al-Sudan: sentiu um golpe que lhe partia o braço erguido
e, batendo-lhe ainda no craneo, lhe retumbava no cerebro. Deu um grito,
fechou os olhos e cahiu aos pés d'Hermengarda, manando-lhe o sangue da
fronte. O monstro humano que conduzira alli a irman de Pelagio, assomou
então no topo interior da tenda: o brado do amir o attrahira. Vendo
seu senhor derribado e juncto delle o que o feríra, o eunucho fez uma
horrivel visagem, como pretendendo falar; mas sómente soltou um rugido
acompanhado de um gesto d'ameaça. Segundo o atroz costume do oriente,
Al-Fehri, destinado desde a infancia ao serviço mysterioso do harem,
fora condemnado em tenros annos a nunca imitar a voz humana. Privado da
lingua, as suas expressões eram acenos ou afflictivos e inarticulados
rugidos.
O cavalleiro observava-o. Fê-lo sorrir o ademan feroz e ameaçador do
eunucho. Tinha previsto todas as difficuldades daquella arriscada
empreza e contava com o seu esforço e frieza d'animo para as vencer.
Ligeiro, travou de uma das tochas que ardiam juncto da mesa do
banquete e chegou-a ás ricas tapeçarias que forravam a tenda. A chamma
enredou-se na tela: um rolo de fumo espesso trepou em espiraes,
ennegrecendo-lhe os recamos e lavores brilhantes. Em breve, as
labaredas abraçadas com os feixes de lanças, com os pannos custosos,
que ondeiavam torcendo-se, treparam até o cimo e, curvando-se
espalmadas sob o tecto, romperam em linguas ardentes aprumadas para
o céu. O incendio, espalhando ao longe a sua sinistra claridade,
erguia-se como um tocheiro disforme acceso no meio do arraial e
despertava assim do somno profundo os soldados d'Al-Sudan lançados em
volta do pavilhão do amir.
Mas já a este tempo o cavalleiro se affastava do logar daquella scena
medonha. As palavras--«liberdade e Pelagio!» proferidas por elle,
tinham calado como um balsamo de vida no coração d'Hermengarda. O
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