Eurico, o presbytero - 06

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do mundo haviam penetrado, salvo nos sonhos passageiros e dourados de
algum coração mais ardente, restrugiam com o bater das armas, com o
amontoar das provisões, com o carpir dos que abandonavam seus lares,
com a violenta e brutal linguagem da soldadesca. No meio daquella vasta
mole de marmore, em que os sons discordes reboavam, ecchoando soturnos
nas arcadas e corredores profundos, o templo, aonde se acolhera a
quietação monastica, era como um oasis frondoso e abrigado por seus
palmares no meio do deserto que o sopro infernal do simûm revolve,
fazendo redemoinhar nos ares aquelle oceano de areia fervente.
Era ao anoitecer de um dia de novembro. Por entre o nevoeiro cerrado
que, alevantando-se do valle vizinho, trepava pela encosta, deixando
apenas livres as negras agulhas dos cerros, lá no viso da montanha,
divisavam-se a custo as ameias e muralhas á luz baça do crepusculo,
refrangido em céu pardo e humido. A brisa morna de oeste gemia nos
troncos dos castanheiros nús, nas ramas esguias dos pinheiros bravos,
e as passadas monotonas dos vigias ao longo dos adarves formavam um
concerto accorde com o aspecto melancholico do céu e da terra.
A esta hora duvidosa entre a claridade e as trevas, uma numerosa
cavalgada atravessava o ribeiro no fundo do valle e encaminhava-se
para o mosteiro da Virgem Dolorosa. Dez cavalleiros, cujas barbas
alvas lhes cahiam sobre o peito, saíndo por baixo das redes de ferro
que lhes serviam de gorjal, rodeiavam uma dama, cujo rosto occultava o
comprido véu que, pendente do retíolo, lhe descia sobre o alvo amiculo,
mas cujos meneios airosos e talhe esbelto revelavam nella o viço e as
graças da idade juvenil. Seguiam-na alguns pagens desarmados, cujos
rostos imberbes já o temor e o desalento que se pintavam em todos os
semblantes nesta epocha desastrada haviam sulcado de rugas. Vadiado
o rio, a cavalgada encaminhou-se por uma senda tortuosa que ía dar á
entrada do mosteiro, aonde, ao que parecia, desejavam chegar antes
que de todo se fechasse a noite. Ao approximar-se aquella comitiva,
os vigias conheceram que eram godos--provavelmente alguns desgraçados
que vinham buscar o abrigo dos seus muros fortificados--, e as grossas
portas não tardaram a abrir-se para recolherem mais esses pobres
fugitivos.
Apenas os recem-chegados, atravessando o atrio do fundo portal, saíram
á cerca interior, o que parecia mais auctorisado entre os velhos
cavalleiros pediu para falar a sós com Atanagildo. Levado o ancião
á torre onde o quingentario habitava, não tardou este em descer á
cerca, no meio da qual, ainda a cavallo e sem erguer o véu, a dama
desconhecida esperava rodeiada dos seus. Com todos os signaes de
respeito, Atanagildo dirigiu-lhe algumas palavras em voz submissa
e, tomando a redea do palafrem, guiou-o para uma porta contígua ao
frontispicio da igreja. A um signal seu a porta abriu-se, e um vulto
negro de monja appareceu no limiar della.
O quingentario, tomando pela mão a desconhecida e apresentando-a á
monja, disse-lhe:
«Veneravel Chrimhilde, acolhei entre as puras virgens que vos obedecem
uma das mais nobres donzellas d'Hespanha: é por uma noite, apenas, que
ella vos pede abrigo: ámanhan ao romper d'alva partirá para Legio.»
«Ámanhan ou depois, que importa?--replicou a monja, cujo semblante
austero descubria não tanto a decadencia dos annos, como os vestigios
da penitencia:--emquanto Chrimhilde reger o mosteiro da Virgem
Dolorosa, nunca a hospitalidade será refusada nelle ao que a implorar.
E quando a virtude de nobre donzella tiver um fiador tal como vós, esta
achará sempre em mim o carinho de mãe e nas escolhidas do Senhor, que
me alevantaram do meu nada ao tremendo ministerio de sua abbadessa,
encontrará o amor e o gasalhado d'irmans para com irman querida.»
Dizendo isto, a boa abbadessa tomou pela mão a desconhecida e,
internando-se com ella pelas arcadas que diziam para o interior do
edificio, allumiadas escaçamente pelas lampadas turvas que d'espaço
a espaço pendiam das abobadas achatadas, desappareceu aos olhos de
Atanagildo.
A noite vai no seu fim: a campa do mosteiro dá o signal do terceiro
nocturno. Subitamente, o sanctuario illumina-se, e os vidros multicores
jorram nas trevas externas a claridade dos candelabros e tochas, como,
de dia, deixam transudar a luz do sol no ambito interior da igreja;
ésto perpetuo de resplendores, que ora descem do céu para a terra, ora
tentam, subindo da terra para as alturas, desfazer o manto das trevas.
N'uma extensa fileira, a cuja frente vem a veneravel Chrimhilde, as
monjas entram no coro e, tomando para um e outro lado, param voltadas
para o altar. Juncto da abbadessa uma donzella de trajos brancos
sobresái entre as monjas vestidas de negro, não tanto pela alvura das
roupas, como pela formosura: e todavia, são formosas muitas das virgens
que a rodeiam, pela maior parte ainda no viço da vida. É a nobre dama
recem-chegada, á qual nem o cansaço de trabalhosa jornada, nem o habito
dos commodos do mundo poderam impedir acompanhasse na oração aquellas
que o tracto de poucas horas já lhe fazia amar como irmans. Chrimhilde
prostra-se com a face no chão: as monjas e a dama vestida de branco
seguem o seu exemplo. Através desses labios innocentes que beijam
o pavimento do templo murmuram durante alguns instantes as orações
submissas. Depois, a abbadessa ergue-se, e pouco a pouco aquelles
semblantes, que cobre uma pallidez d'ineffavel repouso e brandura,
vão-se alevantando da terra, com os olhos voltados para o céu,
semelhantes aos de anjos de marmore ajoelhados em roda de um tumulo,
que surgissem pouco a pouco animados por vida repentina e, cheios de
saudade da morada celeste, enviassem aos pés do Senhor o seu primeiro
suspiro. Então a psalmista começa a entoar um dos hymnos sacros do
Presbytero de Carteia que havia pouco se tinham introduzido no ritual
gothico, e as demais monjas respondem em córos alternos. O hymno dizia
assim:
«As azas da tua providencia, oh Senhor, despregam-se por cima da terra,
e o justo desgraçado acolhe-se debaixo dellas:»
«Porque ahi moram os sanctos contentamentos; esquecem as dores da vida;
vive-se á luz da esperança.»
«Confiado em ti, o fraco affronta as tyrannias do forte; o humilde ri
das suberbas do poderoso.»
«Quem revelou aos pequeninos e oppressos esta divina guarida? Quem nos
ensinou a esperar? Quem a ser felizes pela fé no meio das agonias?»
«Foi Christo, o teu filho querido. A tua justiça condemnava á dor o
genero-humano, ainda no berço: elle nos conquistou para a felicidade no
meio dos tormentos da cruz.»
«Nós tomaremos, tambem, esta em nossos hombros: ella é a guia da
bemaventurança.»
«O seu peso é suave; porque sob ella os espinhos da existencia que
ensanguentam os membros do peregrino sem repouso, chamado o homem,
convertem-se em prado macio de relva e boninas.»
«Que reine para sempre a cruz!»
«Erguei-a sobre todos os pincaros das serranias, gravae-a em todas as
arvores dos bosques, hasteae-a sobre as rochas maritimas, estampae-a
nas muralhas das cidades, na fronte dos edificios, apertae-a ao
coração.»
«E depois, que o genero-humano se prostre e adore nella a redempção que
nos trouxe o Ungido de Deus.»
«A cruz triumphará eterna!»
Neste momento aquellas vozes harmoniosas cessaram, como se de subito
nos labios de todas as monjas se houvesse posto o sello da morte. A
porta do templo, aberta com violento impulso, rangera nos gonzos, e
um velho ostiario viera cahir de bruços sobre as lageas do pavimento,
soltando o grito doloroso que por tantos milhares de bocas diariamente
se repetia na Hespanha:--Os arabes!
As vozes confusas dos vigias, misturadas com o tinir do ferro,
responderam, como um uivar de feras, ás palavras do ostiario: as faces
pallidas das virgens empallideceram ainda mais.
A alvorada começava a repintar na terra a claridade do sol, escondido
ainda no oriente. Os godos com as armas nas mãos coroavam as ameias.
Do alto de uma das torres Atanagildo observava a campanha, e a fronte
entenebrecia-se-lhe com um véu de tristeza.
Naquella noite muitos nobres senhores de terras tinham chegado ao
mosteiro, vindos da banda de Legio. Um numeroso exercito d'arabes
apparecera subitamente na vespera juncto aos muros da cidade, que logo
fora acommettida pelos pagãos. Era o que sabiam. Fugitivos desde o
apparecimento dos inimigos, ao anoitecer haviam enxergado para aquella
parte um clarão grande e duradouro. Se eram as fogueiras dos arraiaes
arabes, se o incendio de Legio, não o podiam resolver; só, sim, que
sería impossivel resistir por largo tempo cidade tão mal defendida a
tamanha copia d'infiéis, que não tardariam a derramar-se para o lado do
mosteiro, proseguindo nas suas devastadoras conquistas pela Gallecia e
pela Tarraconense.
Era esta negra prophecia dos fugitivos que se tinha verificado ao
romper da manhan. Atanagildo, do alto da torre principal, vira ao longe
um vulto negro que descia dos outeiros, onde já allumiava tudo a luz
matutina. Esse vulto assemelhava-se a serpe monstruosa que, rolando-se
do monte para a planicie em collos tortuosos, se lhe reflectissem nas
duras conchas os raios solares; porque naquelle corpo gigante havia um
contínuo e rapido scintillar. Atanagildo percebera o que era, e por
isso a tristeza lhe obscurecia a fronte.
Como a faisca electrica, o terror se espalhara no mosteiro apenas se
dissera que os arabes se approximavam. Mais de um coração de guerreiro
batia apressado, como o do pobre ostiario que buscara na piedade de
Deus o amparo que mal podia esperar das muralhas do forte edificio;
do pobre ostiario, que, sem o saber, fora desmentir o hymno triumphal
da cruz, diariamente derribada dos altares nos templos profanados da
Hespanha.
Dentro em breve, o exercito do Islam se approximara a tão curta
distancia que facilmente se distinguiam os esquadrões dos filhos do
deserto e as turmas dos berebéres. Tambem os arabes tinham observado o
reluzir das armas através das ameias do mosteiro. A hoste inteira parou
no valle, e alguns cavalleiros encaminharam-se pela senda tortuosa que
findava na ponte levadiça contigua ao grande portal, erguida desde que
pelos fugitivos constara que os mosselemanos se avizinhavam.
Quando o quingentario conheceu que os arabes paravam no fundo do valle,
o seu coração generoso verteu sangue com a lembrança de que todo o
esforço dos soldados que coroavam os adarves do mosteiro, por muito que
houvera sido, não fora bastante para salvar os desgraçados que tinham
buscado abrigo á sombra daquellas muralhas. Viu o desalento pintado nos
semblantes dos mais valorosos, e a ultima esperança varreu-se-lhe da
alma. Todavia, esperou com rosto seguro a chegada dos cavalleiros que
subiam a encosta.
Estes approximaram-se, emfim. Pelo seu aspecto e trajo via-se que na
maior parte eram godos. Com as espadas nas bainhas, pareciam vir em som
de paz: tambem, por isso, nem uma frecha só se disparou contra elles
dos muros.
Pouco antes de chegarem ao fosso profundo que circumdava o edificio,
um cavalleiro que parecia o principal daquelle pequeno esquadrão,
adiantando-se aos demais, veio topar com a entrada da ponte e, olhando
para as muralhas, onde reluziam immoveis as lanças dos christãos,
chamou:--«Atanagildo!»
Ao ouvir aquella voz, o quingentario empallideceu: com visivel
anciedade, voltou-se para um centenario que estava juncto delle e
disse-lhe:
«Mandae descer a ponte e dae passagem franca a esse cavalleiro que
proferiu o meu nome: mas a elle, unicamente a elle!»
O centenario obedeceu. D'ahi a pouco as armas do guerreiro tiniam
pelas escadas da torre. Apenas subiu ao terrado, encaminhou-se para
Atanagildo e, estendendo-lhe a dextra, exclamou:--«Meu irmão!»
O quingentario, em cujas faces pallidas passara um relampago de
vermelhidão, recuou e, com voz affogada, respondeu:
«Atanagildo teve um irmão; mas esse morreu para elle: porque entre
elle e Suintila está a cruz quebrada aos pés dos pagãos; está o céu
e o inferno. A minha herança é a ignominia do vencimento, os ferros
d'escravo e as promessas do Christo: a tua as riquezas, a victoria e a
maldicção de Deus. Não tróco os nossos destinos, nem quero a amizade
do precíto. Arrepende-te, abandona os infiéis, e então Atanagildo te
apertará ao peito e te dará aquelle nome tão suave da nossa infancia, o
sancto nome de irmão.»
«Estás louco!--replicou Suintila--...Porém, não foi para disputar
comtigo que vim aqui: vim para te salvar. Olha para o valle: áquella
hoste numerosa que lá vês poucas horas poderão resistir estes muros mal
guarnecidos, Abdulaziz, o invencivel filho do amir d'Africa, é quem
a capitaneia: Legio cahiu hontem em nosso poder, e de parte nenhuma
podes ser soccorrido. O bispo d'Hispalis e o conde de Septum, que vem
comnosco, offerecem-te o mando de um dos seus esquadrões. Os arabes
pedem aos godos que os seguem fidelidade ao estandarte do kalifa, não
á crença do Islam: pódes guardar tua fé. Eis o que Suintila alcançou
a teu favor. Estas velhas muralhas e as donzellas encerradas nestes
claustros, que Abdulaziz soube serem pela maior parte formosas e que
elle destina para enviar a Kairwan, são o vil preço da tua salvação.
Suintila aconselha-te que o entregues; porque, apesar das injurias,
ainda se não esqueceu de que é irmão de Atanagildo. Resolve e responde:
que devo dizer a Juliano e a Oppas, a quem suppliquei para ser mandado
aqui?»
«Dize-lhes--atalhou o quingentario, cujos olhos faiscavam
d'indignação--que eu respeito a vida de um aráuto, ainda quando este é
um miseravel renegado, como tu ou como elles, aliás não fora Suintila
quem lhe levaria minha resposta. Dize-lhes que as suas infames offertas
são para mim tão abominaveis como elles. Dize-lhes que, antes de um
sacerdote sacrilego e de um conde traidor poderem estampar o ferrête
da prostituição na fronte das innocentes virgens do Senhor, terão de
passar por cima das ruinas destes muros e dos cadaveres dos seus e dos
meus soldados. E tu, renegado, sae d'aqui! Possa eu nunca mais vêr-te o
rosto e esquecer-me na hora de morrer de que nessas veias gyra o sangue
de nossos nobres e generosos avós.»
«Como te aprouver, meu irmão!»--replicou Suintila, e um sorriso lhe
deslisou nos labios, descorados por mal disfarçada colera. Proferidas
estas palavras, desceu as escadas da torre.
A cavalgada, que lenta subira a encosta, descia-a rapidamente
emquanto Atanagildo, visitando os muros, exhortava os guerreiros da
cruz a pelejarem esforçadamente. Quando estes souberam quaes eram as
intenções dos arabes ácerca das virgens do mosteiro, a atrocidade do
sacrilegio affugentou-lhes dos corações a menor sombra d'hesitação.
Sobre as espadas juraram todos combater e morrer como godos. Então
o quingentario, a quem parecia animar sobrenatural ousadia, correu
ao templo. Era necessario que as monjas soubessem qual futuro as
aguardava. Resignado a acabar defendendo-as, Atanagildo nem por isso
esperava salvá-las das mãos dos agarenos. Dolorosa era a nova; mas
cumpria não lhes esconder o seu horrivel destino.
As mulheres e os velhos que tinham vindo buscar asylo no mosteiro
enchiam já o templo, em cujas abobadas murmuravam e repercutiam
os gemidos e as preces. Rompendo pela multidão, o quingentario
encaminhou-se para o coro e chamou por Chrimhilde, que com as
monjas acompanhava o povo nas suas orações fervorosas. A abbadessa
aproximou-se das reixas douradas que a separavam do guerreiro.
«Chrimhilde,--disse Atanagildo em voz baixa--é necessario valor! Dentro
de poucas horas sobre os muros do mosteiro da Virgem Dolorosa estará
hasteiado o pendão dos infiéis, e eu terei deixado d'existir, porque
jurei sobre a cruz desta espada ficar sepultado debaixo das ruinas
delle. O exercito dos arabes é irresistivel, e a unica esperança que
me resta é que o Senhor acceitará o meu sangue, derramado em seu nome,
como um testemunho da minha fé.»
«Os infiéis--acudiu a abbadessa, procurando dar ás palavras
que proferia um tom de firmeza que o tremulo da voz lhe
desmentia--contentar-se-hão, talvez, com as riquezas aqui amontoadas
imprudentemente e com a posse destes logares. Se é isto o que
pretendem, saiamos e cedamos ao culto impio de Mohammed o templo do
Deus vivo, já que para o salvar sería inutil todo o sangue que se
vertesse. Com as virgens esposas do Senhor buscarei os ermos das
serras do norte, e, como as monjas primitivas, ahi acharemos a paz e
o repouso, emquanto o pae celestial nos não chama á nossa verdadeira
patria.»
«Prouvera a Deus, veneravel Chrimhilde--tornou o quingentario--que nos
fosse licito desamparar estes muros: deixar só entregues ás profanações
dos infiéis a pedra e o cimento! Mas uma atroz mensagem acaba de me ser
mandada por quem, como eu, devia horrorisar-se della. Repelli-a, porque
se me offereciam vida e honras a troco de perpetua infamia. Agora
resta-me unicamente o morrer como godo e como soldado da cruz.»
«E qual era essa mensagem?--perguntou a abbadessa anciosamente.--Em
nome de quem vinha ella?»
«Do bispo d'Hispalis e do conde de Septum; de um sacerdote e de um
nobre. O preço da nossa liberdade era a prostituição das vossas
filhas queridas, das monjas consagradas á Virgem Dolorosa, que esses
malaventurados destinam para saciar as paixões brutas daquelles a quem
venderam a terra d'Hespanha. Para o obter cumpre-lhes, porém, passar
por cima dos membros despedaçados dos guerreiros que povoam estas
muralhas. Pela cruz assim o jurámos todos. Havemos de cumpri-lo.»
As palavras de Atanagildo vibraram no coração de Chrimhilde, como vibra
o primeiro dobre pelo finado que ainda jaz em seu leito da derradeira
agonia na alma do bom filho, que resa, chorando, ajoelhado ao pé delle.
Recuou atterrada e, volvendo para o céu os olhos enxutos, porque a
afflicção nelles estancara as lagrymas que despontavam, ficou por
alguns momentos com as mãos erguidas, como implorando uma inspiração
de cima. Pouco a pouco, porém, as suas faces tingiram-se da cor da
vida, o sorriso da esperança rodeiou-lhe os labios, e as lagrymas,
consolo supremo das maiores magoas e, tambem, expressão eloquente dos
contentamentos mais intimos, lhe rebentaram com força e lhe orvalharam
a negra estamenha do habito.
«O martyrio! o martyrio!--murmurou a abbadessa.--Oh Christo! bemdicto
seja o teu nome.»
«O martyrio, sim:--interrompeu o quingentario--mas depois do
sacrilegio; mas depois que as victimas da corrupção dos traidores
tiverem sido arrastadas para longe da Hespanha e depois que nos harems
do oriente houverem sido polluidas pela sensualidade brutal dos
conquistadores. Eu, ao menos, não verei esta ultima offensa á crença
sacrosancta de nossos paes...»
«Ide:--proseguiu a abbadessa, que parecia não o haver escutado,
embebida em meditação profunda:--Quando os infiéis se approximarem,
enviae-lhes mensageiros de paz. Que vos deixem acolher ás montanhas com
essa multidão d'infelizes que vieram buscar o abrigo destes muros. Não
cureis das monjas da Virgem Dolorosa, nem receieis por ellas. Achei um
meio para as salvar da sorte medonha que as ameaça. Desamparae-nos;
porque o archanjo do esforço é o nosso defensor. O meu arbitrio será
acceito pelas escolhidas do Christo; sê-lo-ha, porque o Senhor m'o
inspirou. Nada mais é preciso dizer-vos.»
E, de feito, o seu olhar e gesto eram de uma inspirada: mas nesse olhar
e gesto havia o que quer que era de severa aspereza misturado com
alegria suave, como em céu que varre o noroeste as nuvens tenebrosas
remendam o azul purissimo do firmamento, d'onde, através dellas, jorram
torrentes de luz.
«Mas o juramento?--tornou tristemente o quingentario.--Devo respeitar o
vosso segredo; todavia parece-me licito duvidar da efficacia dos meios
que imaginaes para vos salvardes das mãos dos mosselemanos.»
«O vosso juramento é inutil--acudiu Chrimhilde--e eu vos escuso delle.
A resistencia só servirá para arrastardes comvosco á morte os velhos
inermes e as criancinhas innocentes. Ide e abri pacificamente as portas
aos pagãos. Se tanto é preciso, eu vo-lo ordeno. Atanagildo, um dia nos
veremos no céu.»
Dictas estas palavras com toda a firmeza de uma resolução inabalavel,
a abbadessa affastou-se da reixa e encaminhou-se para o meio das
freiras, que, entretanto, haviam estado immoveis com os olhos cravados
no pavimento. O quingentario ficou por alguns momentos pensativo:
depois, agitado pela lucta cruel dos affectos e pensamentos oppostos
que tumultuavam no seu coração, atravessou vagarosamente o templo e
desappareceu.
A um signal de Chrimhilde as monjas saíram do coro; a donzella vestida
de branco, ao lado da veneravel abbadessa, apertava-lhe a mão entre as
suas; mas os seus meneios eram firmes como os della e mais do que os
della altivos. Desde que a ultima freira passou, as préces misturadas
de soluços que sussurravam na egreja converteram-se n'um som unico de
chôro perdido, como se a ultima esperança houvera desapparecido com
ellas.
A campa do mosteiro bateu tres pancadas com largos intervallos: é o
signal que convoca as monjas a capitulo. Para lá se encaminham. A
donzella que nessa noite chegara acompanha-as, tambem, ahi. Entraram.
As pesadas portas da casa capitular rangem nos gonzos cerrando-se,
e o correr dos ferrolhos interiores reboa ao longe pelos corredores
monasticos. Ao mesmo tempo a ponte levadiça cai sobre o fosso que
rodeia as muralhas do vasto edificio; um cavalleiro se arroja sózinho
ao meio dos esquadrões do Islam, que já subiram a encosta, e pede para
falar com o conde de Septum em nome de Atanagildo. Dentro de poucos
instantes ei-lo que volta, e os mosselemanos param a curta distancia.
Então um grande numero de crianças, de velhos e de mulheres, saíndo,
como torrente comprimida, do portal profundo do mosteiro, atravessam
por meio de duas fileiras de soldados de Juliano e de guerreiros arabes
que vieram collocar-se aos lados da ponte. Esta multidão desordenada
ondeia, separa-se, apinha-se de novo, para tornar a espalhar-se, até
que desapparece ao longe, caminho das montanhas. Após ella, cubertos
dos seus saios de malha, mas sem armas, os soldados de Atanagildo
seguem com rosto melancholico as mesmas trilhas por onde se vai
escoando a turba, até que, tambem como esta, se derramam pelas selvas
densas dos montes e pelos barrancos escarpados que, retalhando os
Nervasios, dão passagem através delles para as regiões septemtrionaes
da Hespanha.
Apenas o quingentario, que fora o derradeiro a atravessar a ponte
levadiça, volvendo ainda os olhos arrasados de lagrymas para aquella
sancta morada, desceu a encosta, as duas fileiras de soldados
arremessaram-se ao fundo portal, cujas abobadas pela primeira vez
reboaram com os gritos discordes de homens desenfreiados, e o edificio
solitario respondeu-lhes com um silencio lugubre. Diante delles estavam
patentes as vastas arcarias e escadas, os longos corredores, os pateos
espaçosos. Lá, no centro, o templo solitario, com as portas abertas de
par em par, amostra-lhes aos olhos ávidos as suas riquezas, ao passo
que parece querer vedar ao sol, com as cores sombrias das vidraças
das janellas, o espectaculo das profanações de que na sua existencia
secular vai ser theatro e testemunha pela primeira vez.
Como o tufão, rugindo, se abysma nas galerias tortuosas de mina
extensa, assim os godos renegados e os mosselemanos, que os seguem de
perto, se precipitam dentro do mosteiro. Pelas arcadas e corredores,
pelas salas e aposentos ouve-se o rir e falar desentoado, o ruído de
passadas rapidas, o tinir das armas, o estourar das portas. Arabes,
mouros, soldados godos da Tingitania misturam-se, disputam, ameaçam-se,
dividindo o sacco. Os cheiks e os capitães do conde de Septum
vedam-lhes unicamente a entrada das habitações interiores, onde a
riqueza do templo lhes promette á cobiça mais avultada presa. Elles sós
se encaminham para essa parte e desapparecem nos claustros monasticos,
onde não se ouve outro signal de vivos, senão o som de seus pés e, a
espaços, o tinir das proprias armaduras, que roçam pelos pilares de
marmore.
Suintila, o deshonrado irmão do virtuoso Atanagildo, era do numero dos
capitães que haviam primeiramente penetrado no claustro solitario.
Tinha-se adiantado mais e descia por uma escadaria lobrega que
terminava, segundo parecia, n'uma quadra allumiada por muitas tochas.
Esta circumstancia, que lhe excitava viva curiosidade, o obrigou
a apertar o passo. A meia descida parou. Crera ouvir um cantico
entoado por muitas vozes accordes, que a espaços era interrompido por
gemidos dolorosos. Escutou: não se enganava! Então o terror começou
a apossar-se delle, e, porventura, teria retrocedido, se não sentira
que alguem mais o seguia. Eram dous cheiks arabes e um centenario do
conde de Septum que o acaso guiara para aquella parte. Interposto
entre o clarão avermelhado que saía do subterraneo e os tres que se
approximavam, Suintila fez-lhes signal de silencio e continuou a
descer mansamente, até chegar á porta que dava da escadaria para o
aposento illuminado. Então conheceu onde estava. Era um desses logares
mysteriosos e sanctos que a primitiva architectura religiosa construía
debaixo dos templos--templos tambem, mas da morte; porque ahi, sobre
os altares, repousavam as cinzas dos martyres, e aos pés delles os
fiéis que obtinham para ultima jazida uma pouca de terra onde ainda
fossem affagar-lhes as cinzas o sussurro longinquo das préces e o
perfume dos sacrificios.--Suintila achava-se na crypta do mosteiro da
Virgem Dolorosa. O clarão que vira era o de muitos lumes, accesos em
lampadarios gigantes, e reverberando nas stalactites penduradas das
juncturas do marmore: era o reflexo das tochas que ardiam diante dos
crucifixos, unicas imagens que se viam sobre as aras núas. Em cada um
dos tumulos das monjas antigas, enfileirados ao comprido dos muros,
negrejavam apenas uma data e um nome. Era o que restava para memoria
de muitas virtudes naquelles annaes do mosteiro, naquella chronologia
de pedra. O sepulchro da viuva d'Hermeneghild, o desgraçado irmão de
Rekkáred, elevado mais que os outros á entrada do templo subterraneo,
semelhava um throno de rainha em palacio de sombras, porque o ambiente
grosso e frio e o halito das sepulturas revelavam que ahi era o imperio
da morte.
As torrentes de luz que inundavam esta morada de terror não permittiram
a Suintila enxergar no primeiro volver de olhos os objectos que estavam
ante elle. Espantado, tentava descobrir no meio daquella resplandecente
solidão algum vulto humano, quando os cantos e gemidos, suspensos
momentaneamente, romperam de novo: primeiro as vozes harmoniosas;
depois o gemido íntimo, doloroso, affogado; logo outra vez o silencio.
Os dous cheiks e o centenario tinham chegado ao pé de Suintila.
Animados uns pela presença dos outros, encaminham-se para o grande
tumulo e d'alli olham para o logar d'onde haviam soado os canticos. Eis
o temeroso espectaculo que têem diante de si:
Grossos e altos cancellos de roble separam do resto do templo um
extenso recincto sem sepulchros, immediato ao altar principal: uma cruz
agigantada se ergue no topo: por um e outro lado daquelle espaço além
das grades negrejam duas fileiras de monjas: muitas estão de joelhos
e debruçadas sobre o primeiro degrau do altar: em pé, entre as duas
fileiras, uma dellas, cujos olhos desvairados reluzem á claridade das
tochas e cujo aspecto severo infunde uma especie de terror, tem na mão
um punhal, cujo ferro sem brilho parece tincto em sangue. Juncto da
monja um vulto de mulher vestida de branco sobresáe no meio das virgens
cubertas de lucto: unido ás grades que defendem a entrada daquelle
recincto, um velho, cujas melenas e longa barba lhe alvejam sobre os
hombros e peito, está de joelhos com os braços estendidos através da
balaustrada: agita-o uma convulsão horrivel de pavor, que lh'embarga
na garganta os sons articulados e só lhe consente murmurar um ruído
confuso, semelhante ao respiro ancioso de agonisante. Um dos dous
córos de freiras começa a entoar de novo os psalmos: a monja do punhal
estende a mão, ordenando silencio. Vai falar. Suintila, a ponto de
arremessar-se para aquelle lado, pára e escuta as suas palavras. São
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