As Minas de Salomão - 07

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O velho sorriu, com uma grossa malicia de negro:
--Os Espiritos que vêm das estrellas sabem decerto mais do que um
Kakuana...
--Com effeito! acudi eu, n'um tom sciente e profundo. E por isso te
posso dizer, Infandós, que esses homens antigamente vinham procurar um
ferro amarello que rebrilha, e umas pedras brancas que faiscam.
--Talvez fosse, talvez fosse! balbuciou Infandós, embaraçado,
afastando-se bruscamente para lançar uma ordem aos carregadores da
bagagem.
--Acolá, disse eu aos companheiros mostrando as _Tres Feiticeiras_,
estão as minas de Salomão!
Todos tres, commovidos, ficámos a olhar aquelles montes tão proximos,
onde jaziam ainda talvez (se o velho D. José da Silveira contára a
verdade) os mais ricos thesouros da terra... A que prodigioso momento
chegára a nossa aventura!
De repente, quando assim pasmavamos, o sol desappareceu--e a noite
cahiu, sem transição, visivelmente, como uma coisa tangivel. N'aquellas
latitudes não ha crepusculo. A luz acaba como a chamma d'um bico de gaz
que se fecha: e, n'um instante, a terra toda fica envolta n'uma cortina
de treva.
N'essa occasião porém, durou pouco a escuridão, porque bem cedo a mais
larga e esplendida lua que me lembro de ter visto subiu magestosamente
ao céo, derramando uma tão sublime refulgencia, tão divinamente serena,
que, sem saber porquê, cada um de nós tirou o chapéo, como n'um templo,
ante uma imagem sagrada.
Infandós, porém, quebrou a nossa contemplação, dando o signal de descer
para a cidade, que agora, batida de luar, cheia de lumes, parecia
infindavel através da planicie.
E d'ahi a uma hora, tendo passado a ponte levadiça, entre piquetes de
sentinellas a quem Infandós deu baixo o _santo e senha_, seguiamos
calados pela rua central de Lú, toda ladeada de sombras d'arvores e de
senzalas onde se cozinhava. Levou uma hora antes de chegarmos á grade
d'um pateo redondo, com o chão muito batido e duro, todo caiado de
branco. Em volta erguiam-se cubatas espaçosas, cobertas de colmo. Eram
alli (segundo declarou Infandós) os nossos «humildes pousos».
Cada um de nós tinha, só para si, uma cubata. Havia dentro um grande
asseio. Os leitos eram feitos com pelles estendidas sobre enxergões de
herva aromatica. Uma esteira tapetava o sólo. Tripeças pintadas
alternavam com frescas vasilhas d'agua. Não podiamos esperar mais
cuidadosa hospedagem! E apenas nos lavámos, sacudimos o pó, appareceu
logo um bando de raparigas, das mais bellas que até ahi encontraramos no
paiz, trazendo leite, carnes assadas e bolos de milho em vistosos pratos
de madeira.
Depois da ceia fizemos reunir todas as quatro camas na maior das cubatas
(precaução que encheu de riso as raparigas),--e não tardamos em
adormecer com grata tranquillidade. Acordámos quando o sol ia nado--e a
primeira e aprazivel impressão que recebemos foi a do bando das
raparigas, acocoradas no chão, a um canto, á espera que despertassemos
«para nos ajudar a lavar e a vestir».
Quando uma d'ellas, a mais alta (e que figura! que braços!) fez esta
amavel offerta, o capitão John teve uma exclamação, um gesto d'atroz
desespero:
--Vestir! É bom de dizer! Quando uma pessoa não tem senão uma camisa e
um par de botas!... E com estas raparigas todas, bonitas raparigas, ahi
por essa cidade... Não! isto não póde continuar! Eu não arredo pé d'aqui
da cubata, senão de calças! Quero as calças!
Vi o meu amigo tão decidido, que reclamei as calças. Mas uma das
raparigas voltou d'ahi a momentos declarando que essas sagradas e
maravilhosas reliquias tinham sido já mandadas ao rei!
O furor do nosso John foi immenso. Teve de se contentar em barbear a
face direita; porque na esquerda não consentimos nós que elle eliminasse
um só pêllo á farta suissa que já lhe crescêra. Aquella cara espantosa,
rapada d'um lado, barbuda do outro, era uma das evidencias da nossa raça
sobrenatural. Todos nós, de resto, tinhamos aspectos estranhos. Os
cabellos do barão, amarellos e sempre longos, desciam-lhe agora até aos
hombros, n'uma juba rude, que lhe dava o ar d'um barbaro dos tempos do
rei Olloff.
O almoço já esperava, fóra, no terreiro, em caçoulas que fumegavam. Mas,
primeiramente, quizemos tomar o nosso _tub_, atirar pelas costas alguns
frios baldes d'agua. E o assombro, a desconsolação das raparigas foi
consideravel, quando lhe pedimos pudicamente que se retirassem, cerrando
a porta de vime...
Logo depois do almoço, Infandós appareceu annunciando que el-rei Tuala
nos mandava muito saudar, e esperava a nossa comparencia em Palacio.
Declarei immediatamente, com indifferença e altivez, que ainda nos
achavamos cançados, tinhamos ainda um cachimbo a fumar, etc., etc.
Convém sempre, tratando com potentados negros, não mostrar pressa nem
respeito. Tomam invariavelmente a polidez por pavor. De sorte que,
apesar da nossa anciedade em vêr o terrivel Tuala, retardámos nas
cubatas uma farta hora, preparando, ao mesmo tempo, os escassos
presentes que destinavamos ao rei e á côrte: a espingarda do pobre
Venvogel, um bocado de sêda, alguns fios de contas de vidro.
Afinal partimos, guiados por Infandós--e seguidos por Umbopa que levava
as dadivas.
* * * * *
Ao fim d'um curto kilometro, chegámos a um immenso terreiro, com o chão
duro e caiado de branco como o das nossas moradas, e cercado por uma
estacada baixa. Em redor, fóra da estacada, corria uma fileira de
cubatas, que (segundo nos informou Infandós) pertenciam ás mulheres do
rei: e ao fundo, fronteira á porta por onde entraramos, estendia-se uma
construcção, uma cubata enorme, com varas e plumas espetadas no tecto de
colmo, que era o palacio real. No recinto não crescia uma arvore: e todo
elle estava n'esse dia cheio de regimentos em fórma, perfilados,
immoveis, verdadeiramente magnificos, com os seus altos pennachos, os
escudos brancos, as lanças a rebrilhar.
Em frente á cubata real ficava um espaço vasio, com uns poucos de
escabellos de madeira. A convite do bom Infandós occupámos tres d'esses
assentos privilegiados, tendo Umbopa por traz, de pé: e assim ficámos á
espera, no meio d'um silencio absoluto, sentindo cravados sobre nós oito
mil pares d'olhos sofregos. Finalmente a porta da cubata rangeu--e
surgiu d'ella uma figura gigantesca, com um esplendido manto de pelles
de tigre lançado sobre o hombro, e uma azagaia na mão. Atraz d'elle
vinha Scragga e uma outra creatura estranha, equivoca, que nos pareceu
uma macaca--uma macaca velhissima e friorenta, toda embrulhada em
pelles. A figura gigantesca abateu-se pesadamente sobre uma das tripeças
de pau. Scragga permaneceu de pé, por traz, apoiado á lança. A velha
macaca arrastou-se para a sombra que lançava a cubata real, e alli se
acocorou lentamente.
O mesmo silencio continuava no emtanto oppressivo, afflictivo.
Então a figura gigantesca arrojou o manto que a envolvia, e ergueu-se,
offerecendo ás vistas a sua real pessoa, verdadeiramente terrifica!
Nunca em minha longa vida encarei um homem mais repulsivo. E ainda ás
vezes revejo, ante mim, aquella face horrivel com os beiços muito
grossos ressudando sensualidade, as ventas enormes e chatas de fera, e o
olho unico (porque o outro era apenas um buraco negro) atrozmente
brilhante, d'um brilho frio e cruel. Uma cota de malha reluzente
cobria-lhe o corpo formidavel. Da cinta pendia-lhe o saião d'uniforme,
feito de rabos brancos de boi. Ao pescoço trazia uma gargalheira d'ouro:
e da testa, onde luzia um enorme diamante bruto, subia-lhe, ondeando no
ar, um tufo esplendido de plumas d'abestruz.
O silencio ainda pesou, mais profundo, diante d'aquella presença
assustadora! Mas de repente o monstro (que logo comprehendemos ser
Tuala, o rei) levantou a lança no ar. Oito mil lanças faiscaram ao sol.
E de oito mil peitos rompeu, atroando o céo, a grande acclamação
real:--_Krum_! _Krum_! _Krum_!
Depois, no silencio que recahira, vibrou uma voz, agudissima, estridula,
horripilante, e que parecia vir da macaca agachada á sombra:
--Treme e adora, oh povo! É o rei!
E oito mil peitos de novo atroaram o céo, bradando:
--É o rei! É o rei! Treme e adora, oh povo!
E tudo de novo emmudeceu. Mas quasi immediatamente, ao nosso lado, houve
um ruido de ferro batendo sobre pedra. Era um soldado que deixára cahir
o escudo.
Tuala dardejou logo o olho cruel para o sitio onde o som retinira:
--Avança tu! berrou, n'um tom trovejante.
Um soberbo rapagão sahiu da fileira, ficou perfilado.
--Cão infernal! rugiu o rei. Foste tu que deixaste cahir o escudo?
Queres que eu, teu chefe, seja escarnecido pelas gentes que vêm das
estrellas!
--Foi sem querer, oh mestre das artes negras! acudiu o rapaz cuja pelle
fusca parecia empallidecer.
--Pois, tambem sem querer, vaes morrer!
O soldado baixou a cabeça e murmurou simplesmente:
--Eu sou a rez do rei!
--Scragga! bramiu Tuala. Mostra como sabes usar bem a lança. Vara-me
aquelle cão!
O odioso Scragga deu um passo para diante, com um sorrisinho feroz, e
levantou o dardo. O desgraçado tapou a face, e esperou, immovel. Nós nem
respiravamos, petrificados.
«Um, dois, tres!» Scragga soltou a lança. O soldado atirou os braços ao
ar, cahiu morto.
D'entre os regimentos subiu então um longo murmurio que rolou, ondulou,
se esvaiu por fim no silencio.
O barão, livido de indignação, agarrára a espingarda das mãos d'Umbopa.
E eu, afflicto, tive de o agarrar a elle, lembrar que as nossas vidas
estavam á mercê do rei, e que eramos quatro contra todo um reino.
Tuala, no emtanto, sorria sinistramente:
--O golpe foi bom. Arrastem para fóra o cão morto.
Quatro homens sahiram da fileira, levaram o corpo.
E então a mesma voz esganiçada, sibilante, horrivel (que evidentemente
era da macaca) cortou o ar:
--A palavra do rei foi dita! A vontade do rei foi feita! Treme e adora,
oh povo! E cobri bem depressa as manchas de sangue. A palavra foi dita,
a vontade foi feita!
Uma rapariga sahiu de traz da cubata real com um vaso de louça, e,
atirando d'elle cal ás mãos cheias, escondeu as nodoas horriveis. Tuala
permanecia immovel, como um idolo.
Por fim, lentamente, voltou para nós a face medonha.
--Gente branca! disse elle. Gente branca, que vindes não sei d'onde, nem
sei a quê, sêde bemvinda!
--Bem estejas, rei dos Kakuanas! respondi eu, com dignidade.
Houve um silencio, através do qual ficamos immoveis, sentados, com os
olhos cravados no monstro.
--Gente branca, volveu elle, que vindes vós procurar aqui?
--Vimos do mundo das estrellas, oh rei! Não indagues como, nem para quê.
São coisas muito altas para ti, Tuala.
O rei franziu a face, d'um modo inquietador:
--Altas me parecem as vossas palavras, gentes das estrellas!... Não
esqueçaes que as estrellas estão longe e a minha vontade está perto...
Póde bem ser que saiaes d'aqui como aquelle que agora levaram.
Era necessario ostentar um soberbo desdem da ameaça. Comecei por lançar
uma risada, muito cantada (e na verdade muito forçada):
--Oh rei, tem cautela! Não caminhes sobre brazas que pódes escaldar os
pés! Toca n'um só dos nossos cabellos e a tua destruição está certa. Não
te disseram estes (e apontei para Infandós e para Scragga), que especie
de homens nós somos, e que grandes artes temos? Viste tu alguem como
nós, entre os filhos dos homens?
--Nunca vi, murmurou elle.
--Não te contaram esses como nós damos a morte de longe, através d'um
trovão?
--Não creio! exclamou Tuala, batendo fortemente o joelho. Mostrai-me
primeiro, vós mesmos, a vossa arte. Matai um d'esses homens que estão
além (apontava uma companhia de soldados magnificos junto á porta da
aringa) e eu prometto acreditar!
Repliquei que não derramavamos nunca sangue de homem, senão em justo
castigo. Mas que o rei soltasse um boi para dentro do pateo, através dos
soldados, e antes d'elle correr vinte passos, cahiria morto, de chofre.
O rei rompeu a rir.
--Um boi! Um boi!... Não, matai um homem para eu acreditar!
--Perfeitamente! exclamei eu, com tranquillidade. Ergue-te tu, oh rei,
caminha através do pateo, e antes de chegares ao portal da aringa
rolarás morto no chão. Ou, se não queres ir tu mesmo, manda teu filho
Scragga.
A isto, Scragga deu um grito, lançou um pulo, e fugiu para dentro da
aringa real.
Perante a estranha audacia com que lhe propunhamos para mostrar as
nossas Artes Magicas matar um principe ou um boi, á sua escolha--Tuala
ficou esgazeadamente perplexo. O seu olho coruscante ora se poisava em
nós, ora no chão. Depois, n'um tom surdo:
--Bem, que enxotem uma vacca para dentro do pateo!
Dois homens, immediatamente, largaram correndo.
--Barão, disse eu ao nosso amigo, chegou a sua vez. Mate a vacca. Não
quero que imaginem que só eu sei fazer as maravilhas.
O barão tomou a carabina «Express», e esperou, no fundo silencio que se
alargára. Por fim, á porta da aringa houve um ruido; e vimos entrar por
ella, correndo, enxotada, uma grande vacca russa. Ao avistar a multidão,
o animal estacou, olhou estupidamente, deu uma volta lenta, e mugiu.
--Agora! gritei ao barão, vendo a vacca de lado e em bom alvo.
Bum! O tiro partiu, a vacca tombou, varada no coração. De toda a enorme
soldadesca se exhalou um murmurio de admiração e terror.
--Então menti, rei Tuala? exclamei eu, fitando o monstro com altivez.
--Não, é verdade, rosnou elle.
Baixára o olho cruel, parecia atemorisado. Eu continuei, com soberana
confiança:
--Escuta, Tuala! Na arte magica de destruir ninguem nos vence.
Destruimos de longe a vida dos homens e a vida dos animaes... E as
proprias armas, os ferros mais duros, reduzimol-os de longe a
estilhaços. Escuta! Manda cravar além no chão, com a ponta do ferro
voltada para cima, essa lança que tens na mão, a tua propria lança, que
nunca foi vencida, oh Tuala! Manda, e eu te mostrarei!
Espantado, o rei cedeu. Um soldado cravou no chão, ao fundo da aringa, a
lança real, com a ponta faiscando no ar, sob um raio de sol.
--Bem, disse eu. Agora vê em que estilhas vai ficar a tua lança
invencivel.
Apontei, disparei:--a bala bateu na folha da lança e separou-a em
bocados. Um susurro maior, de assombro, rolou através do terreiro.
Dei então um passo para o rei, com a carabina na mão.
--Tuala, este tubo magico que troveja e destroe é um presente que te
fazemos. Se te mostrares leal comnosco ensinar-te-hemos o segredo de o
usar e de vencer com elle. Mas se descobrirmos traição em ti, esse
proprio tubo se voltará contra o teu peito, e serás como a vacca morta
ou como a lança partida. Aqui tens.
E estendi-lhe a arma. Elle tomou-a com desconfiança, com uma sêcca
antipathia, e pôl-a no chão, aos pés, devagar.
N'esse instante aquella figura estranha que o acompanhára, e que me
parecera uma velha macaca, deu um guincho e surgiu da sombra da cubata
real, onde permanecera agachada. Muito devagar, muito devagar, vinha
caminhando nas quatro patas:--mas quando chegou defronte do rei,
ergueu-se subitamente, arrojou de si a longa cobertura de pelles que a
envolvia, e mostrou aos nossos olhos attonitos um vulto
extraordinariamente sinistro e quasi phantastico. Era uma mulher
evidentemente, uma mulher velhissima, tendo passado todos os limites
conhecidos da vida humana. A face que voltou para nós estava reduzida ao
tamanho d'uma facesinha de creança, d'uma creança d'um anno, toda em
rugas profundas, resequidas, duras e amarellas, como se fossem
entalhadas em marfim. A bôca já se não via, de sumida, entre o queixo
sahido para fóra e extremamente agudo--e a testa proeminente, livida,
com duas sobrancelhas ainda espessas e todas brancas. A cabeça de facto
pareceria a d'um cadaver cortido ao sol, se os olhos grandes não
refulgissem com intenso fogo e vida. Mas a hediondez principal d'aquelle
semblante estava no craneo, todo nú, pellado, liso como uma bola, e a
que ella fazia mover e enrugar a pelle como as cobras contrahem e movem
o capello.
Não se podia contemplar aquella creatura sem um arripio de horror.
Durante um momento, o estranho monstro permaneceu immovel--depois
estendeu lentamente um braço descarnado, a mão sêcca de Parca,
verdadeira garra armada de unhas longas e recurvas, e começou, n'uma voz
silvante que regelava:
--Rei Tuala, escuta! Povo, escuta! Montes, rios, céos, coisas vivas e
coisas mortas, escutai! Escutai, escutai, que o Espirito desceu dentro
de mim e eu vou prophetisar!
As syllabas findaram n'um uivo longo e triste. Toda a multidão que
enchia a aringa parecia gelada de terror. E eu mesmo, que vira tantas
vezes na Africa os esgares e as declamações das feiticeiras, senti não
sei que peso no coração. A velha era decerto terrifica.
--_Som de passos, som de passos que vem_! proseguiu ella, com a garra
tremula no ar. São os passos da gente branca que vem de longe! É a terra
que treme sob os passos dos brancos. _Cheiro a sangue, cheiro a sangue_!
São rios de sangue que vão correr. Eu já os vejo, já os sinto. Toda a
terra está vermelha, todo o céo fica vermelho! Os leões lambem sangue
por toda a parte! Os abutres batem as azas de alegria!
Parou um momento. Os olhos rebrilhavam-lhe como lumes. Depois soltou um
grito longo, como uma ululação sepulchral.
--Sou velha! velha! velha! Tenho visto correr muito sangue. E hei de vêr
correr muito ainda, e dançar de gozo! Que idade pensaes vós que eu
tenho? Os vossos paes já me conheceram; e os paes dos vossos paes; e os
outros paes que geraram a esses. Tenho visto muitas coisas, aprendi
muitas coisas. Já vi o branco, e sei o desejo que elle tem no coração.
Quem fez a grande estrada, que desce dos montes? Quem gravou as figuras
nas rochas? Não sabeis. Mas eu sei! Foi um povo branco, que estava aqui
antes de vós virdes, que voltará e vos destruirá, e ficará aqui quando
vos fôrdes como a nuvem de pó que passou!
E de repente, deu um passo, com os dois braços, as duas garras recurvas
estendidas para nós:
--Que vindes aqui fazer, gente branca? Vindes das estrellas? Das
estrellas! Ah, ah! Vindes procurar um como vós? Não está aqui. E o que
veio, ha muito, ha muito, veio só para morrer. São as pedras que brilham
que vós procuraes? Eu conheço o vil desejo do coração do branco.
Procurai, procurai! Talvez as acheis quando o sangue seccar. Mas
voltareis vós ás estrellas, ou ficareis aqui commigo?
Depois com um arremesso terrivel, voltando-se para Umbopa, que as suas
garras estendidas pareciam querer despedaçar:
--E tu, tu que tens a pelle escura, quem és, que procuras aqui? Não as
pedras que brilham, nem o metal que reluz! Ah, parece-me bem que te
conheço! Oh céos! oh montes! Serás tu?... Eu conheço, eu conheço pelo
cheiro o sangue que tens nas veias! Desaperta essa cintura...
Um momento, ficou como esgazeada em face d'Umbopa. E subitamente,
batendo os braços no ar, cahiu no chão, como morta.
Um bando de raparigas surdiu da cubata, levou nos braços a feiticeira.
Tuala erguera-se sombriamente. Todo elle tremia. Lançou um gesto:--e uns
após outros os regimentos começaram a desfilar, até que todo o pateo
ficou vasio e rebrilhando ao sol.
Então Tuala voltou-se para nós, com a face pavorosamente franzida:
--Gente branca! Gagula annunciou males estranhos! Está-me a parecer que
vos devo matar.
Eu sorri, com superioridade.
--Oh rei, tu viste a vacca. Queres tu ser como a vacca?
--Oh gentes, vós ameaçaes o rei! volveu elle, cerrando os punhos.
--Não ameaço. Digo só que tão facil é ás nossas Artes matar uma vacca
como matar um rei. Pensa e treme, Tuala!
O enorme bruto levou os dedos á testa, reflectindo.
--Ide em paz! disse por fim. Esta noite é a Grande Dança. Vireis e
vereis. Não tenhaes medo que eu vos arme ciladas. E ámanhã decidirei.
--Está bem, Tuala, gritei eu, com um grande gesto.
E acompanhados por Infandós, recolhemos á nossa aringa.
Quando chegamos ás cubatas, depuz n'um escabello o rewolver, e
voltando-me para Infandós que entrára comnosco:
--O teu rei Tuala é um monstro, Infandós!
O velho guerreiro teve um suspiro.
--Ai de mim! Toda a nação geme com as suas crueldades, meu senhor!
Vereis esta noite. É a grande caça aos feitiços; vem Gagula e _as suas
farejadoras_ farejar, adivinhar quem são, d'entre os guerreiros e o
povo, os que meditam ou já commetteram feitiços e maleficios. Se o rei
appetece o gado de um visinho, ou o detesta, ou teme que elle se lhe
torne infiel, Gagula ou uma das _farejadoras_ aponta para esse homem, e
o homem é logo morto... Quem sabe? Talvez hoje mesmo me chegue a minha
vez. Até aqui Tuala tem-me poupado em respeito á minha experiencia das
armas, e porque os soldados me amam. Mas quem sabe? Tuala é cruel, a
terra toda soffre e está cançada d'elle!
--Mas, pela luz das estrellas, porque não depondes vós ou mataes essa
féra?
Infandós encolheu os hombros:
--É o rei!... E o filho que lhe succederia, Scragga, tem ainda o coração
mais negro, pesaria sobre nós com mais furor. Se Imotú não tivesse sido
morto, e se Ignosi, o filhinho d'elle, não tivesse acabado tambem no
deserto com a mãe, então havia uma esperança no reino! Mas assim...
De repente (e ainda me parece incrivel que eu tivesse assistido a lance
tão romanesco, tão semelhante aos que se lêem nos contos de grande
enredo)---de repente ergueu-se uma voz da sombra da cubata:
--E quem te diz a ti que Ignosi morreu?
Todos nos voltamos, espantados. Era Umbopa.
--Que queres tu dizer? Que tens tu a fallar, rapaz? gritou Infandós que,
como velho chefe de sangue real, detestava familiaridades.
Umbopa deu para nós um passo lento:
--Escuta, Infandós. Não é verdade que o rei Imotú foi morto, e que a
mulher e o filho desappareceram? Não é verdade que correu então voz de
ambos se terem perdido e morrido nas montanhas?
Com um gesto, Infandós concordou.
--Escuta! Nem a mãe nem o filho morreram. Galgaram as montanhas,
atravessaram as grandes areias guiados por uma turba errante, entraram
de novo em terras de relva e agua, viajaram durante muitas luas, e foram
ter a um povo dos Amazulus que é da raça dos Kakuanas. Escuta ainda! O
filho cresceu, a mãe morreu. O filho cresceu, e serviu nas guerras dos
Amazulus. Depois foi ao paiz dos brancos e aprendeu as artes dos
brancos: trabalhou com as suas mãos, meditou dentro do seu coração: e
sabendo que homens fortes vinham para o norte, tomou serviço com elles,
atravessou outra vez as grandes areias, galgou de novo as serras de
neve, pisou terra dos Kakuanas--e está na tua presença, Infandós!
E subitamente, arrancando a tanga que o cobria, ficou nú diante de nós,
com os braços abertos, gritando:
--_Sou Ignosi, legitimo rei dos Kakuanas_!
Infandós precipitára-se sobre elle, com os olhos fóra das orbitas, a
examinar-lhe o ventre onde corria, n'uma tatuagem azul, o desenho d'uma
cobra que lhe dava volta á cinta e juntava a bôca com o rabo logo abaixo
do umbigo. Esta tatuagem é a marca, o emblema real, que se grava a tinta
azul, logo ao nascer, no legitimo herdeiro do reino. E a evidencia lá
estava, certamente irrecusavel, porque Infandós cahiu sobre os joelhos,
bradando:
--_Krum_! _Krum_! É o filho de Imotú! É o rei! É o rei!
Umbopa acudiu:
--Ergue-te, meu tio Infandós, que ainda não sou rei! Mas com a tua
ajuda, e a d'estes homens fortes com quem vim, posso ser rei! Dize pois.
Queres pôr a tua mão na minha e ser o meu homem? Queres correr commigo
os perigos que haja a correr para derrubar Tuala o usurpador, o coração
de féra? Dize.
O velho Infandós pousou dois dedos na testa e pensou. Depois tornou a
ajoelhar diante de Ignosi, pôz a sua larga mão na mão d'elle, e
murmurou, lentamente, como na formula de um ceremonial:
--Ignosi, legitimo rei dos Kakuanas, ponho a minha mão na tua mão, e até
morrer sou teu homem!
Nós, de pé, em redor, ficaramos verdadeiramente attonitos! O barão e o
capitão John só muito vagamente comprehendiam o maravilhoso lance. Tive
de lhes traduzir, desenrolar os detalhes. E ambos exhalavam o seu
assombro em exclamações, contemplando Umbopa--quando elle nos
interpellou, com um gesto que começava a ser regio:
--E vós, homens brancos de quem comi o pão? Quereis vós ajudar-me
tambem? Nada tenho que vos offerecer em troco do vosso braço forte. Mas
essas pedras brancas que reluzem, e que vós amaes, se, como rei, eu as
vier a possuir, podereis leval-as, tantas quantas quizerdes... Basta
isto?
Traduzi de novo aos meus amigos esta deslumbrante offerta. O barão
franziu o sobr'olho:
--Quartelmar, diga-lhe que um inglez não se vende por diamantes. Mas de
graça, porque sempre o achei leal, porque gosto d'elle, e porque me
appetece derrubar esse monstro de Tuala, estou prompto a ajudar Umbopa
com o pouco que posso, que é o meu braço. E tu John?
O capitão encolheu os hombros:
--Que lhe havemos nós de fazer? Além d'isso homem que não briga
enferruja. Em todo o caso ponho uma condição: quero as calças.
Communiquei estas adhesões a Umbopa--que apertou ardentemente as mãos
dos meus dois amigos.
--E tu, Macumazan, mestre da caça, olho vigilante, mais fino que o
bufalo, estarás tu tambem por mim?
Cocei a cabeça, pensativamente:
--Eu te digo, Umbopa, ou Ignosi, ou o que és; eu não gosto de
revoluções... Sou um homem de ordem e demais a mais um cobarde. Escusas
de te rires, sei perfeitamente o que digo, sou um cobarde. Por outro
lado, tenho por costume ser fiel a quem me foi fiel; e tu, n'esta
jornada, andaste sempre como um servo dedicado e bravo. Portanto, ás
ordens! Mas ha uma coisa. Eu sou um pobre caçador de elephantes e tenho
de ganhar a minha vida. Tu fallaste ahi nos diamantes. Eu aceito os
diamantes. Se lhe pudérmos lançar mão, aceito-os, e quantos mais e mais
graúdos melhor! Não é que eu acredite muito n'elles. Mas, se
apparecerem, desde já te prometto que, com licença tua, hei de abarrotar
as algibeiras...
--Tantos quantos puderes levar! exclamou Umbopa radiante.
E já se voltava para Infandós, n'aquelle triumphal enthusiasmo de
pretendente a quem as adhesões affluem--quando eu o interrompi
vivamente:
--Alto! Temos ainda outra, Ignosi. Nós viemos, como tu sabes
perfeitamente, á procura do irmão do Incubú (era a alcunha do barão, em
Zulú). Quero que me promettas que has de fazer tudo o que puderes como
rei para nos ajudar a encontral-o... Começa por te informar agora com
teu tio Infandós.
Ignosi pousou os olhos em Infandós, com singular magestade:
--Meu tio Infandós, em nome do emblema sagrado que me envolve a cinta, e
como teu rei legitimo, intimo-te a que me digas a verdade. Houve já
algum homem branco que, antes d'estes, tivesse vindo á terra aos
Kakuanas?
--Nunca, meu senhor!
--E poderia algum ter vindo, sem que tu o soubesses?
--Nenhum poderia ter vindo sem que eu o soubesse.
O barão deu um longo suspiro.
--Bem! Bem! exclamei logo, para lhe não matar de todo a esperança, e
cortar os tristes pensamentos. Quando Ignosi fôr rei teremos então mais
facilidade de procurar o irmão do Incubú, até aos confins do reino, e
nas terras que estão além! Agora vamos ao que urge. Que plano tens tu,
Ignosi, para recuperar a corôa? Porque emfim, meu rapaz, é bom ser rei
de direito divino, mas...
--Não tenho plano. E tu, meu tio Infandós?
Infandós pensou um instante, com a barba sobre o peito.
--Esta noite, disse elle por fim, é a caça aos feitiços. Muitos vão
morrer, e em muitos outros mais recrescerá o odio contra Tuala. Depois
da dança, fallarei a alguns dos grandes chefes que podem dispôr de
regimentos. É necessario que os chefes te venham vêr, Ignosi, se
convençam com seus olhos que és o rei. E se elles pozerem as mãos nas
tuas, ámanhã tens vinte mil lanças para combater por ti. Porque a guerra
é certa. Depois da dança, se eu viver, se todos vivermos, virei aqui,
para combinar na escuridão. Mas a guerra é certa!
N'este momento houve fóra do terreiro um brado, annunciando que se
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