As Minas de Salomão - 03

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Pois grande razão tinha o Zulú! Logo n'essa noite o acampamento foi
terrivelmente assaltado... Tudo isso porém vem na Historia.
--Que queres tu? perguntei. Lembro-me perfeitamente de ti. Dize o que
queres.
--Quero isto. Correu aqui voz que Makumazan vai para o norte, n'uma
grande expedição, com os chefes brancos que vieram d'além do mar. É
verdadeira a voz?
--Verdadeira.
--Correu aqui tambem voz que Makumazan e os chefes iam para o rio
Lukanga, que fica a um bom quarto de lua de jornada do districto de
Manica. É verdade?
Franzi o sobr'olho, descontente de vêr assim tão conhecido o roteiro da
nossa expedição.
--Para que queres tu saber? que tens com isso?
--Tenho isto, oh brancos! Que se ides assim para tão longe, eu quereria
ir comvosco.
Havia uma altivez nas maneiras d'este homem, e especialmente no seu
emprego da expressão «_oh brancos_» em logar de «_oh inkosis_» (chefes),
que me surprehendeu grandemente.
--Estás esquecendo a quem fallas! repliquei. As palavras sahem-te
demasiadas e imprudentes. Como é o teu nome? onde é a tua aringa? É
necessario saber quem temos diante de nós!
--O meu nome é Umbopa. Sou da raça dos Zulús, mas não sou Zulú. O sitio
da minha tribu é muito longe, para o norte: os meus ficaram lá quando os
Zulús desceram para aqui, ha muito, ha mais de mil annos, antes de Chaka
ser rei. Não tenho aringa. Muitos annos vão que ando errante. Quando vim
do norte era creança. Depois fui dos homens de Cetewayo no regimento de
Nomabakosi. Por fim fugi dos Zulús, e vim para o Natal para vêr as artes
dos brancos. Foi então que servi na guerra contra Cetewayo, e que te
encontrei, Makumazan! Agora tenho trabalhado no Natal. Mas estou farto,
quero ir para o norte. O meu logar não é aqui. Não peço soldada, mas sou
valente, e valho bem o pão que comer. Eis as palavras que tinha a dizer.
Este homem e a sua grande maneira de fallar--intrigavam-me
singularmente. Era certo para mim que só dissera a verdade: mas na côr,
nos modos, differia muito do Zulú ordinario; e a sua offerta de vir
comnosco sem soldada, extraordinaria n'um Africano, enchia-me de
desconfiança.
Na duvida traduzi as estranhas fallas aos meus amigos, solicitei-lhes
conselho. O barão pediu-me que mandasse pôr o homem de pé. Umbopa
ergueu-se, deixando escorregar ao mesmo tempo o vasto casacão militar
que o envolvia, e ficou diante de nós, mudo, erecto, soberbo, todo nú,
com um simples pedaço de pano em torno dos rins e um fio de garras de
leão enrolado ao pescoço. Era, realmente, um esplendido homem! Tinha
mais de dois metros de altura, e largo em proporção, agil, admiravel de
fórmas. Na luz da sala em que estavamos, a pelle parecia apenas muito
trigueira, como a d'um arabe. Aqui e além, pelo corpo, conservava
cicatrizes terriveis de antigos golpes de zagaia.
O barão foi direito a elle, e cravou-lhe os olhos nos olhos, que se não
baixaram, e que rebrilharam:
--Gósto de ti, Umbopa, disse em inglez, e tomo-te ao meu serviço.
Umbopa evidentemente comprehendeu, porque murmurou em zulú:
--Está bem.
Depois, atirando um olhar para a grande estatura e força do branco,
accrescentou:
--Somos dois homens, tu e eu!


CAPITULO IV
OS ELEPHANTES

Sahimos de Durban no fim de janeiro, e andadas quasi as trezentas leguas
que vão d'aqui ao sitio em que se juntam os rios Lukanga e Kalukue,
chegámos, pelos meados de maio, a Inyati, não longe da aringa de
Sitanda, onde acampámos. Durante a jornada tivemos aventuras varias, mas
d'aquellas que são usuaes em todas as travessias d'Africa e já muito
contadas nos livros. Em Inyati, ultima estação mercante da terra dos
Matabeles, onde Lobengula (esse atroz velhaco!) é rei, separámo-nos, com
fundas saudades, do nosso confortavel carrão. Dos vinte bois que
trouxeramos de Durban, só doze restavam. Um morrera da mordedura da
cobra, tres da falta d'agua; um perdeu-se; os outros tres comeram uma
herva venenosa, chamada _tulipa_. Os restantes deixámol-os com o wagon
ao cuidado de Goza e de Tom (o boieiro e o guia), pedindo a um digno
Missionario escossez que habita aquelle desterro, que caridosamente nos
vigiasse o carrão, o gado e os homens. E no dia seguinte, acompanhados
por Umbopa, Khiva, Venvogel, e meia duzia de carregadores que arranjámos
em Inyati, largámos para o deserto, a pé, em seguimento da nossa
temeraria aventura.
Era de madrugada; e lembrei-me que no momento de nos pôrmos em marcha
estavamos todos tres bem commovidos! Cada um perguntava a si mesmo,
decerto, se jámais tornaria a vêr o carrão, os bois e o Missionario. Eu
por mim levava a certeza _que não_. Os primeiros passos foram lentos,
dados em grave silencio. Mas de repente Umbopa, que marchava na frente,
rompeu n'um grande canto--uma canção zulú, dizendo d'uns homens que,
cansados da vida e da monotonia das coisas, se tinham mettido ao
deserto, para achar occupação ou morrer, e que, para além dos sertões,
subitamente, encontravam um paraiso cheio de raparigas moças, de gado,
de caça, e de inimigos para matar! Esta canção pareceu-nos de boa
promessa.
A quinze dias de marcha de Inyati começámos a atravessar uma região
arborisada e farta em aguas. As collinas estavam espessamente cobertas
de matto que os indigenas chamam _idaro_: e por toda a parte se
estendiam bosques de _machabelas_, arvores que dão um fructo amarello,
enorme, quasi todo caroço, mas deliciosamente fresco e dôce. As folhas e
fructos d'estas arvores são o alimento querido dos elephantes; e decerto
os immensos animaes andavam perto, porque a cada passo topavamos
arbustos quebrados e desarraigados. O elephante por onde vai comendo,
vai assolando.
Uma tarde, depois d'uma caminhada fatigante, chegámos a um sitio
particularmente pittoresco e de amavel repouso. Era junto de um outeiro
todo vestido d'arvoredo. Ao pé serpeava o leito sêcco d'um rio,
conservando ainda aqui e além poças de agua crystallina e fria,
espesinhadas em redor pelas largas pégadas de feras. Em frente verdejava
um bello parque de mimosas, machabelas e outras arvores ainda, raras e
cheias de flôr:--e em torno era o matto, o matto silencioso, denso,
impenetravel.
Decidimos ficar alli e construir um _scherm_, a pouca distancia d'uma
das poças d'agua. O _scherm_ é uma especie de acampamento
entrincheirado, que se faz cortando grande quantidade de matto espinhoso
e armando-o circularmente n'uma vasta e rude sebe que fórma defeza. Todo
o espaço interior se aplaina como uma arena: ao centro amontôa-se herva
sêcca, um capim chamado _tambouki_, que serve de divan e de cama; aqui e
além, em volta, accendem-se alegres fogueiras.
Quando acabámos de arranjar o _scherm_--vinha nascendo a lua. O jantar
estava prompto. Bem parco era elle, composto dos tutanos e lombos d'uma
girafa, que n'essa tarde, ao fim da sésta, fôra morta pelo capitão John
com um tiro providencial. Mas depois de coração de elephante (a mais
fina delicia que se póde ter), tutano e lombo de girafa são os petiscos
superiores d'Africa, e grandemente os saboreámos sob o esplendor da lua
cheia, que ia alta nos céos. Depois accendemos os cachimbos, e
conversámos no vasto silencio em roda do lume.
Os meus companheiros não se fartavam de contemplar aquella scena de
sertão, familiar para mim, com os meus quarenta annos d'Africa, mas que
a elles só offerecia estranhezas--até na maneira por que as claridades
alumiam, até na maneira por que a noite é silenciosa. Eu por mim,
confesso, admirava sobretudo o nosso excellente capitão John. Alli
estava elle, no interior da Terra-Negra, em pleno deserto, estirado em
cima d'um sacco de couro,--tão apurado, tão correcto, tão bem pregado,
como se viesse de passear n'um parque luxuoso de castello inglez, em dia
de caça ao faisão. Tinha um facto completo de cheviote castanho, com
chapéo da mesma fazenda, polainas irreprehensiveis, luvas amarellas de
pelle de cão, a face escanhoada, monoculo no olho, os dentes postiços
rebrilhando em gloria! Nunca o sertão africano vira decerto um homem
mais catita. Até trazia collarinhos altos (collarinhos de gutta-percha),
de que emmalára na mochila uma escandalosa porção--«por serem leves
(dizia elle), faceis de lavar, e dar logo á gente um ar de asseio e
distincção».
Pois assim estivemos muito tempo, sob o magnifico luar, conversando e
observando os Cafres, que chupavam a _dacca_ nos seus longos cachimbos
feitos de cornos de _eland_, e que, um por um, se iam enrolando nas
mantas e estirando á beira do lume. Só Umbopa por fim ficou acordado,
longe dos Cafres (a quem geralmente não admittia familiaridades), com o
queixo encostado ao punho, os olhos perdidos na lua, n'uma d'aquellas
abstracções em que por vezes eu o surprehendera desde o começo da nossa
jornada.
De repente, da profundidade do matto, por traz de nós, subiu no ar um
longo e rouco rugido. «É um leão!» exclamei. Todos nos erguemos, a
escutar. Quasi immediatamente, junto á poça d'agua pura, visinha do
nosso _scherm_, resoou como em resposta a estridente trompa d'um
elephante. «_Unkungunlovo_! _Unkungunlovo_!»[1], murmuram á uma os Cafres,
levantando as cabeças das mantas:--e momentos depois avistámos uma fila
de enormes e escuras fórmas, movendo-se devagar da beira da agua para o
matto. O capitão, com um salto, agarrára a espingarda. Tive de o segurar
pelo braço:
--É inutil, não se faz nada. Nada de barulho. Deixal-os ir.
--Em todo o caso, disse o barão excitado, este sitio para um caçador é
um verdadeiro paraiso! Se aqui ficassemos um dia ou dois?...
Estranhei: porque até ahi o barão, impaciente, viera-nos sempre
apressando para diante--sobretudo desde que soubera em Inyati, pelo
Missionario, que dois annos antes um inglez, chamado Neville, vendera
alli o carrão em que viera de Bamanguato e se internára no sertão com um
Cafre por serviçal. Mas ouvira o leão, ouvira o elephante--e os seus
instinctos de caçador dominavam, irresistivelmente.
--Pois muito bem, filhos meus, disse eu, uma vez que se quer um bocado
de divertimento, ter-se-ha; mas ámanhã. Por agora é tratar de dormir, e
erguer com o primeiro luzir do dia, para apanhar esse rico gado antes
que elle vá aos seus negocios. Toca pois a accommodar.
O capitão John (extraordinario homem!) tirou o fato, sacudiu-o, metteu o
monoculo e os dentes postiços dentro do bolso das calças, dobrou tudo
cuidadosamente, guardou tudo ao abrigo do orvalho debaixo do seu
_makintosh_, alisou o cabello, tomou um bochecho d'agua, e estirou-se de
lado para dormir, com correcção e conforto. O barão e eu, depois de
contemplar, rindo, estes requintes, embrulhámo-nos simplesmente n'um
cobertor:--e d'ahi a pouco envolvia-nos aquelle somno profundo,
absoluto, sem sonhos, sem movimentos, que é a recompensa e a consolação
de quem moureja por estas terras negras.
Com o primeiro alvor da madrugada estavamos a pé, preparando para a
acção. Tomámos as carabinas, munições abundantes, cantis cheios de chá
frio (que é a melhor bebida, a unica, quando se caça), e partimos,
depois de engolir de pé um almoço breve, acompanhados de Umbopa, de
Khiva e de Venvogel.
Não tivemos difficuldade em achar o carreiro aberto e pisado pelos
elephantes, que, segundo Venvogel declarou, deviam ser uns vinte ou
trinta, a maior parte machos e todos crescidos. Mas o bando afastára-se
durante a noite; e eram quasi nove horas, já o calor ardia em céo e
terra, quando pelos arbustos quebrados, pelas cascas e folhas d'arvores
esmagadas, e pelos montes de bosta fumegante, percebemos que os bichos
andavam cerca--e seguros. D'ahi a instantes, effectivamente, avistámos o
rebanho todo, uns vinte a trinta elephantes (como Venvogel calculára),
parados n'uma cova de terreno, quietos, tendo decerto acabado o primeiro
repasto, e sacudindo com lentidão e magestade as suas immensas orelhas.
Era uma vista soberba! Só as ha assim na Africa!
Estavamos separados d'elles por umas cem jardas. Agarrei um punhado de
capim e atirei-o ao ar para tomar a direcção do vento:--porque se um
elephante nos farejasse, bem sabia eu que, antes de podermos pôr as
carabinas á cara, o rebanho inteiro abalava. A aragem, se alguma corria,
soprava para nós do lado dos bichos: de sorte que rastejámos
cuidadosamente através do matto, mudos, sem respirar, até nos
aproximarmos umas quarenta jardas mal medidas. Justamente diante de nós,
e de ilharga para nós, estacionavam tres magnificos elephantes machos,
um d'elles com enormes dentes e o ar supremo de um Patriarcha. Avisei,
baixinho, os companheiros que me encarregava do animal do meio: o barão
apontou ao mais pequeno, ao da esquerda: o capitão ao «Patriarcha».
--Agora! murmurei.
Bum! bum! bum! O elephante do barão tombou redondo, varado no coração. O
meu cahiu pesadamente sobre os joelhos; mas quando pensei que ia desabar
para o lado, morto, vejo a enorme massa que se ergue e larga galopando
por diante de mim. Metti-lhe segunda bala na ilharga, que o abateu. Á
pressa, com dois cartuchos mais na carabina, corri para elle e
findei-lhe misericordiosamente a agonia.
Voltei-me então para vêr o que se passára com o elephante do capitão, o
«Patriarcha», que eu ouvira por traz de mim bramando de dôr e furia.
Encontrei John excitadissimo. Ao que parece, o elephante, apenas ferido,
rompera contra elle (que meramente teve tempo de se desviar com um
salto), e seguira, furioso e sem vêr, para a banda do nosso acampamento.
O resto do rebanho no emtanto, espavorido, rompera para o outro lado,
através da espessura.
Durante um momento ficámos indecisos entre seguir o «Patriarcha» ferido
ou o resto da manada. Por fim resolvemos bater atraz do bando. Seguil-os
era facil, porque tinham aberto um caminho, mais largo e liso que uma
estrada real, esmagando o matto espesso como se fosse relva de
primavera. Achal-os, porém, era mais complicado: e tivemos, durante duas
infindaveis horas, de marchar sob um sol faiscante, antes de os
avistarmos. Lá estavam todos outra vez muito juntos (excepto um dos
machos): e pela inquietação com que se mexiam, pelo constante erguer das
trombas desconfiadas, farejando o ar--era claro que esperavam, temiam
outro ataque. Um dos machos afastado, á laia de sentinella, vigiava para
o nosso lado, de tromba ameaçadora e alta. Entre elle e nós mediavam
umas sessenta jardas. Se este cavalheiro nos presentisse, dava signal e
o rebanho abalava, tanto mais facilmente quanto nos achavamos, bichos e
homens, em terreno descoberto. De sorte que todos tres lhe apontámos,
todos tres lhe atirámos. Bum! bum! bum! Morto! Mas os outros partiram,
n'uma desfilada, como collinas rolando.
Infelizmente para elles, logo adiante havia um _nullah_, isto é, uma
ribeira sêcca, com as bordas abarrancadas do nosso lado e quasi a pique
do lado fronteiro (sitio parecido áquelle em que o Principe Imperial foi
morto na Zululandia). Para ahi justamente se atiraram os elephantes em
tropel. Quando chegámos á borda, démos com elles em medonha confusão,
esforçando-se por trepar a outra ribanceira (escarpada e hirta),
empurrando-se uns aos outros, n'um furor e egoismo verdadeiramente
humanos, e atroando os ares de bramidos. A nossa opportunidade era
escandalosamente brilhante. Sem outra demora, disparando tão depressa
como carregavamos, démos cabo de cinco elephantes; e teriamos dizimado o
rebanho inteiro se elles de repente, abandonando a teima estupida de
galgar a ribanceira, não largassem a fugir ao comprido do leito sêcco
que se perdia ao longe na espessura. Estavamos cansados de mais para os
perseguir, enjoados tambem d'essa vasta mortandade. Oito elephantes
n'uma manhã, antes do _lunch_, é decente.
De sorte que, depois de descansarmos e vêrmos os Cafres cortar os
corações a dois dos elephantes para servir á ceia, voltámos
vagarosamente os passos para o acampamento, devagar, satisfeitos com a
proeza, e calculando o valor do marfim, que no dia seguinte cedo os
carregadores viriam serrar.
Ao passar no sitio em que o capitão tinha ferido o «Patriarcha»,
encontrámos um rebanho de _elands_. Não lhe atirámos, porque não ha nada
no _eland_ que valha dinheiro, e mantimentos já traziamos, deliciosos e
abundantes. O bando passou ao nosso lado, ligeiro e trotando; depois,
adiante, onde se erguia um tufo de arbustos em flôr, parou; e todos a um
tempo se voltaram, a olhar para nós, espantados.
O capitão nunca vira um _eland_. Quiz aproveitar a occasião, deu a
carabina a Umbopa, e seguido de Khiva adiantou-se, de monoculo fito,
para o tufo de arbustos em flôr. O barão e eu sentámo-nos á espera,
n'uma pedra.
O sol ia justamente descendo, n'um grande esplendor de vermelho e ouro.
O barão e eu contemplavamos, calados, aquella belleza de céo e luz,
quando de repente ouvimos o bramido d'um elephante e vimos, escura sobre
a vermelhidão do poente, uma vasta fórma avançando a galope, de tromba
erguida e cauda espetada. Logo immediatamente vimos outra coisa
horrivel:--o capitão, e Khiva, o serviçal zulú, fugindo para nós n'uma
carreira perdida, perseguidos pelo elephante! Era o grande bicho ferido,
o «Patriarcha» que alli ficára, errando. Agarrámos n'um impeto as
carabinas. Mas quê! Fera e homens, correndo para nós, vinham juntos! Se
disparassemos, a bala podia varar John ou Khiva... E assim ficámos
n'esta indecisão, com o coração a tremer, quando o pobre capitão
escorrega n'aquelles infames botins de bezerro com que teimava em
trilhar o sertão--e cae, estatelado, de face na terra, diante mesmo do
enorme elephante que chegava bramindo!
Fugiu-nos a respiração! O pobre camarada estava perdido! Largámos ainda
a correr para elle, desesperadamente. E o desastre veio, com
effeito--mas d'um modo bem differente. Khiva, o Zulú (valente, heroico
rapaz que era!), vendo o amo por terra, volta-se, e arremessa a zagaia a
toda a força contra a tromba do elephante. A fera lança um uivo de dôr,
arrebata o desgraçado Zulú, bate com elle no chão, põe-lhe uma immensa
pata sobre as pernas, e enrodilhando-lhe a tromba no peito,
rasga-o--litteralmente _o rasga em dois_.
Corremos, cheios de horror, fizemos fogo uma vez, outra vez,
furiosamente--até que o elephante se abateu como um monte sobre os
pedaços sangrentos do Zulú.
Foi um instante de indizivel consternação. Apesar de endurecido por
quarenta annos de caça e carnificinas, eu proprio sentia um «nó na
garganta», e creio que me fiz pallido. O barão tremia todo. E o pobre
capitão torcia as mãos, na dôr de vêr assim despedaçado o servo valente
que dera a vida por elle.
Só Umbopa teve a palavra serena que convinha á disciplina. Veio, com os
seus passos altivos e leves, contemplar os restos de Khiva, n'uma poça
de sangue, junto á massa enorme do elephante, moveu a mão no ar e disse:
--Morreu. Bem d'elle, que morreu como um homem!


CAPITULO V
A NOSSA ENTRADA NO DESERTO

Tinhamos morto nove elephantes. Dois longos dias levámos a serrar-lhe os
dentes e a enterral-os com cuidado debaixo d'uma arvore enorme, que
destacava isoladamente na vasta planicie, e formava um «signal»
inesquecivel. Era um esplendido lote de marfim! Só os dentes do
«Patriarcha» pesavam (tanto quanto pude avaliar) uns cento e setenta
arrateis!
O pobre Khiva, esse, sepultámol-o ao pé da collina, com uma azagaia ao
lado, para se defender dos Espiritos Malignos na sua difficil jornada
para o Paraiso zulú. Ao romper do terceiro dia levantámos o
acampamento--todos nós fazendo votos no silencio da nossa alma para que
nos fosse dado voltar um dia! Eu, mentalmente, accrescentava:--«voltar e
desenterrar este rico marfim!»
Depois d'uma fatigante marcha, cortada d'esses episodios africanos que
todos os Africanistas experimentam, chegámos emfim á aringa de Sitanda,
ao pé do rio Lukanga. Ahi era verdadeiramente o nosso «ponto de
partida». Ahi começariam as nossas miserias.
Perfeitamente me lembro do sitio, e da nossa chegada. Para a direita
descia, transmalhada, uma pequena povoação de negros, com curraes de
gado murados de pedra solta, e leiras de terra cultivada ao comprido da
agua clara. Por traz da aldeia ondulavam grandes pradarias de herva
alta, onde a caça abundante esvoaçava. E para a esquerda era o escuro,
silencioso, infindavel deserto.
O nosso acampamento ficou junto d'esse riacho alegre que corria entre
arbustos em flôr. Defronte erguia-se um outeiro pedregoso. Apenas
erguemos as tendas, subi lá com o barão. Era aquelle o sitio, aquelle o
outeiro onde eu vira, havia vinte annos, n'uma tarde como esta, a figura
do pobre Silveira, com o seu grande casacão comprido, apparecer
cambaleando, toda escura na vermelhidão do poente. Como então, o globo
do sol afogueado descia já rente da terra--e os seus raios flexavam
obliquamente aquelle deserto coberto de tojo baixo, sombrio, sem agua,
sem vida, terrivelmente mudo, que matára o pobre portuguez, que nos ia
talvez matar a nós. Ficámos olhando para elle em silencio. O ar era
d'uma admiravel finura e transparencia; e longe, muito ao longe,
podiamos distinguir, recortada no horisonte, pallidamente azulada e com
laivos brancos de neve, a cordilheira de Suliman. Mostrei-as ao meu
companheiro:
--A entrada das minas de Salomão lá está... Chegaremos nós lá?
N'esse instante senti alguem por traz de nós respirando: era Umbopa, que
trepára tambem ao comoro, e considerava o deserto com pensativa
gravidade. Vendo que eu reparára n'elle, deu um passo lento, depois
outro mais lento. E dirigindo-se ao barão (a quem parecia ter-se
affeiçoado), apontando com a sua grande azagaia para o lado dos montes:
--É para aquella terra além que tu vaes, Incubú?
_Incubú_ é uma palavra do dialecto zulú, que significa «elephante», e
que servia, ente os Cafres, para designar o nosso chefe. Estranhei a
audacia d'Umbopa, e perguntei-lhe asperamente que tosca maneira era essa
de fallar a seu amo... Que o negro dê uma alcunha negra ao patrão, por
lhe ser mais facilmente pronunciavel que o nome--vá! Que a um como eu,
pobre caçador que ganha o seu pão, o negro se dirija sempre pela alcunha
negra--vá ainda! Mas que a atire á face d'um senhor, d'um fidalgo--isso
não!
--Falla assim aos teus iguaes, gritei eu. Falla assim aos que comtigo
comem da mesma gamella!
O Zulú teve uma risadinha dôce que me enfureceu.
--Que sabes tu, accrescentou elle, se eu não sou igual ao amo que sirvo?
Elle pertence a uma grande casta, pelo olhar se vê logo: mas talvez eu
pertença a uma casta maior! Pelo menos sou tão forte como elle, e posso
com elle repartir o que tenho no coração. Sê pois a minha bôca, oh
Macumazan! Dize as minhas palavras ao Incubú meu amo! E attende-as tu
tambem, porque em mim só ha verdade!
Fiquei perfeitamente indignado. Nunca um Cafre me fallára n'aquelle
tremendo tom! Mas, não sei porque, o maldito Zulú tinha a arte de me
impressionar. Além d'isso sentia uma viva curiosidade... De sorte que
lhe traduzi as palavras,--accrescentando que a creatura me parecia
impudente e ousada.
O barão, porém, homem de excellente paciencia, voltou-se sorrindo para o
Zulú:
--É para as montanhas que vou com effeito, Umbopa! Vou em procura d'um
homem da minha raça, d'um irmão meu, que atravessou este deserto, e que
eu supponho estar além!
O Zulú moveu lentamente a cabeça:
--Assim é, assim é... Encontrei um homem no caminho que me disse: Ha
dois annos que um branco se metteu tambem ao deserto como nós, levando
um só serviçal... Nunca mais voltaram...
--Quem te disse? perguntei, vivamente. Porque te sahem só agora essas
palavras? Onde te disseram?
Antes de Inyati, um homem que elle encontrára no caminho. Contára-lhe
que o branco se parecia com o chefe Incubú, mas tinha a barba escura: e
que ia seguido por um caçador bechuana chamado Jim.
--São elles! exclamei. Não ha duvida! são elles! Jim conhecia eu bem....
O barão ficou pensativo.
--Se meu irmão tinha decidido atravessar o deserto, murmurou por fim, ou
o atravessou, ou morreu. Recuar ou mudar de fito não era da tempera
d'elle. Ou não vive, ou está para lá das serras.
O Zulú, que lhe seguira as palavras com os grandes olhos brilhantes,
tornou muito gravemente:
--É uma longa jornada, Incubú.
--Quartelmar, diga-lhe que não ha jornada que o homem não possa
emprehender, replicou o barão (que evidentemente estimava e considerava
aquelle singular Zulú). Nada ha que o homem não possa fazer; nem
desertos que não possa atravessar, nem montanhas que não possa subir, se
puzer n'isso alma e vontade. O essencial é contarmos a vida por coisa
nenhuma, alegremente promptos a conserval-a ou a perdel-a, segundo Deus
ordenar.
Quando o Zulú comprehendeu, toda a face se lhe illuminou:
--Grandes palavras, meu pai Incubú! Grandes, soberbas palavras que
enchem bem a bôca d'um forte! Que é a vida, na verdade? É a semente da
herva que o vento sopra aqui e além. Ás vezes cae em boa terra e
fructifica; outras vezes, na rocha dura e definha... O homem nasce para
morrer. Mais tarde ou mais cedo, que importa? É sempre a morte. Eu por
mim irei comtigo, Incubú! Irei por montanha e deserto, e ser-te-hei
sempre fiel...
Parou. E subitamente rompeu n'uma d'essas rajadas de poesia, frequentes
nos Zulús, que tanto surprehendem os que pela primeira vez as
testemunham, e que, apesar de nevoentas, redundantes, e decoradas de
geração em geração, mostram que se a raça não é intelligente, é pelo
menos imaginativa.
--Que é a vida (exclamava Umbopa, abrindo os braços, n'aquelle tom
cantado que os Zulús tomam n'esses momentos de exaltação). Que é a vida?
Dizei-me, oh brancos, vós que sabeis os segredos d'este mundo, e do
mundo das estrellas que brilha por cima, e do outro mundo que está para
além das estrellas! Dizei-me, oh brancos, dizei-me o segredo da vida!
D'onde vem ella, para onde vai?... Não podeis, não sabeis! Escutai
então! Nós sahimos da treva, e para a treva marchamos. Como um passaro
acossado pela tormenta, nós sahimos do fundo da escuridão: durante um
momento passamos, e as azas brilham-nos á luz das fogueiras: depois, de
novo e para sempre mergulhamos na treva! A vida é o pyrilampo que
fulgura de noite e de dia é negro! É o halito dos rebanhos no ar de
inverno! É a sombra que corre sobre a relva, e que desapparece ao
poente!...
Calára-se, com os braços ainda abertos, o olhar perdido nas alturas.
--És um homem bem singular, Umbopa! exclamou o barão, que o escutára
assombrado.
O outro pareceu acordar, sorriu:
--Creio que nos assemelhamos, Incubú. Talvez eu tambem vá procurando um
irmão entre as gentes que estão para lá das montanhas.
Olhei para Umbopa, com o sobr'olho franzido.
--Que gentes? Que sabes tu das gentes que vivem para lá das montanhas?
--Pouco, Macumazan, muito pouco. Ha para além uma terra de feitiços, de
jardins, de gente valente... Ha tambem uma grande estrada branca, toda
de pedra. Assim ouvi. Mas de que vale dizer? Quem lá chegar, lá verá!
Aquelle homem evidentemente sabia alguma coisa que não queria revelar.
Elle decerto percebeu a minha desconfiança--porque acudiu, espalmando as
mãos:
--Não te arreceies, Macumazan! Não te arreceies! Não abro covas para que
tu cáias dentro. Se chegarmos a atravessar o deserto, eu te contarei o
que sei. Mas a Morte está lá com uma lança, á nossa espera. Melhor te
fôra, Macumazan, voltar aos teus elephantes... Fallei o que tinha a
fallar.
E meneando a azagaia á maneira de saudação, desceu o comoro, recolheu ao
acampamento--onde d'ahi a instantes o encontrámos limpando uma carabina,
attento, calado, como qualquer servo cafre vasio de pensamento e
vontade.
--Homem extraordinario! murmurou o barão.
--Extraordinario de mais! Não gósto nada d'aquelles mysterios... Mas,
emfim, nós estamos mettidos n'uma aventura phantastica, e um Zulú
mysterioso de mais ou de menos--não tira nem põe!
Na manhã seguinte começámos os preparativos para a marcha. Era
impossivel naturalmente levar comnosco, através do deserto, todo o
pesado armamento, e as cantinas. Fomos portanto forçados (depois de
debandar os carregadores) a confiar tudo a um velho cafre, um atroz
sacripante, que possuia alli uma aringa consideravel. Bem penoso me era
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