As Minas de Salomão - 01

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AS MINAS DE SALOMÃO


Porto--Typ. de A. J. da Silva Teixeira
Rua da Cancella Velha, 70


RIDER HAGGARD

AS MINAS DE SALOMÃO

Traducção revista
POR
EÇA DE QUEIROZ

PORTO
LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON
Casa editora
LUGAN & GENELIOUX, Successores
1891
Todos os direitos reservados


INTRODUCÇÃO

Agora que este livro está impresso, e em vesperas de correr o mundo
largo, começa a pesar fortemente sobre mim a desconfiança de que, para
elle ser aceitavel, muito lhe falta como Estylo e como Historia.
Emquanto á Historia, realmente, não pretendi, nem tentei, metter n'estas
paginas tudo o que fizemos e tudo o que vimos na nossa viagem á terra
dos Kakuanas. Ha todavia n'esse estranho povo coisas que mereciam exame
detalhado e lento:--a sua Fauna, a sua Flora, os seus costumes, o seu
dialecto (tão aparentado com a lingua dos Zulús), o magnifico systema da
sua organisação militar, a sua arte subtil em trabalhar os metaes... Que
interessante estudo se faria, além d'isso, com as lendas que ouvi e
colleccionei ácerca das armaduras de malha que nos salvaram na batalha
de Lú! Que curiosa, tambem, a tradição que entre elles se tem perpetuado
sobre os _Silenciosos_, os dois colossos que jazem á entrada das
cavernas de Salomão! No emtanto pareceu-me (e assim pensaram o barão
Curtis e o capitão John) que seria mais efficaz contar a historia a
direito, e sêccamente, deixando todas estas particularidades sobre a
região e sobre os homens para serem tratadas mais tarde, n'um tomo
especial, com minudencia e largueza.
Resta-me pois implorar benevolencia para a minha tosca maneira de
escrever. Estou mais habituado a manejar a carabina do que a penna--e
sempre me foi alheia a fina arte dos arrebiques e floreios litterarios.
Talvez os livros necessitem esses floreios e ornatos: não sei, nem
possuo auctoridade para o decidir: mas, na minha barbara idéa, as coisas
simples são as mais impressionadoras--e mais facilmente se deve
acreditar e estimar o livro, que venha escripto com séria e honesta
singeleza. _Lança aguda não precisa brilho_, diz um proverbio dos
Kakuanas: e, movido por este conselho da sabedoria negra, arrisco-me a
apresentar a minha historia, núa, lisa, nas suas linhas verdadeiras, sem
lhe pendurar por cima, para a tornar mais vistosa, os dourados galões da
Eloquencia.
Allão Quartelmar.


AS MINAS DE SALOMÃO


CAPITULO I
ENCONTRO COM OS MEUS CAMARADAS

É bem estranho que n'esta minha idade, aos cincoenta e seis annos
feitos, esteja eu aqui, de penna na mão, preparando-me a redigir uma
historia!
Nunca imaginei que tão prodigiosa occorrencia se podesse dar na minha
vida--vida que me parece bem cheia, e vida que me parece bem longa...
Sem duvida, por a ter começado tão cedo! Com effeito, na idade em que os
outros rapazes ainda soletram nos bancos da escóla, já eu andava
agenciando o meu pão por esta velha colonia do Cabo. E por aqui fiquei
desde então, mettido em negocios, em serviços, em travessias, em
guerras, em trabalhos--e n'essa dura profissão, que é a minha, a caça ao
elephante e ao marfim. Pois, com toda esta diligencia, só ultimamente,
ha oito mezes, _arredondei o meu sacco_. É um bom sacco. É um sacco
graúdo, louvado Deus. Creio mesmo que é um tremendo sacco! E apesar
d'isso, juro, que para o sentir assim, redondo e soante entre as mãos,
não me arriscava a passar outra vez os transes d'este terrivel anno que
lá vai. Não! Nem tendo a certeza de chegar ao fim com a pelle intacta e
com o sacco cheio. Mas eu no fundo sou um timido, detesto violencias, e
ando farto, refarto de aventuras!
Como dizia pois, é coisa estranhissima que assim me lance a escrever um
livro. Não está nada no meu feitio ser homem de prosa e de letras--ainda
que, como outro qualquer, aprecio as bellezas da Santa Biblia e gózo com
a _Historia do Rei Arthur e da sua Tavola Redonda_. No emtanto tenho
razões, e razões consideraveis, para tomar a penna com esta mão inhabil
que ha quasi cincoenta annos maneja a carabina. Em primeiro logar, os
meus companheiros, o barão Curtis e o digno capitão da Armada Real John
Good (a quem chamo por habito «o capitão John») pediram-me para relatar
e publicar a nossa jornada ao Reino dos Kakuanas. Em segundo logar,
estou aqui em Durban, estirado n'uma cadeira, inutilisado para umas
semanas, com os meus achaques na perna. (Desde que aquelle infernal leão
me traçou a côxa de lado a lado, fiquei sujeito a estas crises, todos os
annos, ordinariamente pelos fins do outono. Foi em fins de outono que
apanhei a trincadella. É duro que depois de um homem matar, no decurso
da sua honrada carreira, quarenta e cinco leões, seja justamente o
ultimo, o quadragesimo sexto que o file e use d'elle como de tabaco que
se masca. É duro! Quebra a rotina, a estimavel rotina--e para mim,
pessoa d'ordem, qualquer surpreza me sabe peor do que fel). Em terceiro
logar, além d'encher os meus ocios, componho esta historia para meu
filho Henrique, que está em Londres, interno no hospital de S.
Bartholomeu, estudando Medicina. É uma maneira de lhe mandar uma
longuissima carta que o entretenha e que o prenda. Serviço de doentes,
n'uma enfermaria abafada e lobrega, deve pesar intoleravelmente. Mesmo o
retalhar cadaveres termina por ser uma rotina, rica em monotonia e
tedio:--e assim esta historia, onde tudo ha menos tedio, vai por uns
dias levar ao meu rapaz uma saudavel e alegre sensação de aventuras, de
viagens, de força e de vida livre. E emfim, como ultima razão, escrevo
esta chronica, por ser, sem duvida, a mais extraordinaria que
conheço--na Realidade ou na Fabula. Digo «extraordinaria» mesmo para os
Leitores profissionaes de Romances--apesar de n'ella não haver mulheres,
além da pobre Fulata. Ha Gagula, sim. Mas esse monstro tinha cem annos,
pouca fórma humana, e não sensibilisa. Em todas estas duzentas paginas,
realmente, não passa uma _saia_. E todavia, assim escasso como é nas
graças do Feminino, não creio que exista um caso mais raro e mais
captivante.
A unica vez que tive de fazer publicamente uma narração foi diante dos
Magistrados, no Natal, quando depuz como testemunha sobre a morte dos
nossos serviçaes Khiva e Vanvogel. Por essa occasião comecei assim,
muito dignamente, com approvação de todos, com louvores do periodico de
Durban:--«Eu, Allão Quartelmar, residente em Durban, no Natal,
_gentleman_, declaro e juro que...»--Não me parece porém que seja esta a
adequada maneira de principiar um livro. Além d'isso posso eu affirmar,
em typo de imprensa, que «sou um _gentleman_?» O que é um _gentleman_? O
que é ser _gentleman_? Conheço aqui Cafres nús que _o são_: e conheço
cavalheiros chegados de Inglaterra, com grandiosas malas e anneis
d'armas nos dedos, que _o não são_. Eu, pelo menos, nasci
_gentleman_--apesar de me ter volvido depois n'um pobre e simples
caçador de elephantes. Ora, se n'essa carreira e nos acasos que ella me
trouxe, permaneci sempre _gentleman_, não me compete a mim avaliar. Deus
sabe que com valente esforço procurei conservar-me _gentleman_--como
nascera. Tenho morto, é certo, muito homem: mas estas duas mãos, bem
haja a minha fortuna, estão puras de sangue inutil. Matei para que me
não matassem. O Senhor deu-nos as nossas vidas, como sagrados depositos
que lhe pertencem e que devemos defender. Guiei-me sempre por este
principio: e conto que o bom Deus, um dia, me dirá lá em cima--«_Fizeste
bem, Quartelmar_!» Este mundo, meus amigos, é aspero de atravessar: e os
destinos violentos impõem-se por vezes com uma logica inexoravel. Aqui
estou eu, homem ordeiro, timido, bonacheirão, que, constantemente, desde
creança, me acho envolvido em carnificinas! Felizmente nunca roubei. Uma
occasião, é verdade, abalei com quatro vaccas que pertenciam a um Cafre.
Mas o Cafre tinha-me rapinado sordidamente--e desde então essas quatro
vaccas trago-as sempre na consciencia. Só quatro vaccas. Pois têm-me
pesado mais que uma manada de gado!
* * * * *
Foi ha dezoito mezes, pouco mais ou menos, que encontrei os dois homens
que deviam ser meus companheiros n'esta aventura singular á terra dos
Kakuanas. N'esse outono, eu andára n'uma grande batida aos elephantes,
para lá do districto de Bamanguato. Tudo n'essa expedição me correu mal,
e por fim apanhei as febres. Mal me pude ter nas pernas, larguei para as
minas de Diamantes (as Diamanteiras), vendi o marfim que trazia, passei
o carrão e o gado, debandei os caçadores, e tomei a diligencia para o
Cabo. Ao fim d'uma semana, no Cabo, descobri que o Hotel me roubava
infamemente: além d'isso já vira todas as curiosidades, desde o novo
Jardim Botanico que ha de certamente conferir grandes beneficios á
cidade, até ao novo Palacio do Parlamento que, tenho a certeza, não ha
de conferir beneficios nenhuns: de sorte que decidi voltar para o Natal
pelo _Dunkeld_, pequeno vapor costeiro que estava nas docas á espera do
paquete de Inglaterra, o _Edinburgh Castle_. Tomei passagem, e fui para
bordo. N'essa tarde chegou o _Edinburgh Castle_: os passageiros que
trazia para o Natal transbordaram para o _Dunkeld_, e levantamos ferro
ao pôr do sol.
Entre os passageiros de Inglaterra, que mudaram para o _Dunkeld_, havia
dois que me despertaram logo certo interesse. Um d'elles, um homemzarrão
de perto de trinta e cinco annos, tinha os hombros mais cheios e os
braços mais musculosos que eu até ahi encontrára, mesmo em estatuas.
Além d'isso cabellos ondeados e côr d'ouro; barbas ondeadas e côr
d'ouro; feições aquilinas e de córte altivo; olhos pardos, cheios de
firmeza e de honestidade. Varão esplendido que me fez pensar nos antigos
Dinamarquezes. Para dizer a verdade, Dinamarquezes só conheci um,
moderno, horrivelmente moderno, que me estafou dez libras: mas lembro-me
de ter admirado um quadro, os _Antigos Dinamarquezes_, em que havia
homens assim, de grandes barbas amarellas e olhos claros, bebendo n'um
bosque de carvalhos por grandes cornos que empinavam á bôca. Este
cavalheiro (vim a saber depois) era um Inglez, um fidalgo, um _baronet_.
Chamava-se Curtis--o barão Curtis. E o que me feriu mais foi elle
parecer-se extremamente com alguem, que eu encontrára no interior, para
além de Bamanguato. Quem?... Não me podia lembrar.
O sujeito que vinha com elle pertencia a um typo absolutamente
differente, baixo, reforçado, trigueiro, e todo rapado. Calculei logo
pelas suas maneiras que tinhamos alli um official de marinha; e
verifiquei depois, com effeito, que era um primeiro tenente da Armada
Real, reformado em capitão-tenente, e por nome John Good. Esse
impressionou-me pelo apuro. Nunca conheci ninguem mais escarolado, mais
escanhoado, mais engommado, mais envernizado! Usava no olho direito um
vidro, sem aro, sem cordel, e tão fixo que parecia natural como a
palpebra. Nem um só momento o surprehendi sem aquelle vidro, e cheguei
mesmo a pensar que dormia com elle cravado na orbita. Só muito tarde
descobri que á noite o mettia no bolso das calças--no mesmo bolso em que
guardava a dentadura postiça, a mais bella, a mais perfeita dentadura
que me recordo de ter contemplado, mesmo em annuncios de dentistas. E o
capitão, d'estas, possuia duas!
Apenas nos fizemos ao largo, começou o mau tempo. Brisa forte, nevoa
humida e fria. Depois cada solavanco (o _Dunkeld_, barco de fundo chato,
não levava carga) que não se podia arriscar uma passada confortavel na
tolda. De sorte que me recolhi para junto da machina, onde fazia um
calorzinho sereno, e alli fiquei olhando para o pendulo, que marcava,
com desvios largos, o angulo de balanço do _Dunkeld_.
--Pendulo errado, rosnou de repente uma voz ao meu lado, na sombra da
noite que cahia.
Olhei. Era o official de marinha.
--Errado, hein?... Acha? perguntei.
--Acho o que?... Se o vapor se inclinasse quanto marca o pendulo, não se
tornava mais a levantar... Aqui está o que eu acho. Mas é sempre assim,
com estes capitães de marinha mercante...
Felizmente, n'esse instante, tocou a sineta ao jantar, com immenso
allivio meu--porque se ha, sob a cupula dos céos, uma coisa temerosa, é
a loquacidade d'um official da marinha de guerra, desabafando sobre a
inepcia dos officiaes da marinha mercante. Peor do que essa coisa
temerosa--só a coisa inversa!
O capitão John e eu descemos juntos para o salão. O barão Curtis já lá
estava, no topo da mesa, á direita do commandante do _Dunkeld_. John
accommodou-se ao lado do seu companheiro: eu defronte, onde havia dois
talheres desoccupados. Logo depois da sopa o commandante, com a
lamentavel mania dos homens de mar, começou a fallar de caça.
Primeiramente de caça miuda, de condores e de abutres. Depois passou a
elephantes.
--Ah! commandante (exclamou ao lado um patricio meu, de Durban), para
elephantes temos presente uma grande auctoridade... Se ha homem em
Africa que entenda de elephantes é aqui o nosso companheiro e amigo
Allão Quartelmar.
Por acaso, n'esse momento, eu pousára os olhos no barão Curtis; e notei
que o meu nome, assim pregoado com a minha profissão, lhe causára emoção
e surpreza. John cravou tambem em mim o seu vidro, com uma curiosidade
que faiscava. Por fim o barão inclinou-se, através da mesa, e n'uma voz
grave e funda, bem propria do robusto peito d'onde sahia:
--Peço perdão, disse, mas é porventura ao snr. Allão Quartelmar que me
estou agora dirigindo?
--A elle proprio.
O homemzarrão passou a mão pelas barbas,--e distinctamente, muito
distinctamente, o ouvi murmurar: «Ainda bem!»
Não se passou mais nada até ao dôce. Mas fiquei ruminando aquelle
espanto e aquelle «ainda bem!»
Depois do café, enchia o meu cachimbo para subir á tolda, quando o
barão, com os seus modos sérios e lentos, se adiantou para mim, e me
convidou «a passar ao seu beliche, tomar um grog, e conversar...»
Aceitei. O barão occupava um camarote de tolda, o melhor do _Dunkeld_,
espaçoso, arejado, com um sofá, espelhos, e duas largas cadeiras de
verga. O capitão John viera tambem. Todos tres nos sentamos, accendendo
os cachimbos, emquanto o moço corria pelos grogs.
Houve primeiramente um silencio. Outro creado entrou, a accender o
candieiro. Por fim appareceram os grogs.
O barão Curtis então passou a mão pelas barbas, n'esse geito que lhe era
costumado, e voltando-se bruscamente:
--Diga-me uma coisa, snr. Quartelmar... Aqui ha dois annos, por este
tempo, esteve n'um sitio chamado Bamanguato, ao norte do Transwaal. Não
é verdade?
--Perfeitamente, respondi eu, pasmado de que aquelle cavalheiro se
achasse, no seu condado, em Inglaterra, tão bem informado das jornadas
que eu fazia no sul d'Africa!
--A negocio, hein? acudiu o capitão John.
--Sim, senhor, a negocio. Levei uma carregação de fazendas, acampei fóra
da feitoria, e lá fiquei até liquidar.
O barão conservou durante um momento pregados em mim os seus olhos
cinzentos e largos. Pareceu-me que havia n'elles anciedade e temor.
--E diga-me, encontrou ahi, em Bamanguato, um homem chamado Neville?
--Encontrei. Esteve acampado ao meu lado durante uns quinze dias, a
descançar o gado antes de metter para o norte. Aqui ha mezes recebi eu
uma carta d'um procurador, perguntando-me se sabia o que era feito
d'esse sujeito... Respondi como pude...
--Bem sei! atalhou o barão. Li a sua resposta. Dizia o snr. Quartelmar
que esse sujeito Neville partira de Bamanguato, no principio de maio,
n'um carrão, com um serviçal e um caçador cafre chamado Jim, tencionando
puxar até Inyati, ultima estação na terra dos Matabeles, para de lá
seguir a pé, depois de vender o carrão. O snr. Quartelmar accrescentava
que o carrão decerto o vendera elle, porque seis mezes depois vira-o em
poder d'um portuguez. Esse portuguez não se lembrava bem do nome do
homem a quem o comprára. Sabia só que era um branco, e que se mettera
para o matto com um Cafre...
--É verdade, murmurei eu.
Houve outro silencio, que eu enchi com um sorvo ao grog. Por fim o barão
proseguiu, com os olhos sempre cravados em mim, insistentes e anciosos:
--O snr. Quartelmar não sabe quaes fossem as razões que levavam assim
esse sujeito Neville para o norte?... Não sabe qual era o fim da
jornada?
--Ouvi alguma coisa a esse respeito, murmurei.
E calei-me prudentemente, porque nos iamos avisinhando d'um ponto em
que, por motivos antigos e graves, eu não desejava bolir.
O barão voltou-se para o seu companheiro, como para o consultar. O
outro, por entre a fumaraça do cachimbo, baixou a cabeça, n'um _sim_
mudo. Então o meu homemzarrão, decidido, abriu os braços, desabafou:
--Snr. Quartelmar, vou-lhe fazer uma confidencia! Vou-lhe mesmo pedir o
seu conselho, e talvez o seu auxilio... O agente que me remetteu a sua
carta afiançou-me que eu podia confiar absolutamente no snr. Quartelmar,
que é um homem de bem, discreto como poucos, e respeitado como nenhum em
toda a colonia do Natal.
Dei um sorvo tremendo ao cognac, para esconder o meu embaraço--porque
sou extremamente modesto.
--Snr. Quartelmar, concluiu o barão, esse sujeito chamado Neville era
meu irmão.
--Ah! exclamei.
Com effeito! Agora, agora recordava eu bem com quem o barão se parecia!
Era com esse Neville. Sómente o outro tinha menos corpo, e a barba
escura. Mas nos olhos havia a mesma franqueza, e havia a mesma decisão.
--Era meu irmão, continuou o barão. Meu irmão mais novo, e unico. Até
aqui ha cinco annos, vivemos sempre juntos. Depois um dia,
desgraçadamente, tivemos uma questão, uma terrivel questão. E, para lhe
dizer a verdade toda, snr. Quartelmar, eu comportei-me para com meu
irmão da maneira mais injusta! Foi sob o impulso do despeito, da cólera,
é certo... Mas em summa comportei-me injustamente.
--Cruelmente, murmurou do lado o capitão John, que fumava com os olhos
cerrados.
--Cruelmente, com effeito. Como o snr. Quartelmar sabe, em Inglaterra,
quando um homem morre sem testamento e não tem senão bens de raiz, tudo
passa para o filho mais velho. Ora succedeu que meu pai morreu
exactamente quando meu irmão Jorge e eu estavamos assim de mal. Herdei
tudo; e meu irmão, que não tinha profissão, nem habilitações, ficou sem
real. O meu dever, está claro, era crear-lhe uma situação independente.
É o que todos os dias se faz em Inglaterra, n'esses casos. Mas por esse
tempo a nossa questão estava em carne viva. Eu não lhe offereci nada.
Elle tambem, orgulhoso, sobretudo brioso, nada pediu. Assim ficámos, de
longe, eu rico e elle pobre... Peço perdão de o fatigar com estes
detalhes, snr. Quartelmar, mas preciso pôr as coisas bem claras... Não é
verdade, John?
--Escrupulosamente claras! acudiu o outro. De resto o nosso amigo
Quartelmar guarda para si esta historia...
--Pudera! exclamei.
--Pois bem, continuou o barão, meu irmão possuia de seu, n'essa época,
umas duzentas ou trezentas libras. Um bello dia, agarra n'esta miseria,
toma o nome de Neville, e abala para Africa a tentar fortuna! Eu só o
soube tarde, mezes depois d'elle ter embarcado. Passaram tres annos.
Noticias d'elle, nenhumas. Comecei a andar inquieto. Escrevi-lhe.
Naturalmente as minhas cartas não lhe chegaram. E eu cada dia mais
afflicto! Para o snr. Quartelmar comprehender tudo bem, deve saber que,
desde pequeno, desde o berço, meu irmão foi a forte e grande affeição da
minha vida. E por outro lado a nossa questão, assim amarga e aspera por
sermos ambos muito novos e muito exaltados, nasceu de quê? D'uma mulher.
D'uma mulher cujo nome já quasi me esqueceu. E meu pobre irmão, coitado,
se ainda é vivo, não se lembrará mais que eu. Ora aqui tem! E já por
isto o snr. Quartelmar comprehende...
--Perfeitamente, perfeitamente...
--Pois bem, descobrir meu irmão passou a ser a minha idéa constante, dia
e noite. Mandei fazer aqui, no Cabo, toda a sorte de pesquizas. Um dos
resultados, o mais importante, foi a sua carta, snr. Quartelmar.
Importante porque me dava a certeza que, mezes antes, meu irmão estava
na Africa, e vivo. Desde esse momento decidi vir eu mesmo, pessoalmente,
continuar as pesquizas. Agentes, por mais dedicados, mais bem pagos, não
têm o interesse de coração: é com o coração justamente que eu conto, com
a perspicacia, a inspiração especial que elle ás vezes possue. De resto
sempre tencionei visitar as nossas colonias d'Africa... E aqui tem o
snr. Quartelmar a minha historia. O mais extraordinario, é que o
tivessemos encontrado logo, a si, a pessoa justamente que viu meu irmão
vivo, a pessoa justamente a quem eu me ia a dirigir apenas chegasse ao
Natal. Quer que lhe diga? Acho bom agouro. Em todo o caso, aqui estou,
prompto para tudo, com o meu velho amigo, o capitão John, companheiro
fiel de muitos annos, que teve a dedicação de me acompanhar.
O outro encolheu os hombros, sorrindo, com a sua esplendida dentadura.
--Não havia n'este momento nada interessante a fazer na velha Europa!...
Gasta, insipidissima, a velha Europa!
Depois, reenchendo o cachimbo, accrescentou muito sério:
--E agora que o nosso amigo Quartelmar conhece os motivos que nos trazem
á Africa, e o interesse que nos prende a esse homem chamado Neville,
espero da sua lealdade que não terá duvida em nos dizer tudo o que sabe,
ou tudo que ouviu, a respeito d'elle. Hein?
Impressionado, respondi:
--Não tenho duvida, por ser questão de sentimento.


CAPITULO II
PRIMEIRA NOTICIA DAS MINAS DE SALOMÃO

Sacudi a cinza do cachimbo na palma da mão, e comecei, muito devagar,
para tudo pôr bem claro e bem exacto:
--Aqui está o que ouvi a respeito d'esse cavalheiro Neville. E isto, que
me lembre, nunca, até ao dia d'hoje, o disse a ninguem. Ouvi que esse
cavalheiro fôra para o interior á busca das minas de Salomão.
Os dois homens olharam para mim, com assombro:
--As minas de Salomão!? Que minas?... Onde são?
--Onde são, não sei. Sei apenas onde _dizem que estão_. Aqui ha annos vi
de longe os dois picos dos montes que, segundo corre, lhes servem de
muralha. Mas entre mim e os montes, meus senhores, havia duzentas milhas
de deserto. E esse deserto, meus senhores, nunca houve ninguem (quero
dizer, homem branco) que o atravessasse, a não ser um, n'outras éras.
Porque toda esta historia vem muito de traz, de ha seculos! Eu não tenho
duvida em a contar, mas com uma condição: é que os cavalheiros não a hão
de transmittir sem minha auctorisação. Tenho para isso razões, e fortes.
Estão os cavalheiros de accôrdo?
--Com certeza!
Narrei então longamente tudo o que sabia, historia ou fabula, sobre as
minas de Salomão. Foi ha trinta annos que pela primeira vez ouvi fallar
d'estas minas a um caçador d'elephantes, um homem muito sério, muito
indagador, que recolhera assim, nas suas jornadas através d'Africa,
tradições e lendas singularmente curiosas. Tinha-me eu encontrado com
elle na terra dos Matabeles, n'uma das minhas primeiras expedições ao
interior, á busca do elephante e do marfim. Chamava-se Evans. Era um dos
melhores caçadores d'Africa. Foi estupidamente morto por um bufalo, e
está enterrado junto ás quedas do Zambeze.
Pois uma noite, sentados á fogueira, no matto, succedeu mencionar eu a
esse Evans umas construcções extraordinarias com que casualmente dera,
andando á caça do _koodoo_ por aquella região que fórma hoje o districto
de Lydenburg no Transwaal. Essas obras foram depois encontradas, e
aproveitadas até, pela gente que veio trabalhar as minas d'ouro. Mas
ninguem (quero dizer, nenhum branco) as tinha visto antes de mim. Era
uma estrada enorme, magnifica, cortada na rocha viva, levando a uma
galeria sem fim, mettida pela terra dentro, toda de tijolo, e com
grandes pedregulhos de minerio d'ouro empilhados á entrada. Obra
extraordinaria! E a raça que a fizera--desapparecera, sem deixar um
nome, nem outro vestigio de si, além d'aquella estrada e d'aquella
galeria, que revelavam um grande saber, uma grande industria e uma
grande força!
--Curioso! murmurou Evans. Mas conheço melhor!
E contou-me então que no interior, muito no interior, descobrira elle
uma cidade antiquissima, toda em ruinas, que tinha a certeza de ser
Ophir, a famosa Ophir da Biblia. Lembro-me bem a impressão e o assombro
com que eu escutei a historia d'essa cidade phenicia perdida no sertão
d'Africa, com os seus restos de palacios, de piscinas, templos, de
columnas derrocadas!... Mas depois Evans ficára calado, scismando. De
repente diz:
--Tu já ouviste fallar das serras de Suliman, umas grandes serras que
ficam para além do territorio de Machukulumbe, a noroeste?
--Não, nunca ouvi.
--Pois, meu rapaz, ahi é que Salomão verdadeiramente tinha as suas
minas, as suas minas de diamantes!
--Como se sabe?
--Como se sabe!? Tem graça! Sabe-se perfeitamente. O que é _Suliman_
senão uma corrupção de _Salomão_? O nome das serras, realmente, sempre
foi _serras de Salomão_. Além d'isso, uma feiticeira do districto de
Manica, uma velha de mais de cem annos, contou-me tudo... Isto é,
contou-me que para lá das serras vive um povo que é da raça dos Zulús, e
falla um dialecto zulú: mas como força, e corpulencia, e coragem, vale
mais que os Zulús. Pois n'esse povo ha videntes, grandes feiticeiros,
que de geração em geração têm trazido o segredo d'uma mina prodigiosa,
que foi d'um rei branco, muito antigo, e que ainda hoje está cheia de
pedras brancas que reluzem... De sorte que não ha duvida nenhuma.
Para mim havia toda a duvida. As minas d'Ophir interessavam-me, como da
nossa crença e da Biblia: mas das minas de _pedras brancas que reluzem_,
conhecidas em segredo por feiticeiros zulús, teria certamente rido se
não fôra o respeito devido a um caçador tão digno como Evans. De
madrugada Evans partiu, a acabar tristemente nas pontas d'um bufalo. E
não pensei mais em Salomão, nem nas suas minas de diamantes.
Aqui ha vinte annos porém, n'um encontro muito singular que tive no
districto de Manica, de novo ouvi fallar das minas de Salomão, e d'um
modo que para sempre me devia impressionar. Era n'um sitio chamado a
«aringa de Sitanda». Não ha peor em toda a Africa. Fructa nenhuma, caça
nenhuma, tudo sêcco, tudo triste--e os pretos vendem os ossos d'um
frango por fazenda que vale uma vacca.
Apanhei lá um ataque de febre, e estava fraquissimo, enfastiadissimo,
quando me appareceu um dia um portuguez de Lourenço Marques, acompanhado
por um serviçal mestiço. Entre os portuguezes de Lourenço Marques--ha
soffrivel e ha pessimo. Mas este era dos melhores que eu vira--um homem
muito alto e muito magro, de bellos olhos negros, os bigodes já
grisalhos todos retorcidos, e umas maneiras graves que me fizeram pensar
nos velhos fidalgos portuguezes que aqui vieram ha seculos e de que
tanto se lê nas historias. Conversámos bastante n'essa noite, porque
elle fallava um bocado de mau inglez, eu um bocado de mau portuguez; e
soube que se chamava José Silveira, e que possuia uma fazenda ao pé da
cidade, em Lourenço Marques.
Na manhã seguinte, cedo, antes de partir com o mestiço acordou-me para
se despedir, de chapéo na mão, cortez e grave como os antigos, os que
tinham _Dom_.
--Até mais vêr, camarada!
--Boa viagem! até mais vêr!
O homem conservava, pregados em mim, os grandes olhos negros que
rebrilhavam. Depois accrescentou muito sério:
--Se nos tornarmos outra vez a encontrar, hei de ser a pessoa mais rica
d'este mundo! E póde contar, camarada, que não me hei de esquecer de si!
Nem ri. Estava muito debilitado para rir. Fiquei estirado na manta
olhando para o estranho homem que, a grandes passadas, com a cabeça alta
e cheia de esperança, se mettia pelo matto dentro.
Passou uma semana, e melhorei da febre. Uma tarde achava-me sentado no
chão defronte da barraca, rilhando a ultima perna d'um d'esses frangos
que os pretos me vendiam por chita do valor d'uma vacca, e pasmando para
o enorme disco do sol que descia ao fundo do deserto--quando de repente
avistei, escura sobre a vermelhidão do poente, n'uma elevação de
terreno, a figura d'um homem que era certamente europeu porque trazia um
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