As Minas de Salomão - 04

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abandonar as nossas magnificas armas á mercê d'aquelle velho
malandro--cujos olhos se fixavam já nos nossos bens com um fulgor de
cubiça e rapina. Tomei por isso as minhas precauções.
Comecei por carregar as espingardas. Depois declarei ao bandido, n'um
tom cavo, que aquelles canos estavam enfeitiçados--e que se elle lhes
tocasse «alli» (mostrei o gatilho), os demonios fugiriam de dentro
despedindo um _raio_! Immediatamente (como eu calculára), o Cafre puxou
o gatilho a uma carabina «Express». E o _raio_ partiu. Partiu, com tanta
felicidade, que matou uma vacca que pastava pacificamente a distancia, á
beira d'agua--e atirou o velho de pernas ao ar, com a inesperada força
do recúo. O pavor do malandro foi indizivel. Tremia todo, dava pulos em
volta da vacca morta (que depois, mais tranquillo e com toda a
impudencia, queria que eu lhe pagasse), olhava para o céo, olhava para o
chão... Por fim rompeu aos berros:
--Tirem esses demonios que estoiram! Ponham-os lá em cima, sobre o
colmo!... Ai, que não fica vivo um de nós!
Apenas elle serenou, continuei a minha predica. Affirmei-lhe, com
olhares esgazeados, que se ao voltarmos, uma só arma d'aquellas
faltasse, eu, que possuia as artes dos brancos, o mataria a elle e a
toda a sua gente por meio de bruxarias sangrentas: e que se nós
morressemos e elle tentasse apoderar-se do que era nosso, eu voltaria em
espirito perseguil-o, puxar-lhe de noite pelos pés, tornar-lhe o gado
bravo, dessorar-lhe o leito fresco, seccar-lhe a semente na terra,--e
fazer a vida na aringa tão dura e terrivel que seus proprios filhos o
amaldiçoariam... Emfim, dei-lhe uma idéa razoavel do Inferno, com
horrores ineditos. O velho malandro, espavorido, jurou que olharia pelas
nossas armas como se fossem os ossos de seu pai! Era um patife
infinitamente supersticioso.
Em seguida combinámos o que nós cinco--o barão, o capitão John, eu,
Umbopa e Venvogel--deviamos levar comnosco através do deserto. Muito
calculámos, muito experimentámos. Não lográmos chegar a um peso menor de
quarenta arrateis por homem. E havia escassamente o necessario! Eis aqui
o que conduziamos:
Cinco espingardas--com a competente munição (quatrocentas cargas);
Tres rewolvers;
Cinco cantis d'agua, de cinco quartilhos cada um;
Cinco mantas;
Vinte e cinco arrateis de _biltong_--que é uma especie de carne sêcca;
Dez arrateis de contas de vidro para presentes aos indigenas;
Navalhas, phosphoros, um compasso, um filtro d'algibeira, uma enxó, uma
garrafa de cognac, tabaco--e os fatos que tinhamos no corpo.
Era tudo: e era pouco, como necessidade e conforto, n'uma semelhante
empreza! Ainda assim peso consideravel para cinco homens acarretarem,
por um sol terrivel, através d'um deserto esteril!
Depois, com immensas difficuldades, persuadimos tres negros da aldeola a
acompanharem-nos durante vinte milhas, levando cada um ás costas uma
larga cabaça d'agua fresca. O meu fim era podermos encher de novo os
cantis, depois da primeira noite de marcha (porque decidiramos partir na
frescura da noite). Os negros, a quem eu contára que iamos caçar o
abestruz, não acreditaram: tinham por certo que morreriamos de sêde e de
fome no grande sertão: elles proprios temiam a morte e os demonios que
vagam no deserto: e só consentiram em nos seguir, a troco de tres facas
de matto e d'uma manta vermelha.
Durante todo esse dia descançámos e dormimos. Ao pôr do sol celebrámos
um grandioso jantar, de caça, de carne fresca e de chá--«o ultimo chá,
observou John com melancolia, que naturalmente beberiamos por longos e
longos mezes». Depois, apetrechadas as mochilas, esperámos que nascesse
a lua. Perto das nove horas subiu ella, em toda a sua serena e pensativa
gloria, inundando de luz branca e vaga todo o immenso deserto, que
parecia tão mudo, solemne, impenetravel e virgem de pégadas humanas como
o claro firmamento que por cima resplandecia. Com a lua que se erguia
nos erguemos nós tambem. Tudo estava prompto, os negros de cajado na
mão:--e todavia hesitavamos ainda, como o fraco homem hesita sempre
perante o Irrevogavel. Lembro-me bem. Adiante de nós alguns passos,
Umbopa, de azagaia na mão, com a carabina a tiracollo, olhava fixamente
para o deserto: atraz de nós, n'um grupo, Venvogel, com os tres negros
que levavam as cabaças d'agua, esperavam, direitos e mudos: e nós tres,
os homens brancos, muito juntos, sentiamos bater forte o coração.
De repente, o barão tirou devagar o chapéo. E com profunda emoção:
--Amigos, vamos começar uma das mais estranhas jornadas que homens têm
ousado tentar. O que será de nós, não sei: mas, para bem ou para mal,
juntos estamos, juntos nos encontraremos sempre! E agora, antes de
partir, ergamos o pensamento para Aquelle que tudo póde!
Escondeu a face entre as mãos, ficou immovel. O capitão John e eu
baixámos tambem a cabeça, com reverencia, com humildade. Eu por mim,
confesso, nunca fui homem de orações. Caçadores de elephantes, na dura
vida d'Africa, raro se lembram de fallar a Deus. Em todo o caso,
n'aquelle momento, rezei. Rezei com fervor; e senti-me depois mais
alegre e mais leve. Creio que o capitão (religioso no fundo, apesar de
praguejar medonhamente) tambem rezou. O barão esse era homem de piedade
e crença... Quando destapou o rosto, olhou em redor, ergueu o braço,--e
com um bello ar de resolução e de esperança:
--Prompto?... Larga!
Os bordões resoaram na terra dura,--e largámos.
Para nos guiar no deserto tinhamos apenas as distantes montanhas de
Suliman, e o roteiro que o velho D. José da Silveira traçára no pedaço
de camisa. Cada um de nós trazia na algibeira uma cópia d'esse mappa
rude. Mas, considerando que essas linhas tinham sido riscadas por um
homem meio morto, ha trezentos annos--era bem certa a sua utilidade? A
nossa salvação, n'aquella jornada, seria encontrar a lagôa, ou poça de
agua salobra que o velho fidalgo portuguez marcára a meio caminho entre
a aldeia d'onde partiramos e as serras de Suliman. Se a não achassemos,
tinhamos certa a morte, uma morte terrivel, a morte pela sêde. E, para
mim, as probabilidades de descobrir uma lagôa de tres ou quatro metros
n'aquella vastidão de areia e tojo, parecia-me minima, infinitesima.
Mesmo suppondo que o Portuguez a marcára com exactidão--quem nos
afiançava que n'esses trezentos annos ella não seccára ou não fôra
coberta pelas areias movediças?
Era n'isto que eu pensava--emquanto silenciosamente, como sombras, iamos
marchando sob o luar silencioso. O caminho não era facil: o tojo denso e
espinhoso retardava-nos o passo: a areia mettia-se nos sapatos, e cada
meia hora deviamos parar para os esvasiar: e, apesar da noite não estar
quente, havia no ar alguma coisa de pesado e de espesso, que
amollentava. Mas o que sobretudo nos opprimia era a solidão, o
silencio--o infinito, terrivel silencio. John ainda tentou assobiar uma
cantiga galante de bordo. Mas a toada jovial, o estribilho de _teus
dôces olhos_, parecia lugubre n'aquella severa immensidade. O engraçado
homem emmudeceu. E seguimos n'uma fila muda através do matto mudo.
Perto da meia noite, sobreveio uma aventura que nos assustou--e depois
nos divertiu immensamente. John, como marinheiro, levava a bussola, e
marchava adiante, guiando. De repente ouvimos um berro--John
desapparece! Ao mesmo tempo rompia em torno de nós uma balburdia medonha
de roncos, bufos, grunhidos, sons de patas fugindo--e vemos fórmas, como
garupas, galopando através do tojo, entre rolos d'areia. Os negros
atiraram-se ao chão, gritando que eram «demonios acordados»! Eu proprio
e o barão ficámos surprezos:--e o nosso assombro cresceu quando
avistámos John, apparentemente montado n'um potro, fugindo aos galões
para o lado dos montes, e ganindo como um desesperado. Um momento
mais--e vêmol-o sacudir os braços no ar, e de novo desapparecer, no
matto baixo, com um baque tremendo. Corremos para elle e percebemos o
caso estranho: tinhamos ido cahir no meio d'um rebanho de zebras
adormecidas: John estatelára-se exactamente sobre as costas d'uma,
enorme: e o bicho, pulando espavorido, abalára com o nosso amigo nas
ancas. Felizmente não se magoára no tombo final: fomos dar com elle
sentado na areia, de monoculo firmemente cravado no olho, aturdido,
indignado--mas intacto de pelle e osso.
Depois d'isto marchámos socegadamente até perto das duas horas da noite.
Fizemos então uma paragem, bebemos uns goles d'agua (não muitos, nem
largos, porque a agua passava a ser preciosa), e ao fim de trinta
minutos de descanço recomeçámos a caminhar para diante, para diante
sempre, até que o nascente se tingiu de laivos de rosa. Vimos as
estrellas desmaiar, vivas barras alaranjadas alongarem-se ao rez do
horisonte, a lua declinar mais livida que um cirio, longos raios de luz
varar e colorir de fogo os nevoeiros, todo o deserto cobrir-se d'uma
tremula refracção d'ouro--e ser dia!
Não parámos apesar de já cansados--pela certeza de que bem cedo o sol,
nado e alto, nos impediria de dar um passo unico, sob o seu torrido
esplendor. Com effeito, ás seis horas já ardia! Por felicidade avistámos
então na planicie um montão de rochas. Para lá nos arrastámos,
exhaustos. E por felicidade maior, uma enorme lasca de pedra pousada
sobre grossos blocos fazia como um telheiro, cuja sombra cahia sobre um
pedaço d'areia fina. Abrigo providencial! Alli nos aninhámos: e, depois
de beber alguns goles d'agua bem contados e de comer uma lasca de
_biltong_, adormecemos deliciosamente.
Ás tres horas acordámos. Os carregadores que tinham trazido as cabaças
já se preparavam para voltar á sua aringa. De sorte que absorvemos uma
farta tarraçada d'agua, enchemos de novo os cantis, e distribuimos pelos
homens as facas de matto promettidas. D'ahi a instantes vimol-os (não
sem uma vaga melancolia) voltar costas ao deserto e romper a marcha para
o lado da sua aldeia, para o lado da frescura e da agua!
Ás quatro e meia mettemos de novo a caminho. A cada passo tudo de redor
se parecia alargar em silencio e desolação. Ao principio ainda
avistavamos, aqui e além, entre o matto, um abestruz. Depois, nem mesmo
reptis topavamos na planicie arenosa. A nossa unica companhia era a
mosca, a mosca ordinaria e caseira... Digno e veneravel animal! Em
qualquer logar em que o homem penetre, deserto, montanha, caverna--a
mosca lá está. Foi este decerto o primeiro dos sêres vivos que surgiu
sobre a terra. Já havia moscas para pousar no nariz de Adão. O
derradeiro homem ha de morrer com uma mosca a zumbir-lhe em torno á
face. E talvez haja moscas no Paraiso.
Ao sol-posto parámos, esperando que nascesse a lua. Mais bella e serena
que nunca surgiu ella ás dez horas--e toda a noite, sob o seu calmo e
pensativo brilho, na mudez da vastidão, caminhámos, caminhámos... O sol
nado pôz um termo á valente marcha. Sorvemos por conta uns goles d'agua
dos cantis, atirámo-nos para cima da areia, e alli nos tomou o somno a
todos quatro simultaneamente. Não havia necessidade que um velasse. Nada
tinhamos a recear, nem de homem nem de fera, n'aquella immensidade
despovoada. D'esta vez porém nenhuma rocha nos abrigava--e ás sete horas
acordámos sob o sol faiscante, com a sensação que deve experimentar um
bife de lombo achatado sobre a grelha. Estavamos sendo _fritos_! O sol
por cima, a areia por baixo, seccavam-nos o sangue nas veias. Todos nos
erguemos, de salto, quasi sem respiração.
--Santo Deus! murmurou o barão, sacudindo os enxames de moscas.
--Póde-se chamar a isto calor! gemeu do lado o capitão, que arquejava.
Podia-se chamar, na verdade. E eram apenas sete horas! Em toda a vasta
extensão nem um abrigo! Só matto rasteiro--e por cima uma vibração
radiante, tão viva e intensa que viamos tremer o ar.
--Que se ha de fazer? exclamou o barão. É impossivel aguentar isto!
Olhámos uns para os outros, estupidamente.
--Se abrissemos uma cova? lembrou John. Podiamos metter-nos dentro e
cobrir-nos com tojo... É uma idéa.
Não brilhante! Mas era a unica:--de modo que, já com a enxó, já com as
mãos, passámos a abrir uma cova do tamanho aproximado d'uma larga cama.
Cortámos uma porção de matto; e alli nos sepultámos, collados como
sardinhas n'uma caixa, todos quatro, o barão, John, eu e Umbopa,--porque
Venvogel, como Hottentote, não sentia os ardores do sol. Foi elle que
nos cobriu de matto. Realmente, assim, estavamos ao abrigo dos raios
perpendiculares do sol:--mas que pavorosa ardencia a d'aquella fossa, em
que cada torrão, junto do corpo, era como uma braza viva! Não
comprehendo como nos desenterrámos vivos. Dormir, impossivel! Jaziamos
estendidos, hirtos, sem ter já que suar, quasi cortidos, arquejando
anciosamente. Só possuiamos o consolo de humedecer de vez em quando os
beiços com uma gota d'agua muito medida! Esta avara medição da agua era
o tormento maior. A cada instante necessitavamos recalcar a furiosa
tentação de sorver d'um só trago os quatro cantis. Mas quê! se a agua
faltasse--breve viria a morte!
Tudo tem um fim n'este mundo, diz a Sabedoria oriental, comtanto que se
possa esperar. Esperámos: a horrivel, interminavel manhã passou: e pelas
tres horas preferimos encontrar a morte, andando (se a morte tinha de
vir) a ser por ella lentamente envolvidos n'aquelle infame buraco.
Reconfortámo-nos com um curto sorvo á nossa agua,--que diminuia
terrivelmente, e subira já á temperatura do sangue. E com um esforço
rompemos de novo através da planicie flammejante.
Tinhamos transposto umas dezesete leguas de ermo. Ora no roteiro do
velho D. José da Silveira, a total extensão do deserto estava fixada em
quarenta leguas; e a famosa poça de agua salobra vinha marcada a meio do
deserto. A esse tempo, portanto, deviamos estar a umas tres leguas da
agua--se a agua existia! Em toda a tarde, porém, fizemos pouco mais
d'uma milha por hora. Ao pôr do sol parámos á espera da lua. Deixei-me
cahir para o chão, como um morto, cerrei os olhos. Mas d'ahi a um
instante Umbopa fez-me erguer e notar, á distancia de oito ou nove
milhas, uma especie de outeiro redondo e liso que se erguia abruptamente
na planicie rasa. Não parecia uma elevação natural de terreno, na sua
semelhança estranha com uma metade de laranja. Quando me tornei a deitar
adormeci logo, murmurando: «Que será?...»
Ao romper da lua de novo partimos, já alquebrados de cansaço e de sêde.
O andar franco e firme acabára para nós. Era agora um arrastar de passos
quasi cambaleantes, com paragens bruscas de meia em meia hora, em que
cahiamos para cima da areia, sem força, de coração desmaiado. Nem animo
nos restava para conversar. Até ahi ainda gracejavamos, heroicamente.
John sobretudo--jovial camarada! Mas agora! Nem voz tinhamos para gemer!
Finalmente, perto das duas horas, vencidos de corpo e d'alma, chegámos
ao pé do comoro estranho. Era uma especie de duna d'areia, escura, lisa,
atarracada, da altura d'uns trinta metros, e cobrindo na base duas
geiras de terreno. Parámos. E desesperados com a sêde, sorvemos o resto
da agua. Tinhamos meio quartilho por bôca! Podiamos ter emborcado um
almude!
Cada um em silencio se estendeu para dormir. Eu fechava os olhos,
resvalava já dôcemente no esquecimento e no sonho, quando ouvi Umbopa ao
meu lado murmurar para si proprio em zulú:
--O que é a vida! Se ámanhã não achamos agua, a lua ao nascer encontra
aqui quatro mortos... Vida, sombra que passa! vida, murmurio que finda!
Apesar do calor senti um arripio. Pois tanta era a fadiga, que
confrontado por esta probabilidade (uma agonia de sêde n'um deserto
d'areia!), adormeci profundamente.
* * * * *
Eram quatro da manhã quando acordei. E bruscamente entrou commigo a
tortura da sêde!
Estivera todo o tempo sonhando que passeava á beira d'um regato d'agua,
muito puro e muito frio, bordado de relvas e de grandes arvores de
fructas... Quando me ergui esfreguei a face com ambas as mãos; mãos e
face pareceram-me mais sêccas e duras do que coiro; e as palpebras e os
beiços estavam tão pegados, tão collados, que tive de os descerrar á
força com os dedos, como se os unisse uma colla forte. A madrugada ainda
vinha longe; mas não reinava no ar a natural frescura matutina, antes
uma espessura molle e morna intoleravelmente pesada. Os outros
dormiam... Fiquei callado, olhando em redor a desolada solidão. E pouco
a pouco comecei a sentir de novo, junto de mim, o murmurio fresco do
regato que corria, o ramalhar da verdura, pios d'aves, e toda uma
sensação de paz, de sombra, de abundancia, que me fazia sorrir sósinho
n'um immenso contentamento... Ao mesmo tempo tinha a certeza do deserto
e da aridez que me envolvia. Creio na verdade que delirei!
Voltei a mim, quando os outros em redor se começaram a mexer,
erguendo-se devagar sobre o cotovêlo, esfregando como eu as faces
resequidas, separando á força como eu os labios sem saliva e mirrados.
Já rompia a claridade. Apenas acordados todos, e conscientes, começámos
a fallar da nossa situação--que era sombriamente desesperada. Não nos
restava uma gota d'agua! Voltámos os cantis para baixo, chupámos-lhes os
gargalos. Mais sêccos que ossos! O capitão John, que guardára a garrafa
de cognac, sacou-a da mochila, consultou-nos com um sedento olhar.--Mas
o barão arrancou-lh'a das mãos. Beber alcool, n'aquelle estado?... Era a
morte.
--Mortos estamos nós (murmurou o capitão encolhendo os hombros) se
d'aqui á noite não achamos agua!
--Se o roteiro do Portuguez estivesse exacto, disse eu suspirando, a
poça d'agua devia apparecer por aqui, algures... Foi n'esta altura
exactamente que elle a achou...
Os outros nem responderam. Realmente nenhum de nós tinha já confiança no
roteiro do velho fidalgo. Mesmo que a poça existisse--como encontrar
n'essa immensidão o sitio exacto e preciso onde ella estaria, mais
pequena e perdida do que uma moeda de prata n'uma praia d'areia? Só por
um «bamburrio»! Ou só se ella jazesse junto d'accidente do terreno, que,
pela sua especial saliencia na vasta planicie, inevitavelmente
attrahisse os olhares e os passos.
A claridade ia crescendo; e quando assim estavamos, lançando
conjecturas, n'esta terrivel anciedade--reparei que o nosso Hottentote
Venvogel andava a distancia, com os olhos no chão, lentamente, como quem
procura um rasto... De repente parou, soltou um grito, com o braço
espetado para a terra.
--Que é? exclamámos todos.
E corremos alvoroçadamente.
--Pégadas de corço! bradou elle em triumpho, apontando para o chão.
--E então?
--Corços nunca andam longe d'agua!
--É verdade! gritei eu. E louvado por isso seja Deus!
Foi como se renascessemos á vida. Não era ainda a agua--mas a esperança
d'ella, para breve! E n'uma crise afflictiva como a nossa, uma
esperança, por mais vaga e tenue, vale sobretudo pela coragem de que
enche logo a alma.
Venvogel no emtanto começára a andar em redor, com o nariz erguido (o
seu largo nariz mais chato que o d'um _bull-dog_), sorvendo o ar quente,
farejando.
--_Cheiro agua_! dizia elle, _cheiro agua_!
E nós todos atraz d'elle, farejando tambem, quasi _já viamos_ a
agua--sabendo bem que estes Hottentotes, como todos os selvagens,
possuem um faro maravilhoso. Mas n'esse instante os grandes raios do sol
que nascia bateram-nos o rosto. E olhando, descobrimos uma tão grandiosa
paizagem, que por um momento esquecemos a agua e os tormentos da sêde!
Diante de nós, a umas dez ou doze leguas, rebrilhando como prata nos
primeiros raios do dia, erguiam-se os dois enormes montes que o
portuguez chamára os «Seios de Sabá»; e de cada lado d'elles,
estendendo-se sem fim, durante centenares de milhas, a vasta cordilheira
de Suliman! Não é possivel transmittir, no verbo humano, a incomparavel
grandeza e belleza d'aquelle quadro de montanha!
Alli estavam as duas enormes serras que não têm iguaes na Africa, nem
creio que no resto do mundo, medindo pelo menos mais de quinze mil pés
d'altura, emergindo da cordilheira infinita--brancas, mudas, de
portentosa solemnidade, enchendo o céo até acima das nuvens. E o que
esmagava a alma, era a assombrosa estructura. A cordilheira estendia-se
como um muro disforme de granito, d'altura de mil pés: as duas serras
formavam como os dois torreões d'uma porta, perdidos nas profundidades:
a parte da serra que separava os dois montes, sendo talhada a pique,
lisa e rigorosamente horisontal no alto, reproduzia a configuração d'uma
porta prodigiosa:--e o aspecto todo era como o d'uma muralha cercando
uma cidade fabulosa de sonho ou de lenda!
Bem justamente chamára o velho fidalgo portuguez aos dois montes «Seios
de Sabá»! Tinham com effeito a fórma perfeita de dois peitos de mulher:
as suas vastas faldas iam subindo da planicie, n'uma curva dôce e
tumida, parecendo áquella distancia formosamente redondas e lisas: e no
cimo de cada uma, um immenso outeiro sobreposto, todo coberto de neve,
semelhava exactissimamente a ponta, o bico d'um peito. Prodigiosa
estructura! Se a Terra, como pretendia a antiga Mythologia, é uma
mulher, a enorme Cybele--ahi estavam decerto os seus peitos uberrimos!
Mas á minha imaginação (nunca muito inventiva, mas perturbada e excitada
n'esse momento pela fraqueza) aquillo tudo se afigurava uma muralha
estupenda, cercando e defendendo uma região de infinito mysterio; e a
cada instante me parecia que a porta de granito ia rolar, abrir-se com
fragor, e desvendar algum segredo secular--o segredo talvez da Terra
d'Africa! E o mais extraordinario foi que, emquanto assim contemplavamos
assombrados, começaram a subir, a agglomerar-se em torno aos dois montes
lentas e estranhas nevoas e nuvens, como para esconder aos nossos olhos
mortaes a magestade d'aquelle ádito, que uma vontade divina nos deixára
por um momento entrever. D'ahi a pouco os «Seios de Sabá» estavam
envolvidos de todo, resguardados sob o mystico véo--através do qual só
podiamos distinguir agora as suas linhas, formidavelmente espectraes!...
Depois, mais tarde, descobrimos que esses montes, em tudo singulares,
estavam ordinariamente velados por esta curiosa nevoa, como por uma
cortina de Sacrario. Só a certas horas, ao romper do sol, a cortina se
descerrava, como n'uma celebração, desvendando aos homens a maravilha
sem par.
Passada a violenta surpreza, de novo nos considerámos com a mesma
anciosa interrogação--«que fazer?» Venvogel insistia, convencido, que
lhe _cheirava a agua_:--mas debalde buscavamos, trilhavamos o terreno em
redor, esquadrinhavamos através do matto. Nada! Só a areia ondulando,
com manchas de matagal. Démos a volta toda ao singular outeiro onde
pararamos de noite. Avançámos para os lados, em todas as direcções do
vento, com attentos e lentos passos, e olhos sôfregos que furavam a
terra. Nada! Nenhum vestigio d'uma nascente, d'uma poça, d'um charco. Só
areia, arido tojo.
--Idiota! gritei eu desesperado com o Hottentote. Não ha, nunca houve
aqui agua!
N'aquella aspera, arida immensidade não parecia, com effeito, haver
possibilidade, nem sequer verosimilhança d'agua... E quanto tempo de
resto poderia durar alli uma «poça salobra», como a que encontrára o
velho fidalgo, sem ser chupada pelo sol ardente ou atulhada pelas areias
movediças?
No emtanto Venvogel, o Hottentote, continuava a farejar, com as ventas
erguidas e abertas:
--Eu sinto o _cheiro_ d'agua, patrão. Sinto-a no ar!
--No ar não duvido. Ha agua que farte nas nuvens! Tambem não duvido que
venha a cahir. Mas ha de ser para nos lavar os esqueletos!
O barão no emtanto cofiava a barba pensativamente:
--E todavia, murmurava elle, por aqui a encontrou o velho portuguez! O
sitio é este. Foi aqui, em volta. A meio caminho exacto, na linha
direita de norte a sul, da aringa de Sitanda ás Serras. É aqui. Aqui
esteve agua!
Sim, mas ha trezentos annos! Em tres seculos muita agua brota e sécca!
Quem nos afiançava de resto a exactidão do portuguez, esvaído de fome,
meio delirado, no começo da sua agonia? Já não era pequena estranheza
que elle a tivesse encontrado, n'esta deserta immensidade, justamente
quando d'ella lhe dependia a vida!... A não ser que para ella fosse
attrahido insensivelmente e naturalmente por algum accidente de terreno,
muito saliente e muito visivel de longe--como um bosque, uma collina...
Uma collina!
E quando eu assim pensava, eis que o barão grita, como echoando o meu
pensamento:
--No alto da collina! Talvez a agua esteja no alto da collina!
--Tolice! acudiu o capitão encolhendo os hombros. Agua no topo d'uma
collina! Onde se viu isso?
--Procuremos! disse eu, com um bater de coração que era todo de
esperança.
Trepámos anciosamente pelo outeiro. Umbopa corria adiante. De repente
estaca, com os braços no ar:
--_Nanzie manzie_! (agua aqui!)
Pulámos para junto d'elle:--e com effeito, mesmo no topo da collina,
n'uma cova redonda como uma taça, lá estava agua, agua escura, agua
lôbrega--mas agua! Agua! agua! Gritavamos de puro gozo. E n'um momento,
estirados de barriga no chão, com as faces na poça, sorviamos
deliciosamente a grandes e rapidos sorvos aquelle liquido desappetitoso,
que tão bem imitava agua. Céos! O que bebemos! E mal findámos de beber,
arrancámos o fato, saltámos para o charco, e, sentados n'elle, ficámos
horas a embeber-nos de frescura através da pelle--da nossa pobre pelle
mais dura e mais sêcca que um pergaminho secular.
Quando nos erguemos, refrigerados e saciados, cahimos sobre a carne
sêcca. Comemos a fartar. Uma longa cachimbada por cima completou aquella
hora de consolação. E o somno que nos tomou até ao meio dia, deitados
junto da poça e da sua humidade, foi profundo e bemdito!
Todo aquelle dia tardámos junto da agua, bebendo d'ella, mergulhando
n'ella, olhando para ella--e dando louvores sem conta ao velho fidalgo
que tão exactamente a marcára no mappa. Por fim, tendo enchido d'agua os
estomagos e os cantis, continuámos a marcha, mais animados e ageis, ao
erguer da lua cheia. Fizemos vinte e cinco milhas n'essa noite. Não
tornámos a encontrar agua. Mas seguiamos confiados, com a certeza de a
achar, abundante e fresca, nas faldas das serras. Quando o sol se ergueu
e desfez as nevoas, avistámos de novo a cordilheira e os dois «Seios de
Sabá» (agora afastados de nós apenas vinte milhas) tomando o céo com a
sua magestade sublime. Essas vinte milhas cobrimol-as durante a noite. E
ao outro alvorecer pisámos emfim as primeiras ladeiras do seio esquerdo
de Sabá!
Com amargo espanto não encontrámos agua, e a nossa já ia findando! Não
havia agora esperança de topar nascentes antes de chegarmos á linha de
neve, que branquejava lá longe, no alto da serra: e já a sêde nos
começava outra vez a torturar. Desconsoladamente fomos arrastando os
passos por sobre o torrido chão de lava que formava a base do monte.
Caminhada atroz! Pelas onze horas da manhã, apesar de curtos repousos,
estavamos exhaustos--por causa sobretudo dos ladrilhos de lava asperos e
rugosos que nos magoavam horrivelmente os pés. De sorte que, descobrindo
a umas trezentas jardas acima grossos pedregulhos de lava, decidimos
descançar umas fartas horas á sua sombra providencial. Para lá nos
empurrámos, por lá nos abrigámos. E não foi pequena surpreza (se ainda
nos restava a faculdade de experimentar surprezas!) avistar a pequena
distancia, n'um planalto formando terraço sobre um barranco, uma extensa
e fresca tira de verduras. Evidentemente a lava decompondo-se formára
alli um chão de terra, onde as sementes trazidas por passaros tinham
alastrado e verdejado... Démos, porém, pouca attenção a essas hervagens,
porque não havia lá nem fructo nem agua--e de relva só Nabuchodonosor se
conseguiu alimentar. Alli ficámos pois, estirados á sombra dos
pedregulhos, sem força no corpo e sem esperança n'alma, pensando que
nunca homens de senso se tinham arriscado a mais esteril, mais absurda
aventura! Umbopa no emtanto, depois de considerar algum tempo em
silencio a leira de verduras, caminhára para lá lentamente. E qual não é
o meu assombro ao vêr aquelle individuo, ordinariamente tão composto e
grave, romper em pulos phreneticos, brandindo na mão o quer que fosse de
verde! Arremettemos para elle, na esperança anciosa de agua descoberta.
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