As Minas de Salomão - 11

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Mas só ao chegar junto d'elles pudémos apreciar a estranha e terrivel
magestade d'essas vetustas figuras.
Separadas por uma distancia de vinte passos, erguidas sobre immensos
pedestaes de pedra negra onde corriam caracteres desconhecidos, e
olhando a direito para a estrada de Salomão que através de sessenta
milhas de planicie seguia até Lú--enchiam um grande espaço as tres
gigantescas fórmas, duas de homem, uma de mulher, todas tres sentadas,
medindo talvez cada uma a altura de vinte pés.
A figura de mulher, toda núa, com dois cornos, como os de um crescente
de lua, sobre a testa, era de uma maravilhosa belleza--infelizmente
estragada pelas injurias do tempo durante longos seculos. As duas
figuras de homem, talvez por estarem vestidas em longas roupagens,
pareciam mais bem conservadas. Um d'elles tinha uma face medonha, feita
para inspirar terror, como a de um demonio malefico; mas a do outro
parecia talvez mais assustadora ainda, na sua fria expressão de dura
indifferença, de uma indifferença de rocha, que nenhuma prece póde
abrandar, ou nenhum soffrimento apiedar. Todos tres juntos formavam na
realidade uma Trindade pavorosa, assim sentados, immoveis, com os olhos
vaga e perpetuamente estendidos para a planicie sem fim. Que imagens
seriam estas? Deuses? Demonios? Reis de povos cujo nome esqueceu? Eu por
mim, das minhas reminiscencias da Biblia, colligia que deviam ser talvez
os falsos Deuses que adorou Salomão--«Asthoreth deusa dos Sidonios,
Chemosh deus dos Moabitas, e Milcolm deus dos filhos de Amnon». Assim
diz o Livro Santo.
--Que lhe parece, barão?
--Talvez, concordou o nosso amigo que recebera grau em Litteraturas
classicas. A Asthoreth, de que fallam os Hebreus, é a Astarté dos
Phenicios, os grandes commerciantes do tempo de Salomão. De Astarté
fizeram os Gregos a sua Aphrodite, que se representava com o crescente
da meia lua na cabeça... Se Salomão tinha aqui as suas minas, era
natural que fossem dirigidas por engenheiros phenicios. De sorte que
provavelmente esses homens ergueram, como padroeira da mina, a estatua
da sua Deusa. Quem póde saber?
Quando estavamos assim contemplando estas extraordinarias reliquias de
uma remota antiguidade, Infandós, que caminhára sem se apressar, chegou
junto de nós, e saudou reverentemente com a lança os _Silenciosos_.
Vinha saber se queriamos penetrar immediatamente na caverna, ou tomar
primeiro a refeição da manhã. Como não eram ainda onze horas, e a nossa
curiosidade flammejava, decidimos desvendar logo os mysterios, levando
comnosco provisões para se lá dentro a fome excitada pelas emoções nos
assaltasse. Infandós fez então signal aos carregadores para que se
acercassem com a liteira de Gagula; e Fulata preparou dentro de um
cesto, para levarmos, uma porção de caça fria e duas cabaças d'agua. Nós
entretanto deramos uma volta em torno ás tres figuras de pedra. Por traz
d'ellas, a uns cincoenta passos, erguia-se aquella das _Feiticeiras_ que
formava o bico do triangulo; na sua base, como incrustada n'ella, corria
uma muralha de pedra: e ahi, ao centro, podiamos distinguir um arco
escuro, como a entrada de uma galeria subterranea. Esperamos que os
carregadores tirassem Gagula da liteira. Apenas no chão, a horrenda
creatura agarrou o cajado, e dobrada em duas, com passos tremulos e
vivos, largou em silencio para o arco escuro. Nós seguimos, calados,
tambem.
Á entrada, o monstro parou, voltado para nós, com um riso livido na
caveira.
--Homens das estrellas, estaes decididos? Quereis realmente penetrar na
cova onde as pedras reluzem?
--Estamos promptos, Gagula, disse eu, alegremente.
--Bem, bem! Entrai! E pedi força aos corações para affrontar as coisas
que ides vêr! E tu, Infandós, que trahiste teu amo, vens tu tambem?
O velho guerreiro franziu terrivelmente o sobr'olho:
--Não me compete a mim entrar nos sitios sagrados. Mas tu, Gagula, tem
cautela, e treme! Os homens que vão comtigo são os amigos do rei! Por
elles me respondes tu. E se tanto como a perda de um só cabello lhes
succeder em mal, nem todos os teus feitiços te livrarão de morrer em
tormentos. Comprehendeste?
--Comprehendi, comprehendi, Infandós! ganiu ella, com um risinho gelado
e lento. Não receies! Eu vivo só para fazer a vontade do rei. Tenho
feito a vontade de muitos reis, em muitas gerações! E os reis findaram
sempre por cumprir a minha vontade! Todos passaram, todos morreram... E
eu aqui estou, para os ir visitar agora no palacio da morte, e para lhes
fallar dos tempos que foram! Vinde, vinde! A lampada está accesa!
Tinha tirado debaixo do manto de pelles que a cobria uma cabaça cheia de
oleo com uma grossa torcida de vime:--e a luz que ella aproximou do arco
negro pareceu desmaiar e tremer.
--Vens tu tambem, Fulata? exclamou John, volvendo os olhos em redor,
inquieto.
--Tenho medo, meu senhor, murmurou a rapariga.
--Bem. Então dá cá o cesto!
--Não, meu senhor, para onde fôrdes, vou eu tambem!
--Bem! pensei eu commigo, ahi levamos tambem o trambolho da rapariga
para dentro da mina!
No emtanto Gagula mergulhára na galeria, que dava apenas logar para dois
caminharem de frente. As trevas eram absolutas. Azas de morcegos
batiam-nos nas faces. E seguiamos menos a luz bruxuleante da lampada,
que a voz de Gagula, que repetia n'um tom lugubre:
--Avançai, avançai! A morte está perto!
De repente distinguimos uma vaga claridade. E momentos depois paravamos
no mais maravilhoso sitio que olhos humanos têm contemplado.
A nada o posso comparar melhor do que ao interior de uma immensa
cathedral, uma cathedral de sonho ou de lenda, sem janellas, alumiada
por uma luz diffusa e mysteriosa que parecia cahir das alturas da
abobada. Ao comprido d'esta vasta nave, como na nave de um verdadeiro
templo, corriam renques de gigantescas columnas, d'uma côr algida de
gêlo e de magnifica belleza. Alguns d'estes nobres pilares estavam, por
assim dizer, interrompidos no meio--um pedaço erguendo-se do sólo, como
a columna quebrada de uma ruina grega, outro pedaço pendente da remota
abobada. Aos lados da nave abriam-se, com dimensões diversas, cavernas á
semelhança de capellas, tendo tambem as suas filas de columnas, algumas
tão pequeninas e finas como feitas para um brinquedo de creança. Aqui e
além havia construcções estranhas, da mesma substancia algida que
parecia gêlo--uma da fórma de uma vasta taça, outra offerecendo a vaga
apparencia d'um pulpito com lavores pendentes. Um ar de indescriptivel
frescura circulava dentro da vasta nave:--e por toda a parte sentiamos,
na penumbra, o ruido lento de gottas de agua cahindo.
Não tardamos em perceber que estavamos simplesmente n'uma caverna de
stalactites, de inigualavel belleza. Cada uma d'aquellas gottas de agua,
que cahia, com um som humido e triste, era mais uma columna que se
estava formando. Ha quantos seculos andava a Natureza trabalhando
n'aquella obra maravilhosa? Sobre uma das columnas incompletas notei eu
uma rude inscripção entalhada decerto por algum obreiro phenicio das
minas, que alli escrevera o seu nome, ou talvez alguma facecia phenicia.
Pois, desde esse dia, em tres mil annos pelo menos, a columna apenas
crescera para cima da inscripção uns tres pés e meio. E ainda estava em
via de formação, porque eu distinctamente senti, emquanto a examinava,
cahir sobre ella, das profundidades da abobada, uma lenta gotta de agua!
Quantos centos de milhares de annos levaram pois a crescer, a formar-se,
assim largas, massiças, altas como torres, as columnas innumeraveis que
se enfileiravam na nave? Nunca, como alli, eu comprehendi a espantosa
velhice da Terra.
Gagula porém não nos deixou muito tempo n'esta curiosa contemplação.
Inquieta, batendo o chão com o cajado, a lampada erguida sobre a cabeça,
a cada instante nos apressava, com ganidos sinistros.
--Vamos, vamos, que a Morte está á nossa espera!
O capitão John ainda tentava gracejar com a atroz creatura. Mas quando
ella nos conduzia ao fundo da nave, diante d'uma pequena porta
semelhante ás dos templos egypcios, e nos perguntou se estavamos bem
preparados a entrar a morada da Morte--todos estacamos, inquietos,
mudos, sem ousar o primeiro passo.
--Isto está-se tornando sinistro, murmurou o barão. Os mais velhos
adiante. Passe lá, Quartelmar!
Entrei a porta egypcia e achei-me n'um corredor inclinado, todo de
abobada, horrivelmente negro. A lampada de Gagula esmorecia. O bater do
seu cajado dava um echo lugubre. E a meu pezar parei, dominado por um
presentimento de desastre e de morte.
--Para diante! para diante! murmurou John, que trazia Fulata agarrada
pela mão.
Com um esforço desesperado venci o receio, alarguei o passo. E, quasi
collados uns aos outros, desembocamos n'uma sala subterranea,
evidentemente excavada outr'ora por poderosos obreiros no interior da
montanha.
Esta sala não tinha uma luz tão clara como a cathedral de stalactites; e
tudo o que eu pude descobrir a principio foi uma enorme e massiça mesa
de pedra, tendo no topo uma colossal figura, que parecia presidir outras
figuras abancadas em torno. Depois, sobre a mesa, no centro, distingui
uma fórma encruzada. E quando emfim, acostumado á penumbra, percebi o
que eram aquellas fórmas, voltei costas, e largaria a fugir como uma
lebre--se o barão não me agarrasse pelo braço fortemente. Cedi, tremendo
todo. Mas a esse tempo o barão tambem se habituára á luz diffusa,
comprehendera tambem, e largando-me o braço, com uma exclamação, ficou a
meu lado, quedo, arripiado, limpando o suor que lhe cobrira a testa. A
pobre Fulata, essa, dava gritos, agarrada ao pescoço de John. E Gagula
triumphava, com sinistra zombaria.
O que tinhamos, com effeito, ante os olhos apavorados, era terrivel.
Alli, no topo da longa mesa de pedra estava a _Morte_--a propria
_Morte,_ um medonho e gigantesco esqueleto, de pé, todo debruçado para
diante, com um dos braços apoiado ao rebordo da pedra como se acabasse
de se erguer do seu assento, e com o outro levantando no ar uma enorme
lança, que parecia arremessar sobre nós; o craneo da caveira alvejava
lugubremente; das covas das orbitas sahia um fulgor negro: e as maxillas
estavam entreabertas, como se fosse fallar, e desvendar o seu segredo.
--Santo Deus! murmurei eu, tranzido. Que póde isto ser?
--E estas figuras, em redor? balbuciava John.
--E além, aquella coisa, no meio? exclamou o barão apontando para a
inexplicavel figura encruzada sobre a mesa.
Então Gagula poisou a lampada e agarrando o braço do barão, com o dedo
estendido para a fórma encruzada:
--Avança, Incubú, homem forte na guerra! Avança, e contempla aquelle que
tu mataste e que está agora junto aos seus avós!
O barão deu um passo, e recuou abafando um grito. Sobre a mesa,
inteiramente nú, com as pernas encruzadas, e a cabeça que o barão
cortára poisada em cima dos joelhos, estava Tuala, ultimo rei dos
Kakuanas!... Sim, Tuala, sustentando solemnemente sobre os joelhos a sua
hedionda cabeça decepada, e com as vertebras a sahirem-lhe para fóra do
pescoço encolhido e como resequido! Sobre todo o corpo negro tinha já
uma especie de pellicula gelatinosa e vidrada, que o tornava mais
pavoroso, e cuja natureza eu não podia comprehender--até que senti
_tic_, _tic_, _tic_, um fio de gottas de agua, que, cahindo da abobada,
lhe escorria pelo pescoço, e d'alli pelo corpo, para se escoar depois
por um buraco cavado na mesa. Então percebi tudo--_o corpo de Tuala
estava sendo convertido n'uma stalactite_!
E as outras figuras sentadas em torno da mesa eram igualmente reis dos
Kakuanas, já transformados em _stalactites_! Havia trinta e sete--sendo
o ultimo o pae de Ignosi. É esta, desde tempos immemoraveis, a maneira
por que os Kakuanas conservam os seus reis mortos. Petrificam-nos,
expondo-os, durante um longo periodo de annos, a uma queda de agua
siliciosa que, lentamente e gotta a gotta, os transforma em estatuas
geladas. Estavamos assim diante do mais maravilhoso e exotico Pantheon
Real que existe decerto na terra. E nada póde igualar a terrifica
impressão que causava aquella série de reis, pertencendo a muitas
dynastias, amortalhados n'uma camada de gelo que mal lhes deixava já
distinguir as feições, alli sentados, á volta da immensa mesa, em
espectral e pavoroso concilio, presididos pela Morte!
E a Morte, o maravilhoso esqueleto, quem o esculpira? Não decerto os
Kakuanas. A sua composição, o seu trabalho revelavam uma arte perfeita.
Era obra dos artistas phenicios? Fôra collocada alli em tempo de
Salomão, para guardar, pelo terror da sua lança, a entrada dos
Thesouros? Não sei. Nem sei mesmo contar, com verdade, as estranhas
sensações por que passei n'aquella camara sinistra.


CAPITULO XIV
O THESOURO DE SALOMÃO

No emtanto Gagula (que era por vezes extremamente leve e agil) trepára
para cima da mesa e acercára-se do cadaver de Tuala, a quem pareceu
fallar mysteriosamente; depois seguiu por entre as filas dos reis,
dirigindo, ora a um, ora a outro, como a velhos amigos, palavras lentas
e graves que não comprehendiamos. Por fim, tendo chegado em frente da
_Morte_, cahiu de bruços, com os braços estendidos, e ficou como
mergulhada em oração.
Era um espectaculo tão arripiador, n'aquella penumbra de sepulchro, a
hedionda creatura, mais velha que todas as creaturas, fazendo supplicas
ao enorme esqueleto--que eu, já enervado, lhe gritei que viesse, nos
levasse ao logar dos thesouros.
Immediatamente, a horrivel bruxa saltou da mesa, como um gato, e
passando por traz das costas da _Morte_, ergueu a lampada, mostrou a
parede de rocha:
--Entrai, homens brancos, entrai, se não tendes medo!
Olhamos, procurando a entrada. Só vimos a rocha solida e negra.
--Gagula, disse eu com os dentes cerrados, não zombes de nós que te
mato!
--Mas a porta é aqui, homens brancos, a porta é aqui! gania ella, com as
costas apoiadas á muralha, onde roçava de leve uma das suas mãos
descarnadas.
E então, á luz bruxuleante da lampada, vimos que um bocado da muralha,
do feitio e tamanho d'uma porta, se ia erguendo lentamente do sólo, e
desapparecendo em cima na rocha, onde devia existir uma cavidade para a
receber. Não pesava menos aquella massa de pedra de vinte a trinta
toneladas---e era certamente movida por algum machinismo, fundado n'um
equilibrio de peso, que uma móla, collocada n'um logar secreto da
muralha, punha em movimento. Nem nos lembrou, n'esse momento, arrancar a
Gagula o segredo da móla, que erguia a pedra! Pasmados, viamos a immensa
massa subir, devagar, muito devagar, até que desappareceu, deixando
diante de nós um grande buraco negro.
Estava emfim aberto, para nós n'elle penetrarmos, o caminho que levava
aos thesouros de Salomão. A emoção foi tão intensa, que eu, por mim,
comecei a tremer. Era pois verdade o que dizia, no seu pedaço de papel,
o velho D. José da Silveira? Estavam pois ao nosso alcance, destinadas a
nós, as maiores riquezas que jámais um rei accumulou na terra?
Poderiamos nós vêr, tocar, agarrar e levar em sacos, o thesouro que fôra
de Salomão, maravilha dos Livros santos? Assim parecia--e para isso
bastava dar um passo.
Dei esse passo--e com explicavel sofreguidão. Mas Gagula defendia ainda
com os braços o buraco negro:
--Escutai, homens das estrellas! Escutai o que é necessario saber! As
pedras que brilham, que vós ides vêr, foram tiradas da cova circular não
sei por quem, e guardadas aqui não sei por quem. A gente que, de geração
em geração, tem vivido n'esta terra, sabia da existencia do thesouro,
mas ninguem conhecia o segredo para abrir a porta de pedra! Por fim
aconteceu vir aqui um homem branco, talvez tambem das estrellas, que foi
bem recebido e bem agasalhado pelo rei d'então, que era o quinto, além,
sentado á mesa de pedra. Com elle vinha uma rapariga kakuana; ambos
percorreram estas cavernas; e succedeu que por acaso essa mulher, que
talvez fosse eu ou que talvez fosse outra como eu, descobriu o segredo
da porta. O homem e a mulher entraram, e encheram de pedras um saco
pequeno de couro onde ella levava de comer. Ao sahirem, o homem agarrou
na mão outra pedra, maior que todas...
E aqui a bruxa parou com os olhos coruscantes cravados em nós.
--Continúa! exclamei eu, que escutára sem respirar. O homem era D. José
da Silveira. Que se passou mais?...
A velha feiticeira recuou espantada.
--Como lhe sabeis o nome? Ah! sabes-lhe o nome!... Pois bem, ninguem
póde dizer o que succedeu. Mas o homem teve medo de repente, atirou para
o chão o saco cheio de pedras, e fugiu, levando só agarrada a pedra
maior que tinha na mão. É a que Tuala trazia no diadema. É a que tu
déste a Ignosi!
--E ninguem mais entrou aqui?
--Ninguem. Mas os reis ficaram sabendo o segredo da porta... Nenhum
porém entrou, porque dizem prophecias já muito antigas que aquelle que
aqui entrar morrerá antes d'uma lua nova. Esta é a verdade, homens das
estrellas. Entrai agora! Se eu não menti a respeito do homem que se
chamava Silveira, vós encontrareis no chão, á entrada da porta, cahido,
o saco de couro cheio de pedras... E se as prophecias mentem ou não
sobre a morte que espera a quem aqui penetrar, vós mais tarde o
sabereis...
E sem mais, a hedionda creatura mergulhou no corredor tenebroso,
erguendo ao alto a pallida lampada. Nós, no emtanto, olhavamos uns para
os outros com hesitação, quasi com medo--bem natural de resto em nervos
abalados por tantas emoções estranhas. Foi John o mais corajoso:
--Acabou-se! Cá vou! Era ridiculo ficarmos apavorados com as tonterias
d'uma velha macaca! Adiante!
E avançou seguido por Fulata e por nós dois, em silencio. Mas dados
alguns passos ouvimos uma medonha praga. Era John que tropeçára, quasi
cahiria por sobre um bloco de cantaria atravessado no corredor. Gagula
erguera mais a lampada:
--Não receeis!... São pedras que a gente d'outr'ora tinha ahi accumulado
para tapar o corredor para sempre... Mas fugiram, ao que parece, não
tiveram tempo!
E com effeito havia alli como umas obras interrompidas--pedras serradas
e esquadradas, um monte de cimento, e uma picareta e uma trolha,
semelhantes ás que ainda hoje usam os pedreiros. Contemplei com
reverencia estas antiquissimas ferramentas. No emtanto Fulata, que desde
a nossa entrada na caverna não cessára de tremer de medo, sentou-se
sobre uma pedra, e declarou que desmaiava, não podia mais caminhar...
Alli a deixámos, com o cesto de provisões ao lado, até que ella ganhasse
alento. E seguimos.
Uns quinze passos adiante, demos de repente com uma porta de pau,
curiosamente pintada a côres, e toda aberta para traz. E no limiar da
porta, lá estava, cahido no chão--_um pequeno saco de couro que parecia
cheio de seixos_!
--Então, brancos, que vos disse eu? ganiu Gagula em triumpho, brandindo
a lampada. Olhai bem! Ahi tendes o saco que o homem deixou cahir! Ahi
está ainda, desde gerações! Que vos disse eu?
John ergueu o saco. Era pesado e tinia.
--Santo Deus! Está cheio de brilhantes! balbuciou elle quasi com medo.
E com effeito, meus amigos! A idéa d'um saco de couro repleto de
diamantes--é de causar medo!
--Para diante, para diante! exclamou o barão, com subita impaciencia. Dá
cá tu a lampada, bruxa!
Arrancou a luz das mãos de Gagula. E de tropel com elle, sem sequer
pensar mais no saco que John atirára outra vez para o chão, transpozemos
a porta. Estavamos dentro do thesouro de Salomão.
Durante um momento olhámos vagamente em redor, n'um silencio apavorado.
Á luz debil e mortiça da lampada só percebemos, ao principio, que o
quarto ou camara era excavado na rocha viva. Depois a um dos lados vimos
distinctamente alvejar, sobrepostos em camadas até á abobada, uma porção
immensa de dentes de elephante, de inigualavel riqueza. Haveria talvez
uns quinhentos ou seiscentos dentes. Só aquelle marfim nos poderia
tornar a todos ricos para sempre. Era d'esse espantoso deposito que
Salomão fizera talvez o «grande throno de marfim», de que fallam os
livros santos! Toquei um dente de leve, depois outro, com veneração,
como reliquias sagradas! E o suor cahia-me em bagas.
--Alli estão os diamantes, gritou John. Trazei a luz!
Corremos para o recanto que elle indicava. E a lampada que o barão
baixára mostrou umas dez ou doze caixas de madeira, estreitas e muito
compridas, pintadas de escarlate. A tampa d'uma, tão antiga que mesmo
n'aquelle ar sêcco de caverna tinha apodrecido, apresentava vestigios
d'arrombamento. Pelo menos no meio havia um buraco. Enterrei a mão
através, e tirei-a cheia, não de diamantes, mas de moedas de ouro, como
nós nunca viramos, com letras hebraicas (ou que julgamos hebraicas) e
palmeiras e torres em relevo no cunho.
--Justos céos! murmurei suffocado. Aqui devem estar milhões! Isto nem se
acredita!... Naturalmente era o dinheiro para pagar as ferias aos
mineiros... Estaremos nós a sonhar?
--Mas os diamantes, exclamava John, percorrendo sofregamente o quarto.
Onde estão por fim os diamantes? Só se o portuguez os metteu todos no
saco!
Gagula decerto comprehendeu os nossos olhares, que buscavam avidamente:
--Além, além, onde é mais escuro! Lá estão os tres cofres de pedra, dois
sellados, um aberto!
A sua aguda voz tomára um som cavo e sinistro. Mas quê! Onde ia agora,
diante de tão inverosimeis riquezas, o medo das prophecias mortaes? Era
além, no recanto escuro? Para lá corremos, sondando com a lampada.
--Aqui, rapazes, gritou John, na maior excitação. Aqui. Oh meu Deus! São
tres arcas de pedra!
E eram! Eram tres arcas de pedra que nos davam pela cintura, occupando
os tres lados d'uma especie de alcova tenebrosa. Duas estavam fechadas
com immensas tampas de pedra. A tampa da terceira estava encostada á
muralha. Baixamos a lampada para dentro. Não pudémos distinguir nada ao
principio, deslumbrados por uma vaga refracção prateada que faiscava e
tremia. Quando os olhos se habituaram áquelle brilho estranho, vimos que
a arca immensa estava cheia até ao meio de diamantes brutos! Mergulhei
as mãos n'elles. Com effeito! Eram diamantes. Uma arca cheia de
diamantes! Não havia duvida! Bem lhes sentia eu entre os dedos aquelle
macio especial que em Kimberley, nas minas, chamam _sabonaceo_! Era uma
arca cheia de diamantes!
Ficamos, mudos, olhando uns para os outros. Á frouxa luz da lampada eu
via as faces dos meus amigos perfeitamente lividas. E não havia em nós
nenhuma alegria. Era um torpôr, como se a alma nos ficasse bruscamente
esmagada, sob a fabulosa infinidade d'aquella riqueza.
Eu murmurei com um suspiro de creança:
--Somos os homens mais ricos d'este mundo!
John passava os dedos pelo queixo, n'uma distracção quasi melancolica:
--Eu sei lá!... Os diamantes agora perdem de valor; ficam como vidro!
--E transportal-os? e transportal-os? dizia o barão, abanando a cabeça.
De repente sentimos por traz uma risada que nos estarreceu. Era Gagula.
Gagula que ia, vinha, ás voltas, na sala escura, como um morcego, de
braço estendido para nós:
--Hi! Hi! Hi! Ahi está satisfeito o desejo vil dos vossos corações,
homens das estrellas! Hi! Hi! Hi! Quantas pedras brancas! Milhares
d'ellas! E todas vossas! Agarrai n'ellas! Rolai por cima d'ellas! Hi!
Hi! Hi! _Comei_ as pedras! Hi! Hi! Hi! _Bebei_ as pedras!
Havia alguma coisa de tão grotesco n'aquella idéa de beber diamantes e
comer diamantes, que larguei a rir estridentemente, desbragadamente. E
por contagio, os meus companheiros desataram tambem a rir, a rir, ás
gargalhadas. E alli ficámos todos, de mãos nas ilhargas, perdidos a rir,
a rir, a rir! Riamos de quê? Nem sei. Riamos dos diamantes--d'aquelles
diamantes que, milhares de annos antes, os mineiros de Salomão tinham
escavado para _nós_, que os agentes de Salomão tinham armazenado para
_nós_... Pertenciam a Salomão... Mas onde ia Salomão? Eram _nossos_
agora, os seus diamantes! Não tinham sido para Salomão, nem para David,
seu pae, nem para nenhum rei de Judá! Não tinham sido para o atrevido e
velho fidalgo portuguez, nem para nenhum dos portuguezes que vinham
singrando de leste em caravelas armadas! Tinham sido para _nós_! Só para
_nós_! Para nós aquelles milhões e milhões de libras, que, n'este
seculo, em que o dinheiro tudo domina, nos tornavam tão poderosos como
outr'ora Salomão. De facto eramos _Salomões_!
De repente o accesso de riso findou. E ficamos a olhar uns para os
outros, estupidamente.
--Abri as outras arcas! gania no emtanto Gagula. Estão tambem cheias!
Todas as pedras são vossas! Fartai-vos, fartai-vos!
Em silencio, com uma sofreguidão brutal, arremessamo-nos sobre as outras
arcas, quebrando os sellos, empuxando as tampas, n'um desesperado
esforço! Hurrah! Cheias tambem! Cheias até cima!... Não, a terceira
estava quasi vasia. Mas todas as pedras que continha eram escolhidas,
d'um peso, d'um tamanho inacreditaveis. Havia-as como ovos pequenos. As
maiores todavia, postas contra a luz, apresentavam um vago tom amarello.
Eram «diamantes de côr», como elles dizem em Kimberley, nas minas.
Tinha eu um d'estes na mão, enorme, quando de repente ouvimos gritos
afflictos do lado do corredor. Era a voz de Fulata:
--_Acudam_! _Acudam_! _Que a porta de pedra está a cahir_!
Uma outra voz, desesperada, a de Gagula, rugia sinistramente:
--Larga-me, rapariga, larga-me!
--_Acudam_! _Acudam_! _Ai Gagula que me matou_!
Como contar o brusco, pavoroso lance? Corremos. Á luz frouxa da lampada
vimos a porta de pedra descendo, e junto d'ella Gagula e Fulata
enlaçadas n'uma lucta furiosa. De repente Fulata cae, coberta de sangue.
Gagula atira-se ao chão, para fugir como uma cobra através da fenda que
havia ainda entre o chão e a porta. Mette a cabeça e os hombros!...
Justos céos! Era tarde. A pedra immensa apanha-a, e a creatura uiva de
agonia! A pedra desce, desce, com as suas trinta toneladas sobre o corpo
já preso. Vem d'elle gritos e gritos, como eu jámais ouvira--até que ha
um som horrivel de coisa _esborrachada_, e a porta immensa fica immovel,
fechada, justamente quando nós, correndo sempre, esbarramos de roldão
contra ella!
Isto durára quatro segundos--quatro seculos. Voltamos então para Fulata.
A pobre rapariga tinha uma grande facada e estava a morrer.
--Ah Boguan! (era assim que os Kakuanas chamavam a John). Ah Boguan!
exclamou, suffocada, a bella creatura. Gagula sahiu fóra. Eu não a vi,
estava meia desmaiada. Então a porta começou a descer... Ella ainda
entrou, foi olhar para vós... Depois tornava a sahir, quando eu a
agarrei, e ella me deu uma facada, e agora morro!
--Pobre rapariga! Minha pobre rapariga! gritava John.
E como não podia fazer outra coisa, começou a dar-lhe beijos, longos
beijos.
Ella sorria, arfando, com as palpebras cerradas. Depois:
--Macumazan, estás ahi?... Ja mal vejo... Estás ahi?...
--Estou, Fulata. Que queres?
--Falla por mim, Macumazan. Dize a Boguan que não me comprehende bem.
Dize-lhe que o amei sempre, desde o primeiro dia, que o amo... Mas que
morro contente, porque elle não se podia prender a uma rapariga como
eu... O sol não se casa com a noite.
Teve um suspiro. A sua mão errante procurava em redor.
--Macumazan, estás ahi? Dize-lhe que me aperte mais contra o peito, para
eu sentir os seus braços. Assim, assim... Dize-lhe que um dia hei de
tornar a vêl-o nas estrellas... Que hei de ir de estrella em estrella, á
procura d'elle. Macumazan, dize-lhe ainda que o amo, dize-lhe ainda...
Os labios sorriam, sem fallar. Estava morta.
As lagrimas cahiam, quatro a quatro, pela face do meu pobre John.
--Morta! murmurava elle, agarrando ainda as mãos de Fulata. Já me não
ouve! E não a tornar a vêr, não a tornar a vêr!
O barão disse então, devagar, e n'uma estranha voz:
--Não tardará, amigo, que a tornes a vêr.
--Como assim?
--_Oh homens, pois não percebestes ainda que estamos enterrados vivos_?
Foi então, só então, que pela primeira vez comprehendi o indizivel
horror do que nos succedia! Sim, com effeito! A enorme massa de pedra
estava fechada. O unico sêr que lhe conhecia o segredo jazia
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