As Minas de Salomão - 06

Total number of words is 4576
Total number of unique words is 1657
33.8 of words are in the 2000 most common words
48.2 of words are in the 5000 most common words
55.1 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
cotovêlo, o homem irá fazer a barba?» Ia. Tomando outra vez o pedaço de
gordura de antilope com que ensebára as botas, lavou-a escrupulosamente
no regato, esfregou com ella desesperadamente a face e o queixo, e
principiou a rapar o pêllo aspero de dez dias. Era porém uma operação
difficil, porque cada movimento da navalha vinha acompanhado d'um
angustioso gemido. Por fim conseguiu escanhoar a face esquerda e metade
do queixo. Grande suspiro de allivio! E ia atacar a outra face--quando,
de repente, vi uma coisa passar e lampejar por cima da cabeça.
John deu um pulo, com uma praga. Ergui-me tambem de salto--e na mesma
margem do regato, a distancia d'uns trinta passos, dei com os olhos n'um
bando de homens. Era uma gente de grande estatura, immensamente robusta,
e côr de cobre.
Alguns d'elles traziam aos hombros pelles de leopardo, e na cabeça umas
corôas de altas pennas, negras, direitas, que ondulavam na brisa. Em
frente do bando, um rapaz d'uns dezesete annos conservava ainda o braço
erguido e o corpo inclinado, na attitude graciosa d'uma estatua que eu
vira no Cabo, um Ephebo grego que lança um dardo.
Evidentemente a _coisa_ que passára e brilhára era um dardo--e fôra o
moço airoso que o arremessára.
Quasi immediatamente, um velho, de ar erecto e marcial, sahiu d'entre o
grupo, e, agarrando o braço do rapaz, fallou-lhe baixo como se o
avisasse. Em seguida todos avançaram para nós.
O barão, John e Umbopa tinham logo agarrado e apontado as carabinas. Os
homens todavia continuavam avançando, devagar, em grupo. Percebi logo
que nunca tinham visto espingardas, pelo modo como affrontavam assim
tranquillamente os tres canos erguidos.
--Baixem as armas! gritei aos outros.
Tinha comprehendido tambem que a nossa segurança entre essa gente
selvagem dependia toda de conciliação e de ardil. Apenas pois os
companheiros baixaram as armas, caminhei lentamente para o velho.
--Bem vindo! exclamei em Zulú, ao acaso, sem saber que idioma
entenderiam aquelles homens.
Com surpreza minha, o velho comprehendeu. E respondeu logo, não em Zulú,
mas n'um outro dialecto, tão parecido com o Zulú, que Umbopa e eu o
percebemos perfeitamente:
--Bem vindo!
Como viemos a saber depois, a lingua d'este povo era uma fórma antiquada
da lingua Zulú--e estando para o Zulú do sul como o inglez do tempo dos
Tudores está para o inglez polido do seculo XIX. No emtanto o velho
avançára outro passo, erguendo a mão.
--D'onde vindes? continuou elle. Quem sois? Porque tendes tres de vós as
faces brancas, e o outro a pelle como nós e como os filhos de nossas
mães?
E apontava para Umbopa--que na realidade, pela figura, pela côr, pelas
feições, era muito semelhante áquelles homens formidaveis. Eu então
repeti a saudação ao velho. E, muito espaçadamente, para que elle
apanhasse bem o meu Zulú:
--Somos gente d'outros sitios, vimos em boa paz, e este homem é nosso
servo.
O velho abanou lentamente a cabeça, ornada de immensas plumas negras que
ondulavam.
--Mentes! A gente d'outros sitios não póde atravessar as montanhas, nem
o deserto sem agua onde toda a vida acaba. Mas não importa que mintas...
Se sois estranhos e vindes d'outros sitios, tendes de morrer, porque não
é permittido a ninguem entrar na terra dos Kakuanas. É a vontade do
nosso rei. Preparai-vos pois para morrer, oh gentes!
Fiquei um pouco perturbado--tanto mais que vi alguns dos selvagens
levarem logo a mão ao cinto d'onde lhes pendiam umas armas em fórma de
pesadas navalhas.
--Que diz esse malandro? perguntou o capitão, percebendo o meu embaraço.
--Diz simplesmente que nos vai retalhar á faca.
--Santo Deus! murmurou o nosso amigo.
E, como era seu costume, em frente d'um perigo ou d'uma crise, passou
nervosamente a mão pelo queixo e pelos beiços. Alguma coisa decerto lhe
succedeu então á dentadura postiça (que momentos antes tirára para lavar
e que tornára a pôr), porque n'um relance lhe vi os dentes todos de
fóra, e logo sumidos para dentro! Não percebi bem o caso. Mas qual é o
meu espanto quando os Kakuanas soltam um grito de terror, e recuam para
traz, em tropel!
--Que foi? exclamei.
--Foram os dentes! acudiu o barão, excitadamente. Os selvagens viram-lhe
os dentes a mover-se... Tira-os de todo, John, tira-os de todo. Talvez
os assustes.
O capitão promptamente comprehendeu, passou a mão devagar por sobre a
bôca, e escamotou a dentadura. Os Kakuanas no emtanto, n'uma ancia de
curiosidade, avançavam de novo, com os olhos arregalados para John. E
foi o velho (evidentemente um chefe) que ergueu a voz e a mão, com
solemnidade:
--Quem é este homem, oh gentes, que tem o corpo coberto, as pernas núas,
cabello só em metade da cara, e um grande olho que reluz? Quem é elle
que faz mexer assim á vontade os dentes para dentro e para fóra da bôca?
--Abra a bôca, John! murmurei eu baixo para o capitão.
John arreganhou os beiços, e exhibiu duas gengivas muito vermelhas,
desdentadas como as d'um recemnascido. Entre os selvagens passou um
susurro d'espanto.
--Onde estão os dentes? Ainda agora tinha dentes! exclamavam elles,
entre si, com gestos apavorados.
Então John deu um movimento vagaroso á cabeça, passou a mão pela bôca
com soberana indifferença, e desfranzindo de novo os beiços--mostrou
duas esplendidas filas de dentes, muito fortes, muito sãos, que
rebrilhavam.
No mesmo instante o rapaz que despedira o dardo arremessou-se para o
chão, com gritos espavoridos. Todo o bando tapava as faces com as mãos,
n'um terror. E o velho, que parecia o mais resoluto, tremia tanto, e tão
encolhido, que lhe batiam os joelhos um contra o outro.
Só quem conhece selvagens e a mobilidade d'aquellas imaginações infantis
póde comprehender como subitamente, em cada um d'elles, ao desejo de nos
matar ia já succedendo o impulso de nos adorar... Quando o velho tornou
a levantar a voz, foi muito humildemente e n'uma postura de supplica:
--Vós sois Espiritos! Bem vejo que sois Espiritos, oh gentes! Nunca
houve homem nascido de mulher que tivesse só cabello n'um lado da cara,
e um olho redondo e transparente, e dentes que se derretem e de repente
crescem outra vez... Vós sois Espiritos. Perdoai-nos, senhores,
perdoai-nos!
Aproveitei logo esta esplendida occasião. E estendendo o braço, com
soberba magnanimidade:
--Estaes perdoados.
Era porém necessario, para nossa salvação, que deslumbrassemos e
inteiramente nos apoderassemos d'aquellas almas ferozes e simples. E
para isso, n'Africa (como n'outras partes) o mais prompto instrumento é
o sobrenatural. Não hesitei portanto (com vergonha o confesso) em me
attribuir, a mim e aos meus companheiros, uma origem divina! De resto,
com o negro da Africa Central, que _pela primeira vez_ vê o branco, e
assiste a alguns dos _milagres_ que o branco póde realisar com os
pequenos recursos da sua pequena civilisação, este procedimento é o mais
seguro e o mais humano. O selvagem fica desde logo (pelo menos por algum
tempo) contido dentro do respeito, absolutamente razoavel e tratavel; e
assim, poupando ao negro as traições, os brancos poupam a si proprios as
represalias.
Ergui pois a mão, e disse, com vagar e magestade:
--Já que vos perdoei, porque sois ignorantes, condescendo tambem em vos
dizer quem somos. Somos Espiritos! Vivemos além, por cima das nuvens,
n'uma d'aquellas estrellas que vós vêdes de noite brilhar. E viemos
visitar esta terra, mas em paz e para alegria de todos!
Entre os indigenas correram grandes _ah_! _ah_! lentos e maravilhados.
Eu prosegui, mais grave:
--Nós conhecemos todos os reis e todas as gentes. E eu, que sou a voz
dos outros, conheço todas as linguas.
--A nossa bem mal! arriscou com timidez o velho guerreiro.
Dardejei-lhe um olhar chammejante que o estarreceu. E gritei logo, para
fazer uma diversão brusca áquella observação tão justa e perigosa:
--Viemos em paz, é certo! Mas fomos recebidos em guerra. E talvez
devessemos castigar já o ultraje feito por esse moço, que sem provocação
atirou uma faca ao Espirito divino cujos dentes de repente nascem e
cahem.
--Oh não! meu senhor! gritou n'uma anciosa supplica o velho guerreiro.
Poupai-o! Poupai-o, que é o filho do nosso rei! Eu sou seu tio, que o
ajudei a crear. Só eu respondo por cada gota do sangue que lhe gira nas
veias!... Oh meu senhor, a clemencia vai bem aos Espiritos!
Affectei não comprehender a angustiosa prece,--e tornei, com superior
indifferença:
--As nossas maneiras de castigar são simples e terriveis. N'um instante
ides vêr... Tu, escravo que nos segues (e aqui encarei para Umbopa),
dá-me a arma de feitiços que troveja.
Umbopa, que assistira absolutamente impassivel e serio a todas as minhas
affirmações de divindade, e que (Zulú intelligente, afeito aos brancos e
ás _suas manhas_) lhe percebera o alcance--estendeu-me uma carabina
Winchester, com humilissima reverencia.
Justamente n'esse instante avistei, para além do riacho, a umas setenta
jardas de distancia, um pequeno antilope, immovel sobre um montão de
rochas.
--Vêdes aquelle gamo? exclamei eu para os selvagens. Julgaes possivel
que um simples homem, nascido do ventre da mulher, o mate d'aqui d'onde
estou, só com fazer estalar um pequeno trovão?
--Não é possivel! murmurou recuando o velho guerreiro. Não é possivel
para homem nascido do ventre da mulher!
--Ides vêr.
Apontei. Bum! E subitamente o gamo, dando um pulo furioso no ar, tombou
morto, immovel, estatelado nas pedras.
Um fundo murmurio de assombro, de terror, passou entre os Kakuanas... Eu
accrescentei simplesmente:
--Ahi está. E se tendes fome, podeis ir buscar aquelle gamo!
O velho fez um signal. Dois homens correndo trouxeram a caça. E
amontoados em volta d'ella, todos em silencio (n'um silencio que era
religioso pelo pavor que continha), ficaram contemplando boqui-abertos o
buraco da bala que lhe acertára entre os hombros.
--Se não estaes satisfeitos, volvi eu ainda, se em vez d'um gamo me
quereis vêr matar um homem, que um de vós se colloque além sobre as
pedras ou mais longe, e o raio irá ter com elle.
Houve um movimento geral dos Kakuanas, recuando e protestando.
--Não! Não! gritaram alguns. Acreditámos, acreditámos... Não vale a pena
gastar feitiços com nós outros, que acreditámos e que somos amigos!
O velho guerreiro interveio, com alacridade:
--Assim é! Nós somos amigos. E para que nos conheçaes bem, oh almas das
estrellas, que trovejaes e mataes tão de longe, sabei que eu sou
Infandós, filho de Kafa, antigo rei dos Kakuanas. Este moço é Scragga,
filho de Tuala, nosso rei! Tuala, o homem de mil mulheres, senhor dos
Kakuanas, terror dos seus inimigos, sentinella da Grande-Estrada,
sabedor das artes negras, chefe de cem mil guerreiros, Tuala o supremo,
Tuala o d'um-só-olho...
--Basta, interrompi sobranceiramente. Leva-nos então ao rei Tuala.
Porque, nas nossas jornadas pelo mundo, nós só fallamos a reis!
--Certamente, meu senhor, certamente... Mas nós andavamos caçando
n'estes sitios, e estamos a tres dias de jornada da aringa do rei. São
tres dias que tendes de caminhar.
--Caminharemos. Escuta tu, porém, Infandós, e tu, Scragga, filho de
Tuala! Se por acaso tentardes no caminho armar-nos uma traição, ou se
essa idéa vos atravessar sequer a cabeça, nós, que tudo adivinhámos,
tomaremos de vós tal vingança que fará ainda estremecer os filhos de
vossos filhos. Aquelle cujo olho reluz, e cujos dentes vão e vêm,
incendiará todas as vossas searas com a chamma do seu olho, e
despedaçará todas as vossas carnes com as pontas das suas presas! E nós
faremos resoar os canos que trovejam d'uma maneira que será pavorosa!
Toda a agua seccará. Todo o gado morrerá. E os espiritos maus virão, á
nossa voz, dispersar os vossos ossos... E agora a caminho.
Esta tremenda falla era quasi superflua--porque os nossos novos amigos
acreditavam superabundantemente nos nossos poderes sobrenaturaes. Ainda
assim o velho Infandós saudou-nos com uma reverencia mais funda e mais
servil, repetindo tres vezes estas palavras: _Krum_! _Krum_! _Krum_!
Como depois soubemos, é esta a maneira kakuana de saudar o rei.
Corresponde ao _Bayète_! dos Zulús.
Depois o velho atirou um gesto aos seus, que immediatamente carregaram
ás costas as nossas mochilas, cantinas, mantas e outras
miudezas--excepto as espingardas, de que elles se afastavam em grandes
voltas e com olhares de terror.
Um d'elles lançou mão ao fato do capitão John, ainda cuidadosamente
dobrado á beira d'agua. O excellente John deu logo um pulo para as
calças. E rompeu então uma immensa altercação.
--Não, meu senhor, gritava Infandós, não consentirei que o meu senhor
carregue com essas coisas!
--Mas é que eu quero pôr as calças! berrava John.
--Todos somos aqui seus escravos para servir e carregar...
--Mas as calças...
--Meu senhor!...
--Larga as calças, malandro!
Tive de intervir, suffocado de riso.
--Escute, John. O caso é mais serio do que parece. Um dos motivos do
terror que estamos inspirando é a sua luneta, a sua cara meia barbada e
meia rapada, os seus dentes postiços, e essas pernas brancas á mostra...
Tudo isso espanta as imaginações de selvagens. E se o amigo quer que não
nos percam o medo, é necessario continuar a apparecer-lhes n'essa
figura. Se o amigo lhes surgir ámanhã d'outro modo, tomam-nos por
impostores, e a nossa vida não vale mais um pataco. Assim o viram n'esta
terra, assim n'ella tem de ficar.
John, inquieto, hesitante, voltou os olhos para o barão:
--O amigo Quartelmar tem razão, affirmou o barão. E dá graças a Deus que
já estavas de botas, e que a temperatura é tão dôce.
John teve um suspiro de furiosa resignação. E, durante a nossa estada na
terra dos Kakuanas, foi assim que John se mostrou sempre e praticou
notaveis feitos--de botas, de pernas núas, com uma metade da cara
rapada, outra coberta de barba, e a fralda voando ao vento!


CAPITULO VI
PENETRAMOS NO REINO DOS KAKUANAS

Toda essa tarde trilhamos a larga, magnifica estrada que seguia
infindavelmente para o lado de noroeste. Alguns dos negros marchavam
adiante (uns cem passos) como vedetas. Outros seguiam levando as nossas
bagagens. Nós iamos no meio, entre Infandós e Scragga.
Pouco a pouco, Infandós e eu descahimos n'uma palestra familiar e
amigavel. O velho era esperto e loquaz.
--Quem fez esta estrada, Infandós?
--Foi feita ha muito tempo, meu senhor. Ninguem sabe quando; nem mesmo
uma mulher que tudo sabe, Gagula, que tem vivido através de gerações...
Já ninguem póde fazer estradas assim... Mas o rei não consente que se
desmanche, nem que lhe cresça a herva por cima.
--E ha quanto tempo vivem aqui os Kakuanas, Infandós?
--A nossa gente, meu senhor, veio para aqui de grandes terras que estão
para além (indicava o Norte) ha mais de dez mil milhares de luas. Para
baixo não puderam seguir, segundo diziam nossos avós, que o disseram a
nossos paes, e segundo conta Gagula, a mulher que tudo sabe. Não puderam
por causa das altas montanhas que estão em redor, e do deserto onde tudo
morre. De modo que, como a terra era fertil, aqui assentaram; e tantos e
tão fortes se tornaram que agora, quando Tuala, nosso rei, chama os seus
regimentos, o chão treme todo com o seu peso, e até onde a vista alcança
só se vêem plumas de guerreiros e lanças.
--Mas se a terra está murada de montanhas, e se não tendes visinhos,
para que são tantos soldados?
--A terra está aberta para além (e indicava o Norte). E ás vezes descem
de lá multidões, que não sabemos quem são, e que nós destruimos. Já
correu a terça parte d'uma vida de homem desde a ultima guerra. Depois
houve outra guerra, mas foi entre nós, irmão contra irmão.
--Como foi isso, Infandós?
Infandós começou então uma d'essas historias de pretendentes e de
guerras dynasticas, que abundam em todos os continentes. O pae d'elle,
Kapa, que era o rei dos Kakuanas, tivera por primeiros filhos, da
primeira mulher (elle, Infandós, era filho d'uma concubina) dois gemeos.
Ora a lei dos Kakuanas manda que de dois gemeos reaes o mais fraco seja
sempre destruido. Mas a mãe, por piedade e amor, escondeu o gemeo mais
fraco, que se chamava Tuala, e, ajudada por Gagula, educou-o em segredo
n'uma caverna. Quando Kapa morreu, o gemeo mais velho, que se chamava
Imotú, foi portanto rei; e logo depois teve da sua mulher favorita um
filho por nome Ignosi. Ora por esse tempo passára a guerra com os povos
do Norte: os campos não tinham sido semeados; veio uma fome; e havia
grande miseria e dôr entre o povo, que, como uma fera esfaimada,
rosnava, procurando com os olhos sangrentos alguma coisa em redor para
despedaçar. Foi então que Gagula, a mulher que tudo sabe e que não
morre, rompeu a dizer que os males todos provinham de que Imotú reinava
sem ser rei. Imotú a esse tempo estava doente na sua cubata, com uma
ferida. Começou a correr um clamor entre o povo. Por fim, Gagula um dia
reune os soldados, vai buscar Tuala, o gemeo mais novo que ella e a mãe
tinham escondido nas cavernas, apresenta-o ao povo, descobre-lhe a
cinta, e mostra a marca real com que entre os Kakuanas os reis são
marcados ao nascer--uma tatuagem representando uma cobra, que se enrosca
em torno do ventre real, e vem reunir, sobre o umbigo real, a cabeça e o
rabo. E ao mesmo tempo, Gagula gritava: «Eis o vosso verdadeiro rei, que
eu salvei e que escondi, para elle vos vir salvar agora!» O povo, tonto
de fome, ignorando a verdade, espantado com a evidencia da marca real,
largou a bradar: «Este é o rei! Este é o rei!» Alguns sabiam bem que
não--e que n'este só havia impostura. Mas n'esse momento, ouvindo os
alaridos, o rei Imotú sae doente e tropego da sua cubata, com a mulher e
com o filho que tinha tres annos, a saber porque vinham tantos brados e
porque pediam elles «o rei!» Immediatamente Tuala, o irmão, corre para
elle e crava-lhe uma faca no coração! E o povo, que as acções decididas
e bruscas sempre fascinam, gritou logo: «Tuala é rei! Tuala provou que é
rei!» Diante d'isto a pobre mulher de Imotú agarrou o filho, o seu
Ignosi, e fugiu. Ainda appareceu, passados dias, n'uma aringa, pedindo
de comer. Depois viram-na seguir para os lados dos montes e nunca mais
voltou.
--De modo, observei eu interessado por esta pagina de historia negra,
que Tuala não é o verdadeiro rei.
O velho respondeu com prudencia:
--Tuala, o grande, é rei. Mas se Ignosi vivesse ainda, só esse tinha o
legitimo direito de reinar sobre os Kakuanas. A cobra sagrada foi-lhe
marcada em torno da cinta. O rei é elle. Sómente decerto ha muito que
Ignosi morreu...
Casualmente n'esse instante, voltando-me para fallar aos camaradas que
marchavam atraz--esbarrei com Umbopa, que quasi me pisava os
calcanhares, absorto n'aquella historia de Imotú e de Ignosi, com uma
curiosidade, um interesse que lhe punham nos olhos um brilhar desusado,
lhe davam a expressão de quem de repente lembra coisas vagas, remotas,
semi-esquecidas, perturbadoras. N'essa occasião permaneci indifferente.
Mas, depois, através da jornada, muitas vezes pensei n'aquella anciosa,
esgazeada curiosidade do Zulú.
* * * * *
No emtanto já trilharamos algumas fortes milhas d'estrada. As montanhas
de Sabá ficavam para traz envoltas nos seus mysticos véos de nevoa. E o
paiz cada vez se offerecia mais formoso e mais rico.
Ao começo da tarde avistámos emfim uma grande povoação,--que, segundo
Infandós nos declarou, pertencia ao seu commando militar e continha uma
vasta guarnição. O velho guerreiro mandára mensageiros adiante,
correndo, n'um passo de gazella, a annunciar a nossa vinda. E quando nos
aproximámos da aldêa, descobrimos com effeito, sahindo das portas e
marchando ao nosso encontro, densas companhias de soldados.
O barão tocou-me no braço, com um receio que «as coisas se apresentassem
desagradavelmente». Infandós decerto comprehendeu, pelo tom, pelo
franzir de sobrancelhas do barão, o sobresalto que o tomára (e a mim),
porque acudiu anciosamente, com redobrada reverencia:
--Que os meus senhores não suspeitem de mim! Aquelle é um dos regimentos
que eu commando! Mandei-o sahir e desfilar, para prestar as honras aos
que vêm do mundo das estrellas...
Esbocei um gesto e um sorriso de soberana indifferença. Realmente estava
bem inquieto!
A povoação ficava á direita da estrada, separada d'ella por um declive
de terreno areado e bem pisado, onde o regimento se formára em parada.
Havia alli talvez uns tres mil homens. E quando nos acercámos, podémos
vêr com admiração e assombro, de que esplendida, de que formidavel raça
eram estes guerreiros kakuanas! Nenhum media menos de seis pés d'altura;
e todos eram veteranos de quarenta annos, ageis, experientes,
prodigiosamente robustos, endurecidos por exercicios perpetuos. Sobre a
cabeça todos traziam a corôa d'altas e pesadas plumas negras, sempre
tremendo ao vento. Em volta da cinta pendia-lhes um saião feito de rabos
de boi, muito juntos uns aos outros e brancos; e no braço esquerdo
sustentavam escudos redondos de ferro, recobertos de couro pintado de
branco. Por armas tinham uma azagaia semelhante á dos Zulús--e tres
facas (uma no cinto, duas em presilhas no escudo), facas enormes que
elles chamam _tollas_ e que arremessam a distancias de cincoenta jardas
e mais, com uma certeza terrivel.
As companhias conservavam-se mais immoveis que estatuas de bronze. Mas,
á medida que iamos passando em frente d'ellas, cada official (que se
distinguia por uma capa de pelle de leopardo) dava um signal: e os
homens, brandindo a azagaia no ar, soltavam a saudação real, a grande
voz: «krum! krum! krum!»
Assim penetrámos na povoação ao rumor de acclamações. A aldêa devia ter
uma milha de circumferencia; e era defendida por um largo fosso e por
uma alta estacada feita de troncos d'arvores. Na porta central, do lado
da estrada, havia uma ponte levadiça.
Parecia uma aldêa admiravelmente bem ordenada. Ao centro, entre arvores,
corria uma ampla, extensa rua, cortada em angulos rectos por outras mais
estreitas, formando séries de quarteirões, cada um dos quaes alojava uma
companhia. As cubatas, redondas, feitas d'uma grossa verga entrelaçada,
findavam á maneira das dos Zulús por tectos de colmo em fórma de
zimborio agudo: mas, differentes n'isto das dos Zulús, tinham uma porta,
larga e facil, e eram cercadas por uma varanda, cujo chão de cal dura
rebrilhava ao sol. Os dois lados da grande rua apinhavam-se de mulheres,
que tinham corrido de todas as cubatas para nos admirar. Era uma bella
raça de mulheres--altas, airosas, esplendidamente feitas, com o cabello
mais ondeado que encarapinhado, as feições por vezes aquilinas, e os
beiços sempre finos. Mas o que mais nos impressionou foi o seu ar grave
e serio. Nem pasmo selvagem, nem risos, nem injurias, ao vêrem-nos
desfilar, tão estranhos e differentes de todos os homens que até ahi
tinham encontrado. Nem mesmo a singular figura de John lhes arrancou uma
exclamação: apenas os largos olhos negros se lhes arregalavam para as
pernas niveas do pobre amigo, que, roído de vergonha, praguejava baixo.
Quando chegámos ao centro da aldêa, Infandós parou em frente d'uma
espaçosa e rica cubata, cercada de dependencias menores, entre arvoredo.
E com palavras grandiosas, á maneira dos Zulús, offereceu-nos a
hospitalidade:
--Aqui habitareis, meus senhores. E não tereis de apertar o ventre com
fome! Em breve vos traremos mel, leite, uma ou duas vaccas, alguns
carneiros. Não é muito, oh Espiritos! Mas é dado por corações, que se
regosijam de vos vêr.
--Bem, bem, Infandós, murmurei eu. O que precisamos sobretudo é
descançar, fatigados da nossa descida através dos espaços e dos reinos
do ar...
A cubata era muito confortavel, com herva aromatica espalhada no chão,
grandes pelles servindo de leitos, e vistosos cantaros para a agua.
D'ahi a pouco, entre cantos e risos, appareceu á porta um bando de
raparigas trazendo leite, mel em covilhetes, fructas em cestos:--e atraz
dois rapazes seguiam, arrastando um vitello pelos cornos. Um dos
rapazes, tirando a faca do cinto, matou o vitello de um golpe: e logo o
outro, agil e destramente, o esfolou e retalhou.
Ajudado por uma das raparigas (que era extremamente bonita), Umbopa
passou a cozer a carne n'uma panella de barro, sobre uma alegre fogueira
accesa á porta da cubata: e nós mandamos convidar Infandós e Scragga
para partilhar do nosso repasto. Quando entraram, notei que, para comer,
se não encruzavam no chão á maneira dos Zulús--mas se sentavam em
pequenos bancos, que abundavam na cubata encostados ás paredes. O jantar
foi longo e affavel. O velho guerreiro todo elle exhibia doçura e
respeito. Mas o rapaz Scragga parecia olhar para nós, e para cada um dos
nossos gestos, com singular desconfiança. Talvez, ao vêr que nós
comiamos, bebiamos, e tinhamos as necessidades de qualquer kakuana,
começava a suspeitar da nossa origem divina. Não me agradou este
sentimento, tão real e logico. Que nos poderia assegurar as vidas,
perdidos entre aquellas turbas negras, senão o terror supersticioso?
Depois de jantar accendemos os cachimbos--o que encheu os nossos amigos
d'espanto. Na terra dos Kakuanas, como na dos Zulús, a planta do tabaco
cresce em abundancia--mas elles só a sabem usar torrada e sêcca,
pulverisada. Só conhecem o rapé.
No emtanto conversamos a respeito da nossa jornada. Infandós já tudo
organisára para que ella continuasse na madrugada seguinte, mandando
adiante emissarios a prevenir Tuala da nossa chegada ao seu reino. Tuala
estava então na sua grande cidade de Lú, preparando-se para a revista de
tropas, a dança das flores, e «caça aos feiticeiros», que constituem a
maior solemnidade religiosa e militar dos Kakuanas, na primeira semana
de junho. E segundo affirmava Infandós, nós deviamos (a não ser que nos
detivessem os rios transbordados) entrar as portas de Lú ao fim de dois
dias de marcha.
Depois, como começavam a luzir as estrellas e a aldêa ia cahindo em
silencio, os nossos amigos deixaram a cubata. E tres de nós atiraram-se
logo para cima dos leitos de pelles, emquanto outro, com as carabinas
carregadas, velava, no seu turno de sentinella, para prevenir as
traições.
Mas essa primeira noite na terra dos Kakuanas foi muito calma e segura.


CAPITULO VII
O REI TUALA

Não me dilatarei nos incidentes da nossa jornada até Lú--que nem foram
consideraveis nem pittorescos. Durante dois longos dias trilhámos a
estrada de Salomão, por entre ricas terras cultivadas, e alegres
povoações que nos encantavam pelo seu ar florescente e calmo. A cada
instante passavam por nós troços de gente armada, regimentos emplumados
marchando tambem para a cidade, para o grande festival sagrado. No
segundo dia, ao pôr do sol, parámos n'uma collina, que a estrada galgava
por entre dois renques d'arvores em flôr:--e em baixo, n'uma planicie
deliciosamente fertil, avistámos emfim Lú, a capital dos Kakuanas.
Para cidade d'Africa era enorme,--com seis milhas talvez de
circumferencia, toda ella defendida por estacadas, e rodeada de pomares
e de vastas aringas onde se aquartelavam tropas. Pelo centro corria um
largo e claro rio, vadeado por pontes. Para o norte, a duas milhas,
erguia-se uma collina, que offerecia a fórma singular d'uma ferradura:
e, mais longe, a umas sessenta milhas, surgiam bruscamente da planicie,
em triangulo, tres serras isoladas, escarpadas, todas cobertas de neve.
--A estrada (explicou Infandós, vendo que contemplavamos com estranheza
os tres montes) acaba além n'essas serras, que se chamam as _Tres
Feiticeiras_.
--E porque acaba além, Infandós?
--Quem sabe! murmurou o velho encolhendo os hombros. As tres montanhas
estão todas furadas por cavernas. Ha no meio d'ellas uma cova immensa. É
lá que se sepultam agora os nossos reis. E era alli que os homens
antigos, que sabiam tudo, vinham buscar certas coisas...
--Que coisas, Infandós? exclamei eu, cravando n'elle um olhar que o
sondava.
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - As Minas de Salomão - 07
  • Parts
  • As Minas de Salomão - 01
    Total number of words is 4607
    Total number of unique words is 1603
    37.4 of words are in the 2000 most common words
    53.4 of words are in the 5000 most common words
    61.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • As Minas de Salomão - 02
    Total number of words is 4749
    Total number of unique words is 1680
    37.6 of words are in the 2000 most common words
    51.8 of words are in the 5000 most common words
    59.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • As Minas de Salomão - 03
    Total number of words is 4600
    Total number of unique words is 1721
    34.4 of words are in the 2000 most common words
    50.1 of words are in the 5000 most common words
    56.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • As Minas de Salomão - 04
    Total number of words is 4566
    Total number of unique words is 1727
    31.9 of words are in the 2000 most common words
    45.1 of words are in the 5000 most common words
    53.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • As Minas de Salomão - 05
    Total number of words is 4571
    Total number of unique words is 1716
    32.0 of words are in the 2000 most common words
    46.5 of words are in the 5000 most common words
    55.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • As Minas de Salomão - 06
    Total number of words is 4576
    Total number of unique words is 1657
    33.8 of words are in the 2000 most common words
    48.2 of words are in the 5000 most common words
    55.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • As Minas de Salomão - 07
    Total number of words is 4665
    Total number of unique words is 1664
    35.0 of words are in the 2000 most common words
    49.4 of words are in the 5000 most common words
    57.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • As Minas de Salomão - 08
    Total number of words is 4560
    Total number of unique words is 1699
    33.8 of words are in the 2000 most common words
    48.0 of words are in the 5000 most common words
    56.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • As Minas de Salomão - 09
    Total number of words is 4662
    Total number of unique words is 1693
    34.4 of words are in the 2000 most common words
    47.7 of words are in the 5000 most common words
    55.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • As Minas de Salomão - 10
    Total number of words is 4647
    Total number of unique words is 1683
    35.9 of words are in the 2000 most common words
    50.0 of words are in the 5000 most common words
    57.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • As Minas de Salomão - 11
    Total number of words is 4566
    Total number of unique words is 1615
    35.7 of words are in the 2000 most common words
    51.0 of words are in the 5000 most common words
    59.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • As Minas de Salomão - 12
    Total number of words is 4597
    Total number of unique words is 1659
    35.6 of words are in the 2000 most common words
    49.6 of words are in the 5000 most common words
    56.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • As Minas de Salomão - 13
    Total number of words is 1630
    Total number of unique words is 756
    46.2 of words are in the 2000 most common words
    59.2 of words are in the 5000 most common words
    64.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.