As Minas de Salomão - 08

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avisinhavam mensageiros do rei. E tres homens entraram, cada um d'elles
trazendo erguida nas mãos uma cóta de malha que rebrilhava como prata e
uma magnifica acha de batalha.
Um arauto que os precedia exclamou, batendo no chão com o conto da
lança:
--Presentes de Tuala, o rei, aos homens que vêm das estrellas!
--Agradecemos ao rei, volvi eu sêccamente. Ide!
Apenas os homens partiram, examinamos as cótas com grande interesse.
Eram maravilhosas, d'uma malha tão fina, tão cerrada, tão elastica e
macia, que uma armadura toda podia caber no concavo das duas mãos.
Perguntei a Infandós se eram fabricadas no paiz.
--Não, meu senhor, são coisas que existem ha muito, e que herdamos de
paes para filhos. Já muito poucas restam. Só os de sangue real as podem
usar. E o rei que as mandou é que está muito contente ou que está muito
assustado. Em todo o caso não ha ferro que as atravesse, e bom será,
meus senhores, que as useis esta noite na dança.
Quando Infandós sahiu, ficamos conversando n'este estranho
incidente--que transformava a nossa pacifica jornada n'uma aventura
politica. Como notou o barão, fôra este decerto, desde a nossa partida
de Natal, um dos dias mais ricos de emoções e surprezas.
--Extraordinario, disse o capitão. Tem de ser registrado no _Livro de
Bordo_.
Chamava elle _Livro de Bordo_ a um Almanach do anno, com folhas brancas
intercaladas, onde costumava assentar os episodios notaveis da nossa
espantosa empreza.
--Que dia é hoje? perguntou elle, sentando-se, com o almanach sobre o
joelho.
--3 de julho.
O barão e eu voltaramos a examinar as dadivas de Tuala--quando, d'ahi a
instantes, o capitão exclamou com os olhos no almanach:
--É curioso! Ámanhã, 4 de julho, ha um eclipse total, visivel em toda a
Africa! Deve começar ás duas e quarenta minutos... Bom terror vão ter os
pretos!
Escassamente demos attenção áquella noticia: e como o capitão findára de
escrever, preparamo-nos para partir para a grande dança, porque o sol já
descia, e já ia fóra um rumor de regimentos passando. Pelo prudente
conselho de Infandós envergamos as cótas de malha,--que achamos
confortaveis e leves. A do barão, homem de forte estatura, vestia-o como
uma pellica: a do capitão e a minha dançavam-nos sobre as costellas com
pregas pouco marciaes.
A lua surgia, magnificamente clara, quando Infandós appareceu, com todas
as suas plumagens e armas de gala, acompanhado de vinte guerreiros, para
nos escoltar a palacio. Afivelamos os rewolveres á cinta, empunhamos as
achas de guerra, e largamos--consideravelmente commovidos.
No terreiro, onde estiveramos de manhã, encontramos a mesma formidavel
parada de regimentos, perfazendo talvez vinte mil homens--mas formados
de modo que entre cada companhia ficava um carreiro aberto «para as
farejadoras de feiticeiros» (como nos foi explicando Infandós). Não
havia outra luz além da lua, cheia e lustrosa, que punha longas fieiras
de faiscas nos ferros altos das lanças. D'aquella escura massa d'homens,
do luar, do silencio, sahia uma indefinivel impressão de magestade e
tristeza.
--Está aqui todo o exercito, murmurei eu para Infandós.
--Um terço, não mais, meu senhor. Outro terço ficou nas guarnições. E o
outro está fóra, em torno a palacio, para o caso de sedição, quando
começar a matança...
--Escuta, Infandós! Achas que corremos perigo?
--Não sei, espero que não... Mas não mostreis medo! E se escaparmos com
vida esta noite--quem sabe? Talvez ámanhã Tuala seja como o raio que
feriu e se apagou.
Iamos no emtanto caminhando, através dos regimentos mais immoveis que
bronzes, para espaço vasio diante da cubata real, onde havia como de
manhã uma fila de escabellos d'honra. E ao mesmo tempo outro grupo, com
um brilho e ruido d'armas, sahia da aringa real.
--É Tuala, disse baixo Infandós, e Scragga, e Gagula, e os homens que
matam.
Os «homens que matavam» eram uns doze negros gigantescos, de faces
hediondas, com plumagens vermelhas, armados de facalhões e de azagaias
pesadas.
--Bemvindos, gentes das estrellas! gritou logo Tuala abatendo-se
pesadamente sobre um escabello. Sentai, sentai! E não percamos o tempo
que a noite é curta para as grandes coisas que têm de ser feitas. Olhai
em roda, e dizei-me se nas estrellas tivestes jámais tantos valentes
juntos... Mas vêde tambem como elles já tremem, os que abrigam maldade
no seu coração!
--_Começai_! _começai_!--ganiu na sua silvante voz Gagula, que se
agachára aos pés do rei. As hyenas têm fome de ossos, os abutres têm
sede de sangue... _Começai_! _começai_!
Houve durante momentos um silencio lugubre, que pesava horrivelmente,
como um prenuncio de matança e de horror.
O rei então agitou a lança. Immediatamente vinte mil pés se ergueram, e
tres vezes, em cadencia, bateram no chão que tremia. Depois, lá ao
fundo, d'entre as densas e escuras filas de homens, subiu ao ar um canto
solitario, arrastado, plangente, infinitamente triste, findando n'este
estribilho:
--Qual é a sorte, sobre a terra,
De quem teve de nascer?
E os regimentos todos volviam, n'uma unica, grande e rolante voz:
--Morrer!
Mas pouco a pouco, as companhias, umas após outras, foram entoando uma
estrophe da canção, até que toda a vasta multidão armada formava um
côro--côro barbaro, rude, informe, onde todavia por vezes distinguiamos
como conscientes expressões de sentimentos--notas suaves e lentas de
amor, brados triumphaes de guerra, canticos solemnes de oração. Depois
os cantos varios fundiam-se n'um lamento unico, contínuo, ululado, como
d'um povo n'um funeral. De repente tudo estacava. E de novo o lugubre
estribilho gemia no ar:
--Qual é a sorte, sobre a terra,
De quem teve de nascer?
E de novo a multidão clamava n'um unisono desolado:
--Morrer!
O canto por fim findou, um sombrio silencio cahiu, o rei levantou as
mãos. Immediatamente, sentimos como o trote ligeiro de pés de gazellas:
e, d'entre os profundos renques dos soldados, appareceram correndo para
nós estranhas e medonhas figuras. Percebi que eram mulheres, quasi todas
velhas, pelos longos cabellos brancos e soltos que lhe batiam as costas.
Traziam as faces pintadas ás listas brancas e vermelhas: dos hombros
pendiam-lhe esvoaçando, e misturadas ás madeixas, longas pelles de
serpente: em torno á cinta cahiam-lhe como breloques de ossos humanos
que chocalhavam sinistramente: e cada uma brandia na mão uma curta
forquilha.
Ao chegarem em frente a Gagula pararam, ferindo o chão com as
forquilhas. E uma, a mais alta, alargou os braços, gritou:
--Mãe, aqui estamos!
--_Bem_, _bem_, ganiu o decrepito monstro. Tendes hoje os olhos bem
claros, Isanusis?
--Bem claros, oh mãe!
--Tendes hoje os ouvidos bem abertos, Isanusis?
--Bem abertos, oh mãe!
--Ide então! Farejai, farejai! Entre esses todos descobri os que querem
mal ao seu visinho, os que possuem o gado indevido, os que tramam contra
o rei, os que devem morrer por ordem de «cima»! Farejai! vêde os
pensamentos que se não mostram, ouvi as palavras que se não dizem! Ide,
meus lindos abutres! Os homens das estrellas têm fome e sêde de vêr a
grande Justiça! _Agora_!
Com uivos horrendos, as sinistras creaturas dispersaram correndo, para
todos os lados, através das fileiras armadas. Não as podiamos seguir a
todas na sua obra mortal. De sorte que, por mim, cravei a attenção na
que ficou junto de nós, uma velha, esgalgado feixe d'ossos, que deitava
lume pelos olhos. Quando esta Harpia chegou em frente aos soldados parou
_farejando_. Depois rompeu a dançar, girando sobre si mesma, tão
rapidamente, que as longas grenhas soltas pareciam uma estrella feita de
estrigas de linho a redemoinhar pelo ar. No emtanto ia gritando por
entre silvos de alegria:--«Já o farejo, o homem do mal! Alli está elle,
o que envenenou a mãe! Acolá treme o que pensou mal do rei!»
E, cada vez mais vertiginosamente, vinha girando, girando, até que a
espuma lhe sahia aos flocos da bôca e os ossos lhe rangiam alto! De
repente estacou, hirta, tesa, como petrificada. Depois, devagar,
devagar, como uma fera que rasteja, avançou de forquilha estendida para
a fileira de soldados, que visivelmente se encolhiam n'um indominavel
terror. Parou ainda, outra vez tesa e hirta. Por fim, com um brado
estridente, arremetteu, e bateu com a forquilha no peito d'um rapaz
soberbamente forte.
Dois camaradas immediatamente o agarraram pelos braços, o empurraram
para defronte do rei. O desgraçado caminhava sem resistencia, inerte, já
morto na alma. O bando dos executores avançára a passos graves:
--Mata! disse o rei.
--Mata! ganiu Gagula.
--Mata! rugiu Scragga.
E antes que as palavras se perdessem no ar, o miseravel tombára morto,
com uma azagaia cravada no peito, o craneo aberto por uma pancada de
clava.
--_Um_, contou Tuala, sorrindo com satisfação.
Mal findára o feito horrivel, já outro soldado era arrastado como uma
rez,--um chefe decerto, esse, porque lhe pendia dos hombros a capa de
pelle de leopardo. Dois golpes de facalhão vibrados com destreza
bastaram para o acabar sem um suspiro.
--_Dois_! contou o rei.
E assim até cem! Até _cem_! E nós alli, aterrados, immoveis, impotentes
para suster a carnificina, maldizendo surdamente a nossa impotencia! Eu
findára por fechar os olhos. Á meia noite emfim houve uma suspensão. As
farejadoras esfalfadas, em grupo defronte do rei, limpavam lentamente o
suor. Respirei, n'um infinito allivio, suppondo que findára todo este
incomparavel horror. Mas de repente, com desagradavel surpreza,
descobrimos Gagula, erguida, apoiada n'um cajado, dando alguns passos
que tremiam e lhe sacudiam o craneo calvo de abutre. Coisa pavorosa, vêr
o velhissimo monstro, ordinariamente vergado em dois pela decrepitude,
ganhando alento, remoçando quasi, já direito, já vibrante, á medida que
se acercava da fileira dos homens, a recomeçar por gosto proprio a obra
sinistra das «farejadoras»! Mas n'ella o estylo era differente. Não
dançava, não uivava. Dando umas corridinhas curtas, aqui e além, cantava
baixinho e tristemente, como para se embalar. Assim trotou, assim
cantarolou, até que de repente se precipitou sobre um magnifico velho,
perfilado em frente a um regimento--e tocou-o silenciosamente com o
cajado. Um murmurio de dôr, de contida indignação, correu entre os
soldados que elle evidentemente commandava. Todavia dois d'elles,
empolgando-lhe os pulsos, arrastaram-no como um boi para o açougue.
Soubemos depois que era um chefe de grande riqueza e de grande
influencia, primo do rei. Foi trucidado com azagaia, facalhão e clava--e
Tuala contou _cento e um_!
Quasi immediatamente Gagula, depois de alguns saltinhos curtos de
macaca, começou a avançar para nós, n'um movimento muito lento de valsa,
que era medonho na repulsiva bruxa.
--Justos céos! murmurou o capitão John, querem vêr que agora é comnosco!
--Tolice! acudiu o barão, pallido todavia.
Eu por mim senti um suor frio na espinha. E Gagula, cada vez mais
perto,---com os olhos a saltar-lhe do craneo, um fio de baba na bôca.
Por fim estacou, como um perdigueiro que avista a caça.
--Qual será? murmurou o barão.
Como se lhe respondesse, a velha deu um pulo, e tocou Umbopa (ou Ignosi)
sobre o hombro:
--Morte! gritava ella. Morte! Cheiro-lhe o sangue! Está cheio de
maleficio e de traição. Mata-o depressa, oh rei, mata-o depressa antes
que por elle gema em desgraça o reino!...
Houve um silencio, um pasmo. E nem sei como (porque sou realmente um
cobarde) achei-me diante de Tuala, fallando com soberana firmeza:
--Este homem, oh rei, é o servo dos teus hospedes, e quem deseja o seu
sangue é como se desejasse o nosso! Pela lei de hospitalidade, que
cumpre aos reis manter, exijo a tua protecção para elle!
Tuala franziu o sobr'olho:
--Gagula, mãe das Isanusis, sabedora das artes, cheirou-lhe a traição
dentro das veias. O homem tem de morrer, oh brancos!
--Quem lhe tocar, exclamei, batendo furiosamente com o pé no chão, é que
tem de morrer!
--Agarrem-no! bradou Tuala aos carrascos que esperavam em roda, já todos
manchados de sangue.
Dois brutos romperam para nós--mas hesitaram. Ignosi erguera a azagaia,
decidido a morrer combatendo.
--P'ra traz, cães! berrei eu, n'um tom tremendo. Tocai n'um só cabello
do homem, e vós mesmos, e a vossa feiticeira, e o vosso rei, não vereis
mais a luz do dia!
E bruscamente apontei o rewolver a Tuala. O barão tinha já o seu erguido
contra um dos carrascos: e John marchára sobre Gagula.
Houve um instante de indizivel assombro.
--Decide depressa, Tuala! gritei, tocando-lhe quasi a testa com o cano
do rewolver.
O monstro, visivelmente apavorado, rosnou, n'um tom surdo:
--Tirai para lá os vossos canos magicos! Invocastes as leis da
hospitalidade, e só por amor d'ellas, não por medo de vós, poupo a vida
a esse cão... Ide em paz.
--Está bem, Tuala! E lembra-te sempre que contra os homens das
estrellas, nada podem os homens da terra!
O rei, ainda tremulo de furor impotente, ergueu a lança. Os regimentos
começaram logo a desfilar.
D'ahi a pouco estavamos na nossa aringa--conversando á luz de uma das
curiosas lampadas que usam os Kakuanas, em que o pavio é feito de fibra
de palmeira, e o azeite de toucinho de hippopotamo. E o que affirmavamos
todos com convicção, com ardor, era a necessidade e a justiça urgente de
ajudar a conspiração de Umbopa contra um villão como Tuala!


CAPITULO VIII
A GRANDE DANÇA

Já muito tarde, quasi de madrugada, Infandós appareceu, como promettera,
com os chefes seus amigos, todos homens de porte marcial e decididos. A
conferencia foi longa e curiosa. Ignosi, convidado a expôr a sua
romantica historia e os seus direitos ao reino dos Kakuanas, começou por
tirar a tanga em silencio e mostrar o emblema sagrado, a grande serpente
tatuada na cinta. Cada chefe, um a um, tomava a lampada, e agachado
examinava o signal com respeito; depois, em silencio, passava a lampada
a outro.
Em seguida Ignosi, reatando a tanga, contou a sua vida estranha, desde a
fuga com a mãe através do deserto. Os chefes permaneceram calados.
Infandós, por seu turno, recordou os longos crimes de Tuala, retraçou as
matanças d'essa noite de festa em que dois guerreiros valentes, de casas
illustres, tinham sido trucidados só por possuirem grandes rebanhos que
Scragga appetecia. Por fim fez um grande appello á razão e ao coração
dos chefes, que só tinham a escolher entre o monstro que por avidez e
capricho lhes arrancava a vida, ou o homem que lhes garantia a
existencia feliz nas suas senzalas e a posse tranquilla dos seus gados.
Mas, com espanto nosso, os chefes pareciam hesitantes e desconfiados.
Finalmente, um d'elles, homemzarrão possante, de carapinha branca, deu
um passo, e declarou que a terra na verdade gemia sob a crueldade de
Tuala, e que seu proprio irmão n'essa noite estava sendo pasto das
hyenas...--Mas aquelle era um singular e confuso caso! E quem lhes
afiançava que elles não ergueriam as suas lanças por um impostor? A
guerra era certa. Muitos ficariam fieis a Tuala, porque mais se adora o
sol que brilha, que o sol que ainda não nasceu. Necessitavam pois uma
evidencia. E quem melhor lh'a poderia dar que os homens das estrellas,
senhores das grandes artes magicas, que tinham trazido Ignosi ao paiz, e
sabiam decerto os segredos?
--Se elle é o herdeiro legitimo, os homens que o trouxeram das estrellas
que o provem, fazendo um grande milagre. Só assim o povo acreditará e
tomará armas por elle!
--Mas a cobra, o emblema sagrado! exclamei eu.
--Não basta. A cobra podia ser pintada no ventre já depois de elle ser
homem... Necessitamos um milagre! O povo não se move, nem nós mesmos,
sem um milagre!
Um _milagre_! A situação era terrivel e grotesca. Exigir-se um milagre a
tres honestos e ingenuos mortaes, que nem sequer sabiam, como qualquer
prestidigitador de feira, escamotear uma noz dentro da manga! E terem os
honestos mortaes de fazer o milagre--ou de perder a vida!... Voltei-me
para os meus companheiros, a explicar rapidamente o risivel e perigoso
lance.
--Parece-me que se póde arranjar, disse John, depois de um curto
silencio. Peça a estes amigos que nos deixem sós, Quartelmar.
Abri a porta da cubata, os chefes sahiram. E apenas os passos morreram
na sombra:
--Temos o eclipse! exclamou o nosso admiravel John.
Era o eclipse que elle descobrira na vespera, folheando o almanach (o
_Livro de Bordo_), e que n'esse dia, ás duas e quarenta minutos, devia
ser visivel em toda a Africa.
--Ahi está o milagre! affirmava John. É annunciar aos chefes que para
lhes provar que Ignosi é o rei, e que devem pegar em armas por elle, nós
faremos desapparecer o sol!
A idéa era esplendida. O unico receio é que o almanach estivesse errado.
--Não! É um almanach maritimo, não póde estar errado. Os eclipses são
calculados mathematicamente. Não ha nada mais pontual que um eclipse...
Durante meia hora, tres quartos de hora talvez, esta região toda ficará
em trevas.
--Eu, por mim, disse o barão, parece-me que devemos arriscar o eclipse.
--Vá pelo eclipse!
Mandamos Umbopa buscar os chefes. Quando voltaram, cerrei a porta da
cubata com um sombrio apparato de mysterio, e comecei por lhes declarar,
magestosamente, que nós os homens das estrellas não gostavamos de
alterar o curso natural das coisas e mergulhar o mundo em terror e
confusão... Mas, como se tratava d'uma grande e santa causa, estavamos
decididos a fazer um milagre.
--Escutai! Julgaes vós que um homem póde soprar sobre o sol, e
_apagal-o_?
Os chefes olharam para mim, recuando com assombro.
--Não, murmurou um d'elles, não ha homem que o possa fazer! O sol é mais
forte que toda a terra!
--Perfeitamente, conclui eu. Pois ámanhã, depois do meio dia, nós homens
das estrellas _apagaremos o sol_ durante uma hora, espalharemos trevas
sobre a terra, e será o signal de que Ignosi é o verdadeiro rei dos
Kakuanas e que o povo deve tomar armas por elle. Será bastante este
milagre?
O chefe da carapinha branca abriu os braços para nós, esgazeado:
--Oh gentes das estrellas, senhores das grandes artes, esse milagre será
mais que bastante!
--Bem. Tereis o milagre. Agora Infandós, que é experiente, diga o
momento em que mais convem que nós apaguemos o sol.
--Apagar o sol! murmuravam os chefes entre si. A grande lampada! O pae
de tudo, que brilha eternamente!
--Falla, Infandós!
--Meu senhor, é na verdade um milagre espantoso que vós prometteis! Mas
emfim... O melhor momento é o da dança das Flôres, que ha de logo
começar ao meio-dia. As mais lindas raparigas de Lú estão lá, para
dançar. E aquella que Tuala achar mais linda de todas é, segundo o
costume, morta por Scragga em sacrificio aos _Silenciosos_, as figuras
de pedra que estão além na montanha vigiando. Que os meus senhores
n'esse momento apaguem o sol, salvem a rapariga, e o povo acreditará!
--O povo na verdade acreditará! exclamaram todos os chefes.
--A duas milhas de Lú, continuou Infandós, ha uma collina em fórma de
meia lua, que é realmente uma fortaleza, onde estão aquartelados o meu
regimento e tres outros que estes chefes commandam. Mas podemos arranjar
de modo que ainda esta manhã cedo marchem para lá tres ou quatro
regimentos dos mais fieis á minha vontade. E se os meus senhores
apagarem com effeito o sol, eu poderei, a favor da escuridão, fazel-os
sahir do terreiro real e da cidade, e leval-os para essa fortaleza, onde
ficarão a salvo e d'onde começaremos a guerra contra o rei.
--Está entendido, resumi eu. Agora ide, que queremos dormir e depois
combinar com os Espiritos!
Com longas reverencias, Infandós e os chefes deixaram a nossa aringa. O
sol ia nado.
--Oh meus amigos, exclamou Ignosi, apenas elles partiram. É certo que
podeis fazer esse milagre, ou estaveis vós ganhando tempo e soltando no
ar palavras vãs?
--Parece-me que não nos ha de ser difficil, meu Umbopa, quero dizer, meu
Ignosi, declarei eu sorrindo.
--É espantoso! Apagar o sol... E todavia sois inglezes, e o inglez tudo
póde! Mas ah, se vós fizerdes isso por mim, o que não farei eu por vós?
--Uma coisa já tu nos podes prometter, Ignosi! acudiu gravemente o
barão. É, se chegares a ser rei com o nosso auxilio, acabar com as
«farejadeiras de feitiços», com matanças como as d'esta noite, e não
consentir que homem algum seja condemnado sem provas de crime, e sem ter
sido julgado pelos doze mais velhos do logar.
Era o jury, santissimo Deus! Era a nobre instituição do jury, que este
digno barão queria implantar no centro selvagem da Africa! Não ha senão
um liberal inglez para estas esplendidas imposições de civilisação e de
ordem. Com razão hesitou o astuto Ignosi! Com razão conservou longo
tempo dois dedos sobre a testa, calculando. Por fim, n'um rasgo de
generosidade ou de condescendencia:
--Os costumes dos pretos não se podem moldar pelos costumes dos brancos.
Comtudo, uma coisa te prometto, Incubú! É que não haverá no meu reino,
nem matanças de festa, nem execuções sem julgamento. Estás contente?
O barão apertou-lhe a mão em silencio.
D'ahi a pouco estavamos estendidos nos leitos de folhas sêccas, e
profundamente dormimos, até que Ignosi nos acordou ás onze horas. O
nosso primeiro cuidado foi instinctivamente correr fóra da cubata, olhar
para o sol. Nunca esse divino astro me pareceu tão brilhante e tão
seguro da sua luz. Nem um signal de eclipse! Uma radiancia firme,
absoluta, que nenhum movimento dos corpos celestes parecia poder
alterar!
--Pois, meu digno astro--murmurei eu, ousando interpellar directamente a
fonte de toda a vida--se continuas assim, todo o dia, acabas, sem
querer, com tres honrados homens!
Depois de almoçar, um solido e valente almoço que nos amparasse na crise
imminente, revestimos as cótas de malha, afivelamos os cinturões de
cartuchame, e de outros modos nos apetrechamos para a grande dança. E ao
meio dia para lá voltamos os passos--que a inquietação interior e a
certeza do perigo não permittiam que fossem nem bem alegres nem bem
ligeiros!
O terreiro real offerecia n'essa manhã um aspecto bem diverso--e onde na
vespera reinára o horror transbordava agora a graça. Em logar de fuscos
e duros guerreiros, todo o espaço estava occupado por longas filas de
raparigas kakuanas, escuras tambem é verdade, mas lindas, pelas fórmas,
a expressão, a viçosa mocidade. _Toilette_, não tinham nenhuma--nem
mesmo o _panno_, a tanga da Africa civilisada: mas salvavam esta
encantadora deficiencia pelo franco luxo das flôres. Todas traziam na
cabeça uma corôa de flôres; grinaldas de flôres, grandes como festões,
envolviam-lhes a cinta; e cada uma segurava nas mãos uma palma verde e
um lyrio branco. Nos escabellos de honra já estava o rei--acompanhado
por Infandós, Scragga, guardas emplumados e a sinistra Gagula.
Reconhecemos tambem, de pé, por traz d'elle, alguns dos chefes que
n'essa noite tinham comnosco conspirado.
Tuala acolheu-nos com muita cordealidade ostensiva--dardejando ao mesmo
tempo sobre Umbopa um olhar sangrento e mau.
--Bemvindos, homens das estrellas, bemvindos! Vêdes hoje aqui coisas
diversas; mas não tão bellas, não tão bellas! Beijos e festas de
mulheres são dôces; mas é mais dôce o brilho das lanças e o cheiro do
sangue. Olhai em redor, gentes das estrellas: e se quizerdes casar
n'esta terra, escolhei, escolhei... Podeis levar d'estas raparigas as
melhores, e tantas quantas pedirem os vossos desejos.
O nosso John, extremamente sensivel e amoroso como todos os marinheiros,
deu logo um passo, teve um sorriso, como se se preparasse a aceitar e a
recrutar alli, para occupar o seu coração na terra dos Kakuanas, um
serralhosinho de donzellas escuras. Mas eu, homem idoso e experiente,
receiando as complicações do eterno feminino, apressei-me a recusar:
--Não, Tuala, obrigado! Os homens brancos que vêm das estrellas só se
ligam ás mulheres brancas que estão nas estrellas...
Tuala riu:
--Está bem, está bem... Nós temos um proverbio kakuana que diz:
«Aproveita a que está perto, porque com certeza a que está longe te
engana!» Mas talvez seja d'outro modo nas estrellas... Sêde pois
bemvindos, e comece a dança!
Um grande tam-tam resoou, acompanhado por finas flautas de cana em que
tres mocinhos sopravam agachados no chão. As fileiras de raparigas
avançaram, cantando um canto muito lento e dôce,--e fazendo ondular nas
mãos as palmas e os lyrios. Era um grande bailado barbaro, infinitamente
pittoresco. As raparigas ora saltavam brandamente sobre as pontas dos
pés, n'uma graciosa languidez de gestos; ora, enlaçadas aos pares,
redemoinhavam vivamente; ora, fileira contra fileira, simulavam uma
batalha, tendo por armas os ramos de palma; ora, ajoelhando em
reverencia, offertavam os lyrios ao rei. Depois eram grandes marchas bem
ordenadas em que o canto tomava um tom triumphal; e logo uma alegre
confusão, n'uma grulhada melodiosa, com um vivo saltar de corpos
ageis--que espalhava pelo ar as petalas das flôres desfolhadas.
Por fim o bailado parou: e uma esplendida rapariga, de olhos radiantes,
mais airosa que uma Diana caçadora, avançou devagar, e rompeu n'uma
dança estranha, cheia de graça e de brilho, em que os movimentos tudo
traduziam, desde os requebros fugidios da noiva timida até os pulos
bravos da corça ciosa... Assim dançou longamente: os seus olhos cada vez
mais rebrilhavam: a grinalda que lhe envolvia a cinta desfizera-se flôr
a flôr; e todo o corpo adoravel lhe reluzia ao sol como um bronze
humedecido. Por fim, cançada, sorrindo, recuou até ao grupo das
bailadeiras onde ficou de olhos baixos, a refrescar-se com o seu ramo de
lyrios. Veio então outra, muito alta, dançar; e outra depois, e muitas
ainda, todas bellas e habeis;--mas nenhuma como a Diana caçadora tinha
belleza, graça e consummada arte.
O rei ergueu a mão, o tam-tam cessou.
--Gentes das estrellas, disse elle, qual d'ellas achaes mais linda?
--A primeira, respondi eu irreflectidamente.
E logo me arrependi, lembrando o que annunciára Infandós--que a mais
linda tinha de perecer, sacrificada aos idolos. Ao mesmo tempo deitei um
olhar ao sol que continuava a refulgir com uma teima desesperadora.
Tuala no emtanto sorria:
--Os vossos olhos, gentes das estrellas, vêem então como os meus. A
primeira é a mais bonita. E mau é para ella que tem de morrer!
--_Tem de morrer_! echoou Gagula que parecera dormitar durante a festa,
e acordava, já interessada, desde que presentia sangue e dôr.
--Morrer! exclamei eu, sorrindo tambem, como se não acreditasse. Porque,
oh rei? Ella dançou bem, a todos agradou. Além d'isso é moça e linda.
Seria cruel e estranho recompensal-o com a morte.
A fera affectou uma sympathia, que, n'elle, arripiava:
--Tambem o lamento, mas é o costume do meu reinado. Os _Silenciosos_,
que estão além na montanha vigiando, precisam receber o seu tributo. Ha
uma prophecia do nosso povo que diz: «O rei, que no dia da grande dança
não sacrificar aos Silenciosos a mais linda das donzellas, perecerá, e
com elle a sua casa». Por não ter cumprido a ordem de «cima», cahiu meu
irmão e em seu logar reino eu... Ide (voltando-se para os guardas),
trazei a virgem! E tu, meu Scragga, aguça a lança!
Dois da guarda real marcharam para a pobre e dôce rapariga, que
desfolhava nervosamente as pétalas do seu lyrio branco. De repente, e só
então, ella pareceu comprehender a fatalidade que a perdia, por ser
formosa e pura. Deu um grito, tentou fugir. Duas mãos fortes
agarraram-na e trouxeram-na, toda em lagrimas e debatendo-se, para
diante de Tuala.
--Que nome é o teu, linda moça? ganiu a horrivel Gagula. Não respondes?
Queres que o filho do rei tenha de erguer a lança, sem saber quem tu
sejas?
A isto, Scragga deu um salto com sofreguidão, alçando a sua immensa
azagaia. Vendo o ferro luzir, a pobre rapariga cessou toda a lucta entre
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