As Minas de Salomão - 10

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subtilmente uma arteria do homem, que expira em poucos instantes sem
soffrer.
Fugindo a estes espectaculos, John e eu seguimos para o outro lado do
quartel-general, onde encontramos o barão (ainda de machado na mão, todo
tinto de sangue) reunido em conselho com Ignosi, Infandós e dois chefes
idosos.
--Ainda bem que chega, Quartelmar! gritou o barão. Eu não posso
comprehender o que quer esta gente... Parece que vamos ser cercados!
E assim era, segundo explicou lentamente Infandós. Tuala repellido
reunira reforços, e parecia tomar disposições para pôr sitio á collina,
e vencer-nos pela fome e pela sêde. Os mantimentos não durariam mais de
dois dias. Mas o peor era que a nascente d'agua, sorvida a cada instante
por dezeseis mil bôcas sedentas, estava prestes a esgotar-se; e antes da
manhã seguinte o exercito gemeria de sêde. N'estas conjuncturas, Ignosi
queria saber o que propunham os homens das estrellas.
--Dize tu, Macumazan, velha raposa, que tens visto muito, e sabes todas
as artes.
Conversei um momento com os amigos, e declarei em seguida ao conselho,
que, sem pão e sem agua, nada nos restava senão fazer immediatamente uma
tremenda sortida contra Tuala. Todos approvaram com ardor a minha idéa.
Mas sob que plano se tentaria esse ataque? Cabia a Ignosi, o rei,
decidir:--e os olhos de cada um voltaram-se para o nosso antigo servo,
que agora, nas suas armas e plumagens de guerra, tinha um magnifico ar
de rei guerreiro.
Depois de pousar dois dedos sobre a testa, á maneira Zulú, Ignosi fallou
e desenvolveu um plano excellente. Ao começo da tarde (era então
meio-dia) os _Pardos_, commandados por Infandós e o barão, desceriam
aquella lingua da planicie que penetrava na meia lua da collina, e
avançariam sobre Tuala, emquanto elle proprio, Ignosi (que eu devia
acompanhar), ficaria de reserva por traz com tropas frescas. Decerto
Tuala, vendo os _Pardos_ romper n'uma sortida, lançaria sobre elles toda
a sua força para os esmagar. Emquanto na lingua de terra se estivesse
dando esse primeiro recontro, uma terça parte das nossas forças desceria
pela ponta direita da collina, levando comsigo John, o do olho
rutilante; outra terça parte iria de manso pela ponta esquerda;
subitamente ambas cahiriam sobre os flancos de Tuala;--e n'esse instante
elle, Ignosi, desceria pela frente com as tropas frescas, e se a fortuna
estivesse com elle ceariamos n'essa noite contentes na cidade de Lú!
O plano foi acolhido entre applausos--e immediatamente entrou em
preparação, com uma presteza, um methodo, que fez honra aos officiaes
Kakuanas. No espaço de duas horas foram servidas as rações aos homens,
as tres divisões formadas, a ordem de ataque bem explicada aos chefes, e
toda a força (menos uma guarda que se deixou aos feridos) collocada nos
seus postos.
Era pois outra immensa carnificina que se preparava e em que me veria
envolvido--eu, homem de ordem, de gostos simples, que tanto detesto
violencias! Quando John, ao partir com a ala direita, nos veio dizer
adeus, um pouco commovido--eu, com a voz abalada tambem, só tive estas
palavras:
--Se escapar, amigo John, louve a Deus, e não se metta mais com
pretendentes!


CAPITULO XI
A BATALHA DE LÚ

Não contarei os pormenores sangrentos d'este grande combate, que se
ficou chamando a «batalha de Lú». Todos estes medonhos conflictos de
selvagens, mesmo travados com a disciplina dos Kakuanas, se assemelham.
É sempre uma vasta confusão de corpos escuros e emplumados, um
estridente ruido de escudos entrechocando-se, azagaias reluzindo no ar,
saltos, guinchos, uivos, clamores immensos onde destaca uma nota
assobiada, o _sgghi_! _sgghi_! que solta o selvagem quando trespassa com
o ferro o inimigo.
O plano de Ignosi de resto foi triumphalmente realisado. Os _Pardos_
avançaram n'aquella lingua de terra que penetrava na nossa meia lua, e
com admiravel heroicidade sustentaram os ataques de regimentos após
regimentos, arremessados sobre elles por Tuala.
Quando dos _Pardos_ restava apenas metade, e a attenção de todo o
exercito inimigo estava concentrada n'esta lucta com o heroico
regimento, as duas alas nossas, que tinham caminhado pelos dois cornos
da meia lua, cahiram sobre os flancos desprevenidos do inimigo como um
circulo de cães de fila sobre lobos descuidados. Começou uma pavorosa
matança. Ignosi carregou então de frente com as reservas frescas--e
decidiu a batalha. Eu fiz parte d'essa carga: e não sei como, achei-me
ao pé do barão, que parecia o verdadeiro deus da guerra, com os longos
cabellos de ouro a esvoaçar ao vento, todo elle vermelho de sangue, e
soltando a cada grande golpe de machado o velho grito saxonio de ataque
_O-hoy_! _O-hoy_! Tambem me parece que avistei Tuala na confusão,
coberto com a sua cóta de malha, arremessando as _tollas_, as facas
enormes dos Kakuanas, que dois guerreiros atraz d'elle traziam em sacos
de coiro. Lembro-me ainda tambem d'um chefe que, em vez de escudo,
erguia para se defender o cadaver de um _Pardo_, e que combatia
cantando. De resto, tudo se me confunde na memoria--o sangue correndo,
os corpos tombando, um grande estridor de armas, um immenso esvoaçar de
plumas.
Com o embate das duas columnas nossas sobre os flancos do exercito de
Tuala a batalha ficou ganha--e dentro em breve a vasta planicie que se
estendia entre a nossa collina e a cidade de Lú estava cheia de soldados
fugindo em terrivel desordem. O regimento dos _Pardos_ no emtanto (ou o
que d'elle restava) reunira n'uma pequena elevação de terreno--onde
tristemente verificamos que, dos tres mil valentes que o compunham,
ainda de manhã, apenas acudiam á chamada cento e noventa e cinco homens.
Entre elles estava Infandós, que combatera heroicamente tendo sómente um
leve golpe no braço. Ignosi, com um grupo de chefes, entre os quaes
vinha John (ferido n'uma perna e manquejando), em breve se veio juntar a
esta gloriosa phalange dos _Pardos_. E foi seguido d'ella, como da sua
guarda de honra, que o rei, e nós com elle, marchamos sobre a cidade de
Lú.
Ás portas da cidade, ainda fechadas, estavam já postados grossos
destacamentos dos nossos para as atacar. Mas dentro os soldados de
Tuala, inteiramente desmoralisados pela derrota do seu rei, não pareciam
dispostos á resistencia. Com effeito, ás primeiras intimações dos
arautos, a ponte levadiça da porta chamada _Real_ foi descida: e,
seguindo Ignosi, penetramos emfim na cidade vencida. Nas ruas, ás portas
das aringas, nos terreiros, por toda a parte se apresentavam soldados,
com a cabeça baixa, os escudos e as lanças pousadas aos pés em signal de
submissão, que saudavam Ignosi como rei. Assim chegamos á aringa real.
No terreiro silencioso, á porta da sua grande senzala, solitario,
abandonado, sem um soldado, sem um cortezão, sem uma das suas mil
mulheres, estava Tuala, sentado n'um escabello, com o rosto cahido sobre
o peito, as mãos pousadas sobre os joelhos. Cheguei a sentir uma vaga
piedade pelo pobre rei derrotado! Um unico sêr lhe ficára fiel,
Gagula--que, agachada aos seus pés, rompeu n'um fluxo de injurias, mal
nos viu assomar ao terreiro, seguindo o triumphante Ignosi.
Tuala, esse não parecia vêr, nem sentir. Só quando Ignosi parou, e os
soldados bateram em cadencia com os contos das azagaias no chão, o velho
tyranno ergueu a cabeça emplumada. Depois atirando sobre nós um olhar
mais reluzente que o grande diamante que lhe ornava a testa:
--Salvè, rei! gritou elle a Ignosi, com amargo escarneo. Tu que, por
feitiços dos homens das estrellas, seduziste os meus regimentos, dize,
que sorte me destinas?
--A sorte de meu pae, que tu mataste!--foi a fria e dura resposta.
--Bem! saberei morrer, para que te fique como exemplo quando a tua vez
chegar. Mas reclamo um privilegio da familia real dos Kakuanas. Quero
morrer combatendo.
--Concedo, respondeu Ignosi. Escolhe o teu homem. Eu não posso, porque o
rei não se bate em combate singular.
O sinistro olho de Tuala percorreu-nos lentamente a todos. E, como
durante um momento se fixou em mim, eu senti alli o mais atroz pavor da
minha vida aventurosa. Justos céos! se elle se quizesse bater _commigo_?
Tambem, tomei logo a minha resolução--recusar, fugir, ainda que fosse
apupado por toda a nação Kakuana! Felizmente o bruto escolheu:
--Incubú! exclamou, estendendo a mão para o barão. Tu que mataste meu
filho, quererás tu luctar commigo, ou ser chamado um cobarde?
--Não, gritou logo Ignosi, Incubú não se baterá comtigo!
--Decerto não, se tem medo.
Infelizmente o barão comprehendera. Todo o sangue lhe subiu ás faces. E
avançou logo, de machado erguido.
Acudimos, supplicando-lhe que não arriscasse a vida com aquella féra,
inteiramente desesperada, de antemão condemnada á morte. Provas de
heroico valor já elle as déra de sobra! Para que ir-nos despedaçar o
coração, se uma desgraça lhe succedesse?
O barão porém permaneceu inabalavel.
--Nenhum homem vivo, civilisado ou selvagem, me chamará nunca cobarde.
Quero bater-me com elle!
Ignosi, bem a custo, cedeu.
--Seja pois!... Tuala, o grande Incubú vai marchar para ti!
Tuala riu, ferozmente; e os dois gigantescos homens ficaram frente a
frente. O primeiro ataque foi o do barão, que lançou sobre Tuala o
machado a toda a força. Com um salto Tuala esquivou o córte, e
arremessou outro em resposta sobre o barão, que o aparou no escudo. E
durante um momento houve assim uma viva e faiscante troca de machadadas,
que ora bruscos saltos evitavam, ora os broqueis defendiam. Nós nem
respiravamos. O regimento dos _Pardos_, esquecida a disciplina, fizera
circulo, e soltava gritos, batia palmas a cada golpe vibrado. John,
agarrado ao meu braço, andava aos saltos sobre a perna sã, animando o
barão com berros:
--Bravo! Anda-me ahi! Esse foi bom! Atira-lh'o de ilharga!...
Subitamente um brado de horror resoou. D'uma pancada Tuala cortára o
cabo do machado do barão, que ficava assim desarmado--e, erguendo o seu
proprio machado, cahia sobre elle com um uivo furioso de triumpho. Tudo
acabára, eu fechei os olhos... Quando os abri, Tuala e o barão,
agarrados um ao outro como dois gatos bravos, estavam rolando no chão--e
o barão, com um desesperado esforço, procurava arrancar a Tuala a
machada que elle tinha preso ao pulso por uma correia de bufalo.
Pareceu-me uma eternidade o tempo que elles assim rolaram um sobre o
outro, n'esta furiosa lucta pela posse do machado. Finalmente a correia
quebrou--e com um ultimo, monstruoso arranque, o barão, desprendendo-se
de Tuala, ergueu-se de salto, com o machado na mão. N'um instante Tuala
estava tambem de pé--e ambos tinham as faces a escorrer sangue. Foi
Tuala, que, mais rapido, arrancou do cinto o facalhão e o vibrou contra
o peito do barão. O valente homem cambaleou, mas a couraça de malha
repelliu a facada. De novo Tuala arremetteu com a lamina--e então o
barão, retesando-se todo n'um esforço, alçou o machado, no momento mesmo
em que Tuala se inclinava, e deixou cahir uma machadada com tremenda
força sobre o pescoço. Houve um grito enorme.--E, coisa pavorosa! vimos
a cabeça de Tuala saltar-lhe dos hombros, dar como uma pélla dois pulos
pelo chão, e rolar até aos pés de Ignosi! Durante um segundo o corpo
ficou erecto, com o sangue sahindo em grossos borbotões e a fumegar. De
repente tombou, com um ruido surdo. E do outro lado o barão cahiu
tambem, desmaiado.
Erguemol-o anciosamente, encharcamos-lhe o rosto em agua. Pouco a pouco
abriu os olhos. Estava salvo!
O sol ia justamente descendo. Eu baixei-me para a cabeça de Tuala que
alli ficára n'uma poça de sangue, e, desapartando o grande diamante que
lhe ornava a testa, entreguei-o solemnemente a Ignosi e bradei:
--Salvè, rei dos Kakuanas!
Elle apertou o diamante sobre a testa. Depois pousou um pé sobre o peito
de Tuala morto, e cercado dos seus guerreiros entoou um canto de
victoria.


CAPITULO XII
O REI IGNOSI

Tudo findára gloriosamente. Chegára a hora de repousar--ou, melhor, de
convalescer. O barão e o capitão (cuja perna, de todo inchada, o fazia
agora soffrer muito) foram levados em braços para a aringa palacial de
Tuala. E eu para lá me arrastei, exhausto de emoções, com a cabeça
consideravelmente dorida da paulada d'essa manhã na defeza do planalto.
O primeiro cuidado foi despir as cótas de malha, tarefa difficil (pelo
nosso combalido estado) em que nos ajudou a linda Fulata, que se
constituira, desde o começo da revolta, nossa vivandeira, nossa
enfermeira, e nosso anjo da guarda. Arrancadas as cótas, vimos que os
nossos pobres corpos eram uma massa medonha de pisaduras negras. No
tumulto da batalha tinhamos apanhado decerto muita facada, muita
lançada. As pontas dos ferros eram repellidas pela malha impenetravel;
mas nem por isso cada um dos golpes arremessados deixava de constituir
uma terrivel pontuada que nos amolgava corpo e membros. Eu estava
positivamente negro de pisaduras. Mas o peor era a ferida de John na
perna, e a do barão a quem uma das machadadas de Tuala cortára
profundamente a face sobre a maxilla. Fulata preparou-nos uns emplastros
de hervas aromaticas que nos alliviaram as dôres. E como o capitão John
tinha noções e pratica de cirurgia (segundo contei), foi elle que fez o
tratamento da ferida do barão e da sua propria, tão bem quanto lh'o
permittiam os poucos fios, o resto de pomada antiseptica que encontrou
na sua botica portatil, e a escassa luz da lampada kakuana.
Depois, Fulata arranjou-nos um caldo muito forte, e estendemo-nos nas
magnificas pelles que juncavam o chão da aringa do rei. Mas não pudémos
dormir. De toda a cidade, em torno de nós, subia a triste e ululada
lamentação das mulheres, chorando, á maneira dos Zulús, os valentes
mortos na batalha. Mesmo ao nosso lado, as carpideiras reaes estavam
carpindo a morte de Tuala com estridente dôr. A noite ia cheia de
prantos--e além d'isso a cada instante sentiamos os gritos agudos das
sentinellas, ou a ruidosa passagem de rondas. Foi só de madrugada que
pude cerrar os olhos--os olhos que, apesar de cerrados, continuavam a
vêr os lances da batalha, com tanta realidade que por vezes estremecia
em sobresalto e me erguia no cotovêlo a procurar as minhas armas, ou a
lançar uma ordem de ataque.
Quando emfim acordei, com o sol já alto, soube que os meus dois amigos
tambem não tinham dormido. De facto, o capitão John estava com uma
intensa febre e começava a delirar. Além d'isso, symptoma assustador,
toda a noite cuspira sangue. O barão, esse, mal podia ainda mexer o
corpo; e a ferida da face não lhe permittia comer, escassamente fallar.
Eu era ainda assim o mais restabelecido. Tomei o delicioso caldo de
Fulata, e sahi um instante ao terreiro a respirar. Encontrei justamente
Infandós que chegava, tão fresco e agil como se na vespera, em logar de
uma batalha, tivesse celebrado uma festa. Ficou desolado ao saber a
doença de John. Entrou um momento na cubata para o vêr e o barão, que
não se podia ainda levantar e apenas mover os membros sobre o seu fôfo
leito de pelles. Em voz baixa, por causa de John, Infandós contou-nos
que todos os regimentos se tinham submettido a Ignosi, que das outras
cidades chegavam ferventes adhesões, e que o novo reinado se firmava
para longas éras de prosperidade e de paz.
Quando elle se retirava, appareceu Ignosi, seguido de uma guarda real.
Não pude deixar, ao vêl-o, de pensar nas estranhas revoluções da sorte!
Aquelle moço, que havia mezes, na minha casa em Durban, me pedia para
entrar ao meu serviço--eil-o agora rei, grande Potentado d'Africa,
commandando cincoenta mil guerreiros, senhor de povos, de rebanhos e de
terras sem conta!
--Salvè, rei! exclamei eu, erguendo-me com respeito.
--Graças a ti, Macumazan, e aos teus amigos! exclamou elle, apertando-me
as mãos com carinho.
Entrou tambem, como Infandós, na cubata para vêr o barão e o pobre John,
que dormia um somno de febre, horrivelmente agitado, sob os olhos
compassivos e vigilantes da boa Fulata. Depois, quando sahimos de novo
ao terreiro, conversando, perguntei-lhe o que contava elle fazer de
Gagula.
--Gagula é o genio mau d'esta terra, disse elle. Conto mandal-a matar
para findar com ella, que já é velha de mais!
--Mas tem segredos! Mas sabe muito! repliquei eu.
--Sabe sobretudo o segredo dos _Silenciosos_, volveu o rei pousando os
olhos em mim com amizade, e o da caverna onde os reis estão enterrados,
e o do logar dos diamantes. Ora eu não esqueço a promessa que te fiz,
Macumazan. Tu e os teus amigos ireis aos diamantes, guiados por Gagula:
e só por isso a poupo.
--Está bem, Ignosi, registro as tuas palavras.
Mas não foi possivel, durante essa semana, pensar nos diamantes, porque
através de toda ella a vida do nosso pobre John esteve em risco e os
nossos corações em anciedade. Realmente creio que teria morrido, se não
fossem os desvelos, a adoravel dedicação de Fulata. Dias amargos esses
para nós! O barão, já então restabelecido, e eu, nada mais fizemos
durante essa crise atroz, do que entrar, sahir, rondar em pontas de pés
a senzala onde elle delirava. Remedios não tinhamos para lhe dar, além
d'uma bebida refrescante feita por Fulata com leite e o succo extrahido
da raiz d'uma especie de tulipa. Só podiamos contar com a forte natureza
d'elle e a boa mercê de Deus.
Em toda a aringa real havia um grande silencio, porque Ignosi, para
manter perfeito socego em torno ao doente, ordenára que todos os que lá
viviam passassem a outras cubatas remotas. Fulata estava permanentemente
ao lado d'elle, sentada no chão, dando-lhe a bebida refrescante,
arranjando-lhe as travesseiras feitas das folhas sêccas d'uma planta que
faz dormir, enxotando-lhe as moscas do rosto.
No nono dia da doença, á noite, antes de recolher, o barão e eu
entramos, segundo o costume, na senzala. A lampada collocada no
escabello dava uma luz funebre. Não havia um rumor. E o meu pobre amigo
jazia perfeitamente immovel. Pensei que chegára o seu fim, tive um
soluço que me suffocou. Mas uma voz, na sombra, murmurou _chut_!
E, mais de perto, descobrimos que o nosso amigo não estava morto, mas
tranquillamente adormecido, sob a caricia das mãos de Fulata, que lhe
cobriam a testa, onde um suor fresco começava. Era a crise do nono dia,
o somno reparador. O nosso John estava salvo! Dormiu assim dezoito
horas. E (mal me atrevo a contal-o, porque não serei acreditado) Fulata,
a admiravel, a santa rapariga, dezoito horas se conservou tambem assim,
com as mãos pousadas sobre a testa d'elle, sem comer, sem se erguer, sem
se mexer, com o receio de que o menor movimento acordasse o seu doente.
Quando elle afinal despertou--tivemos de a erguer em braços, porque a
heroica enfermeira estava quasi desmaiada de debilidade e fadiga.
A convalescença de John foi rapida. Ao fim d'outra semana, já passeava
pelos arredores da cidade, entre os pomares, á beira do rio, acompanhado
por Fulata, que o salvára, e a quem elle votára (segundo dizia) um
«reconhecimento eterno». Mas eu não agourava bem d'aquelle
«reconhecimento», d'aquelles passeios bucolicos... Nos olhos de Fulata
havia muita meiguice, muita languidez. E John como marinheiro, era
indiscretamente ardente. Depois de uma aventura de guerra, iamos ter,
mais perigosa ainda, alguma aventura d'amor!
Apenas John se considerou a si proprio escorreito e «prompto para
outra»--Ignosi começou as festas da sua proclamação. Todos os «Indunas»
(chefes supremos) das provincias do reino vieram a Lú prestar
vassallagem. Houve revistas de tropas, danças, formidaveis banquetes. Os
homens que restavam do regimento dos _Pardos_ foram todos doados com
terras e rebanhos, e promovidos a officiaes. Ignosi promulgou na Grande
Assembléa que d'ora em diante não haveria mais _caça aos feiticeiros_,
nem morte sem julgamento. Depois ordenou que, emquanto nós residissemos
no seu reino, gozassemos de honras reaes, e recebessemos sempre, como
elle, a saudação de _Krum_!
No ultimo dia d'este grande festival, eu e os amigos dirigimo-nos ao
rei, em grupo, e declaramos-lhe que o momento chegára, de realisar a sua
promessa, e de nos mandar conduzir ao logar onde deviam estar as pedras
brancas que reluzem.
Ignosi abraçou-nos com grande affecto.
--Não me esqueci, amigos! Já indaguei a verdade, e eis o que sei.
Aquella estrada branca que trilhámos acaba além junto das montanhas
chamadas as _Tres Feiticeiras_, onde estão as figuras de pedra, os
_Silenciosos_. Jaz ahi uma grande cova, d'onde se diz que homens muito
antigos, em outras idades, tiravam as pedras que reluzem. Para além
d'essa cova ha uma funda caverna na rocha, terrivel, maravilhosa, onde
vive a Morte, onde jazem os nossos reis mortos, e para onde Tuala já foi
conduzido. E por traz d'essa caverna fica uma camara secreta de que só
Gagula conhece o segredo. Corre tambem a historia de que, ha muitas
gerações, um branco veio aqui, e foi conduzido por uma mulher a essa
camara secreta, onde viu riquezas sem conto, mas d'essas que para os
Kakuanas nada valem: o branco porém não teve tempo de arrecadar essas
riquezas, porque a mulher o trahiu, e o rei d'esses tempos o escorraçou
outra vez para além das montanhas...
--A historia é verdadeira, acudi eu. Não te lembras, Ignosi, que nas
montanhas, na caverna de gelo, encontramos nós, petrificado, esse homem
branco?
--Muito bem me lembro. Por isso vou mandar chamar Gagula, e ordenar-lhe,
sob pena de morrer, que vos leve á camara secreta, meus amigos... E as
riquezas que encontrardes, oh meus amigos, são vossas!
N'esse instante dois guardas appareceram, trazendo agarrada pelos braços
a hedionda Gagula; que gania e os amaldiçoava. Mal a largaram, toda ella
se abateu e achatou sobre o chão--como um montão de trapos onde dois
olhos ferozes viviam e refulgiam.
--Que me queres tu, Ignosi? uivou ella. Não me toques, que te destruo.
Treme das minhas artes!
O rei encolheu os hombros.
--As tuas artes não salvaram Tuala. Que me importam as tuas artes? Aqui
está o que de ti quero: que mostres aos meus amigos a camara secreta
onde estão as pedras que reluzem.
--Só eu o sei, e nunca o direi! bradou ella. Os brancos malditos
voltarão, levando vasias as mãos malditas!
--Bem, volveu tranquillamente o rei. Então, Gagula, vaes morrer
lentamente.
--Morrer! gritou ella, cheia de terror e de furia. Tu não te atreverás,
Ignosi! Ninguem me póde matar. Que idade pensas tu que eu tenho? O teu
pae conheceu-me; e o pae do teu pae; e o pae que gerou a esse. Ninguem
ousará tocar-me, porque sobre esse cahirão as desgraças sem fim.
Em silencio, tranquillamente, Ignosi baixou sobre ella a ponta da sua
azagaia:
--Dizes?
--Não!
Ignosi baixou mais o ferro, picou de leve o montão de trapos onde
reluziam os dois olhos ferozes.
Com um uivo dilacerante, a horrenda bruxa poz-se em pé, de salto. Depois
tornou a cahir, e rolou no chão esperneando.
De novo a lança de Ignosi a procurava:
--Dizes?
--Digo, digo, oh rei! ganiu ella. Mas deixa-me viver, e sentar-me ao
sol, e respirar o ar dôce, e ter um osso para chupar!...
--Bem; ámanhã irás com meu tio Infandós e com os meus irmãos brancos a
esse logar, mostrarás a camara secreta e o escondrijo das pedras que
reluzem. Mas tem cautela! Que se em ti houver traição, morrerás devagar,
e em tormentos.
--Não, Ignosi! Irei com elles, e tudo mostrarei. Mas a desgraça vem a
quem penetra n'esse logar. Outr'ora veio um homem, encheu um saco
d'essas pedras brilhantes, e uma grande desgraça cahiu sobre elle! E foi
uma mulher que o levou, e que se chamava Gagula. Talvez fosse eu! Talvez
fosse minha mãe! Ou a mãe de minha mãe! Quem sabe? Será uma alegre
jornada... Eu hei de ir, e hei de rir! Vinde, homens brancos, vinde!
Vereis ao passar os que morreram na batalha, com os olhos vasios, as
costellas ôcas. A morte vive lá, e está á espera. Será uma alegre
jornada!


CAPITULO XIII
A GRANDE CAVERNA

Tres dias depois, ao escurecer, estavamos acampados n'um casebre
desmantelado, em frente das _Tres Feiticeiras_, as tres montanhas que
tantas vezes de longe avistaramos, desde a nossa chegada a Lú, e onde
deviam jazer, segundo a tradição dos Kakuanas e o roteiro do velho D.
José da Silveira, as minas das pedras que reluzem--as Minas de Salomão!
Tinhamos partido de Lú doze dias antes, acompanhados por Infandós, por
Fulata (que não deixára mais o «seu doente», o bom John), por Gagula que
vinha n'uma liteira, e por uma forte escolta de serviçaes e soldados. E
foi só no dia seguinte, ao amanhecer, que examinamos aquelle estranho
sitio, tão cheio de terror para os Kakuanas e para nós de maravilhosas
promessas.
Nunca eu esquecerei o momento em que, sahindo a porta das cubatas, na
primeira e fresca luz da manhã, vimos os tres montes isolados, em
triangulo, um á nossa direita, outro á nossa esquerda, o terceiro ao
fundo, em face de nós, erguendo magnificamente ao céo os seus cimos
resplandecentes de neve. Um tojo em flôr, d'um escarlate ardente, cobria
as poderosas fraldas dos tres montes--e seguia ainda, como um tapete
igual e continuo, pelos grandes descampados que os cercavam. A fita
branca da estrada de Salomão cortava a direito até á _Feiticeira_
central, a que formava a ponta do triangulo, onde findava brusca e
mysteriosamente. Ahi, junto d'esse monte, estavam as fabulosas minas,
que tinham sido o fim de tantos miseros destinos, o do velho fidalgo
portuguez, o do seu descendente, e decerto o d'aquelle que nós vinhamos
procurando desde o sul e por quem correramos tanto perigo e tanta
aventura! Todo o que buscar essas minas fabulosas (dizia Gagula)
encontrará desillusão e desastre. Seria essa a nossa sorte? Nós
chegavamos sob a protecção do rei, cercados de serviçaes e de guardas...
E apesar d'isso sentiamos pesar-nos sobre o coração, tristemente, a
prophecia da horrenda mulher.
No emtanto, quando nos puzemos a caminho, era tão viva a anciedade de
chegar e de vêr, que os carregadores da liteira de Gagula mal podiam
acompanhar a nossa carreira. A cada instante a velha bruxa gritava,
estendendo para nós, por entre os pannos da liteira, os braços
descarnados, as mãos em garra:
--Não vos apresseis, homens brancos! A morte está á vossa espera e não
foge! Para que vos esfalfar, correndo para ella? Certa e segura a
tendes!
Dava então uma risadinha que nos arripiava. Insensivelmente abrandavamos
o passo... Depois bem cedo o estugavamos de novo sob o impulso
irresistivel da curiosidade e da esperança!
Gastaramos assim hora e meia, trilhando a estrada de Salomão, e tendo já
deixado á nossa direita e á nossa esquerda as duas _Feiticeiras_ que
formam a base do triangulo--quando chegamos junto d'uma immensa cova
circular, em funil, offerecendo talvez trezentos pés de profundidade e
meia milha de circumferencia. Entre a herva e tojo, que interiormente a
forravam, surgiam grandes pedaços de greda azulada: quasi ao fundo
corria um canal para agua, talhado na rocha viva; e abaixo do nivel
d'essa obra estavam alinhadas umas poucas de mesas de pedra, polidas e
gastas pelo tempo. A cova, as mesas, a disposição do canal, a natureza
da greda azulada, tudo era semelhante ao que eu muitas vezes vira no
sul, nas minas de diamantes de Kimberley. Assim o disse aos amigos:--e
para mim ficou certo que alli houvera, em tempos, fossem nos de Salomão,
fossem n'outros mais recentes, uma mina de diamantes.
A estrada, ao abeirar-se da cova, dividia-se em dois ramos que a
circumdavam; e a espaços, esta via circular era feita de enormes lages
de pedra, com o fim certamente de solidificar as bordas da mina, e
impedir que se esboroassem. Mas o que mais nos surprehendia era, do
outro lado da vasta cova, um grupo de tres objectos, que se destacavam
como tres pequenas torres ou tres marcos colossaes. A curiosidade quasi
nos fez correr, deixando atraz Gagula e Infandós; e bem depressa
percebemos que o grupo era formado por tres immensas estatuas.
Conjecturamos logo que deviam ser os _Silenciosos_, esses idolos, tão
temidos pelos Kakuanas, e a quem offereciam os sacrificios sangrentos.
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