As Minas de Salomão - 12

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esborrachado por ella, sob ella. Forçal-a, só se tivessemos alli massas
de dynamite! Estava fechada para sempre! E nós alli fechados detraz
d'ella!
Durante momentos ficamos mudos, com os cabellos em pé, junto do cadaver
de Fulata. Toda a força de homens, a coragem de homens, fugia de nós
bruscamente. Eramos sêres inertes. E comprehendiamos agora todo o plano
monstruoso de Gagula--as suas ameaças, as suas ironias, o seu sinistro
convite para _bebermos_ e _comermos_ diamantes. Sim, era o que tinhamos
para beber e comer! Desde Lú, decerto, ella viera planeando a traição--e
só nos trouxera á caverna, para nos deixar lá dentro, morrendo junto dos
thesouros que appeteceramos!
--É necessario fazer alguma coisa, exclamou o barão, n'uma voz rouca.
Animo, rapazes! A lampada vai findar. Vejamos se, por um acaso, podemos
achar o segredo, a móla que move a rocha.
Recobramos um momento de energia, e, escorregando no sangue da pobre
Fulata, rompemos a apalpar anciosamente a porta e as paredes do
corredor. Não achamos nada, em mais d'uma hora de desesperada busca, que
nos esfolou as mãos.
--A móla, se tal móla ha, está do lado de fóra, disse eu. Foi por isso
que Gagula sahiu, como disse Fulata. Depois, se voltou, é porque se
queria certificar que estavamos bem entretidos com os diamantes...
Malditos sejam elles, e maldita seja ella!
--De resto, lembrou o barão, se a infame bruxa tentou fugir pela fenda é
que sabia bem que pelo lado de dentro não podia levantar a rocha. Não ha
nada a fazer com a porta. Vamos vêr outra vez, na camara.
Levantamos então com respeito e cuidado o corpo da pobre Fulata, fomol-o
collocar dentro, no chão, com os braços em cruz, junto das arcas de
dinheiro. Depois vim buscar o cesto de provisões. E sentados junto dos
cofres de pedra atulhados de riquezas que nos não podiam salvar,
dividimos as provisões em doze pequenos lotes, que, a dois repastos por
dia, nos poderiam sustentar a vida por dois dias. Além da caça fria e
das carnes sêccas tinhamos duas cabaças d'agua.
--Bem, jantemos, disse o barão, que é talvez o nosso penultimo jantar
n'este mundo.
Pouco era o appetite, naturalmente. Mas havia horas que estavamos em
jejum, e aquella parca comida, molhada com avaros goles d'agua,
reconfortou-nos e deu-nos um vago alento de esperança. Começamos então a
examinar systematicamente as paredes da nossa prisão, contando com a
remota possibilidade de que existisse, além da porta da rocha, outra
sahida. Esquadrinhamos todos os recantos, arredamos todas as arcas,
batemos as muralhas, sondamos o sólo, exploramos a abobada. Ficamos
exhaustos sem achar nada. A lampada espirrava e amortecia. Quasi todo o
oleo estava chupado.
--Que horas são, Quartelmar? perguntou o barão.
Tirei o relogio. Eram seis horas. Tinhamos entrado ás onze na caverna.
--Infandós ha de dar pela nossa falta, lembrei eu. Se nos não vir voltar
esta noite, decerto nos vem procurar...
--E então? exclamou o barão. De que serve? Infandós não conhece o
segredo da porta, ninguem o conhecia senão Gagula. Ainda que conhecesse
a porta, não a podia arrombar. Nem todo o exercito dos Kakuanas, com as
suas azagaias, póde furar cinco pés de rocha viva. Ninguem nos póde
salvar senão Deus!
Houve entre nós um longo, grave silencio. De repente a luz flammejou,
mostrando, n'um relevo forte, todo o interior da camara, o grande monte
dos marfins brancos, as arcas de dinheiro pintadas de vermelho, o corpo
da pobre Fulata estirado diante d'ellas, o saco de couro cheio de
diamantes, a vaga refracção que sahia dos cofres de pedra abertos, e as
lividas faces de nós tres, alli sentados a um canto, á espera da morte.
Depois a luz bruxuleou e morreu.


CAPITULO XV
NAS ENTRANHAS DA TERRA

Não me é possivel descrever com exactidão as agonias d'aquella noite. E
ainda assim a divina Misericordia permittiu que dormissemos a espaços.
Mas o brusco acordar, a cada instante, era pungente. Por mim, o que mais
me torturava era o _silencio_. Um silencio tenebroso, tangivel,
absoluto,--o silencio d'uma sepultura cavada nas profundidades rocheas
do globo, e onde todas as artilherias troando, e as trovoadas do céo
estalando, não poderiam fazer chegar a menor vibração de som, fosse elle
ao menos tão leve como um leve zumbir de mosca... E então, acordado, a
monstruosa ironia da nossa situação ainda mais me acabrunhava. Em torno
de nós jaziam riquezas incontaveis, bastantes para pagar as dividas de
muitos estados, construir frotas de couraçados, erguer palacios todos
feitos de ouro, saciar todas as fomes, satisfazer todas as
imaginações... E de que nos serviam? Uma pouca de pedra bruta sem valor,
mas que nós não podiamos quebrar com as nossas mãos, tornavam-nas
inuteis, tão sem valor como a propria pedra! Uma arca inteira de
diamantes dariamos nós com infinito prazer por um pouco de pão, ou por
outra cabaça d'agua. Mais! dariamos todas as arcas de diamantes pelo
privilegio de morrer de repente, sem sentir, sem soffrer! Na verdade, o
que é a riqueza? Sonho, estupida illusão!
--John, disse o barão, do seu canto, n'um dos momentos em que eu assim
pensava, quantos phosphoros te restam?
--Oito.
--Accende um, vê as horas.
A chamma quasi nos deslumbrou depois da intensa treva. Eram cinco horas
no meu relogio. A alvorada estaria agora clareando as alturas da serra!
A brisa espalharia o aroma do rosmaninho em flôr! Os soldados d'Infandós
começariam agora a mexer-se nas suas mantas, junto das fogueiras
apagadas--e as nascentes d'agua, junto d'elles, cantariam de rocha em
rocha. De assim pensar, as lagrimas humedeceram-me os olhos.
--Era melhor comermos alguma coisa, suggeriu o barão.
--Para que? exclamou John. Quanto mais depressa acabarmos com isto,
melhor!
--Emquanto Deus permitte a vida, é que permitte a esperança! respondeu o
barão gravemente.
Repartimos uma pouca de carne sêcca e d'agua. Emquanto comiamos, um de
nós lembrou que nos avisinhassemos da porta, e gritassemos com toda a
força, porque talvez Infandós, andando já na caverna á nossa procura,
ouvisse o remoto som das nossas vozes. John, que, como marinheiro, tinha
o habito de gritar, desceu o corredor ás apalpadellas, e começou a
berrar furiosamente. Nunca decerto ouvi uivos iguaes: mas foram tão
inefficazes como um murmurio de insecto. O resultado unico foi que John
voltou com a garganta resequida, e teve de chupar um trago da pouca agua
que restava. Gritar só nos fazia sêde. Desistimos d'esse esforço inutil.
De sorte que nos agachamos de novo junto dos cofres cheios de diamantes,
n'aquella horrivel inacção que era um dos nossos maiores tormentos. E eu
então cedi ao desespero. Deixei cahir a cabeça no hombro do barão, e
desatei a chorar. Do outro lado o pobre John soluçava tambem.
Grande alma, e corajosa, e dôce, era a do barão. Se nós fossemos duas
creancinhas assustadas, e elle a nossa mãe, não nos teria animado e
consolado com maior carinho. Esquecendo a sua propria sorte, fez tudo
para nos serenar, contando casos de homens que se tinham encontrado em
lances terrivelmente iguaes, e que milagrosamente tinham escapado.
Depois levava-nos a considerar que, no fim de tudo, nós estavamos
simplesmente chegando áquelle fim a que todos têm de chegar, que tudo em
breve acabaria, e que a morte por inanição é suave (o que não é
verdade). E emfim, com um modo differente, pedia-nos que nos
abandonassemos á misericordia de Deus, e lhe rogassemos, na nossa
miseria, um olhar dos seus olhos piedosos. Natureza adoravel, a d'este
homem! Quanta serenidade, e quanta força! Eu por mim acolhia-me a elle
como a um grande refugio. E por sua exhortação, rezei e serenei.
Assim passou o dia (se tal treva se póde chamar dia), até que accendi
outro phosphoro, olhei o relogio. Eram sete horas! Pensamos então em
comer.
E quando estavamos dividindo a carne sêcca, occorreu-me de repente uma
idéa estranha:
--Porque é, disse eu, que o ar aqui se conserva tão fresco? É um pouco
espesso, mas é fresco.
--Santo Deus! exclamou John erguendo-se com um pulo. Nunca pensei
n'isso! Com effeito é fresco... Não póde vir de fóra pela porta de
pedra, porque reparei perfeitamente que ella gira dentro de quelhas...
Tem de vir de outro sitio. Se não houvesse uma corrente d'ar, deviamos
ficar suffocados, quando aqui entramos hontem... Agora mesmo deviamo-nos
sentir abafados. Evidentemente o ar é renovado. Vamos a vêr!
Ainda elle não findára, já nós andavamos, de gatas, ás apalpadellas, na
escuridão, procurando sofregamente qualquer indicação de buraco ou
fenda, por onde entrasse ar. Houve um momento em que pousei a mão no
quer que fosse de gelado. Era a face da pobre Fulata, já rigida.
Durante uma hora ou mais, passamos assim apalpando todos os cantos, até
que o barão e eu desistimos, esfalfados, e todos pisados de ter
constantemente batido com a cabeça nos muros, nos dentes de elephante, e
nas esquinas das arcas. Mas John continuou, sem perder a esperança,
declarando que «era melhor aquillo que pensar na morte, de braços
cruzados».
De repente, teve uma exclamação:
--Oh rapazes! Aqui! vinde cá.
Com que precipitação corremos para o canto d'onde elle fallára!
--Quartelmar, ponha aqui a mão, onde está a minha. Ahi. Que sente?
--Parece-me que sinto um fio d'ar.
--Agora ouça!
Ergueu-se, e bateu com o pé no chão. Uma immensa esperança
relampejou-nos n'alma. A lage _soava ôco_.
Com as mãos a tremer accendi um phosphoro. Estavamos n'um recanto, de
que ainda não suspeitaramos--e aos nossos pés, na lage que pisavamos, e
como encrustada n'ella, havia uma grossa argola de pedra. Não tivemos
uma palavra, na immensa excitação que de nós se apoderou. John tinha uma
navalha, com um d'esses ganchos que servem para extrahir pedras pequenas
das ferraduras dos cavallos. Ajoelhou e começou a raspar com o gancho,
em torno da argola. Raspou, raspou--até que conseguiu introduzir a ponta
do gancho sob a argola, levantal-a pouco a pouco, pôl-a a prumo. Depois
deitou-lhe as mãos, e puxou desesperadamente. Nada se moveu.
--Deixai-me vêr a mim! exclamei com impaciencia.
Agarrei, pondo toda a minha força no puxão contínuo e intenso.
Escalavrei as mãos. A pedra não se moveu. Depois foi o barão.
Sentiamol-o gemer. A pedra não se moveu.
De novo John se atirou de joelhos, e com o gancho da navalha raspou em
redor a frincha por onde nós sentiamos como um debil halito de ar. Em
seguida tirou um grosso lenço de sêda que lhe envolvia o pescoço, e
passou-o na argola.
--Agora, barão! Mãos ao lenço, e puxar até rebentar! Quartelmar, agarre
o barão pela cinta, e puxem ambos quando eu disser... Um, dois, _vá_!
Em silencio, com os dentes rilhados, puxámos, puxámos--até que eu sentia
rangerem os ossos do barão. Era elle que fazia o esforço maior, com os
seus enormes braços de ferro. E foi elle que sentiu a pedra mexer...
--Agora! agora! Está cedendo! Mais! Ála, ála! Héh!
Um estalo, uma rajada brusca d'ar, e rolámos estatelados no chão, com a
pedra por cima de nós. Fôra a immensa força do barão que fizera o
prodigio. Que grande coisa, a força!
--Um phosphoro, Quartelmar! exclamou elle, erguendo-se ainda arquejante.
Accendi o phosphoro. E, louvado Deus! vimos diante de nós os primeiros
degraus d'uma escada de pedra!
--E agora? perguntou John.
--Descer! E confiar em Deus!
--Esperai! gritou o barão. Quartelmar, veja se apalpa e acha o resto da
comida e da agua. Quem sabe onde iremos parar?
Achei logo as provisões, que estavam junto da arca de pedra, cheia de
diamantes. E já enfiára o cesto no braço, quando pensei nos diamantes...
Porque não? Quem sabe? Talvez por mercê divina, achassemos uma sahida!
Não fazia mal nenhum, á cautela, metter um punhado de diamantes na
algibeira!... Se chegassemos a sahir d'aquella horrivel cova, não teriam
sido ao menos inuteis todas as nossas angustias. Um punhado de diamantes
nada pesava! E ao acaso, mergulhei a mão na arca e comecei a encher
todos os bolsos da minha rabona. Depois atulhei as algibeiras das
pantalonas. Já abalava, quando voltei ainda, com uma idéa, á arca onde
estavam as pedras mais graúdas. E encafuei uma enorme mão cheia d'elles
para dentro da algibeira do peito. O contacto vivo d'aquellas riquezas
fez-me pensar nos outros.
--Oh rapazes! Não quereis levar uns poucos de diamantes? Eu enchi as
algibeiras.
--Diabos levem os diamantes, disse do canto o barão, impaciente. Até me
faz nauseas a idéa de diamantes! É marchar, é marchar!
Emquanto ao amigo John, esse nem respondeu. Creio que estava de joelhos,
junto do corpo de Fulata, dando o ultimo adeus áquella que por elle
morrera!
Quando nos achamos juntos do alçapão, já o barão descera o primeiro
degrau.
--Eu vou adiante, segui devagar.
--Cuidado, gritei eu! Póde haver por baixo algum medonho buraco. Vá
tenteando... Mão encostada sempre á parede...
O barão desceu contando os degraus. Quando chegára a «quinze» parou.
--É um corredor, gritou elle debaixo. Descei!
Quando chegámos ao fundo, accendi um dos dois phosphoros que nos
restavam. Á luz que elle deu, vimos um pequeno espaço, onde se
encontravam em angulo recto dois tunneis muito estreitos. O phosphoro
morreu, queimando-me os dedos. E ficámos n'uma horrivel hesitação! Qual
dos tunneis seguir? John então lembrou-se que a chamma do phosphoro se
inclinára para a banda do tunnel da esquerda. Portanto o ar vinha pelo
tunnel da direita. Era por esse que deviamos caminhar, demandando o lado
do ar.
Aceitámos a idéa. E apalpando sempre a parede, não arriscando um passo
sem tentear o sólo, seguimos n'esta nova e incerta aventura. Ao fim d'um
quarto de hora de marcha lenta, esbarrámos n'um muro. Era outro tunnel
transversal, por onde continuámos cosidos com o muro. Depois d'esse
topámos outro, que o cruzava em angulo agudo. Depois havia outro, mais
largo. E assim durante horas. Estavamos n'um labyrintho de rocha viva.
Para que tivessem servido outr'ora estas innumeraveis passagens
subterraneas, não sei dizer--mas tinham a apparencia de galerias de
mina.
Finalmente parámos, esfalfados, com a esperança meia perdida. Comemos os
restos das provisões, bebemos os derradeiros goles d'agua. Tinhamos
escapado de morrer nas trevas d'uma cova de diamantes--para vir talvez
morrer nas trevas d'uma mina vasia...
Quando assim estavamos sentados no chão, encostados ao muro, n'um
infinito desalento--eu julguei ouvir um som, debil e vago, como a
distancia. Avisei os outros, escutámos sem respirar. E todos muito
claramente distinguimos um _som_. Era muito tenue, muito remoto,--mas
era um som, um som murmurante e contínuo.
--Santo Deus! exclamou John. É agua a correr! Tenho a certeza que é agua
a correr.
N'um instante estavamos de pé, caminhando para o som. A cada passo o
sentiamos mais distincto, mais claro, na immensa mudez do tunnel. Sempre
para diante, sempre para diante! O som ia crescendo. Por fim era um
ruido forte, o ruido d'uma corrente d'agua. Mas como podia haver agua
corrente n'estas entranhas da terra?... E todavia, com certeza, alli
perto corria agua com força. John, marchando adiante, jurava que lhe
percebia já a humidade e o cheiro.
--Devagar, John, devagar! gritou o barão. Devemos estar perto...
De repente um baque n'agua, um grito de John! Tinha cahido.
--John! John! onde estás? berrámos, perdidos de terror. Falla! Falla!
Que allivio, quando a voz d'elle nos veio de longe, suffocada.
--Salvo. Agarrei-me a uma pedra! Accendei um phosphoro para eu vêr onde
estaes!
Raspei o meu ultimo phosphoro. Á sua luz tremula vimos aos nossos pés
uma immensa massa d'agua, correndo com grande força. Que largura tinha
não percebemos... Mas a distancia distinguimos a fórma vaga do nosso
companheiro, pendurado d'um penedo agudo.
--Preparai para me agarrar, gritou elle de lá. Vou nadar para ahi!
Outro baque, uma grande lucta de braços batendo a agua. Depois junto de
nós um resfolegar ancioso. E por fim uma exclamação do barão, que
agarrára o nosso amigo pelas mãos, o puxára para dentro do tunnel, a
escorrer.
--Irra! balbuciava John, offegando. Estive por um fio. É uma corrente
furiosa e parece-me que não tem fundo.
Evidentemente, d'este lado nada conseguiamos. De sorte que, depois de
John descançar, de bebermos á farta d'aquella agua que era deliciosa, e
de lavarmos a cara, deixámos as margens d'aquelle tenebroso rio, e
retrocedemos ao comprido do tunnel, com John adiante, tiritando e
pingando. Depois de andarmos um quarto de hora--chegámos a outro tunnel,
que se inclinava para a direita e parecia mais largo.
--Seguimos este, disse o barão inteiramente desalentado. Todos elles são
iguaes. O melhor é andarmos, andarmos, até cahir ahi para um canto, sem
poder mais, á espera da morte.
Durante muito, muito tempo, mudos, em fila, arrastámos os passos na
treva, atraz do barão, cujas fortes pernas já frouxeavam.
De repente esbarrámos com elle--que estacára, como attonito.
--Quartelmar! exclamou elle, agarrando-me convulsivamente o braço. Eu
estou a delirar ou aquillo além é luz?
Arregalámos desesperadamente os olhos. E com effeito, lá ao longe, ao
fundo do tunnel, vimos uma pallida, vaga mancha de claridade, pouco
maior do que um vidro de janella! Com outro alento de esperança
estugamos o passo. Momentos depois toda a duvida cessára,
deliciosamente. Era _luz_--uma desmaiada mancha de luz! Tropeçavamos uns
contra os outros na nossa anciedade. Mais viva, cada vez mais viva a
luz! Por fim, um ar fresco bateu-nos a face!... Mas de repente o tunnel
estreitou. Caminhamos curvados. Depois estreitou mais. Gatinhamos, de
mãos no chão. E estreitou ainda, como uma toca de raposa. Fomos de
rastos. Mas a rocha findára. Era terra, terra friavel, que se
esboroava... Um empuxão, um gemido, e o barão furou, e John furou, e eu
furei--e sobre as nossas cabeças luziam as bemditas estrellas, e na
nossa face batia uma aragem dôce!
De repente faltou-nos o chão, e todos tres, á uma, rolámos, de
escantilhão, por um declive abaixo, de terra molle e humida, entre capim
e tojo... Agarrei uma coisa e parei. Estonteado, coberto de lôdo, berrei
pelos outros, desesperadamente. Um brado em resposta veio de baixo,
d'uma terra chã onde o barão fôra parar. Resvalei até lá, e fui
encontrar o nosso amigo atordoado, sem folego, mas intacto. Gritámos
então por John. E uns _olás_ arquejantes guiaram-nos ao sitio onde uma
raiz de arvore, em que ainda estava acavallado, o detivera no
desesperado tombo.
Sentámo-nos então todos tres na relva--e vendo-nos fóra da funebre
caverna, salvos, sãos, a respirar outra vez o ar da terra, a emoção foi
tão forte que começámos a chorar de alegria. Seguramente fôra Deus
misericordioso que nos guiára por aquelle tunnel, para aquelle buraco,
que era a porta da Vida! E agora, a manhã que julgavamos nunca mais vêr,
estava roseando o topo dos montes.
Á sua luz bemdita vimos então que nos achavamos no fundo, ou quasi no
fundo, d'aquella immensa cova circular que fôra outr'ora a mina de
Diamantes. Lá no alto, já podiamos distinguir as confusas fórmas dos
tres colossos. Sem duvida aquelles corredores por onde tinhamos
vagueado, tão angustiosamente, communicavam outr'ora com as
Diamanteiras. E emquanto ao tenebroso rio... Mas que nos importava agora
o rio? A luz do dia clareava. Estavamos envolvidos na luz do dia! Só
isto era essencial e dôce de saber!
Não podiamos deixar todavia de pasmar para as nossas figuras.
Escaveirados, esgazeados, rotos, cheios de pisaduras, com camadas de pó
e de lama, sangue nas mãos e sangue nas faces--eramos, na verdade, tres
espantalhos medonhos. Mas não havia a pensar em nos sacudirmos ou nos
ageitarmos. Aquelle fundo da cova, humido e regelado, era perigoso para
corpos como os nossos tão exhaustos. De sorte que começámos, com lentos
e custosos passos, a trepar as ladeiras ingremes, através da greda
azulada, agarrando-nos ás raizes, e agarrando-nos ao tojo, n'um esforço
ultimo que nos esvaía. Ao fim d'uma hora estava terminada a façanha--e
os nossos pés tremulos pisavam outra vez a estrada de Salomão. A umas
cem jardas adiante brilhava uma fogueira junto de cabanas, e em volta
d'ella estavam homens. Para lá caminhámos, amparando-nos uns aos outros,
e parando, meio desmaiados, a cada passo incerto. De repente um dos
homens que se aquecia ao lume ergueu-se, avistou-nos--e atirou-se de
bruços ao chão, tremendo, gritando de medo.
--Infandós, Infandós, somos nós, teus amigos!
Elle levantou a cabeça, depois o corpo. Por fim correu para nós, com os
olhos esbugalhados, e ainda tremendo todo:
--Oh meus senhores! Sois vós! Sois vós! Voltaes do fundo dos mortos!...
Voltaes do fundo dos mortos!...
E o velho guerreiro, abraçando-se ao barão pelos joelhos, rompeu a
soluçar de alegria.


CAPITULO XVI
A PARTIDA DE LÚ

Dez dias depois estavamos de novo em Lú--nas nossas confortaveis cubatas
de Lú, á sombra dos machabelles. E poucos vestigios nos restavam
d'aquella atroz aventura, além dos muitos cabellos brancos que eu
trazia, e da melancholia em que cahira o nosso pobre John, com o coração
ainda cheio de Fulata.
É inutil accrescentar que não tornámos a penetrar no thesouro de
Salomão--apesar de sagazes e methodicas tentativas. N'aquelle dia em que
Infandós nos acolheu como a resuscitados, nada fizemos senão comer,
dormir, descançar, gozar o sol. Logo no dia seguinte porém, descemos com
uma escolta á grande cova, na esperança de encontrar o buraco por onde
tinhamos furado para a luz e para a vida. Foi debalde. Em primeiro logar
chovera copiosamente de noite, e todas as nossas pegadas tinham
desapparecido; mas além d'isso os declives em funil da enorme cava
estavam por todos os lados cheios de buracos, uns naturaes, outros
feitos por bichos. Qual d'elles nos salvára entre tantos milhares?
Impossivel descobrir!
Depois d'isso voltámos á caverna de stalactites, affrontámos outra vez
os horrores da Camara dos Reis Mortos: e durante muito tempo rondámos
diante da muralha de pedra, para além da qual jaziam inaccessiveis para
sempre os maiores thesouros da terra, para sempre guardados funebremente
pelo esqueleto da pobre Fulata. Mas, apesar de examinarmos a muralha
durante horas, de a apalpar, de martellar sobre ella, não nos foi
possivel achar o segredo da porta,--sob a qual jaziam pulverisados os
fragmentos da hedionda bruxa, que com a sua traição só ganhára a sua
perda. Emquanto a forçar aquelles cinco pés de rocha viva, quem podia
pensar em tal feito? Nem todo o exercito dos Kakuanas, trabalhando
annos, lograria passar através. Só com dynamite,--ou trazendo pelo
deserto poderosas machinas. E assim, lá estão ainda, n'esse remoto canto
de Africa, os thesouros, que desde os tempos biblicos tanto têm
fascinado a imaginação dos homens. Um dia talvez, quando a Africa toda
estiver civilisada, cortada de estradas, coberta de cidades, alguem mais
feliz que nós, e com os incalculaveis recursos da sciencia d'então,
penetrará no vedado thesouro, e será rico além de toda a phantasia!
Esse, se jámais existir, encontrará lá, como vestigio da nossa passagem,
as arcas abertas e os ossos da pobre Fulata, e uma lampada apagada. A
esse tempo já estará perdida a memoria d'este livro, contando a estranha
aventura. E esse explorador futuro mal suspeitará então, ao dar com o pé
n'esses ossos, ao remexer essas riquezas, que tres homens do seculo XIX
passaram alli um dos mais tragicos lances que jámais foi dado a homem
passar...
Devo todavia accrescentar que, materialmente, a nossa estada na caverna
não foi de todo inutil. Como contei, ao abandonarmos o thesouro, eu tive
a esplendida precaução de atulhar as algibeiras de diamantes. Muitos
d'estes, e sobretudo os maiores, cahiram, ficaram perdidos, quando eu
rolei pelos declives da cova. Mas ainda me restou nos bolsos uma enorme
quantidade. Não lhe posso calcular o valor. Deve ser immenso! Supponho
que trouxemos ainda diamantes bastantes para sermos todos tres
millionarios, e possuirmos os tres mais ricos adereços de joias que
existam no mundo. Em resumo, no ponto de vista economico, a aventura não
gorou.
Em Lú, fomos acolhidos pelo rei Ignosi com grande amizade e regozijo.
Apesar de fundamente absorvido nos cuidados d'um Reinado que começa (e
sobretudo na reorganisação do exercito) estivera em grande inquietação
durante a nossa longa demora nas Minas. E foi com ardente curiosidade
que escutou a nossa maravilhosa historia.
A noticia da morte de Gagula foi para elle um allivio immenso.
--Quem sabe, murmurou elle, se depois de vos deixar morrer no sitio
escuro, não acharia ainda artes de me matar a mim tambem!
Para commemorar a nossa volta Ignosi deu um banquete e uma dança. E foi
n'essa noite, ao fim da festa, no terreiro real, onde brilhava o luar,
que nós annunciámos ao rei o nosso desejo de deixar emfim o seu reino, e
regressar á nossa patria.
Ignosi primeiramente pareceu espantado. Depois cobriu a face com as
mãos:
--O que vós annunciaes, exclamou elle por fim, retalha o meu coração!
Sempre pensei que de todo ficarieis commigo. Para que foi então, oh
valentes, que me ajudastes a ser rei? O que quereis? O que vos falta?
Mulheres? Campos? Gados? Toda a terra que é minha, é vossa. Escolhei! É
uma casa como as que os brancos habitam no Natal que vos falta? Os meus
homens, ensinados por vós, edificarão uma entre jardins... Dizei! E cada
um dos vossos desejos tem já a minha promessa de rei.
--Não, Ignosi, não! acudi eu. O que nós simplesmente desejamos é voltar
para as nossas terras.
Elle então sorriu com amargura. Sim, bem percebia! Nos nossos corações
nunca houvera amor por elle, mas só cubiça das pedras que brilham. Agora
tinhamos as pedras para vender, para recolher dinheiro... Estava
satisfeito o vil desejo do branco. Que importava pois o amigo que ficava
chorando? Malditas fossem as pedras, e idos fossemos nós bem cedo!
Eu pousei-lhe a mão no braço:
--Escuta, Ignosi! As tuas palavras não vêm do teu coração. Escuta.
Quando tu andavas exilado na Zululandia, e depois entre os homens
brancos do Natal, não sentias tu o desejo da terra d'onde vieras, e de
que tua mãe te fallava? Não se te voltavam os olhos para o Norte, para
onde estavam os campos e as senzalas onde tu nasceras, onde brincáras
com as ovelhas, onde os velhos que passavam no caminho tinham conhecido
teu pae?...
--Assim era, Macumazan, assim era! exclamou o rei commovido.
--Pois do mesmo modo o nosso coração deseja a terra em que nascemos.
Ignosi baixou a cabeça.
--As tuas palavras, como sempre, Macumazan, vêm cheias de verdade e
razão. Sim, tendes de partir. E eu ficarei triste, porque não mais me
chegarão noticias vossas, e vós sereis para mim como mortos!
Esteve um momento pensando, com o dedo pousado na testa. Depois chamou
os chefes mais idosos, annunciou a nossa partida, ordenou que fossemos
acompanhados pelo regimento dos _Pardos_ até ás montanhas, e d'ahi com
uma escolta e com guias levados pelo caminho do Oasis (de que elle só
recentemente tivera noticia), e que nos pouparia todos os trabalhos da
passagem das serras. Em seguida, erguendo a mão jurou ante os chefes que
não permittiria jámais que nenhum branco entrasse no seu reino a
procurar as pedras que brilham:--mas que nós poderiamos voltar sempre
porque eramos os irmãos do seu coração! E por fim decretou que os nossos
nomes fossem considerados sagrados como os nomes dos Reis Mortos--e que
assim se proclamasse por todo o reino, de montanha em montanha.
--E agora ide! Ide antes que os meus olhos vertam lagrimas como os d'uma
mulher. Quando estiverdes, longe, nas vossas casas, junto das vossas
lareiras, pensai por vezes em mim... Adeus! Adeus para sempre, Incubú,
Macumazan, Boguan, grandes homens e meus amigos!
Ergueu-se; esteve um momento olhando fixamente para nós, um por um;
depois escondeu a cabeça no seu manto de pelle de leopardo, e fugiu para
dentro da senzala real.
Nós afastamo-nos em silencio, e com o coração pezado.
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