As Minas de Salomão - 09

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as mãos fortes dos guardas. E com grandes lagrimas que lhe cahiam, ficou
toda, toda a tremer.
O medonho Scragga teve uma risada bestial:
--Como ella treme, como ella treme diante da minha força!
--Ah canalha, se te apanho a geito! rosnou o capitão, apertando na mão o
rewolver.
No emtanto Gagula, com atroz zombaria, animava a desgraçada:
--Socega! Dize o teu nome. Vem, filha! Não temas!
--Oh mãe! balbuciou a pobre creatura entre soluços, n'uma voz que
desfallecia. Oh mãe! O meu nome é Fulata, e sou da casa de Suko. Mas
porque hei de eu morrer, eu que não fiz mal nenhum?
--Tens de morrer, proseguiu a hedionda velha, para contentar os que
vigiam além na montanha. Mais vale dormir de noite que trabalhar de dia.
Mais vale estar quieta e morta que agitada e viva. E tu, filha ditosa da
casa de Suko, vaes morrer ás mãos reaes do filho do nosso rei.
Olhei anciosamente para o sol. Nada! Um brilho impassivel, que achei
quasi cruel!
No emtanto a pobre Fulata, apertando desesperadamente as mãos,
supplicava, com gritos de angustia:
--Oh mãe, oh rei, não me deixeis morrer!... E eu tão nova! Pois nunca
mais hei de vêr a aringa de meu pae? nem embalar meus irmãos pequeninos?
nem cuidar dos cordeiros doentes? E porque? Mandaram-me aqui para dançar
e eu dancei! O meu noivo está lá fóra á minha espera! Minha mãe ficou
sentada debaixo das machabelles até que eu volte para mugir as vaccas...
E porque hei de eu morrer? Nunca fiz mal nenhum; e no terreiro da nossa
casa deixava sempre cahir grãos de aveia para os passaros levarem aos
ninhos...
Nas proprias faces dos guardas e dos chefes perfilados junto a Tuala se
espalhava um ar de piedade. Muitas raparigas soluçavam baixo. E
subitamente, o capitão John, sem se poder conter mais, arrancou o
rewolver da cinta e fez um movimento tão saliente, de tão clara
intervenção--que a rapariga viu, n'um relance comprehendeu...
Desprendendo-se dos guardas, que a seguravam frouxamente, veio
arrojar-se aos pés de John, abraçando-lhe as pernas núas:
--Oh pae branco, que vens das estrellas! gritava ella. Deixa acolher-me
á sombra da tua força... Salva-me d'estes homens, e de Gagula, a mãe que
é tão cruel...
Tornei a olhar para o sol... E com um allivio, uma alegria tão intensa
que ainda hoje o recordal-a me aquece o coração, vi uma linha de sombra,
muito fina ainda, surgindo á orla do disco radiante!
--O eclipse! gritei eu para os outros. John, conserve ahi a rapariga
atraz! E armas na mão, rapazes!
Immediatamente, avancei para o rei:
--Tuala, exclamei com firmeza e arrogancia. Nós, gentes das estrellas,
não podemos consentir n'esta maldade! Tal não será! Deixa que a rapariga
volte para a sua morada!
Tuala ergueu-se com um pulo brusco de surpreza e de colera. E dos
chefes, das agitadas filas de mulheres, subiu um murmurio que era de
assombro, e talvez de esperança.
--_Não consentis_! bramiu o rei, com o olho sangrento dardejando lume. E
quem és tu, perro branco, para vir latir contra o leão na sua caverna?
_Tal não será_! E como o podes tu impedir? Vai talvez a tua vontade
prevalecer contra a minha força? Scragga, mata a creatura! E vós
guardas, olá, agarrai esses homens!
Uma multidão de soldados surgiu, correndo, detraz da aringa real. O
barão, Umbopa e o capitão (com Fulata agarrada a elle) vieram pôr-se ao
meu lado de carabinas apontadas.
Outro olhar meu ao sol! A linha de sombra, lenta e gradualmente,
avançava sobre o globo rutilante. Com esplendida confiança, ergui a mão,
bradei:
--Parai! Nós, os filhos das estrellas, decidimos que a rapariga não
morrerá! E se alguem ousar ir contra a nossa vontade, ou avançar contra
nós um passo, nós, os magicos das grandes artes, _apagaremos o sol_ e
mergulharemos o mundo em trevas!
O effeito foi tremendo. Os soldados estacaram. E Scragga ficou diante de
nós, com a lança erguida no ar, como uma figura de pedra. Mas Gagula
erguera-se, sacudindo os braços com furor:
--Ouvi, ouvi o grande mentiroso, que diz que apaga o sol como um lume da
terra! Pois que o faça, e a rapariga irá livre para a sua morada! Mas se
o não fizer, oh rei, que elle morra com ella, e com elle morram os cães
malditos que vêm latir contra ti!
Sem mais, ergui a mão solemnemente para o sol (movimento que logo
imitaram John e o barão) e rompi a bradar. Não me lembro já das coisas
absurdas que tumultuosamente atirei ao divino astro. Recitei-lhe versos
de Shakespeare, pedaços da Biblia, proverbios, datas, nomes de firmas
commerciaes que me acudiram, as ruas da cidade do Cabo,--que sei eu?
Tudo o que me affluia aos labios, e que fosse _em inglez_, na lingua
magica. Ousei mesmo espantosas familiaridades com o respeitavel centro
do systema planetario. Gritava: «Anda-me assim, solzinho da minha alma!
P'ra diante, valente! Deixa avançar essa rica sombra! Ah que estás um
catita, meu astro! Mais, mais!...»
E o sol obedecia! A mancha escura, nitida e convexa, avançava, comia a
luz immortal. Um grande susurro de terror agitava a multidão. Volvi
então a fallar kakuana, livremente:
--Vê tu, oh rei! Vê tu, Gagula! Vêde vós, oh chefes! Mentem então os
homens das estrellas? Quizestes a treva eterna, eil-a que vos vem
tragar!... Oh sol, pae de tudo, reluzente e triumphante, retira a luz,
some-te á nossa ordem, mata o mundo com escuridão e frio, e, que sem ti,
parem para sempre estes corações crueis!... O sol vai morrer!
Gritos de terror resoavam já no terreiro. As mulheres, cahidas de
joelhos, choravam, implorando misericordia. E o rei, calado, tremia.
Só Gagula resistia ao pavor:
--Vai passar, vai passar! uivava ella. Eu já vi o sol assim. Ninguem o
póde apagar. Ficai quietos! Socegai! A sombra vem e vai... Eu já vi, eu
que sou a mais velha, e conheço os segredos!
Eu por mim animava os companheiros:
--Vá, rapazes! Já não sei que hei de dizer ao sol. Veja se se lembra de
alguns versos, barão. Tudo serve, até pragas!
E John, admiravel marinheiro, rompeu então a praguejar. Foi sublime.
Teve todas as pragas classicas,--e teve-as ineditas. Nem eu suppunha
mesmo que a Humanidade possuisse, no seu vocabulario, uma tal riqueza de
blasphemias! O que o Rei do Dia ouviu!
No emtanto a mancha negra alastrava. Estranhas, sinistras sombras
fluctuavam no ar. Uma triste quietação descia sobre a terra. Todos os
passaros se tinham calado. Ao longe os cães uivavam.
E a mancha crescia, crescia... A atmosphera tornára-se espessa. Já mal
distinguiamos as faces crueis da gente real. Esmagadas de temor, as
mulheres nem tugiam. Por fim John parou a torrente de invectivas. E o
que restava do sol parecia uma luz agonisante.
--O sol morreu! berrou de repente Scragga. Os bruxos das estrellas
mataram o sol! Tudo vai morrer nas trevas!...
E fosse o delirio do medo ou da raiva, ergueu a azagaia, arremessou-a a
toda a força contra o peito do barão. Mas a cóta de malha repelliu o
ferro. E antes que elle podesse revibrar o golpe, o barão arrancára-lhe
a lança das mãos e passou-lh'a através do coração. Com um uivo hediondo,
Scragga tombou morto.
Quasi nada restava da luz. Era como se tudo acabasse conjuntamente, o
sol, o mundo, e a descendencia do rei! N'um terror indizivel, a multidão
de raparigas largou fugindo, em confusão e gritos, para as portas da
aringa. Foi um panico estonteado. Os guardas, arrojando as armas,
galgavam as estacadas. Os chefes, aos saltos por cima dos escabellos,
desappareciam como lebres. E por fim, o proprio e ferocissimo rei, com
Gagula atraz, arremetteram para as cubatas, ganindo n'um pavor vil. Uma
debandada--que nos deixou sós, eu, os amigos, a pobre Fulata ainda
agarrada a John, Infandós, os chefes que conspiravam, e o cadaver de
Scragga.
--Chefes! gritei eu. Eis o milagre que tinhamos promettido. Sabei agora
que Ignosi é o rei unico e forte. O feitiço está trabalhando. Corramos
para a cidadella que dissestes, emquanto a treva dura!
--Vinde! exclamou Infandós, segurando-me pela mão. E vós todos segui! O
dia é nosso!
Ao chegarmos á porta da aringa, a luz findou inteiramente.
Agarrados uns aos outros pelas mãos, com Fulata no meio, fomos
tropeçando através da escuridão. Dentro das senzalas ouviamos gemidos de
terror. E para o augmentar, lançavamos a espaços, através da treva, um
lugubre brado de revolta e de guerra:
--Morte a Tuala!


CAPITULO IX
ANTES DA BATALHA

Durante mais de uma hora caminhamos, através da escuridão, guiados por
Infandós e pelos chefes--até que de novo surgiu, como um fino traço
luminoso, a orla do sol. D'ahi a pouco havia já luz sufficiente; e
achamo-nos então longe de Lú, junto de uma larga collina, de duas fartas
milhas de circumferencia, em fórma de ferradura, e toda ella
inteiramente plana no topo. Desde tempos immemoriaes, aquelle planalto
fôra (segundo nos disse Infandós) aproveitado como acampamento
permanente, e ordinariamente occupado por uma guarnição de tres mil
homens. N'essa manhã, porém, á maneira que iamos trepando os flancos da
collina, á luz já viva e quente do sol, descobriamos successivos
regimentos, formando uma divisão de dezoito ou vinte mil homens, quasi
todos veteranos. Estavam ainda sob o espanto e terror da mysteriosa
treva que de repente os envolvera. E foi em silencio que passamos
através das suas filas cerradas, em direcção a um grupo de cabanas que
se erguia a meio do planalto. Com surpreza e grande alegria encontramos
lá dois servos, á espera, carregados com todas as nossas bagagens,
cantinas, e munições que n'essa manhã deixaramos nas cubatas de Lú.
N'uma trouxa as calças de John. Com que sofreguidão elle as envergou,
pudico homem!
--Fui eu que mandei vir tudo, á cautela! explicou o serviçal Infandós.
Quem sabe quantos dias estaremos n'este deserto!
Como não havia tempo a desperdiçar, o velho e activo guerreiro deu ordem
para que se formassem as tropas immediatamente. Era necessario antes de
tudo (disse elle) aclarar aos regimentos os motivos da revolta já
decidida pelos chefes, e apresentar-lhes Ignosi, o legitimo rei por quem
iam combater.
Meia hora depois os regimentos (a flôr do exercito dos Kakuanas) estavam
em formatura nos tres lados d'um immenso quadrado. Do lado aberto
ficamos nós com Ignosi, o velho Infandós e os chefes conjurados. Logo
que um arauto intimou silencio--Infandós avançou: e com um calor, um
enthusiasmo, irresistivelmente persuasivos, narrou a historia de Ignosi,
o seu nascimento real, a serpente tatuada na cinta, a tragica morte de
seu pae á mão de Tuala, a sua fuga através dos montes, o seu exilio
entre estranhos. Depois retraçou o reinado cruento de Tuala, os seus
crimes, as suas espoliações, as frias e inuteis crueldades. Em seguida
contou como os homens brancos das estrellas, que de lá de cima tudo
vêem, se tinham compadecido da grande afflicção que ia no reino dos
Kakuanas; como tinham ido então buscar Ignosi, o rei legitimo, ás terras
distantes onde elle definhava no exilio, e o haviam trazido pela mão,
através dos areaes e dos montes, ao paiz de seus paes; como n'essa
manhã, para mostrar a Tuala e a todos o seu poder magico, e provar aos
chefes descontentes que Ignosi era rei, elles com as suas artes tinham
apagado, e depois tornado a accender o sol; e como, emfim, esses magicos
que nenhuma força vencia estavam dispostos a derrubar Tuala, o falso
rei--e pôr em seu logar Ignosi, o rei verdadeiro!
Apenas elle findára, entre um longo murmurio de approvação, Ignosi deu
dois passos, e, alteando a sua nobre estatura, appellou para as
tropas.--Ellas tinham ouvido Infandós, seu tio! Cada palavra d'elle
luzia como a verdade. Os Kakuanas agora só podiam escolher entre Tuala,
o monstro que os roubava, os trucidava, e cobria a terra de horror e
desordem,--e elle, rei legitimo, que não permittiria mais no reino a
caça aos feiticeiros, nem matanças de festa, nem castigos sem
julgamento, nem a oppressão dos mais fortes... Pelo contrario, sob elle,
só haveria paz e abundancia! A todos os que alli estavam e o ajudassem
daria cubatas, mulheres e gados:--e todos, ganha a victoria sobre Tuala,
iriam viver nas suas senzalas bem providas, em descanço e alegria para
sempre. De resto, os homens das estrellas estavam com elle, a seu lado,
para manter os seus direitos. E quem podia ir contra a força das suas
artes magicas? Não tinham elles visto o sol apagado, depois outra vez
brilhante, á ordem dos espiritos brancos?
Um rumor de acquiescencia, de adhesão, corria já entre as tropas. Ignosi
então recuou um passo, e erguendo no ar o seu formidavel machado de
guerra:
--Eu sou o rei! Na verdade vos digo que sou o rei! E se ahi ha alguem,
d'entre vós, que diz que eu não sou o rei, que sáia a terreiro, se bata
commigo, e bem cedo o seu sangue correndo no chão provará que na verdade
sou rei. Escolhei pois entre mim e Tuala, oh chefes, soldados, vós
todos! Sou eu o rei!
--És o rei! foi a universal, acclamadora resposta, que atroou toda a
collina.
--Bem! Tuala está mandando já emissarios a reunir os seus homens para
nos combater. Os meus olhos estão abertos, e verão aquelles que mais
fieis me são, e que merecerão mais terra, mais gado, mais riqueza. E
agora ide, e preparai-vos para as batalhas, em defeza do vosso rei!
Houve um silencio. Um dos chefes ergueu a mão; e os vinte mil homens,
ferindo o sólo com as azagaias, soltaram a grande saudação real--_krum_!
_krum_! _krum_! Ignosi estava acclamado rei. Os batalhões immediatamente
recolheram aos seus acampamentos. No planalto reinou silencio e ordem.
Logo depois celebramos um conselho de guerra, com todos os capitães. Era
evidente que em breve seriamos atacados pelas tropas fieis a Tuala. Já
do alto da nossa collina nós viamos regimentos marchando, a
concentrar-se em Lú--e um incessante movimento de armas por toda a
estrada de Salomão. Do nosso lado contavamos com vinte mil homens.
Tuala, segundo o calculo dos chefes, poderia ter reunidos na manhã
seguinte trinta e cinco a quarenta mil soldados. Mas d'esses, muitos
eram recrutas; e a forte flôr do exercito, os veteranos endurecidos, os
capitães de experiencia estavam felizmente comnosco, sobre a collina da
Revolta.
O primeiro cuidado era fortificar a nossa posição. Começámos por
obstruir com grossos rochedos todos os carreiros que subiam da planicie.
Nos pontos mais accessiveis erguemos estacadas e trincheiras.
Accumulámos á orla do planalto montes de pedras para arremessar sobre os
assaltantes. Aqui e além cavámos fossos. E, como todo o exercito
trabalhava, ao fim da tarde a collina fôra convertida em cidadella.
Justamente antes do pôr do sol, vimos um grupo de homens que de uma das
portas de Lú avançava para nós, fazendo soar um tam-tam. Um d'elles
trazia na mão uma palma verde. Era um arauto.
Ignosi, Infandós, dois ou tres chefes, eu e os amigos descemos ao seu
encontro. Vimos um soberbo homem, ainda moço, com a pelle de leopardo
aos hombros.
--Saude! gritou elle, parando e agitando a palma. O rei envia o seu
saudar áquelles que lhe fazem uma guerra infiel. O Leão envia o seu
saudar aos chacaes.
--Falla! bradei.
--Estas são as palavras do rei:--«Entregai-vos á minha mercê, antes que
a minha forte mão cáia sobre vós!»--Assim disse o rei. Já foi arrancada
ao toiro negro a espadoa direita! Já o rei o anda enxotando
ensanguentado em volta ao acampamento![2]
--Quaes são as condições de Tuala? perguntei por curiosidade.
O arauto declarou que as condições eram misericordiosas e dignas de um
grande rei. Muito pouco sangue o contentaria. De cada dez homens um
seria morto, os outros perdoados; mas o branco Incubú que matára
Scragga, o servo Ignosi que pretendia o seu trono, e Infandós que
preparára a rebellião, seriam postos a tormentos, em sacrificio aos
_Silenciosos_. Taes eram as misericordiosas condições do rei.
Consultei um instante com os chefes, e repliquei, n'um tom estridente
para que todos os soldados ouvissem, por sobre a collina:
--Volta para Tuala que te mandou, oh cão, filho de cão! E dize-lhe em
nome de Ignosi, legitimo rei, e de Infandós, seu tio, e dos homens das
estrellas que apagam o sol, e de todos os chefes e soldados aqui juntos,
dize a Tuala--que antes que o sol dê duas voltas o cadaver de Tuala
jazerá hirto e frio no terreiro de Tuala... Vai e treme, oh cão, filho
de cão!
O official riu, com arrogancia:
--Não se assustam homens com palavras inchadas! Ámanhã se verá em que
terreiro e que corpos jazerão hirtos e frios. Adeus pois, homens das
estrellas. Para meu proprio regalo espero que tenhaes o braço tão forte
como tendes ousada a lingua!
Com este sarcasmo o valente voltou costas. Quasi immediatamente a noite
desceu.
Á luz da lua ainda continuaram os trabalhos da defeza. Depois, já por
noite alta, quando tudo se completára, o barão, Ignosi e eu,
acompanhados por um dos chefes, descemos a collina a visitar os postos
avançados. Á maneira que caminhavamos, viamos de repente surgir dos
sitios menos esperados, de uma cova na terra, de uma moita de arbustos,
de um montão de rochas, alguma enorme figura emplumada, com a ponta da
azagaia rebrilhando á lua, que, trocada a palavra de passe, logo se
sumia, como dissolvida na sombra das coisas. A vigilancia era realmente
perfeita. Demos assim toda a volta á collina, que tornamos a subir pela
vertente norte, através das companhias de soldados adormecidos. A lua
batia nas lanças ensarilhadas. Aqui e além uma sentinella destacava
immovel, com as suas altas plumas ondeando á brisa fria da noite. E os
robustos homens escuros, estirados no chão, uns contra os outros, no
confuso abandono da fadiga e do somno, formavam como um vasto montão de
humanidade já prostrada e preparada para a sepultura. Quantos d'aquelles
estariam ainda vivos quando na outra noite de novo nascesse a lua?
Estranha fatalidade e tristeza da vida! Muitos d'esses tinham alegria e
paz nas suas aringas. Um principe ambicioso passava. E eis que milhares
que alli dormiam um somno tranquillo cahiriam, varados por lanças,
seriam frios cadaveres, desappareceriam em pó impalpavel, sem de si
deixar mais vestigio que folhas de arvores que um vento leva. E nós
mesmos--quem sabe? Tornariamos nós a vêr a lua brilhar n'aquella
collina?
--Barão, disse eu de repente, dando voz a estes pensamentos, sinto-me
n'um lamentavel estado de atrapalhação e de medo.
--O amigo Quartelmar costuma sempre queixar-se...
--Não, não! D'esta vez é serio. Nem sinto as pernas. Nós ámanhã somos
atacados com forças colossalmente superiores e não escapa um de nós. É
estupido! E para que? Não temos nada com as questões dynasticas dos
Kakuanas! Somos estrangeiros, somos neutros!
--É verdade. Mas já agora, estamos envolvidos na aventura e é necessario
leval-a a cabo airosamente. E depois, que diabo, Quartelmar! Mais vale
morrer de repente, n'uma batalha, que durante mezes na cama!...
Eu pensei commigo (e bem estupidamente) que o melhor era não morrer nem
n'uma cama, nem n'uma batalha. E d'ahi a instantes recolhiamos á nossa
estreita senzala, a dormir algumas horas antes da grande acção.
Infandós veio-nos acordar ao romper da alvorada, dizendo que se
observavam já do lado da cidade movimentos de tropas, e que já ligeiras
escaramuças tinham obrigado as nossas sentinellas avançadas a recolher.
Começámos logo, febrilmente, os nossos preparativos. O barão, pelo
principio de que na «Kakuania se deve ser Kakuano», armou-se e
enfeitou-se como um guerreiro selvagem--pelle de leopardo aos hombros,
enorme pluma de abestruz presa á testa, cintura de rabos de boi, escudo
de ferro coberto de couro branco, machada de combate, facalhões de
arremessar, azagaia, todo o complicado armamento d'um chefe negro. E
devo confessar que assim armado e emplumado era uma esplendida e
formidavel figura! O capitão John não causava tanta impressão. Em
primeiro logar insistira em conservar as calças que Infandós lhe
obtivera; e um cavalheiro baixote e gordote, de monoculo, suissa d'um
lado e a cara rapada do outro, com uma cóta de malha de ferro mettida
para dentro das pantalonas, grande lança e chapéo côco, offerece na
realidade um espectaculo mais estranho que imponente. Eu por mim, ao
contrario, tinha tirado as calças para correr mais lesto se tivessemos
de retirar: mas a fralda da camisa apparecia-me por baixo da cóta de
malha: um facalhão que pendurára á cinta batia-me lamentavelmente nas
canellas: o escudo enfiado no braço entanguia-me os movimentos: e sentia
em geral que não apresentava para combate uma figura sufficientente
heroica. De sorte que espetei uma immensa pluma no meu bonet de caça--e
procurei dar ao rosto uma expressão de ferocidade. Além do arsenal de
armas selvagens, tinhamos naturalmente as nossas carabinas, que tres
soldados atraz conduziam com os sacos de munição.
Apenas armados, engulimos á pressa o almoço, e abalámos. N'uma das
extremidades do planalto do monte havia uma especie de casebre de pedra,
que servia ao mesmo tempo de quartel-general e de torre de vigia.
Encontrámos ahi Ignosi, magnificamente emplumado e apetrechado. Com elle
estava Infandós: e como guarda real o regimento de Infandós, decerto o
mais numeroso e aguerrido de todo o exercito. Este regimento tinha por
nome os _Pardos_, porque usava plumas pardas na cabeça. Era composto de
tres mil praças; e estava collocado de reserva, deitado em ordem e por
companhias sobre o capim que alli crescia. Os chefes, n'um grupo, junto
do casebre, com as mãos em pala sobre os olhos, observavam o movimento
das tropas de Tuala--que vinham n'esse momento sahindo de Lú em longas
columnas semelhantes a formigueiros.
Cada uma d'essas columnas tinha de onze a doze mil homens. Logo que
sahiram as portas de Lú e se acharam na planicie pararam: depois,
formadas em batalha, marcharam uma para a direita, outra para a
esquerda, a terceira em direcção á nossa collina.
--Bom, murmurou Infandós, vamos ser atacados por tres lados!


CAPITULO X
O ATAQUE DA COLLINA

Devagar, em perfeita ordem, as tres columnas avançaram. A da direita e a
da esquerda, separadas, e obliquando como para envolver e cercar a nossa
posição: a do centro, direita sobre nós, marchando por aquella lingua da
planicie que entrava pela nossa collina dentro--collina que (como disse)
tinha a fórma d'uma meia lua com as duas pontas voltadas para a cidade
de Lú. A umas quinhentas jardas esta columna parou--dando tempo a que as
outras circumdassem a nossa posição. O plano das gentes de Tuala era
evidentemente dar, por cada lado, á nossa cidadella um assalto
simultaneo e brusco.
--Ah! suspirou John, olhando aquellas multidões espalhadas em baixo,
quem tivera aqui uma metralhadora!
--Nem fallemos n'essa delicia! exclamou o barão com igual pezar. Em todo
o caso, Quartelmar, veja se a sua carabina chega até áquelle maganão, de
pelle de leopardo, que parece commandar a força.
Carreguei tranquillamente a carabina com bala, agachei-me por traz d'uma
pedra e apontei. O pobre commandante de pelle de leopardo avançára das
fileiras uns trinta passos, seguido por uma ordenança, a examinar a
nossa posição; e erguia justamente o braço quando eu lhe mandei uma
bala. Tombou sem um movimento mais, com a face no chão. Os nossos
regimentos espantados, acclamaram este milagre do homem das estrellas; e
eu (tanto a guerra nos endurece o coração) gostei d'estes applausos.
Creio mesmo que agradeci, como um actor! No emtanto o barão apontára a
um outro official, que correra a recolher o cadaver do camarada--e que,
por seu turno, bateu com os braços no ar, cahiu morto. A força inimiga,
aterrada, começou logo a recuar. Os nossos uivavam de deleite e de
furor. John juntára-se a nós com a sua carabina; e antes que a divisão
se tivesse retirado para fóra do nosso fogo, abatemos uns dez ou doze
homens. Como _effeito moral_ parecia excellente.
De repente, porém, ouvimos um immenso clamor á nossa direita, e um
clamor igual á nossa esquerda. Eram as duas columnas circumdantes que
nos atacavam. Immediatamente a massa de homens em frente de nós rompeu
avançando por aquella lingua de planicie que penetrava em subida suave
no interior da nossa meia lua. Vinham n'um passo vivo, certo, elastico,
que cadenciavam entoando um canto rouco. Começamos de novo a fazer fogo.
Muitos homens cahiram. Mas era como se atirassemos pedras a uma grande
vaca de equinoxio. A maré humana subia.
Subia com grandes brados, repellindo os nossos postos, collocados entre
as rochas, á base da collina. A sua marcha porém diminuia de impeto, á
maneira que a subida se convertia em ladeira, depois em ingreme pendôr
de monte. Ahi onde começava o monte, estacionava a nossa primeira linha
de defeza. Já de lado a lado, entre as forças, se começavam a atirar as
_tollas_, grandes facas de arremesso que faiscavam no ar. Os que
avançavam vinham bradando: _Tuala, Tuala_! _Chielè, Chielè_! (mata,
mata!) Os nossos replicavam: _Ignosi, Ignosi_! _Chielè, Chielè_! As
primeiras azagaias entrechocaram-se; e, com o encontro, peito a peito,
das duas massas de homens, na vertente da collina, a batalha começou.
As forças que atacavam eram esmagadoras; e a nossa primeira linha, onde
os homens cahiam como folhas no outono, cedeu, e reentrou na segunda
linha de defeza. A lucta aqui foi terrivel; mas os nossos recuaram, e a
terceira linha entrou em batalha á orla já do planalto. O barão, cujos
olhos se accendiam, não se conteve mais. Brandindo a sua machada de
guerra, arremessou-se para o meio do combate, seguido do capitão John.
Ao avistar a gigantesca figura do «homem das estrellas» que vinha em seu
soccorro, os nossos soldados bradaram com enthusiasmo:--_Nanzie Incubú_!
(Ahi vem o elephante!) _Chielè, Chielè_! E, carregando com redobrado
vigor, em poucos momentos repelliram a divisão de Tuala, que, já
cançada, sem poder romper a sebe viva de lanças que a continha, voltou a
descer a collina em confusão. N'esse instante tambem um mensageiro
esbaforido veio annunciar a Ignosi (ao lado de quem eu ficára) que o
ataque na esquerda da serra fôra rechaçado; e já eu e Ignosi nos
congratulavamos, quando, com grande horror, vimos os nossos, que estavam
defendendo a direita, vir correndo pelo planalto, acossados por
multidões inimigas, que evidentemente n'aquelle ponto tinham rompido as
nossas linhas.
Ignosi bradou uma ordem. Immediatamente o regimento dos _Pardos_ se
desdobrou, para reter a debandada dos nossos, rechaçar a invasão. E, sem
que eu comprehendesse bem como, instantes depois achei-me envolvido
n'uma furiosa carnificina. Tudo o que me lembra é o estridente ruido dos
escudos de ferro entrechocando-se--e logo adiante a apparição d'um
enorme bruto furioso, com os olhos sangrentos a saltarem-lhe das
orbitas, que erguia sobre mim uma longa azagaia. O meu rewolver
findou-lhe os furores para todo o sempre. Mas quasi em seguida, senti
uma pancada na cabeça--e quando tornei a abrir as palpebras, estava no
casebre do quartel-general, deitado n'uma esteira, com o excellente John
ao meu lado, velando.
--Então, exclamou elle anciosamente, pondo no chão a cabaça d'agua com
que me borrifava.
Antes de responder, ergui-me muito devagar, apalpei com cuidado o meu
precioso corpo.
--Bem, obrigado. Estou perfeitamente bem!
--Graças a Deus! Quando o vi, trazido n'uma padiola, deu-me uma volta o
coração!
--Não, não foi d'esta! Levei só uma bordoada, supponho eu. E a batalha?
--Por hoje repellimos a pretalhada do rei. Mas perdemos perto de dois
mil homens. Veja aquelle horror, Quartelmar!
E o bom John mostrava fóra o terreiro, convertido n'um hospital de
sangue. Para transportar os seus feridos, os Kakuanas usam um longo e
esguio taboleiro com uma argola a cada canto. E d'estes taboleiros,
postos no chão, cada um com o seu homem, havia longas filas--por entre
as quaes caminhavam, curvados, os cirurgiões Kakuanas. O methodo d'estes
clinicos é simples o piedoso. Se a ferida se apresenta curavel, o
soldado é besuntado com os unguentos nativos, e isolado nas senzalas. Se
a ferida é incuravel ou muito grave, o cirurgião, com uma lanceta, corta
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