Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 04

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Silvina, que elle tinha atadas com um barbante n'uma bolsa interior da
mala. Passou á ingenuidade da galhofa que lhe fizeram na «Assembléa»
narrando as miudezas da casaca, e expoz o collete ginja e a gravata das
orelhas fabulosas. E terminou em tom de lastima, accusando a perfidia da
mulher a quem elle quizera dar o seu nome.
Egas de Encerra-bodes, depois de provar que na linhagem de Silvina havia
um reles sargento-mór e um capitão de milicias, afóra duas bastardias e
um filho sacrilego no seculo XVI, entrou a fuzilar colera dos olhos,
tocando no ponto mais grave dos queixumes do neto do governador de
Cochim.
--Eu, dizia elle batendo no peito com a mão aberta, eu, primo
Christovão, na sua posição teria açoutado os perros que o escarneceram
na «Assembléa.» Esses que riram de Christovão Pacheco é a villanagem,
cujos paes vieram para o Porto de rabona de cotim, chapéo braguez, e o
tamanco herdado. Os nossos caseiros, quando a liberalidade de nossos
paes, lhes concedia poderem enroupar de cotim os filhos, mandavam-os
para aqui. Os filhos d'esses que para aqui vieram, primo, são os
insultadores da risada boçal, os miseraveis que através da casaca, da
pelle da luva, e do verniz das botas, estão accusando o costado proprio
do fardo, o pé que reclama o tamanco, e a mão que suspira pelo cabo da
enxada. Tenho visto esse gentio nos botequins, e por sobre o hombro
observo os risos de grosseira mofa com que recebem o despreso dos que
elles denominam _parvalheiras_. Parvalheiras, a nós, primo, que temos em
nossas casas a educação que elles tem entre as balanças, e timbramos em
honrar os appellidos de nossos avós, descendo até elles para que elles
não subam até nós. Se quer vêr quanto é villã a basofia d'estes
tendeiros, que trocam por titulos ceiras de figos e costaes de bacalhau,
tenha o primo a longanimidade de os admittir á sua convivencia, e verá
como se elles desfazem em lorpas cortezias, e citam a cada instante o
seu nome, como um dos seus amigos d'elles... Vamos ao ponto essencial.
Christovão Pacheco foi ultrajado. Um primo de Egas de Matto-grosso não é
ultrajado impunemente.
Tem um rival, primo?
--É de crer que sim.
--Fidalgo?
--Isso não sei.
--Cumpre sabêl-o.
Uma hora depois entraram fardos de fato feito no quarto do morgado de
Santa Eufemia, e logo botas do sapateiro francez, e chapéos da melhor
fabrica. Vestiu-se Christovão Pacheco, e era de vêr em que gentil moço
se transfigurou, e que nova alma entrou n'aquelle corpo. Se elle tivesse
lido frei Luiz de Sousa, aquelle esbelto cortezão que se sepultára no
frade, recordaria estas palavras escriptas com tanta sciencia do absurdo
coração do homem: «É nossa natureza muito amiga de si, e experiencia nos
ensina que não ha nenhuma tão mortificada que deixe de mostrar algum
alvoroço para uma peça de vestido novo. Alegra e estima-se, ou seja pela
novidade, ou pela honra e gasalhado que recebe o corpo: até os
pensamentos e as esperanças renova um vestido novo.»[2]
Assim foi o morgado de Santa Eufemia. Quando se viu, desconheceu-se.
Outro corpo e outra alma. Olhava para o polimento das botas, e o vidrado
d'ellas reverberava-lhe na alma em lampejos de alegria. Não se cançava
de correr a mão pela macia seda do chapéo, e remirava-se ao espelhinho
que o imaginoso chapelleiro enquadrára no centro da copa. Com o que elle
se ia zangando foi com as luvas de nove pontos e meio, que gemiam pelas
costuras, com a pressão do dedo polegar que queria á força entrar com os
outros de uma assentada. O do Matto-grosso explicou ao primo os
mysterios da luva, com muito mais siso que um certo folhetinista do
Porto inventor dos mysterios da dança. No Porto ha gente para inventar
tudo quanto ha.
Os dous morgados sahiram da «Aguia d'Ouro» no domingo posterior áquelle
em que Silvina fallára um momento com Jorge, no jardim. Para o jardim
foram tambem elles, seguindo Silvina e Francisca, que saturam da missa
dos Congregados. Quando subiam a rua de Santo Antonio, um grupo de
elegantes, para quem a physionomia do morgado ficára indelevel, desde o
baile, pararam maravilhados da reforma, fixando-o com impertinente
reparo.
O morgado de Matto-grosso estacou em frente do grupo, e disse:
--Ora vamos: andem, ou desandem!
Os elegantes abriram alas, encarando-se mutuamente com um ar de pasmados
da propria docilidade.
--Bravo! exclamou Leonardo Pires, que seguia de perto os morgados.
Egas de Encerra-bodes voltou-se rapido para o da Maya, e disse mal
assombrado:
--Que é lá isso?
--Disse _bravo_!--replicou Pires com serena jovialidade, porque gostei
immenso de vêr aquelles bigorrilhas ladearem á esquerda e direita, e
comprehendi a razão porque elles pararam contemplando este cavalheiro
que eu vi, _mutatis mutandis_, no baile da Assembléa Portuense. Eu
honro-me tambem de ser parvalheira, e como tal me apresento, pedindo-lhe
que me recebam no numero dos seus conhecidos em quanto me não conhecerem
digno da sua amisade. Sou da Maya, da familia dos Pires e Albuquerques,
e primeir'annista da faculdade de direito. Tenciono formar-me porque não
tenho que fazer, e não me conformo á vida de meus antepassados, que
viviam dos galgos e dos cavallos. Abomino cordialmente o Porto; mas ha
aqui uma mulher que me tem preso a esta terra pela fibra vingativa d'um
coração nobre. Aqui estou esperando a hora de provar-lhe que senão
brinca com um homem que tem esculpidas no seio as maximas herdadas de
avós.
Pires foi fallando n'este estilo até ao jardim. O morgado de
Matto-grosso, scismando com o que seria no _livro dos costados_ a
familia de Pires e Albuquerques da Maya, escassamente ouviu o enfatuado
palavrorio do mettidiço. Christovão ia um pouco desconfiado da
bacharelice de Pires, que já o tratava por «vossê» quando entrou no
jardim.
Lá estava Silvina. Rodeavam-na alguns cavalheiros do Minho,
censurando-lhe a crueldade com que abandonara o morgado de Santa
Eufemia. D. Francisca da Cunha chanceava com remoques os patronos da
victima do collete-ginja. A fidalga de Freixieiro, esporeada pela prima,
fazia tambem riso do morgado, calando os rumores da consciencia que a
não louvava. Era, pois, certo que o coração d'esta menina, degenerado
acaso do seu bom natural, em poucos mezes de pratica de outra sociedade,
se estava doendo de ter desconfessado, no baile, o amor de um homem,
cuja mão tres mezes antes apertára com fervoroso amor e esperança de ser
d'elle.
Jorge Coelho presenciava de longe, e cioso, a attenção que Silvina dava
aos cavalheiros minhotos. Não os conhecia, para afoutar-se a entrar na
roda, e interrogar com uma palavra vaga o coração de Silvina. Esta,
porém, repellindo com desdenhosa philosophia os pesares que secretamente
a remordiam, ergueu a fronte desanuviada, poz os olhos nos de Jorge, e
fez uma ligeira cortezia, que todos julgaram ser um aceno para chamal-o.
A este tempo chegavam, perto de Silvina, Egas de Encerra-bodes,
Christovão de Valladares, e Leonardo Pires. O do Matto-grosso
comprimentou alguns primos que estavam na roda; e o de Santa Eufemia,
voltando as costas para as senhoras, respondia, sem saber o que, a
algumas perguntas d'um cavalheiro. O inquieto Pires, furando por entre
todos, foi apertar a mão a Silvina, e dizer-lhe que estava o ideal da
quinta essencia das fadas, com o que D. Francisca se riu, e riso fôra
aquelle que abrira na testa de Pires um vinco dos que promettem
cataclismos.
--Dá-me novas de Jorge?--disse Pires a D. Silvina.--Eu cheguei hontem da
Maya, e não pude ainda encontral-o no hotel. O amor reduzil-o-ia a
Sylpho, minha senhora?--proseguiu o estabalhoado, mordendo o charuto ao
canto esquerdo dos beiços, e arqueando os braços na cintura.
--O seu amigo, disse Silvina, em voz alta, para desaffrontar-se da
grosseira postura do morgado--está defronte de mim.
Pires fez uma pirueta sobre o calcanhar direito, fitou a luneta no
condiscipulo, contemplou-o da altura da sua critica, volveu de novo o
rosto risonho para a dama, e disse:
_Sobre a pyra fumegante,_
_Ardem ternos corações._
D. Francisca deu largas a uma risada estridula. Silvina sorriu
prasenteiramente á tolice. Alguns morgados receberam o dito como cousa
de espirito. Pires, contente do seu auditorio, ia retirar-se quando o
morgado de Santa Eufemia, voltando a cara jubilosamente soez para o
grupo, soltou uma cascalhada secca e desafinada que assanhou cruelmente
os nervos de Silvina.
Todos estes movimentos foram seguidos de outro mais significativo. Os
olhares convergiram todos sobre Jorge, que ficou encarnado até ás
orelhas. Alguns dos cavalheiros murmuraram o quer que fosse, e
nomeadamente Egas de Encerra-bodes fitou-o insolentemente, e disse a
meia voz:
--É aquelle?!
--Pelos modos!--respondeu o primo.
--Pobre criança! é preciso dizer ao pai que o mande buscar.

VIII.
Tinha Leonardo Pires, á volta com muita pequice, assomos de brios
capazes de enganar a gente. Não levou em paciencia que os morgados
rissem do seu amigo. Encarou com ferocidade o de Matto-grosso, e disse,
estendendo o braço em attitude esculptural para o lado onde Jorge
estava:
--Aquella criança, que alli está, tem um dedo de homem, que faz recuar
perfeitamente o gatilho de uma pistola.
Os circumstantes algum tempo não tugiram. Se não fosse o melodramatico
da postura, a cousa não era para rir; mas a lentidão, com que Pires
desceu o braço, fez espirrar uma cascalhada universal, salvo Silvina que
arquejava em ancias de raiva.
Jorge conheceu que o escarneciam. Ergueu-se, veiu direito ao grupo,
accendeu o charuto no de Egas de Encerra-bodes, murmurou seccamente um
_obrigadissimo_, e foi saudar Silvina e Francisca com a desenvoltura
desacostumada que lhe dava agora o ciume e a ira.
Silvina, contente da façanha, deu-lhe lugar immediato no seu banco.
Porém, o pai de D. Francisca da Cunha, adivinhando tempestade nos
olhares coriscantes de Christovão Pacheco, ergueu-se, puxou para baixo
as pantalonas que tinham marinhado até meia-canella, e disse:
--Vamos, meninas, são horas de jantar; vamos ás sopas.
Levantou-se Jorge, sem ter dito palavra; mas Silvina, estendendo-lhe a
mão, de sorte lh'a apertára e sacudira, que fez evidente a intenção de
tornar bem reparado o feitio, muito de notar-se em menina de sua idade e
educação aldeã.
Mal as damas voltaram costas, o morgado de Santa Eufemia foi bruscamente
a Jorge Coelho, e disse-lhe:
--O senhor é um petisco! Não se me ande a fazer fino, quando não...
Jorge respondeu assim á brutal arremettida:
--A phrase é de carreiro; e, se não é carreiro quem me insulta, deve de
ser um embriagado.
Leonardo Pires dá um passo á frente de Jorge, põe a mão no peito, e
exclama nem facundo nem irado:
--Eu sou insultado na pessoa do meu amigo: exijo uma satisfação.
O fidalgo de Traz-os-Montes, fazendo signal de retirada á filha e
sobrinha, entremetteu-se no grupo que se ia cerrando, abriu os braços, e
tirou do peito estas memoraveis palavras:
--Os senhores estão aqui desacreditando a provincia. Se querem ser o que
lá no matto são os homens de figados, peguem em dous carvalhos
cerquinhos, e deem até tocar a quebrado; mas não queiram que os botem ás
gazetas ámanhã. A minha opinião é esta. O menino vá para um lado--disse
a Jorge, empurrando-o com brandura--e o senhor morgado para outro. Em
quanto á rapariga, minha sobrinha, ámanhã eu a porei em casa do pai.
Jorge, tirado pelo braço de Pires, sahiu do jardim, e pôde ainda vêr nos
olhos de Silvina, um movimento de radioso orgulho da bravura d'elle.
Na tarde d'esse dia recebeu Jorge a primeira carta de Silvina que resava
assim: «_É bello ser amada por um homem de coração e esforço. É bello
poder testemunhar a desaffronta do homem que se ama; mas é triste não
poder, na presença de Deus e dos homens, dizer-lhe:_--TUA POR TODA A
VIDA!»
O academico da Maya ouvira lêr a carta, e disse, com quanta vehemencia
lhe permittiu a posição horisontal n'um canapé, e as pernas sobre as
costas d'uma cadeira:
--Essa mulher tem espirito, palavra de honra! Amor e estilo, amigo
Jorge, são o alpha e omega d'esta humanidade perfeita em que tivemos a
dita de cahir das nuvens. De que diabo serve a rhetorica com que
estragamos a memoria em Coimbra, não me dirás?! Se o padre Cardoso, que
fez um compendio da arte de fallar, escrever uma carta como essa, diz tu
que eu sou um parvo e que me não hei-de vingar da Francisca da Cunha!
Diante d'estes talentos brutos, sem mão d'obra, como é o da tua Silvina,
os Quintilianos e os Longinos ficam no tremedal da sua protervia
explicando a _enallage_ e o _hyperbaton_. Oh! o estilo é muito mais a
mulher que o homem! Eu dispensava bem tres partes do coração na mulher
que me soubesse acepilhar e lapidar um periodo! Ha lá nada mais lindo? A
formosura fenece como as flôres; o estilo fica. Silvina, a eloquente
Silvina, quando de pura velhice não tiver aquelles dentes de marfim e
esmalte, ficará com a bocca cheia de phrases melodiosas, como o canto do
cysne. Tu és feliz, Jorge, mas a mesada deve estar nas vascas da morte.
Estás sem vintém?
--Não; meu tio padre mandou-me cincoenta mil réis para lhe eu comprar
dez volumes da Encyclopedia Catholica, e eu...
--Já devoraste cinco volumes em _rost beef_, e luvas brancas e charutos,
não é verdade?
--E minha mãi encommendou-me duas peças de durante, e não sei que mais,
que está esperando ha oito dias... Hontem recebi d'ella uma carta, que
me fez pena e saudade...
--Tem estilo?--interrompeu Pires, sentando-se estabalhoadamente.
--Não brinques com cousas sagradas: minha mãi não tem estilo, e n'esta
carta o que me diz é copiado do seu livro de orações.
--Ora essa!... Isso é original! Deixas-me vêr a carta-jaculatoria de tua
mãi?
--Deixo... Aqui a tens... eu leio.
Jorge Coelho, commovido, leu o seguinte:
«Abro o meu livro de orações e copio estas palavras para que meu Jorge
as leia:--A infeliz mãi, cujo filho começa a frequentar as sociedades
põe toda a sua esperança na protecção de Maria. Começa o joven mancebo
por alguns desmanchos que fazem conceber grandes receios ácerca do
restante da sua idade. A mãi assim lh'o diz, e dá os mais ternos
conselhos; elle, porém, rebella-se contra aquelle tão puro affecto,
contra aquella dolorosa previsão de mãi, e assomando-se lhe pergunta
porque duvida de sua honra e prudencia, e acrescenta: Parece-vos o meu
comportamento reprehensivel, porque não frequentaes a sociedade: eu faço
o que fazem todos.--Infeliz!--a mãi exclama--que te deitas a perder por
isso que fazes o que todos fazem.--Ri o insensato dos temores maternos,
e adianta-se ás cegas n'um caminho semeado de escolhos. Tudo está posto
em aventura: a honra n'este mundo, e a salvação no outro. Não sabe a mãi
o que faça para salvar o objecto de tantas lagrimas e crueis angustias.
Vê perdido o filho, e perdido para sempre. Maria, porém, consoladora dos
afllictos se lhe mostra como dôce visão... E a mãi afflicta, de joelhos,
com as mãos postas, exclama: «Ó Maria, auxilio dos christãos, salvai meu
filho, rogai por elle!»--Jorge, eu orei com estas palavras: a Mãi de
Jesus ha-de ouvir-me, e fallar-te commigo ao coração. Vem, vem para nós:
teus irmãos chamam-te com saudade, e eu com lagrimas.»
Leonardo Pires respeitou a commoção de seu amigo, e principiava um
discurso de molde segundo o caso pedia, quando o morgado de
Matto-grosso, e outro dos cavalheiros que entrava na roda do jardim,
assomaram na porta.
--Temos duello--disse a meia voz, Pires, entalando no olho direito o aro
circular da luneta e esguelhando a bocca.--Queiram entrar--proseguiu
elle, adiantando-se para a porta--se é que entende com o meu amigo Jorge
a honra da visita dos cavalheiros.
Egas de Encerra-bodes entrou e disse:
--Vem aqui commigo o snr. Theotonio Tinoco Pitta de Lucena, da casa da
Trofa, fidalgo tão antigo como o solar dos Lucenas. O snr. Jorge não me
conhece. Eu sou primo do morgado de Santa Eufemia: tenho dito de sobra
para justificar o meu nascimento.
--Ha-de perdoar-me--disse Pires,--não precisava v. exc.ª dizer tanto
para justificar o seu nascimento...--E atalhou logo a ironia vendo que o
vulto do morgado se anuviava de mau agouro:--o senhor morgado é tido e
havido na conta de muito bom sangue da provincia...
--E do melhor de Portugal--cortou logo Egas--Vamos ao ponto da nossa
missão. Christovão Pacheco de Valladares manda perguntar ao snr. Jorge
Coelho se algum de seus avós lhe transmittiu o fôro que torna iguaes no
campo da honra, nobre com nobre, as pelejas do pundonor aggravado.
Jorge ficou atalhado com o espavento da pergunta, e ia pedir explicação
da linguagem que lhe fez lembrar o tedioso Clarimundo, quando Pires,
sacudindo as borlas do seu rob-de-chambre respondeu:
--Jorge Coelho herdou de seus avós a honra, é quanto basta. Na sala do
palacio de Cintra não está lá o escudo dos Coelhos, porque o cobre a
mortalha da
«_..............misera e mesquinha_
_Que depois de ser morta foi rainha._»
Jorge por sua mãi, é Sepulveda, appellido que traz á memoria o caso
miserando, aquelle naufragio de que por ventura das letras patrias
nasceu um poema!...
--Deixemo-nos de lerias!--interrompeu Theotonio Tinoco.
--Lérias! o snr. Pitta de Lucena chama a isto lerias!--acudiu
Pires--Então que quer o senhor?
--Queremos que esse amigo dê uma satisfação ao outro a quem elle chamou
bebado hoje.
--Mas, primo Tinoco--disse o do Matto-grosso--bem sabes que o primo
Christovão não propõe, nem aceitaria desafio, a quem não tiver
nascimento.
--Ficamos agora sabendo que este cavalheiro é de familia de bom
sangue...
--Eu não sei de que sangue é a minha familia--atalhou Jorge
serenamente.--O meu amigo Pires não o sabe melhor que eu, e vv. exc.as
hão-de ter a bondade de dizer ao snr. morgado de Santa Eufemia que a côr
do nosso sangue lá a veremos no campo, quando elle quizer.
--Nomeie os seus padrinhos, para nos entendermos com elles--disse Egas.
--Um serei eu, se derem licença--disse a voz de um homem, que entrou de
subito no quarto.
--Meu tio!--exclamou Jorge, beijando-lhe a mão.
Era, com effeito, o padre João Coelho.
Leonardo Pires e os outros olharam com veneração para a figura sublime
do velho, que trajava rigorosamente as vestes de sacerdote. Jorge
baixara os olhos, em quanto o padre, com as palpebras humidas, e as mãos
convulsas, fitava e comprimia ao seio o sobrinho. Passados instantes,
disse compassadamente:
--Tantos annos e trabalho para te aproveitar, Jorge, e tu em tão pouco
tempo te perdeste! Ha menos de nove mezes que sahiste dos braços de tua
mãi, e venho-te encontrar na vespera de expôr o corpo e a alma com menos
desculpa que o salteador que traz o peito á bala e o coração damnado
pela perversidade!
E voltando-se para os tres cavalheiros, disse com uns assomos de nobre
authoridade e sorriso ironico:
--Quem são estes folgados rebentos de illustrissimas prosapias que vem
aqui desenfastiar-se dos tedios da sua inercia, estragando a alma de uma
criança? Ouvi aqui nomear appellidos estrondosos que representam varões
de grandes serviços á religião e á patria: é lastima que os netos dos
Tinocos e dos Pachecos andem pregoando o desafio, o derramamento de
sangue, como prova de honradas consciencias e altos espiritos. Melhor
lhes fôra que as suas consciencias fossem mais christãs que honradas.
Não se illustram memorias de avós derramando doutrinas impias. Se o
seculo as aceita, senhores, então reneguem vv. exc.as das virtudes de
seus avós, que outros seculos laurearam. Se os costumes barbaros d'esta
civilisação, que por escarneo se chama assim, se conformam com os seus
animos, não andem hypocritamente chorando saudades de Sião, os que se
atascam nas immundicies de Babilonia. Jorge, eu fui aqui mandado por tua
mãi: não quererá Deus que tu desobedeças á voz que te chama. Eu só quero
exercitar sobre ti a authoridade do conselho; tua mãi chama-te: deves
hoje mesmo sahir do Porto commigo. A vv. exc.as rogo eu mui humildemente
que se não afflijam da perda de um noviço na confraria dos heroes do
tempo. Costumavam nossos avós, antes de entrarem na cavallaria, velarem
as armas no templo do Deus vivo; meu sobrinho vai armar-se cavalleiro,
que não é ainda, e depois voltará á arena. Riem-se os nobres senhores?
Velar as armas é sacramento de tanto ponto, que nem o fidalgo da Mancha
se deu por bem posto na sua missão, antes de armar-se cavalleiro no
curral d'uma bodega, e o mesmo foi dar sova brava nos arrieiros. Tens tu
já Dulcinea, meu sobrinho? Claro é que sim. Ora, pois, aguarda melhores
dias para as tuas façanhas, e diz aos teus padrinhos que te deixem ser
mais algum tempo bom filho, bom irmão, e bom christão.
Egas de Encerra-bodes já não estava muito de bons humores com o padre.
Tinoco Pitta não o tinha entendido, e abria a bocca pela terceira vez.
Leonardo Pires não se atrevia a despregar da lingua aquellas espontaneas
e por vezes graciosas parvoiçadas que lhe vinham á flux da abundancia do
coração. Jorge Coelho tinha tão de negro cerrado o espirito que não
balbuciou palavra. Era impossivel a desobediencia; mas deixar Silvina,
sem levar comsigo a certeza de que a distancia não mataria n'ella a
paixão nascente, isso era uma dôr que o pobre moço desafogou em pranto
desfeito, passando ao quarto immediato que era o de Leonardo Pires.
O morgado de Matto-grosso, para evadir-se á posição embaraçosa em que se
via, despediu-se com estas palavras:
--Muito bem: eu vou dizer ao cavalheiro offendido por seu sobrinho, que
o offensor não tem imputação, attendendo á sua criancice, e mais ainda
ao facto de a mãi o mandar chamar para o seu regaço, como criança que é
desmamada de fresco.
--Não, senhor, atalhou o padre com seraphica brandura, diga ao senhor
morgado de Santa Eufemia, creio que assim se chama o seu amigo, diga-lhe
que seja generoso no perdão das injurias; que não desdoure os seus
antepassados barateando o sangue honrado que elles lhes transmittiram;
diga-lhe sobre tudo v. exc.ª que seja christão. Lembre-lhe que o desafio
é uma ferocidade que nem se quer prova coragem, porque a verdadeira
coragem é aquella admiravel abnegação dos louvores do mundo aos impetos
da raiva, e valoroso louvavel aos olhos do Senhor é só aquelle que tem
mão de suas iras, e desarma com humildade sem baixeza os féros e
acommettidas do inimigo.
--Teu tio é grandemente lido nos classicos!--disse Pires, no quarto
immediato, a Jorge Coelho, que enxugava as lagrimas teimosas.

IX.
Pobre coração! Tão puras lagrimas não has-de choral-as mais. D'essa
grande afflicção de que tu appellas para a morte, has-de lembrar-te
sempre com saudade, meu amigo. Na tua angustia ha os prantos do anjo,
saudoso do céo. Na mulher que deixas, cuidas que te fica a santa
companheira do Eden que a tua candura via na terra, aberto ao amor sem
mancha, convidativo de santos gosos. De dez em dez annos pararás, no
caminho da vida, peregrino da sepultura; voltarás o rosto para aquelle
teu dia dos dezenove annos, e verás em flôres, fenecidas mas ainda
graciosas, os espinhos por onde a pedaços te fica, meu pobre Jorge, o
coração. Saberás então o que é a saudade; pedirás á desgraça dôres
semelhantes ás da tua mocidade para abençoal-as; atirarás com o peito ás
sarças das paixões vertiginosas para espertares os pungitivos desgostos
do amor contrariado. Não já lagrimas, se não fel derramará o coração,
que devêras ter dado a Deus, desde que o mundo t'o desbaratou a
repellões e injurias. Chora, filho da sina maldita dos poetas, chora no
seio de tua mãi; bem póde ser que ainda lá te espere o anjo da tua
guarda.
Jorge Coelho não proferira uma palavra desobediente ao tio padre.
Apenas, quando enfardava a roupa nas malas, enxugando as lagrimas antes
de erguer o rosto disse:--Meu tio entende que me é honroso sahir do
Porto sem responder ao desafio?...--Padre João, que abria o seu enorme
lenço escarlate para se assoar, ficou algum tempo com os braços
suspensos, e o lenço pendurado, e assim esteve, como estupefacto
cravados os olhos no sobrinho, que esperava a resposta. O nariz, porém,
urgia: padre João Coelho levou o trombetear da limpeza até á hyperbole,
dobrou o lenço em quadro, depois enrolou-o, deu com elle mais alguns
torcegões ao nariz, armou-se de pitada, e disse:
--Não é Deus que os perde; é o demónio que ensandece aquelles que quer
aproveitar. Que é honra, Jorge? O evangelho que te diz das injurias, do
odio, das affrontas, das injustiças? O filho de Deus dictou e rubricou
com o seu sangue a lei, a regra, os deveres da humanidade; não importa
ser o evangelho obra de Deus; não importa que alli venham prescriptas as
maximas da boa e honrada vida: o evangelho é já inefficaz por que a
humanidade inventou uma honra que se prova e sustenta com o duello: a
vossa honra, cegos miseraveis dignos de lagrimas, lava-se no sangue,
justifica-se pelo homicidio, ao qual a legislação decreta a forca, e a
convenção social o galardão da bravura. Jorge, quem te disse que o
assassino era honrado?
O academico apenas respondeu:
--Meu tio, vamos; eu estou prompto.
Leonardo Pires já estava no largo da Batalha, chamando a attenção dos
numerosos transeuntes que paravam em magotes para verem o cavalleiro com
as esporas cravadas nos ilhaes de uma égua de fina raça que se empinava,
e corcovava, e atirava ora couces, ora galões medonhos. É que Leonardo
Pires vira D. Francisca da Cunha n'uma janella do palacio do snr. Manoel
Guedes, e de si para si entendeu que lhe ia bem dar-se n'aquelle
espectaculo hyppico, mesmo com perigo de quebrar a cabeça, como de facto
quebrou, e tão desgraciosamente o fez, que Francisca da Cunha, anciada
de riso, dizem que cahira extenuada n'uma othomana.
Andava o infeliz Pires atraz da egua espavorida, com ajuda dos gallegos
do chafariz, quando Jorge e o tio desceram da hospedaria da Estrella do
Norte para a praça.
Apanhada a cavalgadura, indiscreta e desasada para heroismos de amor,
Pires montou de salto, e acompanhou até Vallongo o condiscipulo, com
evidente desagrado do padre. No caminho, em quanto o egresso ficára
atraz compondo os loros do macho fleumatico, o amador infausto de
Francisca da Cunha disse a Jorge:
--Que queres que eu diga a Silvina, se o tio a não mandar para a aldêa?
--Diz-lhe, respondeu Jorge commovido, com os olhos marejados de
lagrimas--diz-lhe que eu não posso contar com a minha vida para lh'a
offerecer. Diz-lhe que eu não fugi de cobarde; por quem és, Pires, não
consintas que me ella ultraje, duvidando da minha coragem. Falla-lhe de
minha mãi, que eu sei que ella me amará ainda mais, vendo que eu
respeito tanto as lagrimas da que me formou o coração que eu lhe dei, e
ella achou digno de si. As minhas cartas mando-t'as a ti para lh'as
entregares... Silencio, que ahi está meu tio.
--Snr. padre João Coelho, disse alegremente Leonardo, pique o bucephalo
cá para a frente.
--Alexandre Magno não montava machos, senhor estudante, respondeu o
padre. Andaria mais acertado com a historia se me honrasse antes com as
tradições de Sancho Pança. O machinho sabe que leva em cima um engenho
velho, que se acerta de inclinar na carga cahe cada peça para o seu
lado.
--Mas leva uma grande alma, replicou Pires.
--O macho? perguntou o padre, sorrindo.
--Sim, senhor.
--Lá em Coimbra estuda-se essa psycologia de veterinaria? As grandes
almas passaram, pelos modos, dos Aristides e Catões para estes
quadrupedes! Se assim é, que nos fica para nós, senhor academico?
--Eu queria dizer ao meu nobre amigo que o macho leva um cavalleiro com
grande alma.
--Muito obrigado ao seu favor, snr. Pires. Eu tambem o entendi; mas
metti-me a engraçado a vêr se desafiava o riso, do meu pobre Jorge, que
vai ahi melancolico, como nunca foi filho algum para os braços de sua
mãi e irmãos.
--É que Jorge Coelho, tornou o estouvado infanção da Maya, está como a
avesinha a pairar emplumada, que salta para o rebordo do ninho, e
vacilla entre ir para a mãi que a está dentro chamando com o cibo, ou
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