Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 12

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Rosa calou-se chorando, e a cega tambem soluçava. D. Thereza abraçou a
rapariguinha, apertou a mão á pobre velha, e disse:
--Para hoje já é de mais, ámanhã...
--Perdôe-me, snr.ª D. Thereza,--replicou Rosa,--mas é melhor que eu
termine hoje,--e continuou:
--Havia um mez que meu pai tinha morrido, quando minha mãi cahiu de
cama; a febre não a deixava. Eu ia aos campos apanhar as hervas, que
minha avó me ensinava, para lhe fazer remedios, mas nada sarava minha
mãi. Um dia abraçou-me e disse-me:
«Minha pobre Rosinha, eu vou unir-me com teu pai, mas que será de ti?
Trabalharei, lhe respondi.
És muito nova para isso; mas entretanto rogarei muito a Deus para que te
receba sob a sua santa guarda, e te não abandone. Nunca desampares tua
avó, sê-lhe obediente e carinhosa..., ainda queria fallar, mas não pôde,
abraçou-me e á avósinha, e expirou.»
Desde então alguns rachadores, amigos de meu pai, nos recolheram e
soccorreram; mas como não são ricos, e precisam de mudar de terra por
não terem aqui que fazer, lembrei-me de vir pedir agasalho á senhora,
pois que, sendo tão boa, não deixaria de nos recolher, que somos tão
desgraçadas. Sou fraquinha, mas posso trabalhar. Sei fiar, e começo a
lavar. Guardarei os bois, e os carneiros e tratarei do gallinheiro.
Minha avó tambem fia muito bem e estou muito certa, que a ha-de
satisfazer com o seu trabalho. Oh! senhora--disse Rosa ajoelhando-se aos
pés de D. Thereza--não nos abandoneis; satisfazemos-nos com pouco, e
faremos todo o possivel para vos agradar, e rogaremos continuamente a
Deus pela vossa vida e felicidade.
D. Thereza commoveu-se tanto, com a singeleza e candura d'esta supplica,
que duas lagrimas lhe brilharam nos olhos.
--Levanta-te, Rosinha, ámanhã fallaremos n'isso. Tu e tua avó ide-vos
deitar. Sempre te direi, que és muito linda e corajosa, para que se não
tenha piedade de ti.
Rosa beijou com reconhecimento as mãos de D. Thereza, e a cega encheu-a
de bençãos. D. Thereza mandou-as conduzir a um pequeno quarto, limpo e
quente, em que um somno reparador lhe reanimou as forças.

III.
Ainda mal a aurora tinha raiado, já Rosa estava a pé. Fatigada, como
estava, da jornada do dia antecedente, custou-lhe muito a levantar-se
cedo, mas fez um esforço para mostrar os seus desejos a D. Thereza.
Arranjou-se, o melhor que pôde, com os seus velhos vestidos, e, depois
de ter dirigido mentalmente a Deus uma oração fervente, desceu ao andar
terreo.
--Já a pé,--lhe disse alegremente D. Thereza.
--Estava tão cançada do caminho d'hontem, que receei, já fosse tarde;
mas graças aos vossos beneficios, minha senhora, já estou prompta, para
o que me determinardes.
--E tua avó?
--Ainda dorme. É tão velhinha e tão doente, que vos peço tenhaes piedade
d'ella.
Rosa ergueu as mãos, e esperou tremula a resposta da dona da quinta.
D. Thereza de Sousa era, o que vulgarmente se chama, uma mulher de casa.
Tendo viuvado ha doze annos, geria com tanto acerto e economia as suas
propriedades, que a sua fortuna tinha augmentado consideravelmente.
Os visinhos do lugar diziam que, pela avareza e mesquinharia, é que
tinha alcançado a fortuna, que possuia, pois que em qualquer cousa
sempre tinha que diminuir, e acrescentavam ironicamente, que, dando
_tantas_ esmolas, o dinheiro nunca lhe havia de faltar.
Fosse como fosse, o que sei é, que D. Thereza sensibilisou-se tanto com
a historia de Rosinha, que, quando ella ergueu as mãos, e a viu com os
olhos arrasados de lagrimas, esperando a resposta, disse para si; que a
uma supplica tão humilde e cheia de tanto amor filial, era impossivel
resistir.
N'este momento quem accusasse de avarenta D. Thereza de Sousa, seria
injusto com ella, por que, recolhendo a avó e neta, tomava um encargo
bastante pesado. Rosa era ainda muito pequena, e de mais a mais muito
fraquinha, para poder ter utilidade real! A pobre criança estava a fazer
dez annos, mas era muito franzina e delicada. O seu rosto, cercado de
compridos caracóes louros, e animado com uns grandes olhos azues
escuros, inspirava sympathia. Tinha as maneiras delicadas, e a linguagem
menos rude, que a dos camponezes dos arredores. Esta distincção n'uma
criança, ainda tão tenra como Rosa, nascia da sua intelligencia mui
desenvolvida.
A mãi, logo que ella teve tino para se não perder nos caminhos,
mandava-a apanhar flôres silvestres, que ia vender ás familias mais
abastadas das aldéas visinhas. Como Rosa era muito linda as senhoras das
casas acolhiam-na muito bem, divertiam-se com ella, ouvindo-a tagarelar,
e demoravam-na muitas vezes a brincar com as suas filhas.
Sendo muito viva tomou facilmente as maneiras, e modo de fallar, das
pessoas com quem tratava, de modo que os rachadores denominavam-na a
fidalguinha.
Se tinha adquirido maneiras delicadas, não havia perdido as boas
qualidades, de que era dotada; humilde e carinhosa para todos, quem a
conhecia adorava-a.
O que a mim, minhas caras leitoras, me levou tanto tempo a dizer, passou
n'um instante pela idéa a D. Thereza de Sousa, e fixou-lhe a resolução
de recolher a avó e a neta.
--Vou-te mandar vestir uma roupinha melhor, Rosinha,--lhe disse D.
Thereza, animando-a com uma brandura, que lhe não era habitual,--porque
espero has-de ser uma boa criada, serviçal e trabalhadeira.
--Então fico em casa de v. exc.ª?--disse Rosa, não podendo crer em tanta
ventura.
--Ficas, sim, e parece-me que nunca me darás motivo para me arrepender
do que hoje faço.
--Oh! minha senhora, estai certa que me esforçarei o mais possivel, para
vos agradar e satisfazer os vossos desejos.
--Assim o espero. Anda vestir-te.
--Desculpe-me, senhora. Mas minha avó...--e Rosa parou corando.
D. Thereza, querendo experimentar a sua protegida, disse:
--Que queres a tua avó?
--Ella tambem fica?
--Não. Tua avó é cega e velha, para nada serve, e eu não sou rica
bastante, para me encarregar da sustentação de duas pessoas.
--Então, senhora, agradeço os vossos beneficios, e todo o bem que me
querieis fazer, mas não posso abandonar a minha avósinha, que morreria
de paixão.
Vou ajudal-a a levantar-se, e regressaremos à nossa aldêa.
--E que has-de fazer na tua aldêa?
--Irei humildemente pedir a um mestre tamanqueiro um pequeno cantinho da
sua casa, que estou certa me não negará. Não sou robusta, mas tenho
coragem, por isso trabalharei nos socos durante o inverno. Quando vier o
verão irei vender flôres e fructos, como os demais annos, e como eu, e a
pobre cega, de pouco precisamos para viver, parece-me que ganharei para
ambas. Logo que chegue a primavera não seremos pesadas a ninguem...
D. Thereza apertou Rosa nos braços, e chegou-a ao coração.
--Basta, Rosinha, tu és um anjo do céo, que Deus enviou a minha casa
para me trazer a felicidade. Vai-te vestir, e depois irás participar a
tua avó, que ambas ficaes para sempre em minha casa.
Descrever a alegria da avó, quando soube a decisão de D. Thereza, é-me
impossivel fazel-o, minhas caras leitoras; vós, que deveis ser dotadas
de bom e piedoso coração, melhor a podereis imaginar. Abraçava Rosa,
agradecia a D. Thereza com um reconhecimento mui sincero, promettendo
fazer todo possivel para ser menos pesada á sua bemfeitora. Rosa nada
dizia, mas a eloquencia de seu olhar provava a D. Thereza a sua
gratidão.

IV.
Rosa, ainda que novinha e de fraca organisação, tornou-se util em casa.
Incansavel no trabalho, de manhã cedo tratava da capoeira e do pombal;
depois ia guardar os bois e os carneiros, e, em quanto que os vigiava,
fiava na sua roca.
Ao jantar, quando recolhia a casa, tinha sempre que fazer. Era um gosto
vêr esta criança tão tenrinha arrumar, limpar e lustrar os moveis, como
o faria a melhor mulher de casa.
D. Thereza cada vez mais estimava a sua protegida, e felicitava-se pela
ter recolhido. A avó tambem não era inutil. A cegueira não a
impossibilitava de fiar desde pela manhã até á noite, e o seu trabalho
era perfeito. Tudo corria bem, e todos andavam contentes e satisfeitos.
Chegou a primavera. Começaram a desabrochar com o tepido sôpro d'esta
estação, e mostraram as suas galas, a bella pervinca azul, o narciso de
corôa d'ouro, o lyrio de campanas odoriferas, e a bella violeta de
calices perfumados.
Rosa, quando ia á serra, era para ella um dia d'alegria. Procurava os
caminhos tapetados de musgo, os regatos, que tantas vezes tinha passado,
as fontes escondidas pelas çarças, e as arvores, sob as quaes tinha
encontrado as mais lindas flôres. Rosa sentia-se mais livre e mais feliz
na serra, do que nos campos da quinta; a todo o momento parava extasiada
diante das bellezas da natureza, e cada sitio novo, que achava, era como
se fosse um amigo. Quando o socego voltava, depois d'esta alegria e
animação, esta poetica criança fazia cestinhos de vimes e juncos, que
guarnecia com musgo e flôres silvestres, mas com um gosto e belleza
exquisito, os quaes D. Thereza mandava vender, dando sempre bom preço.
Ganharam renome os cestos de Rosa.
Em todas as quintas e casas ricas dos arredores não queriam outros, e
até muitas familias da cidade, que iam passar o verão áquelles sitios,
compravam e procuravam com avidez os cestos d'esta gentil ramalheteira.
D. Thereza, como mulher que comprehendia os seus interesses, entendeu
que lhe era de mais proveito o empregar Rosa, durante a primavera, a
fazer cestos e ramos, do que na quinta, por isso assim o determinou.
Quando Rosa o soube, saltou d'alegria, por que se dava melhor á sombra
dos pinheiros e carvalhos, do que em casa.
Passou-se assim o verão, e D. Thereza não teve que se arrepender da sua
resolução. Um certo numero de meias corôas de prata provou o bom
resultado do negocio de cestos e flôres.
O inverno pareceu triste e monotono a Rosa. Tinha-se habituado de tal
maneira a ir todas as manhãs para a serra, que chegava muitas vezes a
esquecer-se do trabalho, e ir insensivelmente até á baixa d'ella.
Voltava então muito apressada á quinta e redobrava d'actividade, para
fazer esquecer as suas faltas involuntarias.
Occupou-se a fiar quasi todo o inverno, e o producto do seu trabalho foi
augmentar o pequeno thesouro principiado com a venda dos cestos e
flôres.
D. Thereza considerava Rosa como sua filha, não podendo estar sem ella
um unico instante, e nos dias de feiras e romarias tinha gosto em que
Rosa apparecesse entre as mais lindas e mais ornadas lavradeiras do
lugar.
A amisade, que tinha a Rosa, reflectia-se na avó; tratava-a com tal
respeito e affabilidade, que a poderiam tomar por mãi de D. Thereza,
tanto ella a cercava de cuidados e desvelos.
A felicidade da pobre cega, e bem assim o futuro de Rosa poder-se-iam
julgar seguros; mas como nada n'este mundo é immutavel, o momento, em
que a adversidade ia estender o seu braço de ferro sobre as duas
infelizes, não estava longe.

V.
Voltou a primavera e com ella as encantadoras occupações de Rosa. Foi
com enthusiasmo, que a candida e poetica criança encontrou as flôres,
suas amigas, com que preparou os primeiros ramos, que appareceram no
mercado.
Os cestinhos e ramos de Rosa obtiveram uma grande extracção, como no
anno anterior. Ia entregal-os pessoalmente nas casas ricas, e muitas
vezes as senhoras morgadas, se julgavam felizes por ter em sua companhia
esta linda criança por algum tempo.
Rosa, vestida á lavradeira, era muito galante e modesta; o seu metal de
voz era agradavel, e as maneiras tão delicadas, que quasi sempre as
freguezas, ao preço do ramo, juntavam um presentinho para a vendedeira;
mas quando perguntavam a Rosa o que era que mais estimava, respondia
sempre, que o seu maior desejo era possuir um livro para se instruir.
Rosinha tinha uma paixão ardente pelo estudo; quasi sem mestre tinha
aprendido a lêr correntemente, e a sua maior alegria consistia em obter
um livro para se entregar á leitura.
D. Thereza pela sua parte tambem não obstava aos desejos de Rosa, tanto
que se lhe não dava que ella faltasse ás suas obrigações; mas devemos
fazer-lhe justiça dizendo que sabia alliar a satisfação dos seus
desejos, com o cumprimento dos seus deveres, por isso só depois de ter
terminado os seus affazeres é que se dava ao estudo.
Estava Rosinha uma occasião sentada á borda d'um ribeiro, entretida a
colher juncos para fazer um cesto, quando, sem ella o presentir, se lhe
aproximou uma senhora ainda joven.
--Para que estaes escolhendo esses juncos, minha menina?--lhe disse a
joven senhora com modo affavel.
Rosa levantou a cabeça, e vendo a desconhecida, saudou-a e respondeu:
--Faço cestinhos com flôres para vender.
--Quero então já avaliar a vossa habilidade. Amo muito as flôres, por
isso queria que me fizesses um cestinho já, e se eu ficar contente
has-de-me fazer um todos os dias. Aceitaes?
--Aceito, sim, minha senhora, e ainda que tenho muitas encommendas a
satisfazer, vou já preparar o vosso.
--Assento-me aqui ao pé de ti e vamos conversando. Como te chamas?
--Rosa de Jesus, uma sua criada, minha senhora.
--Assim, Rosa, o teu trabalho é fazer cestos de flôres para depois os
ires vender?
--Sim, minha senhora.
--E teus paes em que se occupam?
--Já não tenho paes; só me resta minha avó, que é cega.
--És orphã, e onde moras?
--Estou em casa da snr.ª D. Thereza de Sousa, proprietaria em S. Cosme,
tão boa, como rica.
Ha um anno, que eu e minha avó não sabiamos aonde nos haviamos de
recolher; estavamos em Dezembro, e havia dous dias que não tinhamos
comido, quando de repente me lembrei da snr.ª D. Thereza. Eu e minha
avó, que então moravamos na serra de Vallongo, pozemos-nos a caminho
para S. Cosme. O caminho é muito mau, por isso mais d'uma occasião
julguei que minha avó ficava na estrada, porque já não podia andar; mas
o Senhor teve misericordia de nós, e felizmente terminamos a jornada. A
snr.ª D. Thereza tratou-nos com muita bondade, e recolheu-nos em sua
casa, apesar de sermos um encargo muito pesado.
--Amas então muito a snr.ª D. Thereza?
--Se a amo. Não queria mais nada, senão poder reconhecer todo o bem, que
nos faz. Não desejo senão crescer e robustecer para lhe poder servir
d'utilidade.
--Estou muito contente, minha pequena, por te ouvir fallar assim. Quando
te vi senti-me attrahida para ti, e ficaria muito desgostosa se te não
encontrasse com sentimentos dignos da estima que te consagro.
Parece-me que o meu cesto está acabado?
--Ainda lhe falta uma cercadura de _não me deixes_. Permitti, senhora,
que eu vá ao proximo ribeiro colher estas flôres, porque alli as ha mais
frescas, e em mais abundancia.
--Ide, que aqui te espero.
Rosa partiu correndo.
D. Julia d'Andrade, que tanto interesse mostrava pela protegida de D.
Thereza, tinha vinte annos.
O cabello preto muito comprido, e naturalmente encaracolado, fazia-lhe
sobresahir ainda mais a pallidez do rosto. Os olhos castanhos tinham um
brilho de febre. A physionomia demonstrava um padecimento interno, n'uma
palavra, estava affectada d'uma tisica pulmonar.
Sua mãi, a viscondessa do Candal, receiando pela vida de D. Julia, tinha
consultado os mais acreditados medicos de Lisboa e Porto, e todos tinham
aconselhado os ares do campo, e o não constrangimento, como os meios
mais proficuos para debellar a molestia. A viscondessa tinha portanto
deixado o Porto e ido habitar com suas filhas D. Julia e D. Bertha uma
quinta proximo da serra de Vallongo.
D. Julia parecia que revivia no meio da luxuosa natureza, que a cercava.
Todos os dias dava grandes passeios, e distrahia-se ou sentando-se á
sombra dos carvalhos e sobreiros, ou embrenhando-se entre as çarças. Ao
principio a viscondessa receiou que estes passeios tão longos
prejudicassem a saude de sua filha, mas vendo-a mais alegre e mais
vigorosa, e que se a pallidez não tinha desapparecido, a expressão
soffredôra do rosto era menos pronunciada, ficou mais socegada e esperou
obter o triumpho sobre a molestia.
D. Julia era tão boa, e ao mesmo tempo tão prudente, que sua mãi não
temia deixal-a em plena liberdade, e gosar da vida segundo as suas
phantasias.
A viscondessa queria que D. Bertha acompanhasse sua irmã nos seus
passeios; mas D. Bertha, que era uma joven de 16 annos d'idade,
orgulhosa do seu nascimento e belleza, recusou obstinadamente acompanhar
sua irmã, dando como razão, que lhe repugnava o juntar-se como ella com
esses _estupidos_ e _rudes_ aldeãos, que habitam os campos, e a quem
ella acariciava, e que além d'isso estragava os seus vestidos seguindo
D. Julia pelos caminhos estreitos e escabrosos dos campos e da serra. As
mil vozes da natureza eram mudas para D. Bertha; no seu coração só
imperava o egoismo.
Num d'estes passeios é que D. Julia encontrou Rosinha, e que ficou
encantada com a sua innocencia.
Havia muito que D. Julia esperava Rosa, e já receava que ella não
voltasse, quando a viu vir correndo.
--Perdoai-me, senhora, o ter-vos feito esperar tanto tempo, mas eu fui
muito longe colher as violetas e os _não me deixes_, porque queria que o
meu cestinho vos agradasse.--Assim fallando Rosa apresentou a D. Julia
um cestinho, que era um primor d'arte no gosto, e esperou toda confusa,
a sua apreciação.
Uma alegre exclamação de D. Julia lhe fez vir o sorriso aos labios.
--Quero abraçar-te, minha querida menina; ha muito tempo que não vi nada
tão lindo, e como me causaste um grande prazer, quero recompensar-te;
mas deixa-me ainda admirar o teu bello trabalho.
Este cestinho podia vêr-se. No centro tinha raminhos de violetas com as
folhas verdes, ainda humidas; uma corôa de lirios cercava as violetas, e
em volta uma grinalda de musgo, semeada de raminhos de rosas amarellas e
geranios. Dous ramos de madre-silva serpenteavam por entre os juncos
formando as azas.
--Não quero--disse D. Julia, depois d'alguns instantes de silencio--que
uma obra tão bella tenha um viver ephemero; vou já bordar um quadro,
cópia d'este cestinho, que ha-de ficar muito rico. Mas, Rosinha, quanto
queres por este trabalho?
--Dar-me-ha o que quizer, minha senhora, como costumam fazer as outras
minhas freguezas.
--Mas quanto é que custam ordinariamente?
--Tres ou quatro vintens.
--Quatro vintens!--disse D. Julia admirada.
--Acha caro, minha senhora?--disse Rosa com acanhamento.
--Caro, não, minha pequena. Quando estava no Porto pagava, por muito
maior preço, ramos que tinham muito menos valor, que o teu cestinho.
Toma, Rosinha, não tenho aqui senão esta meia corôa, mas amanha a esta
hora apparece aqui, e fallaremos...
--Não posso aceitar o que me dáes, minha senhora, porque é muito.
--Queres fazer-me zangar?
--Não, senhora. É a primeira vez que a vejo, mas já a estimo muito. Eu
não preciso de nada; a snr.ª D. Thereza é muito minha amiga e...
--Não é uma esmola que te dou--replicou D. Julia, mettendo a moeda de
prata na mão de Rosinha--não te esqueças da recommendação, que te fiz,
de estares ámanhã aqui a esta mesma hora.
E antes que Rosa tivesse tempo de recusar, já D. Julia tinha
desapparecido, levando na mão o cestinho.
Rosa ficou um instante sem saber o que havia de fazer, mas recomeçou
ligeiramente o trabalho. Quando ao jantar voltou a casa, contou a D.
Thereza o seu encontro de pela manhã, o que lhe tinha acontecido e
perguntou-lhe se devia ou não guardar os cinco tostões.
--Não te authoriso a pedir, Rosa, mas isso não é uma esmola, é um
presente, que te fazem, podes portanto arrecadar esse dinheiro. Ris-te.
Já sei. Esse dinheiro vem a proposito para augmentares o teu mealheiro,
com o qual te hei-de comprar um rico jaqué para o S. Miguel.
--Não, senhora--replicou Rosa com a alegria nos olhos--não é esse o meu
pensamento, e que me causa tanta alegria.
--Que é então?
--Rogo-vos que me não façaes perguntas; depois o sabereis.
--Guarda o teu segredo, porque sei que não és desgovernada, e que o não
has-de gastar mal gasto.
Rosa abraçou ternamente D. Thereza, e foi entregar as suas encommendas
de flôres e cestos.

VI.
D. Julia recolheu-se para casa muito tempo depois da hora, que tinha
determinado.
A viscondessa, impaciente e sobresaltada com a demora, sahiu, no
caminho, ao encontro de sua filha.
--Estiveste incommodada, minha filha?--lhe disse ella.
--Não, minha senhora. Este cestinho, que aqui trago, é que foi a causa
da minha demora.
E D. Julia mostrava a sua mãi o cestinho, que Rosa tinha feito.
--Como é lindo--respondeu a viscondessa--Não sabia Julia, que tinhas a
prenda de fazer cestos de juncos entrançados.
--Não fui eu que fiz este cestinho, minha mãi.
--Então quem foi?
--Foi uma lavradeirinha, que encontrei no meu passeio.
--Uma lavradeira?!
--Sim, minha senhora. E acreditareis, minha mãi, que por todo este
trabalho me pediu a grande quantia de quatro vintens?
--Não te pergunto quanto lhe déste, por que conheço a bondade do teu
coração, e tenho a firme convicção de que não abusaste da sua
simplicidade.
--Dei-lhe só meia corôa, por que não tinha mais na minha bolsinha. Não
queria recebel-a, ajuizando que lh'a dava como uma esmola; mas tanto fiz
que a aceitou, e convencionei com Rosa, (pois a minha ramalheteira assim
se chama) para nos encontrarmos ámanhã, no mesmo sitio, á mesma hora; e
se ella, como penso, fôr digna da sympathia, que me inspirou, e do
interesse que já me causa, consentir-me-heis, minha boa mãi, que a tome
sob a minha protecção?
--Consinto em tudo, minha filha, que te dê prazer, e distracção. Se a
tua protegida fôr digna dos nossos beneficios, unir-me-hei comtigo, e
accordaremos no que devemos fazer para seu bem.
D. Julia abraçou com ternura a viscondessa, e agradeceu-lhe a sua
bondade.
N'este comenos, a viscondessa e sua filha, chegaram a casa.
D. Julia collocou com muito cuidado sobre uma mesa da sala o cestinho, e
correu com presteza ao seu quarto a preparar um cavallete, pinceis e
tintas para dar principio ao quadro projectado, e, tendo tudo disposto,
desceu á sala a buscal-o.
D. Bertha estava examinando o cestinho com attençào e minuciosidade.
--Não estão tão bem dispostas e combinadas essas flôres, Bertha?--disse
D. Julia.
--Assim, assim. Não gosto d'estas violetas, que formam o centro do ramo.
Podias ter tido melhor gosto e fazer cousa melhor.
--Não concordo com a tua opinião. Estou convencida de que Rosa não podia
ter melhor gosto.
--Rosa?
--Sim, Rosa. Ah! é verdade; ainda te não contei o encontro, que tive
esta manhã. Ora ouve.
D. Julia contou a sua irmã minuciosamente toda a conversa, que tivera
com Rosa.
Quando ella acabou, D. Bertha fez um gesto de desdem.
--E, sem duvida, Julia, já te affeiçoas-te a essa pequena; não é
assim?--disse D. Bertha.
--Rosa,--respondeu unicamente D. Julia--tem merecimento bastante, que a
torna digna da protecção, que se lhe dispensar.
--O que mais me admira e me espanta, Julia, é a rapidez com que
sympathisas com qualquer, e como instantaneamente conheces e decides,
que essa pessoa é digna da tua affeição e amisade... Não quero tomar-te
o tempo; julgo que vinhas buscar o teu lindo cestinho, não é assim?
--Vinha, sim, para o ir copiar em um quadro, pintando-o.
--Pintal-o?!--disse D. Bertha, dando uma grande gargalhada.--Que
liguemos alguma attenção ás flôres dos nossos parques e jardins,
concedo; mas que empreguemos o tempo e o talento com as silvestres, que
só tem os perfumes para si, parece-me uma singularidade esquisita.
--A minha opinião, Bertha, é exactamente o contrario. Mas isso não
admira, por que nós raras vezes estamos accordes sobre qualquer materia.
Ponhamos isso de parte; queres tu vir ámanhã, commigo e com a nossa boa
mãi, vêr Rosa?
--Não posso. Combinei com a Francisquinha e Ritinha Meirelles virem
amanhã aqui passar o dia. Além d'isso, fallar-te-hei francamente, não ha
nada para mim mais antipathico do que todas essas lavradeiras; e andar
uma legua para me ir achar face a face com um monstrosinho, parece-me um
tanto aborrecivel.
--Rosa é muito linda e interessante.
--Para ti, Julia, todas as lavradeiras são lindas e interessantes. Para
mim todas são feias, e broncas. O calor principia a incommodar-me--disse
D. Bertha, sentando-se indolentemente sobre um sophá.--Vai, Julia, vai
pintar o teu lindo cestinho, que eu vou sonhar com o meu Porto, para
onde espero ir muito breve.
Estas ultimas palavras já mal se perceberam, porque foram acompanhadas
com um bocejo, e D. Bertha cerrou os olhos.
D. Julia lançou sobre sua irmã um olhar de compaixão e sahiu.
Alguns instantes depois deu principio ao quadro.

VII.
No dia seguinte Rosa sahiu para a serra, muito cêdo, para adiantar o seu
trabalho, e poder assim dedicar mais tempo á joven senhora, que tão
amavel e generosa tinha sido com ella.
Trabalhou com tal desembaraço, que, muito antes da hora marcada por D.
Julia, tinha terminado o seu serviço.
Aproveitou portanto o tempo entregando-se á leitura d'algumas paginas
d'um livro, de que lhe tinham feito presente no dia anterior. Lia com
attenção, e, quando encontrava algum trecho rico e bello, parava, para
exprimir a sua alegria e enthusiasmo.
Estava Rosa de tal sorte entregue á leitura, que não presentiu a chegada
da viscondessa e de sua filha D. Julia.
--Que livro estás lendo, com tanta attenção, minha menina--lhe disse a
viscondessa.
Rosa saudou-a, apresentou-lhe o livro e respondeu:
--São as _Meditações religiosas_ de Rodrigues de Bastos.
--E encontras grande prazer na sua leitura?
--Se encontro, minha senhora. Quando estou sentada á borda d'um regato,
ou debaixo d'um carvalho annoso, lendo n'este livro, parece que a minha
alma se despe de todos os seus envolucros terrenos e mundanos, e se põe
em contacto com Deus, author de todas estas maravilhas da natureza, que
nos cercam, e a quem no fundo do meu coração adoro e venero.
A viscondessa e sua filha, admiradas do que ouviam a uma pequena do
campo, trocaram entre si um olhar d'intelligencia.
--E que mais costumas lêr?--perguntou D. Julia.
--Não tenho muitos livros. Além d'este possuo um cathecismo, uma vida de
santos, de que leio uma pagina cada domingo, e mais uns livrinhos
d'historias bonitas. Esquecia-me dizer-vos, que tambem tenho um livro de
geographia, que me deu o mestre escóla da minha freguezia, mas que não
leio, por que tem muitas palavras, que não entendo.
--Pelo que me dizes conheço que tens desejos de te instruires. Se te
proporcionassem os meios de o fazeres, serias feliz?
--Seria, sim, minha senhora; mas infelizmente isso é impossivel, porque,
para ir todos os dias á mestra, é preciso ser muito rica.
--Mas se te mandassem á mestra?--insistiu D. Julia.
--Seria muito feliz, mas nem quero pensar n'isso.
--Pelo contrario; eu e minha mãi, viemos procurar-te para que nos
conduzisses a casa da snr.ª D. Thereza, e, se a tua protectora estiver
satisfeita comtigo, pedir-lhe-hemos para te deixar ir todos os dias á
mestra. Então não respondes?
--Perdoai-me, senhora. Estou muito contente e alegre, e queria
agradecer-vos, mas não posso. Que fiz eu para merecer tantos beneficios?
--Mostraste-te reconhecida aos beneficios da snr.ª D. Thereza, e isso
indica um bom coração; és trabalhadeira e tens desejos de te instruires;
mereces portanto que nos interessemos por ti--lhe disse a
viscondessa.--Vamos, ensina-nos o caminho para a quinta da snr.ª D.
Thereza.
Rosa, commovida, dirigiu-se para a quinta com a viscondessa e sua filha.
Pelo caminho respondeu modestamente, e com graça, a todas as perguntas,
que lhe fizeram, e cada uma das respostas confirmou mais, as duas
senhoras, no bom conceito, que tinham formado de Rosa.
Quando chegaram á quinta, D. Thereza não estava em casa, mas não devia
tardar muito, por isso esperaram. Rosa apresentou ás duas senhoras
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