Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 02

Total number of words is 4555
Total number of unique words is 1777
32.7 of words are in the 2000 most common words
45.8 of words are in the 5000 most common words
52.7 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
vereda de angustias desconhecidas, ao passo que as suspiradas alegrias
da vida serena no seio de minha familia se me varrem da imaginação como
as copas de flôres desmaiadas, que o nordeste sacudiu e dispersou.
«Deverei occultar-lhe alguma das minhas visões, querida mãi? Não posso.
A confidencia é a respiração das almas; é, mais ainda, é a supplica do
conselho e do remedio para as tribulações, ou de estimulo e fé para crer
na felicidade sonhada, se ella um dia me vier provar que não eram
mentira os meus delirios dos dezoito annos.
«Ha entre mim e o indecifravel do meu futuro uma imagem como elle
indelineavel. Não sei a qual hora da vida acharei a sombra real d'esta
idealidade, que se fez corpo e alma, impressão e sentimento para a minha
phantasia. Tenho querido collocal-a ao pé de minha mãi, como reflexo do
seu amor. Quando assim consigo aproximadas, tambem consigo explicar a
influencia, que ha-de ter na minha vida essa imagem, descerrada a nuvem
que m'a envolve pela mão luminosa da Providencia. Será a realisação do
infinito amor, porque entre Deus e minha mãi falta um élo. Creio que não
usurpo a minha mãi o vago affecto dedicado a essa alma estranha, que me
visita nas horas de intimo recolhimento e scismadoras saudades de não
sei quê, como se do céo perdido nos ficassem saudades para
reconquistal-o á custa de lagrimas. Isto que sinto não póde ser, como me
dizem os livros sentimentaes, os alvoroços precursores das primeiras
devoções, o subir para o altar dos cultos fervorosos e apaixonados. É
mais.
«Entrevejo na escuridade do porvir uma scintilla, que me banha de
festiva luz o espirito, aspiro o aroma de celestial flôr, que me delicia
e adormece em dôces lethargias, tenho um despertar alegre e sereno, como
o do homem incapaz de ir abraçar-se á realisação de seus ambiciosos
sonhos pelos caminhos travessios da improbidade e do mal-fazer.
«Assim pois, minha mãi, contente-se a sua boa alma de se vêr assim
reflectida na do filho, que d'ahi sahiu agourado por tão maus prophetas.
Não abordei esses abysmos seductores, que o meu bom tio excommungava de
lá, e contra os quaes me premuniu com cabedal de philosophia christã,
bastante para defender das tentações todas as nações da Biblia,
exterminadas por causa do peccado.
«D'aqui a tres mezes, deporei no regaço de minha mãi o coração
inexperiente com que de lá sahi. Dar-lh'o-hei mais rico de
contentamentos puros, e desejos de ser bom filho; e, se assim não fosse,
iria agora fortalecel-o em seu seio das virtudes, que ainda me faltam.»
Três mezes depois, Jorge Coelho, convidado por um seu condiscipulo das
visinhanças do Porto, passou no Porto, quando recolhia a ferias, e alli
se deteve, para assistir ao ultimo baile annual da _Assembléa
Portuense_.
Jorge nunca vira um baile, nem ante-gostára pela imaginação o prazer de
encontrar duzentas damas reunidas á competencia de formosura e pompas.
Dizia-lhe o condiscipulo, já gasto para as commoções dos bailes (tinha
vinte e dous annos, e passára desapercebido em todos os bailes)
dizia-lhe o condiscipulo que o coração nascia de improviso no primeiro
baile, e muitas vezes lá morria. Contava-lhe, em testemunho de verdade,
a sua historia, que era uma historia negra, passada ao clarão de
centenares de lumes, nas salas da _Assembléa Portuense_, no baile
carnavalesco do anno anterior. Com quanto nos seja sempre ingrato
violentar as glandulas lacrimaes dos leitores, e sacudir-lhes com
patheticas descargas electricas os nervos engelhados, não nos abstemos
de contar em poucas linhas a historia negra do snr. Pires, condiscipulo
de Jorge, em geographia e historia.
Parece que o snr. Pires chegára de Coimbra a ferias de entrudo, e
conseguira ser convidado para o baile. Alugou um dominó de seda, entrou
nos salões, e remoinhou longo tempo por entre centenares de pessoas
desconhecidas. Dizia-lhe a consciencia que era um tolo, por não buscar
ao acaso uma particula da felicidade, que brincava nas physionomias de
toda a gente, ao passo que das d'elle apenas escorria o suor debaixo da
mascara suffocante.
Deliberado a demonstrar a si proprio que não era absolutamente nescio,
dirigiu-se a uma dama de aspeito melancolico, e disse-lhe «que os anjos
do céo, quando cahiam cá em baixo na morada dos homens, ficavam tristes
como ella.»
Ora, um maganão, tambem mascarado, que por alli gravitava em redor do
mesmo astro, disse ao estudante, radioso da feliz amabilidade, «que não
só aos anjos do céo acontecia ficarem tristes e atordoados quando cahiam
cá em baixo, mas tambem acontecia o mesmo aos gatos, quando cahiam de um
terceiro andar á rua.»
Ficou fulo de raiva Pires. A melancolica dama levou o leque ao rosto
para esconder o riso.
O estudante, voltando-se para o entremettido, replicou-lhe que era de
pessimo gosto a chufa, e o gosto da senhora não era de melhor quilate
festejando com riso complacente tão deslavada semsaboria. Redarguiu o
incognito mascarado, perguntando-lhe se tinha duvida em sahir fóra das
salas para lhe estender uma orelha de modo que por ella o conhecessem
todos, visto que elle tivera a habilidade de a esconder no capuz do
dominó. Trocaram-se algumas finezas mais d'este tomo, até que um homem
de porte grave travou do braço ao snr. Pires, e, levando-o ao salão
menos frequentado, perguntou-lhe que motivos se haviam dado para
desavença tão impropria de cavalheiros. Pires, querendo dar ao successo,
uma causa digna de transmissão, contou que merecêra lisongeiro
acolhimento da senhora com quem estava trocando as phrases previas de
uma paixão, que rebentára subita e reciprocamente, quando o indiscreto e
villão interventor lhe dirigira palavras descomedidas, que denotavam o
ciume d'elle.
--Pois aquella senhora, a quem o dominó allude, trocava com v. s.ª as
phrases previas de uma paixão?--perguntou o interlocutor do estudante
com sorriso de affectada serenidade.
--Sim, senhor, respondeu o outro emproando-se.
--Antes de dizer-lhe que mente, preciso vêr-lhe a cara.
Dito isto, o sujeito, que era o marido da dama, arrancou a mascara ao
snr. Pires; e, vendo um rosto imberbe, e acerejado, chamou o escudeiro,
que passava com bandeja de dôces, e disse-lhe: «Dê a este menino dous
bolinhos, e mande-o embora.»
Eis aqui a historia negregada do snr. Pires, a qual, contada por elle,
era muito mais dramatica e engraçada, visto que terminava por dous
duellos mallogrados, um com o rival, outro com o marido, e por tres
desmaios da dama, um no salão, outro na carruagem, e o ultimo em casa,
na presença do marido, que, pelos modos, a quizera enforcar.
E, como as lagrimas d'este acerbo conflicto cahiram todas no coração do
snr. Pires, o resultado foi afogarem-se lá os embriões da sua
felicidade, e ficar aquella viscera árida e resequida como enxundia
secca de gallinha.
Ouvira Jorge Coelho estas calamidades com a respiração suffocada, e teve
instantes em que duvidou do bom siso do seu amigo;--tão descozido lhe
parecêra o conto, e tão ineptas as consequencias.

III.
Entrou Jorge Coelho nos salões da «assembléa,» e julgou-se em regiões de
houris. Durou-lhe alguns minutos o atordoamento da primeira impressão.
Não o enleava esta ou aquella physionomia; eram todas. N'aquella
harmonia do bello, até as senhoras feias--se ha senhoras feias, vistas á
luz do coração--recebiam homenagem do extatico moço. No espasmo
delicioso do academico, se algum amor influia, era de certo o amor da
especie, porque seus olhos não haviam ainda estremado o individuo, que
os olhos d'alma entreviam no todo.
Do cisco lucido, que volita no ar, faz douradas palhetas o raio do sol
coado pela fresta. Na dourada lucidez que Jorge via por magico prisma,
não haveria muito cisco, muito atomo de poeira humana, que sómente
refulge aos reverberos dos lustres, consoante o variegado das côres?
Decidam os que lá andam.
Aquietado dos alvorotos da surpreza, o estudante sentiu o vacuo, porque
se viu sosinho alli. O apresentante doudejava no redemoinho das danças,
e raros intervallos perdia, perguntando ao condiscipulo se estava
contente.
Jorge não sabia dançar, porque não tivera tempo de aprender esse
appendiculo grutesco da boa educação. Muitas vezes lhe dissera o tio
padre, authorisado pelo oratoriano Manoel Bernardes, que danças eram
ansas do demonio armadas á alma.
Não se glorie, porém, o crendeiro egresso de ter instillado no animo do
sobrinho o horror das mazurcas. Jorge não dançava porque não sabia se
quer a nomenclatura d'essa galharda tolice de que por vezes impende o
accesso ás almas, e o passar-se uma noite menos tediosa n'um salão em
que o espirito se retouça em piruetas, mais ou menos ridiculas e
parvoinhas, da materia.
Á meia noite, Jorge procurou o seu condiscipulo para dizer-lhe que se
retirava. Atravessando uma sala, quasi despovoada, viu duas senhoras
reclinadas n'uma ottomana, em postura de fatigadas ou aborrecidas. A
mais velha não excederia vinte e cinco annos; a outra, que teria
dezoito, foi a primeira que prendeu o exclusivo reparo de Jorge, senão
antes uma contemplação absorta em que ellas mesmas repararam.
O academico devia captivar a attenção das duas senhoras, melancolicas
por indole ou artificio. Tinha elle um semblante de si tão meigo e
affectuoso, que as pessoas tristes sentiam-se melhorar em suas magoas,
pensando que outras acaso maiores e mais carecidas de lenitivo denotava
o brando olhar do moço. Estava, por ventura, este condão sympathico na
magresa do rosto, cujo pallor mais era signal de compleição mimosa, que
effeito de vigilias e desperdicios de vida com que muitos conhecidos
nossos se recommendam ás senhoras idealistas, affectando langores e
martyrios de alma, dos quaes a victima principal é, em verdade, o corpo.
--Sympathica physionomia!--disse a mais velha das duas senhoras.
--Conheces?!--perguntou a outra sem fugir os olhares de Jorge, o qual,
por mero disfarce, encarava objectos, que realmente não via.
--Não o conheço, nem me lembra de o ter visto em parte alguma.
--Tinha curiosidade em conhecer... Não achas n'aquelle rosto um não sei
que de distincção?
--Tem alguma cousa não vulgar...
--Uma tristeza insinuante, achas?
--E não sei que de magoa supplicante...
--É verdade... e as supplicadas somos de certo nós...
--És tu, Silvina... és tu a examinada com um ar de espanto ou ternura
que compromette. Olha um grupo de homens, que nos observam e mais a
elle...
--Não olhemos mais. Elle já sabe que o vimos e discutimos. Achamol-o
sympathicamente triste, e bem póde ser que seja um tolo com bastante
coragem para nos dizer que o é... Mas quem será?!
A curiosidade das duas damas é menos racional que a dos leitores que
desejam conhecel-as.
A mais velha é a snr.ª D. Francisca da Cunha, creatura galante, com
quanto morena, grandes olhos pretos, sobrancelhas travadas e negras,
opulentos cabellos, e espirito de improviso bastante a fingir
illustração. Pertence a uma familia heraldica da provincia de
Traz-os-Montes, e veiu ao Porto com seu pai, fidalgo arruinado pela
politica e pelas proprias dissipações, com o fim de acirrar a cobiça de
um noivo conveniente, cujos paes almejam por enxertal-o no nobilissimo
tronco dos Cunhas. Tem esta menina genio exquisito e romanesco. Por
muitas vezes tem mallogrado os esforços casamenteiros do pai, mofando da
figura e palavriado, um pouco para rir, do noivo. Á força de ser má,
conseguiu fazer-se anjo no conceito do mal-fadado que espera em ancias
ser marido d'ella. Maravilhada do poder que tem na alma do capitalista,
com desdens e despresos, espanta-se do presumido dominio, que poderá ter
sobre o homem a quem der os sentimentos embrionarios no seu coração.
Para experimentar, sem risco da sua nomeada, recebe cartas de varios
oppositores á sua alma, e responde regularmente a umas com idéas
respigadas nas outras. Nos grupos, que se vão formando na sala, em que
está com Silvina, sua prima carnal, avultam quatro dos seus
correspondentes activos, e dous, que obtiveram promessa de resposta, e
alguns, que esperam aso de solicitarem aquella gloria, no entender de
cada um negada a todos, chegando a fazerem-se a mutua justiça de
julgarem-se parvos uns aos outros.
D. Silvina de Mello, prima de D. Francisca, é tambem provinciana, e veiu
de uma aldêa do Minho a banhos do mar, convidada por sua prima, de quem
é hospeda. O que ella aprendeu em quatro mezes de convivencia é possivel
que o não acreditasse quem lhe visse o rosto de anjo, olhares de
innocente acanhamento, sorrisos de escrupulosa timidez, palavras
desanimadas e preguiçosas, e, no todo, uma despresumpção de maneiras,
que fazia suppôr grande limpeza d'alma e de... de intelligencia!
Fôra D. Silvina da sua aldêa para o Porto com uma paixão por um morgado,
que a não seguira por fortissimos impedimentos. O pai do morgado tinha
feito extraordinarias despezas na construcção de uma eira, na
reedificação da capella solarenga, no muramento de algumas cortinhas,
que comprara, não fallando já nas desastradas mortes de um macho, que
tinha trinta annos de bom serviço na casa, e duas juntas de bois
atacadas de epizootia. O moço pedira debalde soccorros, fingira-se mesmo
epileptico para que o cirurgião da terra lhe receitasse banhos salgados;
o velho, porém, passaro bisnau, e avesso á inclinação do filho, deu
grandemente louvores a Deus por propiciar-lhe ensejo de acabar-se um
namoro inconveniente, attenta a mediocre legitima de Silvina. Facil foi
a D. Francisca obliterar no coração da prima a imagem do seu primeiro
amor, zombeteando-a á proporção que a ingenua provinciana lhe ia
mostrando as cartas do saudoso morgado.
Não podémos averiguar porque traças o morgado de Santa Eufemia arranjou
dinheiro com que foi ao Porto, tres mezes depois que Silvina cessára de
responder-lhe ás cartas, tanto mais irrisorias quanto a paixão as
dictava em estilo talhado para matar paixões. O certo é que o allucinado
homem chegou ao Porto na vespera do baile da assembléa, e alcançou
cartão de convite. A sua idéa era encontrar Silvina.
Todo sorvido na ancia de vêl-a e fulminal-a com olhadura terrivel de
accusações, o morgado de Santa Eufemia não cuidou, com tempo, de mandar
fazer casaca. A que trazia na mala era dos figurinos de Guimarães, e,
posto que em bom uso, era anachronica na gola, nas lapelas, na largura e
comprimento das abas, na pequenez dos botões, e rebordo dos punhos.
Consultou a pessoa, que lhe alcançára o convite, ácerca da casaca; mas,
desgraçadamente, a pessoa consultada era um d'aquelles individuos de
juizo, que não tiram o monge pelo habito, e reprovam que seja
sacrificada aos caprichos da moda uma casaca de bom pano, farta e
commoda, sómente porque alguns casquilhos perdularios, ou alfaiates
especuladores, inventam feitios novos.
Concordou o morgado, e foi ao baile com a casaca velha. Melhor lhe fôra
ter morrido da epizootia! A sua entrada na primeira sala foi um
acontecimento. As petulantes lunetas saudaram-n'o, e seguiram-n'o com
insultuosa curiosidade até ao salão da dança. As senhoras, em regra,
pouco curiosas do trajar dos homens, não repararam na casaca, mas não
podiam deixar de vêr o collete e a gravata. Era esta descommunal na
altura, atravessada por um laço, cujas pontas, como orelhas de lebre
morta, cahiam caprichosamente sobre os hombros. A côr verde da gravata
contrastava com o encarnado-ginja do collete de uma abotoadura e
colchetes apertados até ao pescoço, e acairelado na abotoadura e bolsos
com vivos roixos. Sobre isto cahiam as lapelas enxovalhadas da
casaca, com as quebras e vincos dos apertos que soffrera na mala em que
viera, para irrisão e descredito de Freixieiro, cujo elegante era.
Desconfiou o morgado de Santa Eufemia de alguns indiscretos que o
seguiram, desde o vestibulo da assembléa. Viu, depois, que as damas se
trocavam olhares suspeitos, que o não impediam de procurar Silvina com
aspecto entre o furioso e o comico. A obstinação, porém, dos
chasqueadores era inexoravel, e o morgado teve um intervallo de lucidez,
em que olhou em si, e se viu ridiculo. Do fundo de sua alma deu, então,
graças á Providencia, se Silvina o não tinha visto; mas o derradeiro
olhar, que lançou aos descaridosos mofadores, era provocador.
Resolveu, pois, retirar-se, maldizendo o velho amigo de sua familia, que
o demovera do proposito de fazer roupa nova. Quando ia sahindo,
atravessou por engano a sala em que se achavam D. Francisca, D. Silvina,
e Jorge Coelho. Os grupos de homens, que por alli estanciavam, deram com
elle de cara, seguido d'um cortejo de folgazãos, que tinham passado da
zombaria cautelosa á risada descomposta.
Silvina corou até ás orelhas, quando Francisca exclamou:
--Oh! que original! Repara, prima, tu não vês aquelle homem?!
A este tempo o morgado estava em meio da sala, e fazia machinalmente uma
cortezia ás damas.
--Aquillo será comnosco?!--dizia, com desdenhosa zanga, D.
Francisca.--Conheces aquelle phenomeno?! Olha que elle está esperando
que o comprimentemos... Conheces, Silvina?
--Conheço...--balbuciou Silvina, acaso tão afflicta como o desastroso
morgado, que estava alli chumbado ao pavimento.
--Quem é? é da tua terra?--tornou Francisca já envergonhada de que
julgassem ser ella a causa da attentiva paragem de semelhante entrudo.
Silvina ergueu-se, tomou o braço da prima, e disse:
--Vem, que eu te contarei tudo.
Sahiram.
Jorge Coelho foi o unico dos circumstantes que examinou com seriedade o
morgado. Achava estranho o personagem; mas dizia-lhe a boa alma que o
insulto era improprio de pessoas bem educadas como deviam presumir-se
aquellas, que estavam alli representando a melhor sociedade.
O fidalgo de Freixieiro sahiu com os olhos a marejarem lagrimas. Foi
ainda Jorge quem unicamente viu este signal de afflicção; e, sem saber o
porquê, sympathisou com a dôr do homem, que levava de poz si o escarneo
de tanta gente, e na alma a certesa de que viera dar-se em espectaculo
aos olhos da mulher, que nunca lhe perdoaria o ser ridiculo. Pobre
criança! como vivias enganado pelas maximas dos teus romances francezes!
Não sabias tu que ridicula, sem rehabilitação, é só a pobresa.
D'ahi a uma hora, Francisca e Silvina desciam do toucador para o salão
do baile. A primeira compunha o semblante ainda descomposto das
gargalhadas com que recebera a revelação da prima. Esta, mortificada
pelo amor proprio, se não antes vexada pela indecorosa eleição d'um
amante chulo, captivava lastimas com a tristesa que devêra acarear
despreso. Despreso! Talvez piedade, que a situação era digna d'ella, por
que é a mulher, quem mais a si se mortifica, se a consciencia a accusa
d'uma escolha, que não só lhe não disputam, se não que, peior ainda, lhe
injuriam com motejos. O morgado de Santa Eufemia, até á noite infausta
do baile, era uma recordação, se não saudosa, ao menos magoada. D'ahi em
diante, pelo menos n'aquella hora, causava-lhe tedio, e forçava-a a
participar da zombaria.

IV.
Estava Jorge, outra vez, defronte das duas senhoras. Sentia-se outro. Já
tinha interiormente um mundo, uma imagem reflexa do mundo exterior a
remuneral-o vantajosamente da insulação em que se via no meio de tantos
indifferentes á sua tristesa. A todo homem esta mutação tem acontecido,
uma vez na vida. O baile é triste para quem leva da soledade do seu
quarto o coração de lucto; porém, áquelle mesmo conforta, ás vezes, uma
chimera, lá onde menos a esperança lh'a promettia. Chimeras são que
desbotam, como as flôres dos enfeites, ao repontar da manhã; mas Deus
sabe quantas almas se retemperam nas illusões de um baile, e que horas
de abençoado engano lá divertem as tristesas dos mais desenganados!
Não era assim que Jorge Coelho scismava comsigo--que a aurora do seu
breve dia de fé e amor principiava alli--quando o amigo Pires,
lançando-lhe o braço em redor do pescoço, lhe disse:
--Que fazes aqui parado? Contemplas aquellas duas Evas, mal assombradas
de gesto, como se tivessem comido a fatal maçã?
--Contemplo uma, e acho-a celestialmente formosa.
--A côr de cêra?
--Sim.
--Eu gosto mais da morena. _Nigra sum sed formosa._ Aquillo sim que é
mulher para incommodar a fleuma d'um sceptico!... Queres ser
apresentado?
--Pois tu conheces?
--Não, nem preciso. Vou tiral-a para a primeira quadrilha, apresento-me,
e depois tenho a honra de ser o teu apresentante. O estilo, cá na boa
roda, é este.
--Mas a quem me has-de tu apresentar? é necessario, a meu vêr, que ella
te diga quem é.
--Pois não lh'o pergunto eu?! Essa reflexão é piegas. Se queres ouvir o
que eu digo, colloca-te ao pé de nós, e escuta-me nos intervallos das
marcas.
O snr. Pires não reconsiderava uma tolice, nem tolerava replicas.
D. Silvina, vendo um sujeito conversar com Jorge, olhou-o curiosamente,
para, se acaso visse pessoa de suas relações com elle, podesse, de
conhecido em conhecido, chegar a colher alguma informação do seu
mysterioso observador. Mais propicia do que ella ambicionava, lhe foi ao
encontro a fortuna protectora de sua innocente curiosidade. Pires, com
elegante desembaraço, solicitou de Silvina uma contradança: esta, com
adoravel aprazimento, aceitou logo o braço do cavalheiro porque se
estavam alinhando os pares.
Aqui, porém, falhou uma vez a felicidade a um tolo. Esquecera-se Pires
de procurar _vis-á-vis_, e era já fóra de tempo o procural-o. A dama deu
primeiro pela falta, e o academico fez-se da côr do rabano. Silvina
relanceou os olhos supplicantes a D. Francisca, e esta, chamando o
primeiro cavalheiro conhecido, deu-lhe o braço, e entrou no lugar
fronteiro á prima.
--Esta falta, disse Pires, retesando no pulso a luva até a rasgar,
deve-se ao enthusiasmo com que eu pedia a v. exc.ª esta contradança.
--Enthusiasmo?! Ora!... parece-me que queria dizer _distracção_,
respondeu Silvina ao adiantar-se para executar a primeira figura.
Chegado o grande intervallo, Jorge Coelho quizera ir postar-se perto de
Silvina; mas um burguez intolerante, zangado da pertinacia do moço, que
envidava os recursos todos da delicadesa e do encontrão para romper a
barra compacta dos olheiros de espadoas nuas, chegou a dizer-lhe,
franzindo a testa:«O senhor não cabe? se quer passar espere que acabe a
_polka_!» O bom do burguez não sabia ao certo se era contradança ou
polka o que se estava dançando.
No entanto, o nosso amigo Pires, com quanto pesaroso de que Jorge alli
não estivesse, para maravilhar-se dos recursos da eloquencia afeita ás
difficuldades do salão, conversava assim com a senhora attenciosa:
--Quando tive a honra de impetrar de v. exc.ª a graça d'uma
contradança... (Silvina poz o leque diante dos labios) acabava eu de
dizer a um amigo meu que o olhar contemplativo, _la réverie_, com que
elle fitava v. exc.ª, era merecida, justificada, e...
--Muito agradecida;--atalhou Silvina, tregeitando com o leque e a cabeça
uma evolução de movimentos indescriptiveis--mas eu não reparei bem no
amigo de v. s.ª, que me distinguia de modo tão lisongeiro.
--Se v. exc.ª tem a bondade de olhar em frente, ha-de encontral-o
extasiado...
--Extasiado?! Ora isto parece-me que vai passando da lisonja á galhofa!
--Oh! minha senhora... Isso offende-me e punge-me, acudiu Pires com o
mais comico azedume.
Silvina relanceára a vista como quem não via, e voltando-se para o
cavalheiro, disse:
--É do Porto aquelle senhor?
--É da provincia, minha senhora, estudante de Coimbra, meu condiscipulo,
chama-se Jorge Coelho, pertence a nobilissima familia, e assevero a v.
exc.ª que é um coração virginal, intacto, fervoroso, sentindo hoje pela
primeira vez os impetos juvenis do amor.
--Não admiro, porque é muito novo.
--Muito novo! oh! minha senhora! Quantos velhos n'aquella idade! Aqui
estou eu, de pouca mais idade que elle, e me considero já
_desillusioné_, decrepito.
--Realmente?!... Perdoe-me a curiosidade--disse Silvina, com muita graça
de fina ironia, sustentada com imperturbavel seriedade.--Queira dizer-me
em que romance poderei encontrar o seu caracter, já que não devo esperar
uma revelação das tempestades que o fizeram tão cedo naufragar!
--O meu caracter ainda não está escripto!--respondeu Pires, avincando a
testa, e fitando-a de esguelha.
N'este comenos entraram os pares latentes em movimento, e a phrase ficou
engasgada até ao proximo intervallo. Enganou-se, porém, o sceptico.
Silvina, como esquecida da suspensão da lugubre narrativa, perguntou ao
cavalheiro:
--O seu amigo demora-se no Porto?
--Não são essas as intenções d'elle, minha senhora; mas é de presumir
que um aceno de v. exc.ª o faça esquecer a familia carinhosa que o está
esperando.
--V. s.ª depois que envelheceu--replicou Silvina cortando as palavras
com frouxos de estudado riso--julgou salutar cousa o distrahir-se da sua
gotta moral zombando das pessoas que ainda crêem e esperam alguma cousa
d'esta vida?!
Acudiu Pires:
--Eu que digo isto é porque sei o que v. exc.ª é para Jorge. Respondo
gravemente ás suas facecias adoraveis. Sei que as virtudes de v.
exc.ª...
--V. s.ª conhece-me? perguntou Silvina de golpe, e formalisada.
--Não tenho essa honra, minha senhora.
--Quem lhe disse que ha em mim virtudes?
--Rosto angelico e véo translucido: homem experimentado adivinha o
coração do anjo.
Pires ia dizer mais quatro aforismos do seu uso, quando terminou a
contradança. Conduziu a dama á sua cadeira, e disse-lhe:
--Eu queria ter a felicidade de apresentar a v. exc.ª o meu amigo Jorge
Coelho; porém, rogo-lhe me diga se devo procurar alguem que me apresente
a v. exc.ª
--Não tenha esse incommodo. Fico sabendo que v. s.ª é um cavalheiro da
boa sociedade, e tanto basta. Sei tambem que é academico, e sympathiso
com essa qualidade porque tenho em Coimbra dous irmãos no seminario, e
não sei que analogias me fazem presar os estudantes.
--Direi mais, acrescentou o academico, enclavinhando os dedos para
ajustar as luvas, e tirando pelas lapelas da casaca a puxões de gentil
effeito--direi mais a v. exc.ª que me chamo Leonardo de Sousa Pires e
Albuquerque, a minha casa é na Maya, e costumo passar as ferias no
Porto, porque sou avesso á vida pastoril, e não tenho senão mediocres
tendencias para admirar a natureza bruta...
--Não é poeta?--interrompeu Silvina, ageitando o lindo rosto a um ar de
zombeteira admiração.

V.
--Se sou poeta!...--disse Pires, enviezando para o estuque do firmamento
olhos de lastima.--A poesia é flôr muito delicada, que o primeiro
vendaval do coração desfolha. Desfolhada a primeira flôr, o vaso que
fica não tem seiva para outra: é como a terra ferida de maldição.
--Isso é triste--acudiu Silvina, tregeitando com a cabeça e olhos umas
gaifonas piedosas.
--Tristissimo, minha senhora!
Agora eram de victima os ares do Fausto da Maya, e a dama já pedia a
Deus que não viesse para junto d'ella a prima, com medo de espirrar uma
d'aquellas casquinadas de riso, que a mais sisuda prudencia não refreia.
Jorge Coelho, no entanto, sem bem saber o que o impacientava, não podia
tolerar a detença do amigo. «Se eu soubesse dançar--dizia de si para si
o academico--teria feito o que fez Pires... Será de mim que elles estão
fallando? É natural, porque a vejo fitar-me com attenção... Se me eu
avisinhasse, daria melhor occasião a Pires de me apresentar...»
E, obedecendo á hypothese, deu alguns passos; mas tão a medo o fazia,
que antes parecia querer que o não vissem. N'isto, já o amigo o andava
procurando, e Silvina, vendo a direcção errada de Pires, acenou-lhe de
longe, indicando com disfarce onde estava Jorge.
O pobre moço tremia quando viu que era procurado. A sua primeira idéa
foi fugir da sala, e não duvidamos crêr que fugiria, se Pires lhe não
trava do braço, dizendo:
--Olha lá como lhe fallas: a mulher tem espirito, e é um genio.
Isto foi peior.
--O meu amigo Jorge Coelho que eu tenho a honra de apresentar á exc.ma
snr.ª Dona...
Pires estacou. Silvina sorriu-se. Jorge corou, baixando os olhos.
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 03
  • Parts
  • Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 01
    Total number of words is 4600
    Total number of unique words is 1890
    31.4 of words are in the 2000 most common words
    44.8 of words are in the 5000 most common words
    52.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 02
    Total number of words is 4555
    Total number of unique words is 1777
    32.7 of words are in the 2000 most common words
    45.8 of words are in the 5000 most common words
    52.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 03
    Total number of words is 4700
    Total number of unique words is 1824
    34.3 of words are in the 2000 most common words
    47.4 of words are in the 5000 most common words
    53.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 04
    Total number of words is 4696
    Total number of unique words is 1781
    35.5 of words are in the 2000 most common words
    48.1 of words are in the 5000 most common words
    55.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 05
    Total number of words is 4838
    Total number of unique words is 1676
    35.9 of words are in the 2000 most common words
    48.4 of words are in the 5000 most common words
    55.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 06
    Total number of words is 4653
    Total number of unique words is 1874
    32.4 of words are in the 2000 most common words
    45.0 of words are in the 5000 most common words
    51.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 07
    Total number of words is 4768
    Total number of unique words is 1735
    37.4 of words are in the 2000 most common words
    50.5 of words are in the 5000 most common words
    57.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 08
    Total number of words is 4728
    Total number of unique words is 1790
    36.1 of words are in the 2000 most common words
    49.4 of words are in the 5000 most common words
    56.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 09
    Total number of words is 4741
    Total number of unique words is 1678
    37.4 of words are in the 2000 most common words
    51.4 of words are in the 5000 most common words
    57.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 10
    Total number of words is 4627
    Total number of unique words is 1728
    35.6 of words are in the 2000 most common words
    49.2 of words are in the 5000 most common words
    55.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 11
    Total number of words is 4573
    Total number of unique words is 1596
    38.6 of words are in the 2000 most common words
    53.6 of words are in the 5000 most common words
    60.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 12
    Total number of words is 4602
    Total number of unique words is 1511
    35.2 of words are in the 2000 most common words
    49.3 of words are in the 5000 most common words
    56.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 13
    Total number of words is 4641
    Total number of unique words is 1465
    36.6 of words are in the 2000 most common words
    50.4 of words are in the 5000 most common words
    58.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 14
    Total number of words is 3958
    Total number of unique words is 1341
    37.4 of words are in the 2000 most common words
    50.1 of words are in the 5000 most common words
    56.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.