Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 10

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em se aviltar para me chamar sua, se elle mesmo conhece que lhe obedeço
abominando-o? Mas eu não devia soffrer, porque Deus bem sabe que fui
levada de rastos, e que me perdi por ser boa filha, e me tenho
atormentado para ser uma victima obediente dos calculos de minha
familia! Calculos! quaes, e de que serviram? Quem foi feliz com
elles?!...»
Estes mentaes soliloquios eram cortados por algum ronco pavoroso, ou
espertar estremunhado do negociante de couros, quando não era uma
pancada da mão esponjosa que algum sonho sacudia ao peito de Rachel.
Chegaram ao seu destino, e pouco depois as cargas da bagagem, e as
criadas de Rachel. Manoel Pereira passou na quinta aquelle dia e o
seguinte; ao outro, voltou para o Porto a fim de fazer uma carregação de
couros, e activar uma leva de escravos brancos para o Rio de Janeiro.
Rachel, á hora crepuscular da noite d'esse dia, foi sósinha sentar-se
nas escadas do cruzeiro, que defrontava com o portal da quinta, e então
chorou as lagrimas represadas em tres dias de exasperada angustia.
Como tu serias linda alli de uma formosura do céo, Rachel! Qual
Magdalena mais linda inventou o buril aos pés da cruz misericordiosa! E
se anjo tu eras de purissima alma; se as mesmas lagrimas te depuravam de
intenções culposas, que alegria não seria a do teu Creador, vendo-te
assim incontaminada, com menos ventura que muitas que não tinham no
coração uma fibra incorrupta!
Se a essa cruz voltares, n'outra tarde, a pedir perdão da queda, hão-de
os anjos chorar-te, ó Rachel; mas pedirão a Deus que te leve para si e
para elles, como se houvesses cumprido immaculada o teu desterro do céo.

XXII.
José Francisco Andraens venceu a morte, que lhe entrára no buxo,
disfarçada nos dez pombos, que elle ceiou, em casa do visconde dos
Lagares.
Das recahidas é que ia sendo impossivel salvar-se. Quando a medicina lhe
empunha um caldo simples com meia onça de pão esfarelado, José Francisco
desfazia meia gallinha na tigela. A inflammação gastrica
reaccendia-se-lhe nas cavernas, e a morte voltava de novo a espremer-lhe
os succos das tres barrigas até descorçoar rebatida pela brutal
compleição. A final nem a medicina pôde acabal-o!
Ergueu-se José Francisco algum tanto abatido, um pouco pallido, quebrado
de vista, e mal seguro das suas pernas zambras. Deu um passeio de
carroção até á Foz, e almoçou com appetite. Voltou no dia seguinte, e
almoçou duas vezes. Cubiçou pescada, por que a viu sahir das redes, e
mandou cozer uma com cebolas e batatas. Depois de jantar, dormiu um
somno de justo, com a barriga repleta, (cousa que não succede muitas
vezes aos justos)--e sahiu de tarde a tomar a fresca em Carreiros, onde
a fortuna lhe deparou uma vendedeira de manjares brancos e pasteis de
Santa Clara, que lh'os vendeu todos a olho, e elle comeu, empinado sobre
um penedo sobranceiro ao mar.
Tomada a refeição, José Francisco limpou o suor da papeira, e lambeu os
beiços pulverisados do assucar dos pasteis. Depois descobriu a cabeça á
bafagem fria do oceano, cruzou os braços em postura de quem medita, e
pensou assim:
--Como isto é tamanho! Como se faria o mar? Por que será que o mar
cresce e minga? Quantas pescadas haverá no mar? A gente sempre a comer
peixe, e nunca se acaba!
Entrava José Francisco na solução d'estes problemas, quando a linha do
seu horisonte foi cortada por um barco a vapor. Topetaram então com o
sublime do engenho humano as suas meditações:
--E o vapor!?--dizia elle--Sempre os homens tem idéas! Pelos modos o que
faz girar as rodas é o fumo do carvão! Uma cousa assim! E como a gente
come boa carne a bordo d'um vapor inglez! Bons tempos eram aquelles em
que eu viajava, e comia tanto, sem me sentir enfartado como agora que
qualquer cousa me trabalha cá no interior!...
Estas considerações entristeceram José Francisco, e o espectaculo do
oceano enfastiou-o. Ergueu-se, desceu do seu throno de caranguejos e
algas, e foi dar alguns passeios na lingueta de pedra, onde então
passeavam muitas familias.
Entre estas estava Francisca da Cunha conversando com Antonio José
Guimarães, o linheiro; e Silvina de Mello procurando conchinhas na
praia.
O linheiro foi comprimentar o commendador, e D. Francisca chamou a
attenção da prima.
José Francisco, logo que viu Silvina, perdeu a cabeça.
É preciso explicar o que o leitor já devia saber, se esta historia fosse
contada com mais arte.
Quando Andraens cahiu doente, Silvina mandou saber do seu estado, e teve
quem lhe assegurasse que o illustre enfermo succumbiria ao typho,
resultante da gastrite. Ao mesmo tempo, disse-lhe alguem que José
Francisco fizera testamento, sendo uma das verbas testadas aos seus
parentes de Cozelhas a quantia de um conto oitocentos e vinte e cinco
mil e setenta reis, de que lhe era devedor Pedro de Mello, declarando a
quinta hypothecada ao pagamento da quantia, e juros da lei.
Silvina não mandou saber do homem; e Pedro de Mello, que viera ao Porto
para apressar o casamento, tão indignado ficou da avareza do moribundo,
que deu louvores a Deus de matar a tempo o villão, para que sua filha se
não conspurcasse na lama de tal javardo. Era o sangue escandecido do
sargento-mór d'Amarante que refervia nas veias do neto. E, ao mesmo
tempo, como o morgado de Santa Eufemia andasse ahi nas ruas do Porto,
exhibindo um rosto de amargura e uma gravata verde-gaio com alfinete de
cabeça d'ouro rendilhada, Pedro de Mello disse á filha que seria
prudente não dar de mão ao morgado, porque lhe constava que o pai tinha
soffrido um insulto apopletico, e não poderia viver longo tempo.
Silvina, anjo de submissão, accedeu á vontade paternal, e trocou algumas
palavras com Christovão Pacheco, quando ambos immergiam no mar, e
recebiam a unção conciliadora da mesma onda. Succedeu assim o caso em
que pegou o desamuarem-se:
O morgado, ao aproximar-se a onda, dava urros, e mettia-lhe a cabeça com
furioso impeto, perneando fóra d'agua. Como Silvina estivesse perto
d'elle, viu que o sapato d'ourêlo n'um d'esses pinotes de arlequim
maritimo, lhe saltára de um dos... dous pés--digamos dous pés por
deferencia á historia natural.--E, quando o sapato, entumecido de agua,
ia ao fundo, Silvina disse á banheira que apanhasse o sapato do
cavalheiro. A tempo foi isto que o morgado o andava procurando á tona
d'agua; e, como ouvisse a magica voz da dama, e visse o sapato na mão da
banheira, que lh'o atirava a elle, Christovão, bem assombrado, disse a
Silvina:
--Obrigado á sua attenção, minha senhora!
--Não tem de quê--respondeu Silvina, sorrindo.--Porque não toma o senhor
o seu banho mais quieto?
--Gosto d'isto assim;--respondeu o morgado.
--Eu cuidei que era o nervoso que o obrigava a dar cambalhotas na agua.
--Nada, não é, minha senhora; é que eu gosto de brincar com o mar; com o
amor é que eu já não brinco.
--Nem deve brincar, porque o amor gosta de ser tratado seriamente; e o
senhor zomba com as victimas d'elle...
--Eu é que zombo, minha senhora!... Não perca esta onda, que é boa.
O de Santa Eufemia arremetteu com a onda, e fez proezas de natação,
deixando-se ir de costas no dorso da vaga, que o levou á praia.
Como Silvina sahisse do mar, o morgado sahiu tambem, vestiu-se, e
esperou, disfarçadamente, a sua mulher fatal. Sahiu Silvina da barraca,
e deu de rosto com Christovão Pacheco. Sorriu-se, e respondeu á cortezia
do fidalgo de Freixieiro. Deu alguns passos, procurando Francisca da
Cunha; e, como a visse entre duas barracas protectoras conversando com o
linheiro, sentou-se a um recanto, sosinha, e meditativa. O morgado
sentia caimbras nas pernas e saltos do coração. Girava em roda d'ella,
puxado por magnetismo irresistivel. A final fez ao seu acanhamento o que
fazia ás vagas: metteu a cabeça, e foi.
Silvina recebeu-o agradavelmente, e conversou com elle um quarto de
hora. D'esta conversação resultou ficarem convencionados para tomarem o
banho juntos no dia seguinte, e assim nos oito dias que decorreram.
José Francisco Andraens convalescia da ultima recahida, quando teve
noticia da deslealdade de Silvina. Desafogou no seio do visconde dos
Lagares, e deu procuração para ser demandado Pedro de Mello por um conto
oitocentos e vinte e cinco mil e setenta reis, e juros da lei. Com estes
acontecimentos coincidiu a ida do commendador á Foz, e o seu encontro
com Silvina em Carreiros. Agora está dada a razão de ter perdido José
Francisco o tino, quando a viu á cata de conchinhas.
--Ó prima Silvina--disse Francisca--olha que está aqui o senhor
commendador Andraens.
--Bem se lhe dá ella que eu esteja aqui ou em casa do diabo--disse com
ira e amargura José Francisco.
Silvina avisinhou-se do grupo, e disse serena e em tom severo:
--Folgo muito em vêr restabelecido o credor de meu pai. Ser-me-ia
dolorosa a sua morte, por muitas razões, sendo a primeira o receio de
vêr meu pai soffrer alguma penhora a requerimento dos herdeiros do
senhor commendador.
José Francisco respondeu com promptidão sem mudar de côr:
--Quem deve, paga. É como é. A senhora esperava ser minha herdeira?
--Não, senhor; esperava merecer-lhe a consideração de mulher que
estivera para ser sua esposa. Esperava que o senhor não andasse jogando
entre mim e meu pai com um punhado de ouro, que não vale para mim este
punhado de conchas. Esperava, finalmente, que o snr. José Francisco
Andraens não viesse por si mesmo certificar a conta, em que é tido, de
possuir uma riqueza que é o seu flagello, e o das pessoas a quem
empresta uma migalha das suas sobras. O senhor, logo que se viu em
perigo de morte, esqueceu-se de que eu me tinha desembaraçado de todos
os obstaculos para ser sua mulher, e testou a insignificante divida de
meu pai, para morrer sem deixar saudades a alguem n'este mundo. Desde
que v. s.ª praticou semelhante baixeza em que conceito queria que o eu
tivesse?
José Francisco tartamudeou esta resposta:
--Eu não estava escorreito do miolo quando fiz o testamento. Lá foi o
meu amigo visconde que arranjou tudo, e eu assignei sem dar tino de mim.
Se offendi o senhor seu pai, queira perdoar.
Não ha que vêr: Silvina era a mulher fatal de tres corações, que por
ella andavam perdidos. Andraens, como a visse e ouvisse, perdia a
consciencia da sua dignidade, e--o que mais é para assombro--a
consciencia de credor. Quanto mais arrogante Silvina lhe castigava a
natural grosseria, mais escravo se humildava José Francisco. Fulminava-o
a electricidade dos olhos d'ella, e tinha a sua voz um encanto, que
faria lembrar o da magica da Colchida, se elle não fosse pôrco, antes de
ouvil-a. Pasmava elle do feminil predominio d'aquella mimosa mulher que
o sopesava; mas este espanto era submisso, e a submissão amor, que os
romancistas chamam o fatidico, o predestinado, o invencivel.
Antonio José Guimarães, avesso á reconciliação de Silvina com o morgado,
e desejoso de a vêr ligada ao seu amigo Andraens, esforçou-se em
desamual-os, dando explicações a favor d'um e d'outro, de modo que ambos
já as escutavam silenciosos. José Francisco acompanhou Silvina e
Francisca, promettendo vir jantar com ellas no dia seguinte, e
authorisou o linheiro a dizer de sua parte á menina que por causa d'elle
não se havia de desarranjar o que estava tratado. Mandou immediatamente
sustar a começada execução sobre Pedro de Mello; presenteou com
alfinetes e pulseiras as duas fidalgas; tomou casa na Foz; deu a Pedro
de Mello as satisfações que o pundonor do fidalgo exigia, e deixou ao
arbitrio d'este as condições da escriptura nupcial.
E o morgado de Santa Eufemia? Esse continuava a dar cabriolas nas ondas.

XXIII.
Em fins de Setembro, foi Jorge Coelho, na companhia de Leonardo Pires, á
Foz. D. Marianna contrariára-lhe o desejo, até áquelle dia, por saber
que a ventoinha de Margaride lá estava, desafiando, com as suas
evoluções amorosas, a irrisão da gente frivola e a indignação das
pessoas sérias. O jornalista, porém; que era oraculo em casa do
negociante Ferreira, aconselhára a excellente amiga de D. Antonia a não
impedir que Jorge visse o espectaculo irrisorio ou repugnante em que
Silvina se exhibia.
Estava ella sentada nas ribas fragosas, que marginam o «caneiro» onde os
grupos se banhavam. Francisca da Cunha estava, ao lado da prima,
conversando com o linheiro. O morgado de Santa Eufemia, n'outra
eminencia do fragoêdo, abarcava as pernas com os braços, e apoiava o
queixo entre os joelhos. Na especie de ilha que fórma a outra riba do
caneiro, andava aos pulos Egas de Encerra-bodes, ensinando um cão da
Terra-Nova a saltar ás ondas. E era aquelle o vulto mais pitoresco da
praia, envolto no seu cobrijão escarlate, franjado de borlas verdes, e
cahido a um lado com a natural graça, que usam dar-lhe os provincianos,
vesados áquella elegancia de feiras.
Jorge de Sepulveda avistou de longe Silvina, e disse a Pires:
--Lá está ella... Não passemos d'aqui.
--E que quer dizer não passarmos d'aqui?--acudiu o da Maya, accendendo o
charuto no cachimbo denegrido d'um banheiro--Queres tu, amigo Jorge,
fingir o que não és? Apraz-te passar por tolo no conceito d'aquella
mulher?!
--Julgue-me ella como quizer...--replicou elle--concedo que seja tolice
isto, mas... é cedo ainda para ser... homem. Eu amei seriamente Silvina.
O amor e o remorso são espinhos, que não desencrava do coração quem
quer. Para que te hei-de eu mentir, se me não posso enganar a mim? Não a
esqueço, nem se quer a despreso áquella mulher. Minha mãi ajoelhou
commigo sobre a sepultura de meu pai, e pediu-me, pela memoria d'elle,
que me vencesse e levantasse da minha miseria. Quiz, e não pude, meu
amigo! Como queres tu que eu possa dissimular á penetração de Silvina o
que por ella sinto?! Melhor é que me ella não veja. Vai tu, se queres:
eu espero-te aqui, e voltaremos logo para o Porto.
Jorge sentou-se n'uma fraga a distancia; e Leonardo Pires, vibrando o
chicote, foi postar-se a pouca distancia de Silvina, conversando com o
morgado de Santa Eufemia.
--Então quem namora agora a menina?--disse o da Maya--O meu amigo de
certo não, que o vejo aqui amuado. Jorge Coelho tambem não, que está
acolá conversando com a natureza, e lendo o seu destino no vôo das
gaivotas, como Catão d'Utica.
--Que é?!--disse Christovão, receioso de que o nome do romano fosse
algum chasco á sua ignorancia.
--Catão d'Utica, disse eu, meu caro senhor; não conhece este personagem?
--Nada, não conheço--replicou o morgado, voltando o rosto para o lado de
Silvina, que o remirava com disfarce por entre o franjado da sombrinha.
--Mas ha-de conhecer aquelle outro personagem que lá vem--retorquiu o da
Maya.
Christovão olhou na direcção indicada, e viu José Francisco Andraens,
que descia lentamente a calçada que conduz á praia. Não teve mão da sua
raiva, de mais a mais aguilhoada pela facecia de Pires: fitou Silvina
com um sorriso de ironia bruta, e disse-lhe em alta voz:
--Lá vem o nosso homem!
E soltou uma casquinada de riso, dando upas sobre a pedra, com as pernas
apertadas entre os braços.
Silvina virou-se de lado com repellão, e Leonardo Pires exclamou:
--Estão bonitos! isto sim, que daria idéas a um Gavarni cançado! Ó
humanidade tu és a caricatura dos monstros que a imaginação cria nos
seus delirios de cognac e absyntho!
Dito isto, com pasmo d'algumas familias de Traz-os-Montes, que por alli
se agrupavam, Leonardo desceu do fragoedo para a praia, ao mesmo tempo
que José Francisco se aproximava de Silvina.
--Ora viva!--disse o commendador á fidalga de Margaride--Como passou?
--Excellentemente, e o snr. Andraens?
--Está feito; não me dei muito bem com a ceia. Appeteceu-me uma lagosta,
e trabalhou-me cá dentro toda a noite. Agora, estou mais desempachado, e
acho que vamos ao banho.
--Quando quizer.
--Sempre me sento um bocado a arrefecer--tornou José Francisco,
apalpando as pedras, e ajustando, o melhor que pôde, com as asperezas
d'ellas as roscas de carne cuja flexibilidade se moldava ao anfractuoso
da rocha. Depois, bramiu um urro de satisfação, e cruzou as mãos sobre a
barriga n.º 2.
--Com que sim--continuou elle--Em que estava a senhora a malucar?
--A malucar?!--disse Silvina, franzindo a testa.
--Sim, dizia eu, se estava a cogitar n'esta vista do mar...
--Ah! sim... estava...
--A fallar a verdade,--tornou elle, recolhendo-se--isto é uma obra que
faz pasmar a gente! O que me dá no goto é isto de crescer e mingar o
mar!... A senhora sabe a razão?
--Dizem que é effeito da attracção da lua.
--Da lua!--atalhou com espanto José Francisco.
--Sim, senhor, da lua; é o que dizem os entendedores; mas como se faz o
fluxo e refluxo do mar é que eu não sei, nem mesmo me importa saber...
--Da lua!--tornou o commendador, olhando para a abobada celeste, e
gesticulando mudamente com os braços, como quem se esforçava por
entender a acção da lua sobre a agua, com um imaginario artificio de
alcatruzes.--Da lua não póde ser!--disse elle por fim, com a energia e
aprumo de Galileu, á sahida do carcere.
--Pois então não seja!--disse Silvina com enfado.
--Porque a lua--tornou José Francisco, com os olhos no céo, e os dedos
das mãos afastados entre si--a lua está lá em cima, e...
--E o mar está cá em baixo...--atalhou a menina, espirrando um frouxo de
riso.
--Ora ahi está! E a senhora ri-se!? Eu queria que os doutores me
explicassem como é que a lua empurra o mar e puxa depois por elle... Ó
snr. Guimarães! olhe aqui que vai já.
O snr. Guimarães era o linheiro, que estava a pouca distancia com
Francisca da Cunha. Vieram ambos ao chamamento de José Francisco, e ella
principalmente attrahida por um tregeito da prima.
--Diga-me cá: vossê sabe como é que a lua faz isto de crescer e mingar o
mar?
--Eu não estudei nada d'isso--respondeu o linheiro--mas, em quanto a
mim, a maré cresce quando o vento é de mar, e minga quando o vento é de
terra.
--Ah! pr'ahi, pr'ahi! diga-me d'isso!--acudiu radioso o
commendador.--Mas da lua!... É que estava cá a minha Silvininha a dizer
que era a lua. Quem lhe metteu isso na cabeça, menina?
--Foi alguem que estava a zombar de mim!--disse Silvina gargalhando
francamente com Francisca da Cunha.
--Isso entendo eu... Agora--tornou José Francisco--se querem ir lá
conversar sosinhos, vão, que eu tenho que dizer aqui a esta menina uns
arranjos cá da nossa vida de noivos.
Francisca e o homem da rua das Hortas afastaram-se para irem occupar as
cadeiras, que deixaram junto d'uma barraca; mas encontraram-nas tomadas
por Leonardo Pires e Egas de Encerra-bodes.
Ergueu-se Egas, e Francisca sentou-se, cuidando que Leonardo cederia a
sua cadeira a Antonio José Guimarães; mas Leonardo não se moveu, e o
linheiro estacou diante d'ambos, com os olhos fuzilantes sobre o da
Maya, que assobiava apparentemente distrahido a canção popular, cuja
letra é: _Muito bem seja apparecido n'esta funcção_...
Francisca ergueu-se, e deu alguns passos em retirada. O linheiro, porém,
bamboando a cabeça, resmuneou estas palavras, mal ouvidas de Pires:
--O que vossê merecia, sei eu.
--Que regouga?--disse-lhe o da Maya.
--O senhor...--replicou Antonio José--ainda ha-de topar quem lhe dê uma
boa lição.
--Vá-se embora--redarguiu Pires--Se não, atiro-lhe areia aos olhos.
--A mim?!--disse com um sorriso azedo o linheiro.
--E enterro-o n'esta praia, como quem enterra um safio pôdre. Vá-se
embora, homem, e diga lá á fidalga que não ame parvos, se não quer
receber d'estas affrontas.
O linheiro fez um arremesso com a bengala, e Leonardo Pires tomou do
chão dous punhados de areia, dizendo com semblante de quem brinca:
--Olhe que vossemecê leva!
Egas de Encerra-bodes, que estivera, a um lado, rindo debaixo de uma
dobra do cobrijão, deu dous passos para a retaguarda do linheiro, e fez
um gesto ao «terra-nova». O cão começou a tirar com os dentes pelas abas
do paletó de Antonio José, e este a sacudir-se, e a florear a bengala,
que infelizmente embarrou no focinho do animal. O remate d'este episodio
foi cousa triste de contar-se. O linheiro, se não tem botas de cano
alto, sahiria com as canellas estrincadas; e póde ser que os dentes do
«terra-nova» procurassem afiar-se em porção das pernas, não abroqueladas
das botas, se Egas lhe não fallasse de modo que elle, de cauda cahida,
veio rastejar-lhe aos pés.
Terminou isto por ir o misero queixar-se ao regedor que alli estava
perto, homem de bom siso, que se dirigiu a Egas, pedindo-lhe que fizesse
saber ao seu cão que nem todos os cidadãos traziam botas de cano alto.
Francisca da Cunha, fugindo para perto de Silvina, podéra forrar-se á
vergonha de semelhante conflicto; apenas dissera ao commendador que um
doudo furioso a perseguia em toda a parte; e, citando o nome do doudo,
viu, com grande pasmo de Silvina e d'ella, erguer-se o commendador, e
descer agilmente as fragas resvaladiças, para se entremetter na
desordem, que encontrou no periodo final do cão arremettendo ás pernas
do seu amigo.
Aplacado o incidente, entraram Silvina e José Francisco, cada qual em
sua barraca, para se vestirem.
Leonardo Pires dirigiu-se a um banheiro, e pediu sem demora um fato de
banho alugado. Vestiu-se, e sahiu da sua barraca a tempo que o
commendador, a par de Silvina, entravam no mar. Seguiu-os, e passou-lhes
adiante, indo postar-se n'um ponto em que as ondas batiam mais fortes, e
onde só os nadadores ousavam esperal-as. Quando a onda vinha, Leonardo
mergulhava, e vinha com ella, até marrar nas pernas de José Francisco.
Erguia-se, sacudia a grenha, pedia perdão e tornava para o seu posto.
José Francisco retirava-se a um lado; mas, na volta de outra onda, a
marrada era infallivel. Á terceira vez, o brazileiro ladeou, quando viu
mergulhar o monstro da Maya; este, porém, nadando com os olhos abertos,
lá foi abalroar com o homem, e pedir perdão pela terceira vez.
José Francisco esbofava no mar como tubarão ferido. Sahiu á praia
atordoado, em quanto Silvina, estranha ao successo porque ficára longe
do noivo, se deixava contemplar pelos olhos lagrimosos de Jorge, que a
via, resguardando-se de ser visto.
Leonardo Pires, no perpassar por ella, disse-lhe a meia voz:
--Jorge de Sepulveda está acolá, minha senhora! Anda aquelle seu bom
anjo a quer salval-a de um eterno ridiculo, e v. exc.ª a cahir, a cahir,
a cahir, n'um dos tres abysmos das tres barrigas de José Francisco
Andraens!...

CONCLUSÃO.
Muita gente honesta, lendo, quinze dias depois, nos jornaes do Porto, a
noticia do casamento de José Francisco Andraens com D. Silvina de Mello,
observou que esta menina tinha muito mais juizo do que mostrava. As mães
de familia citaram-na como exemplo ás suas filhas; e estas, bem que
exteriormente se rissem d'ella, invejaram-na.
Ás suas amigas particulares dizia Silvina que o seu casamento fôra um
sacrificio do coração á dignidade propria; por quanto, dous implacaveis
homens, o morgado de Santa Eufemia e um tal Jorge Sepulveda, calcando
aos pés quantos deveres a civilidade impõe a sujeitos, que não podem ser
amados, lhe andavam sempre dando desgostos, vergonhas, e descredito.
Estes dizeres, comprovados por umas lagrimas que ella arranjava com
prodigioso artificio, apiedaram as proprias amigas, que diziam d'ella
mil maravilhas.
José Francisco Andraens arrijou de suas frequentes dyspepsias, quando o
mundo e a medicina menos o esperavam. Muitos rapazes indiscretos paravam
a contemplal-o á porta dos snrs. Pintos Leites, na calçada dos Clerigos,
nos primeiros quinze dias depois do seu matrimoniamento. José Francisco
estava um todonada melado de rosto; mas não lhe iam mal aquelles ares de
noivo: tudo tem n'este mundo a sua hora e côr de poesia.
O morgado de Santa Eufemia recebeu ao mesmo tempo o golpe da morte e o
balsamo da vida: morrêra-lhe o pai na vespera do dia em que Silvina
casára.
D. Francisca da Cunha casou com o linheiro das Hortas. As duas meninas
com os respectivos maridos foram para o Bom Jesus do Monte, local
sagrado que dá luas de poesia a quantos parvos ha ahi que vão celebrar
n'aquelle sanctuario uma festa, irrisoria, se não tôrpe, na essencia.
Jorge de Sepulveda, quando viu a local da gazeta agoureira de muitas
prosperidades a José Francisco e Silvina, estremeceu, empedrou, e
invocou do anjo da piedade o desafôgo do pranto.
Ora, o amigo de Guilherme do Amaral, se não era o anjo da piedade, tinha
em si um santo e mysterioso condão de espremer entre os dedos
inexoraveis da sua philosophia algum tanto cynica, toda a peçonha dos
corações, cancerados pelo amor.
Alguma vez verá o leitor que boleus deu toda esta gente com as
costumadas voltas do mundo.
O livro complementar d'estas biographias ha-de denominar-se: REACÇÃO DA
POESIA.
É o natural seguimento dos Annos de prosa.
FIM.
[1] Não vá entender alguem que o romancista está phantasiando.
Quando Napoleão III casou com a condessa de Montijo, duas familias
ventilaram em Portugal e porfiadamente, a origem dos Porto-Carreiros
que levára a Castella os embriões da imperatriz. As familias
litigantes eram os Porto-Carreiros da casa da Bandeirinha no Porto,
e outros de igual appellido de Abragão, ahi para as cercanias de
Penafiel. O pleito heraldico andou nas gazetas, e nomeadamente no
_Portugal_, jornal realista do Porto. A critica oscillou longo tempo
indecisa entre as duas familias, até que um dia, cançada de
oscilações, cahia a rir deixando ás duas familias nobilissimas o
direito salvo de enxertarem o imperio francez lá em casa.
[2] _V. do Arcebispo._

* * * * *


O ARREPENDIMENTO.



O ARREPENDIMENTO.

ROMANCE.

Em tempos da minha mocidade costumava visitar a miudo uma boa velha,
minha visinha, que me honrava com a sua estima e amisade. Humildemente
confesso que não ha sociedade mais deleitosa e agradavel, do que a de
uma mulher que soube envelhecer. A sua conversação instructiva e
divertida, é um inesgotavel thesouro de lembranças, anecdotas,
observações chistosas e reflexões circumspectas, é finalmente uma
revista do passado.
D. Mafalda, deixem-me assim chamar-lhe, juntava á amenidade da conversa,
a do caracter, que era brando e indulgente.
Quando tinha occasião de ir passar uma noite com ella, parecia-me que as
horas voavam ligeiras e que corriam mais rapidas, do que quando as
gastava a distribuir finezas e galanteios ás mais formosas rainhas dos
mais brilhantes salões. Era sempre com vivo pesar que a via apontar para
o relogio, indicando-me que a hora de me retirar tinha chegado, e
voltava a minha casa com o espirito mais rico, e o coração satisfeito e
melhor.
A historia que vou contar-vos, minhas caras leitoras, foi-me dita por D.
Mafalda n'um d'estes serãos em que vos fallei.
Era n'uma bella noite de Junho; fui encontral-a sentada na sua cadeira á
Voltaire, tendo a seus pés, deitado em um cochim, o seu cãosinho
querido; os olhos tinha-os semi-abertos, um sorriso nos labios, e
parecia respirar com prazer a aragem, que, embalsamada pelas flôres do
jardim, se coava pela janella meia aberta. Quando cheguei junto d'ella
vinha indignado por que um de meus parentes tinha sido victima d'um
abuso de confiança; contei-lhe o succedido, e no calor da narração não
poupei ao culpado as maiores imprecações, nem deixei de lhe dizer que
desejava fazer-lhe todo o mal possivel.
--Devagar, meu querido amigo--me disse ella--não o julgava tão
irrascivel, nem que tivesse tão pouca caridade para com o proximo. Sabe
lá, se, com a vida, não tiraria ao culpado o merito de para o futuro se
poder rehabilitar pelo arrependimento, e se o momento em que lhe
infringisse o castigo não seria o destinado por Deus para esse
arrependimento?
--Eis-ahi, minha cara visinha, uma doutrina, permitta-me a expressão, um
pouco subversiva da ordem social.
--Deus me defenda--me replicou--de querer que o culpado não seja
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