Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 09

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coração em flôr. Que candura, que adoravel innocencia a dos vinte annos
de Jorge... creio que se chama Jorge! E, ao mesmo tempo, que
singularissimo typo de rapaz eu conheci com elle, e todos os dias
encontro por ahi atraz de uma prima de Silvina, e de um tal Guimarães,
linheiro, ou pregueiro, ou cousa que o valha... Que homem se fará
d'alli, se o céo o não leva d'este mundo e d'esta sociedade que tanto
precisa de um cenaculo d'aquelles apostolos!... V. exc.as de certo não
conhecem Leonardo Pires de Albuquerque, fidalgo da Maya, descendente de
D. Martim Pires da Maya, que gerou D. Pedro Pires, que gerou D. frei
Martim Martins, mestre da ordem do Templo no seculo XIII? De certo não
conhecem...
--Nem é preciso conhecerem--exclamou Manoel Pereira--É um patife, que
concorreu muito para a doença do meu amigo Andraens!
--Eu não pensava--replicou o poeta--que Leonardo Pires era um alimento
indigesto!... Se bem me recordo, v. s.ª disse ahi que a enfermidade do
snr. Andraens era uma indigestão!
--Como de facto; mas, pelos modos, o tal brejeiro insultou-o no baile, o
homem atrigou-se, e sahiu cá para fóra afflicto, e nunca mais foi bom.
--Não sabia isso; apenas me disseram que elle recommendára ao snr.
Andraens que não comesse tanto; e quer-me parecer que este conselho,
longe de ser insultuoso, tendia a prevenir a indigestão fatal que se
deu.
--Deixemo-nos de contos...--instou o marido de Rachel.
O sorriso d'esta era já forçado por vêr que o jornalista não tinha a
cortez caridade de conter as ironias que Manoel Pereira não percebia.
--E D. Antonia que diz, mãi?--interrompeu Rachel.
--Diz que Jorge Coelho vem para esta casa.
--Para esta casa?!--acudiu Manoel Pereira abrindo a bocca, e arregaçando
o nariz até á testa.
--Não tenho n'isso duvida nenhuma--respondeu Bernardo Joaquim Ferreira,
que tinha sahido e voltára momentos antes.--E dou-te parte, Marianna,
que Jorge já está na hospedaria, e não sei se será dever meu ir já
buscal-o esta noite. Aqui tenho um bilhete d'elle, pedindo-me que o
desculpe de não vir directamente aqui.
--Como ainda é cedo, disse D. Marianna, podes ir buscal-o. O quarto está
preparado. A mãi descrevendo n'um estado tal de amargura que eu tenho
pena de o deixar sosinho na hospedaria.
--Mas ha um inconveniente--redarguiu o snr. Bernardo.--Tenho gente no
escriptorio á minha espera para liquidar umas contas, e não posso
deixal-as para ámanhã, que os negociantes são da provincia, e partem de
madrugada. Se o snr. Pereira tivesse a bondade de ir á Aguia d'Ouro...
--Homem, eu a fallar-lhe a verdade--disse Manoel Pereira--tenho aqui
n'este pé direito uns callos que me não deixam dar passada; se não da
melhor vontade; mas, sempre lhe direi o que penso respeito á vinda
d'elle para aqui. Eu não sei o que me parece metter n'uma casa onde ha
meninas novas um peralvilho que não gosa dos melhores creditos, e que de
mais a mais é amigo do tal Pires, que ha-de cá vir onde a elle, e o
mundo pega logo a fallar pr'aqui, pr'acolá, e ás duas por tres... Em
fim, meu sogro lá sabe o que faz...
D. Marianna replicou com vehemencia:
--O snr. Pereira não ouviu dizer aqui a este senhor que o filho da minha
amiga era um moço muito digno?!
--Todos elles são muito bons, mas em minha casa é que elles não põem o
pé.--Disse Manoel Pereira, e fez menção de procurar o chapéo.
Rachel relanceou sobre o marido um olhar severo. O escriptor fazia
figuras geometricas com as marcas do quino. As meninas olhavam-se entre
si com sorrisos rebeldes á prudencia. O bom Ferreira, apesar da sua
superioridade relativa de sisudeza e bom senso, não deixou de vacillar
ao choque das reflexões do genro. D. Marianna, porém, voltando-se com
energia para o jornalista, disse-lhe:
--O senhor faz-me um favor dos que se pedem sem embaraço a um amigo
antigo?
--Faça-me a honra de mandar-me, minha senhora.
--Tem a bondade de ir á hospedaria, e acompanhar o filho da minha amiga,
o filho d'uma senhora a quem eu devi na minha mocidade o que não posso
pagar-lhe d'outro modo?
O jornalista ergueu-se, e disse, tomando o chapéo:
--Se elle estiver doente, ou na cama fatigado, mandarei um bilhete para
que o não esperem. Até já, ou muito boas noites, minhas senhoras.
Sahira o jornalista, e D. Marianna enxugando lagrimas que não tinham na
apparencia muito cabimento alli, fallou assim:
--Eu nunca disse a minhas filhas os favores que devo á mãi do meu
hospede; escutem-me, e depois dirão se o filho de tal anjo não será
digno de ser recebido como seu irmão. Eu fiquei orphã e pobre aos onze
annos. Entrei nas ursulinas de Braga, entregue á caridade da prelada,
que me achou com habilitações para ser uma simples criada grave de
convento. D. Antonia de Sepulveda tinha tambem entrado, n'essa occasião,
e era rica. Tratei-a com respeito, e ella a mim com familiaridade, para
chegar ao fim de me offerecer metade da sua mesada, e habilitar-me a ser
senhora entre as outras, que me olhavam com desestima, e com a falsa
piedade das ricaças do convento. Aceitei os favores da minha amiga, e
tão suave era o dever-lh'os, que nunca me julguei devedora, se não
depois que vim a esta sociedade conhecer o valor dos beneficios que
recebi de Antonia. Vivi cinco annos á sombra da generosidade d'ella:
prendei-me á sua custa, instrui-me com ella d'essa apoucada educação que
nos davam no convento; e já depois que a minha amiga sahiu para casar
obedecendo ás ordens de seus paes, continuei a receber as mezadas e os
presentes que ella recebia. Casei tambem passado um anno, fui feliz,
enriqueci, presenteei-a, mas a cada lembrança de amiga que lhe eu
mandava, respondia ella com mais valiosos mimos da sua casa. Penso ha
vinte e quatro annos no modo de ser util á minha querida Antonia; a
Providencia depara-me agora occasião de velar as commodidades do filho
d'ella. Haja ahi uma pessoa de boa fé a dizer-me que devia ser outro o
meu procedimento...
--Ninguem se atreve a tanto.--disse Rachel com enfado.--Eu, se minha
mãi, por desgraça nossa, não existisse, levaria para minha casa o filho
da nossa amiga, da protectora de nossa mãi. Se eu tivesse um marido que
me quizesse roubar o prazer da gratidão em tão pequeno serviço,
amaldiçoaria a hora em que meus paes me subjugaram a tal homem...
--Não te irrites assim, Rachel...--disse Bernardo Ferreira, ferido pelas
palavras da filha, que lhe apontavam direitas á consciencia, onde as
fibras do remorso doiam sempre.
Entretanto, Manoel Pereira, franzindo o nariz, dilatava as ventas
hediondas, por onde vaporava a zanga.
O incidente, passados minutos, foi cortado por um bilhete do escriptor,
dizendo que Jorge Coelho pedia desculpa, agradecia extremamente a
delicadeza, e convalescia da fadiga para no dia seguinte cumprir as
ordens de sua mãi.

XX.
O jornalista encontrou Jorge Coelho na cama, e Leonardo Pires sentado á
banca. No semblante de ambos eram visiveis os signaes da altercação, que
fôra interrompida pela chegada do terceiro. O filho de D. Antonia estava
escarlate de febre, e anciado; o da Maya, se bem que de má catadura,
esboçava distrahidamente, a lapis, uns perfis de narizes caprichosos.
Jorge conheceu o litterato, e maravilhou-se da visita; Leonardo Pires,
mais familiarisado com o sujeito, ergueu-se, abraçou-o, e exclamou:
--Aqui está o teu medico, Jorge! o teu Christo, Lazaro!
--Temos _ecce homo_?! Dar-se-ha caso que o snr. Pires--disse o
jornalista sorrindo--me prepare algum calvario?... Como está o snr.
Jorge Coelho? O aspecto denota inquietação...
--Não é inquietação;--atalhou Pires--é a sina maldita d'este desgraçado
que nos tortura a ambos...
--Todos temos o nosso demonio familliar, snr. Pires--tornou o
escriptor--Socrates queixava-se do seu, e eram nada menos de dous os
demonios do divino philosopho, sendo o peor dos dous uma tal Xantippa...
Querem vêr que o snr. Jorge é energumeno d'alguma Xantippa ideal, que...
(O jornalista escreveu, e entregou a um criado o bilhete que foi
recebido em casa de D. Marianna). Jorge entretanto, sorrindo
contrafeito, respondia:
--Não, senhor. Eu sou apenas victima das loucuras do meu condiscipulo.
--Ó cavalheiro--clamou Pires irritado--diga ahi a esse ingrato quem é
Silvina de Mello. Não se trata aqui de desfolhar lindas chimeras, e
matar illusões queridas. A paixão de Jorge é uma nodoa que eu quiz
delir-lhe do coração, á custa mesmo do meu descredito e abominação
n'esta sociedade devassa. Tenha vossê a franqueza de dizer a esta
criança o que eu tenho sido, já que eu tive a boa sorte de lhe referir
ao senhor as minhas acções e palavras.
O romancista achou de riso a gravidade da appellação de Pires para o seu
testemunho; mas perseverou-a na seriedade que o proposito pedia, e
disse:
--O snr. Leonardo Pires tem dado provas exuberantes de amisade ao snr.
Coelho, verberando com prosperos sarcasmos uma menina em tudo
respeitavel, menos na sua virtude.
--É de mais!--atalhou Jorge--Póde ser que Silvina mereça censura como
inconstante, sem com isso...
--Deixar de ser virtuosa?...--interrompeu o poeta...
--Justamente.
--Não julga bem, snr. Coelho. A deshonestidade não póde ser virtude. A
mulher que enfeira o coração, e o põe á concurrencia, mirando ás
vantagens do pedido, poderá ser uma sagaz professora de economia
politica applicada ás mercadorias do coração, mas virtuosa é que ella de
certo não é. Para mim tenho que a virtude póde coexistir com a miseria
da mulher perdida que não tem a hypocrisia de expor o coração á venda;
porém, quero eu que não prostituamos a palavra, que é santa, cedendo-a á
que cuida cobrir as suas ulceras com o amicto de virgem. A snr.ª D.
Silvina de Mello, que eu vim, depois de cinco annos de ausencia,
encontrar occupando a vagatura d'outras aventureiras que eu cá deixei, é
uma senhora aleijada.
--Ainda mais essa!--atalhou Pires--Eu nunca dei pelo aleijão de Silvina!
--Aleijada de espirito, quero eu dizer, snr. Albuquerque. Que outro nome
se ha-de dar á lamentavel enfermidade moral d'uma menina que desperta
das suas illusões de infancia, esfrega os olhos, e começa a procurar em
redor de si um homem com alguns saccos de dinheiro? Ha ahi nada mais
torpe, mais nauseabundo na face da terra! A mulher que assim faz tem
alluido a sua virtude pela base, que é a vergonha. D'ahi ávante o pudor
é uma mentira, as côres que sahem ao rosto são irrupções de sangue como
as empigens, é um mechanismo da materia que o observador encontra mesmo
nos prostibulos. Que é o que bate no peito d'essa mulher, desde que a
ancia do dinheiro fez d'ella um estimulo de sensações? Quando ella
fallar nos affectos da sua alma, qual é de nós o que voluntariamente se
immolará ao escarneo de sua propria consciencia, respondendo ás Silvinas
com expressões de candura e boa fé? O snr. Jorge Coelho tem a
sinceridade de me dizer se me entende?
--Entendo; mas não creio que Silvina seja a mulher que o senhor
qualifica.
--Eu não a qualifiquei ainda: o que eu quiz foi a certeza de que o meu
joven amigo me entendeu a theoria: agora pertence á pratica o qualificar
Silvina. Está o snr. Jorge Coelho no Porto. Fez bem em vir. Isto é uma
questão de tempo. Faça as suas experiencias desde ámanhã em diante; mas
tenha a condescendencia de me ir communicando os seus descobrimentos.
Entretanto, restitua ao snr. Leonardo Pires o bom conceito em que o
tinha, que estes amigos são raros. Outro objecto. A minha commissão não
era vir discutir Silvina: Eu fui aqui enviado pela snr.ª D. Marianna
Ferreira e seu marido a fim de conduzir o snr. Jorge a casa d'elles,
onde foi recebida uma carta de sua mãi.
--Oh! bravo!--exclamou Pires.--Temos homem!
--Não atino com o seu enthusiasmo, snr. Albuquerque!--disse o escriptor.
--Que mulheres, que mulheres tu vaes vêr, ó Jorge!--continuou bracejando
o da Maya.--As Ferreiras! a nata, a quinta essencia das mulheres bellas
do Porto! E a Rachel! ai! aquella Rachel, casada com o nariz mais
indecente que fez o acaso estupido, a quem o Creador entregou a
repartição dos narizes! A Rachel! a mulher dos olhos de antilopa! as
mais bellas carnes que ainda vestiram uma alma, se é que uma mulher
d'aquellas precisa de ter alma para ser perfeita! Ó Jorge, tu estás
curado! Quando vires Rachel, sentirás um coração novo, um coração
caldeado nas fragoas dos olhos d'ella! Eu vi-a uma vez, e creio que se a
visse segunda...
--Iria á missa dos Clerigos vêl-a terceira, não é assim?--interrompeu o
poeta, rindo, com Jorge, dos transportes sinceros de Pires.--Rachel é
uma bella senhora, e uma nobilissima alma--continuou o escriptor
gravemente.
--Mas, segundo a sua theoria--atalhou de golpe Jorge Coelho--essa Rachel
é uma das muitas aleijadas que por ahi ha. Não a conheço; mas sei que
ella casou com um brazileiro hediondo e rico.
--Aquelle nariz!--disse Pires.--Tambem me quer parecer que a mulher
pouco vale na alma, quando contemplo o nariz de Manoel Pereira!
--E eu creio que a sociedade--tornou Jorge--não desconsidera Rachel
porque ella escolheu um homem rico, podendo ter aceitado a
desinteressada pobresa e o coração opulento de muitos rapazes que a
cortejavam. Já se vê que a opulencia d'um sordido não desluz aos olhos
da sociedade a virtude d'uma senhora que se deu por ella.
--São contos largos...--disse o romancista.--Custa-me que o cavalheiro
confunda Rachel com Silvina. Creia que offende uma martyr, snr. Coelho,
Rachel supporta o supplicio de Mezencio, com a resignação que santifica
a baixeza, se ella tivesse existido, e as culpas futuras, se ellas podem
existir. Não levo em paciencia o aggravo feito á pobre menina. Vou
contar-lhe em quinze minutos a historia do casamento de Rachel. Bernardo
Joaquim Ferreira conhece o valor do dinheiro, e duvida da existencia
d'umas paixões, que podem vingar e prosperar sem dinheiro.
Ás filhas chama-lhe suas, e não exclue d'esta propriedade o coração. O
seu pensamento fixo d'elle é casar ricas as filhas. Rachel era querida
de alguns amigos meus, espiritos dignos d'ella, que lhe teriam dado a
ventura, se os encontros predestinados dos espiritos não fossem o
mentiroso poetar de infelizes que nunca se encontram. Um d'esses amigos,
fui procural-o ao hospital de alienados, quando desembarquei ha cinco
mezes em Lisboa. Conheceu-me ainda, e as primeiras palavras que me disse
foram: «Morreu Rachel! A minha alma foi com ella.» Pobre moço! bem
sentia elle que já não tinha alma! Depois de dous annos de loucura, por
ignorados motivos, esquecido de tudo que fôra, tinha uma só
reminiscencia, como se todo o seu passado se concentrasse n'ella...
Vamos ao ponto, e desculpem-me d'estas intercadencias melancolicas. Os
senhores não sabem ainda o que é olhar para o passado aos trinta e cinco
annos, e vêr uma longa fila de espectros uns gotejando sangue, e outros
lagrimas...
O poeta dissera isto tão do intimo amargurado, que nem Leonardo Pires
deixou de o escutar com magoa. Jorge, já dorido de suas tristezas, não
era para espantar que desse em lagrimas uma prova de sympathia á dôr
alheia.
Proseguiu o romancista:
Ha seis annos eram dous os homens indicados para maridos de Rachel. Quem
os indicava, e negociava com ardis, e negaças ignobis, sobre serem
immoraes, era o pai. Rachel detestava-os ambos. Manoel Pereira era um; o
outro era brazileiro tambem, menos repulsivo, melhor alma talvez, e
amigo do primeiro. Desde que se toparam a amar a mesma mulher,
odiaram-se, intrigaram-se e depreciaram mutuamente os seus haveres,
porque bem sabiam que Ferreira tinha a filha em almoeda. O primeiro que
a pediu foi Manoel Pereira, abonando-se com cem contos. O segundo não
dizia o seu valor. Foi o primeiro preferido, sem ser consultada a
victima.
N'este tempo, Manoel Pereira entra em transacções com o governo, e perde
cincoenta contos. Ferreira, sabedor da perda, acolhe de novo o outro
concurrente, e cede-lhe a filha. Este carecia de ir liquidar o seu
negocio ao Rio de Janeiro. Mas, como a liquidação se detivesse mais d'um
anno, Manoel Pereira aventura-se em especulações mercantis, estas
prosperam-lhe, restaura-se das perdas, e rehabilita-se para esposar
Rachel. O negociante, que sabia o anexim do passaro na mão, receia que o
outro não volte, e quebra pela terceira vez o contracto. Rachel ignorava
estas asquerosas mercadorias. Annuncia-lhe o pai que ella é esposa
promettida de Manoel Pereira. A pobre menina quer defender-se primeiro
com razões, depois com lagrimas. Tudo lhe é rebatido com indifferença,
ou com palavras violentas de soberania paternal. Desde o dia em que se
fizera definitivamente a operação commercial dos quinze annos d'um anjo
formoso, como a esperança d'uma alma pura, com o homem de cincoenta
annos, sem o desconto de alguma feição boa do corpo ou da alma, Rachel
era perseguida pelo seu porco demonio de todas as horas. Se acontecia
Manoel Pereira estar na sala, e a lagrimosa criança se demorava no seu
quarto para encurtar as horas do supplicio, ia lá o pai buscal-a; e se
as grosserias a não compelliam a aligeirar o passo, não era raro
ameaçal-a de pancadas, e mesmo fazer executiva a paternal justiça.
Quantas vezes Rachel entrou na sala, com as faces escarlates das
bofetadas que o pai lhe dava como incentivo para saber aproveitar-se da
fortuna caprichosa! Era esta a lastimosa situação de Rachel quando eu
fui para o Brazil. Recordo todas as palavras que a formosa criança
me disse a ultima vez que fallamos.--Tenha animo para a
obediencia--disse-lhe eu--Bem póde ser que Deus a remunere d'essa
virtude com imprevistas felicidades.
--Eu dou por terminada a minha vida--respondeu-me Rachel com os olhos
enxutos--Tenho quinze annos, e ha tres mezes que olho para a minha
existencia, como se ella fosse já longa de trabalhos. Os paroxismos
hão-de ser rapidos. Sei que nem eu nem alguma de minhas irmãs podemos
sobreviver á mocidade. Estamos todas feridas da mesma morte. D'aqui a
pouco lançarei o coração em golfadas de sangue, e meu pai não terá
remorsos de ter cooperado para a minha morte, por que elle já viu dous
irmãos meus cahirem no verdor dos annos na sepultura onde cahiremos
todos. Vá, que não me torna a vêr...
Eu sahi de ao pé de Rachel, com o coração opprimido, mas contente de mim
porque chorava as primeiras lagrimas, depois d'outras que eu julguei
serem as ultimas... Rachel casou. Não morreu. Mentiu-lhe o anjo que
fallava áquella sua innocentissima alma. Vive. É uma agonia sem nome...
O quarto de hora já lá vai. Agora, meus amigos, não venha mais o nome de
Silvina como um escarro á face de Rachel. Até ámanhã, snr. Jorge. Depois
d'estas reminiscencias, eu tenho um singular coração que se brutifica, e
uma alma que detesta a sociedade. Boas noites.

XXI.
Cuidava o leitor que estava livre do sujo José Francisco Andraens; do
estouvado Leonardo Pires; do nariz de Manoel Pereira; da erudição
mythologica de fr. Antonio; do mettediço jornalista; da fidalga de
Margaride, adeleira fraudulenta do seu roto coração; da Francisquinha da
Cunha, promettida esposa do linheiro das Hortas; do morgado de Santa
Eufemia, rival do Andraens; do Egas de Encerra-bodes, illustrissimo
sangue neogothico; de Jorge Coelho, alma pura e candida e apaixonada até
enfastiar o bom siso de quem nos atura, a elle e a mim; e, finalmente,
de Rachel.
Ai! não me digam que estavam enfastiados de Rachel!... As lindas
mulheres só enfastiam os seus maridos, e desagradam ás mulheres feias.
Parece que a propria moral, severa como a directora d'um collegio, se
compraz ás vezes de as vêr louquinhas, se o ellas são. A belleza é o
poder moderador dos delictos do coração. Uns lindos olhos são a mais
commovente rhetorica em defeza das culpas que a intolerancia lhes
assaca. Um braço gentil, que descuidosamente se denuncia nu, abala o
animo do juiz austero com mais vehemencia que a mimica de Hortencio e
Mirabeau. O sorriso discreto, se não é bem despreso nem expressão de
orgulho da culpa, abranda e enternece mais o peito abroquelado de
indifferença, que a lacrimosa peroração dos que vingam apertar com os
cilicios da piedade o coração de um jury.
Mas a que proposito cahe esta especie de defeza de Rachel?! Peccou ella,
por ventura? Não, minhas senhoras. Rachel tem um só peccado de fraqueza;
foi optar pelo marido, entre o marido e o suicidio. Desceu ao plebeismo
das outras, que lhe haviam dado o exemplo da renuncia de si proprias,
podendo afidalgar-se e ser unica pelo heroismo de se entregar á justiça
de Deus, fugindo ás injustiças do mundo. A morte moral, que a sociedade
inflige ás malfadadas, que a cupidez d'um pai acorrentou a um marido
abominavel, se o coração, em phrenesis rompeu o grilhão, é, mais
dolorosa que o suicidio tantas vezes, quantos são os repellões que a
sociedade lhes dá até as engolfar no abysmo sem sahida.
Querem dizer-me que Rachel, se tivesse aceitado o beijo da morte, e
fugisse ao beijo marital de Manoel Pereira..., (um beijo de Manoel
Pereira, com aquelle nariz na vanguarda... santo Deus!) ninguem se
lembraria do seu heroismo a estas horas? Dizem mais que o desdem da
gente séria, e a censura da gente religiosa, e a irrisão da gente
parvoa, e o contentamento de outra que Manoel Pereira iria escolher,
entre mil, n'esta grande feira, fariam do suicidio de Rachel assumpto de
reprovação e de affronta á sua exquisitice? Tambem o penso assim. Estou
que ninguem já hoje se lembraria do pobre anjo que fôra queixar-se a
Deus de o terem querido despir de suas pompas, de suas flôres, de sua
aureola, de sua virginal pureza, para o prostituirem aos regalos d'um
satyro revelho, que perdeu alma e coração no grangeio da riqueza, com a
qual vem mercar um recreio para a sensação do corpo, abrazeado na vida
ociosa! Ninguem se lembraria da nobre alma, que preferira deixar as
graças do corpo aos vermes, para o não dar ao cêvo de uma besta-fera.
Assim é; porém, se uma vez Rachel voltar o rosto de enojada do cadaver a
que a prenderam; se a força, que o coração lhe fizer, tiver comsigo a
força do exemplo bem succedido e quisto da sociedade; se o seu fragil
batel de virtude, forçada e violenta, se desconjuntar e abrir, rebatido
pela tempestade das paixões; se em fim, aquella honra, a
constrangimento, e não de vontade aceite, se fôr a pique, a sociedade
que dirá?
A sociedade--replica o leitor que a conhece e se conhece--a sociedade
faz-se desentendida por cortezania; por conveniencia; porque sabe a
historia do olho com trave, que se abria espantado de vêr uma aresta no
olho alheio. A sociedade fez uma convenção tacita, de que é fiadora a
civilisação. Em substancia, este contracto social dá os seguintes
resultados:
1.º Respeitar a liberdade do coração humano, sem prejuizo do soalheiro
das salas, em que é preciso entreter o tempo, e fingir a gente que não
conhece senão as pessoas que estão fóra das salas.
2.º Fingir, outro sim, a gente que está convencido da tolice dos outros,
para que os outros nos tenham em conta de boçaes de boa fé, e não de
espertos sem pudor. Dá-se um exemplo em hypothese: tal marido sabe que o
mundo o lastima ou moteja; mas como a lastima e a irrisão cauterisam,
sem curar, a chaga do vilipendio, o lazaro finge-se de optima saude, e
aproveita occasião de gemer pela molestia do seu amigo, gafado da mesma
lepra. Estes dous homens, se se topam, e fallam da corrupção social,
voltam as costas a rir um do outro, e vão cada qual por seu lado,
espalhando a risada contagiosa.
3.º Não perdoar o que se chama «escandalo». Escandalo é não ter a
sagacidade da hypocrisia, e o despejo de injuriar o senso publico,
tratando-o de nescio. Escandalo é tomar a serio as brincadeiras do
coração, e vir dar alguem á sociedade uma prova de que despresa o
contracto social. Escandalo é cahir da prostituição legal á honra do
coração, que cuida ennobrecer-se e regenerar-se; victimando o nome, o
estado, e o que a inveja chama fortuna, ao goso de conhecer a liberdade
na miseria. Escandalo, a final, o escandalo maximo e abominavel e
imperdoavel é a mesma miseria.
A sociedade sabe que o crime é um dos elementos da ordem das cousas, e
julga-o um mal necessario, sem o qual não haveria bem-aventurança nem
inferno, nem anjos, nem demonios, e Deus seria inutil por não ter que
fazer, visto que os theologos lhe não attribuem occupação que não seja
julgar, premiar, condemnar, e perdoar, segundo lhe pedem, ou conforme a
sua espontanea misericordia quer. Ora, sem o crime, este complicadissimo
funccionalismo, cujo presidente é o Creador do céo e da terra, do mar e
do sol, da avesinha que regorgeia nas moitas, e do leão que atrôa os
desertos, do homem como Alexandre e Napoleão e do homem como José
Francisco Andraens, e Manoel Pereira... dizia eu... eu! eu não dizia
nada: quem dizia que o crime é necessario era o jornalista, amigo de
Guilherme do Amaral, conversando na «Aguia d'Ouro» com Jorge Coelho,
alguns dias depois do encontro em que os vimos no capitulo ultimo da
primeira parte d'estas biographias.
Vamos agora á historia.
Achou Jorge em casa de D. Marianna Ferreira o seu quarto e sala
adornados com muito aceio e selecção. Melhor que isto, era o gosto de se
vêr acolhido sem estranhesa nem demasias de ceremonia. Os filhos e
filhas de D. Marianna, logo ao segundo dia, o tinham como pessoa da
familia, e porfiavam em divertil-o d'aquelle geito de tristeza, que era
natural, e das abstracções penosas, que tinham a sua razão de ser na dôr
do coração.
D. Marianna, senhora algum tanto despreoccupada do artificio, que tão
preciso é, chamado delicadeza, logo que Jorge lhe deu uma aberta, fallou
na paixão, que o seu hospede tinha por Silvina, e nos desgostos,
nascidos d'esse louco amor, para a sua querida Antonia.
D. Marianna, em termos desabridos, disse de Silvina o que era notorio, e
talvez lhe exagerasse os defeitos.
Jorge escutou-a respeitosamente, e ao mesmo tempo admirou-se de ouvil-a
assim fallar na presença de suas filhas, que todas estavam presentes,
salvo Rachel, a quem elle não tinha ainda visto.
Lembrado está o leitor de ter sahido Manoel Pereira zangado de casa de
sua sogra, por que a maioria lhe rejeitára o parecer de não ser recebido
Jorge em casa d'aquella. Como Rachel sahisse então da sua paciente
annuencia aos votos irracionaes do marido, este, mal afeito a ser
contradictado, protestou convencer a mulher e a sogra de que não queria
relações com tal sujeito.
No dia seguinte, ao abrir da manhã, mandou preparar alguns bahus, entrou
n'uma carruagem com Rachel, e foi conduzil-a a uma quinta, seis leguas
distante do Porto, nas immediações de Barcellos. Quizera a submissa
senhora despedir-se de sua familia; mas Manoel Pereira, franzindo as
verrugas do nariz, e enviezando o beiço na sua ordinaria expressão de
zanga, atalhou as intenções da saudosa Rachel, dizendo que a mulher
casada não tinha familia senão seu marido. E Rachel, fitando os olhos
coruscantes de raiva no nariz do esposo, disse com o fel do coração nos
labios, que sorriam sardonicamente:
--Deus te livre que eu alguma hora me esqueça de que tenho uma familia,
que não é meu marido... Se lhe eu perder o respeito a ella, se os
estimulos de minha exemplar mãi me faltarem, tu verás então que eu não
tenho outra familia.
O marido, arregaçando os musculos businadores, e as azas nasaes com
elles, regougou:
--Põe lá essas doutorices em miudos, que eu não te entendo.
--Se me tu entendesses--redarguiu Rachel--nunca me forçarias a fallar
assim á tua ignorancia.
Manoel Pereira cascalhou uma risada de velhaco, e coçou-se atraz da
orelha esquerda.
Não se trocaram palavra no decurso de seis leguas. Rachel ia linda pelo
escarlate da sua colera; e Manoel Pereira bufava, quando não cabeceava
de somno jogando contra o hombro de sua mulher.
A gentil senhora, a espaços, encarava no marido, e dizia entre si: «Que
destino o meu! Este é o homem, que me deram para a vida! Querem que seja
d'este homem o meu coração! Ter uma só existencia, e curta como hade ser
a minha, e hei-de sacrifical-a toda a esta cousa que vale duzentos
contos de réis!
«Que aproveitou meu pai d'este monstruoso enlace? Que lucrou este homem
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