Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 05

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voejar para a arvore em flôr que a está enamorando de longe.
--É uma bucolica bonita que o senhor vai poetisando--tornou o padre,
fechando o olho direito e sorvendo uma canora pitada pela venta
correspondente.--A avesinha (se dá licença, eu componho em linguagem
chan e fradesca uma estrophe do idyllio) a avesinha deixou piar a
carinhosa mãi, e desferiu as tenras azas na pontaria da arvore florida;
e, como quer que as forças lhe cançassem do desusado vôo, não teve a
avesinha remedio senão abater-se ao chão para pousar. E vai n'isto,
andava por alli á caça de ninhos um gato ou uma gata brava, seja gato ou
gata; o essencial é que apenas o triste passarinho apegou, o animal
damninho fez-lhe o salto d'entre umas balças, e o filho da pobre mãi,
que se morria de paixão no ninho, lá foi empolgado pelo gato ou pela
gata... Lafontaine não inventou este conto, e merecia a pena; não
importa: compuzem'ol-o nós, snr. Pires, _ad usum delphini_, e seja
delfim o nosso Jorge.
A allusão desgraciosa da gata foi tão clara quanto desagradavel a Jorge.
Era uma injuria á mulher querida, á sombra lagrimosa que o ia
acompanhando, e instigando a reagir contra o dominio de parentes, e
exhortando a emancipar o coração d'uma tutela que lhe deixava da vida as
regalias que bastavam á criança, mas não ao homem.
Azedado, pois, pelo motejo da bucolica do padre João, Jorge disse com
vehemencia:
--Meu tio offereça a moralidade dos contos a quem lhe pedir lições.
Padre João, depois de breve pausa, respondeu brandamente e com magoada
tristeza:
--Não te envergonhes de pedir-me lições, filho, que as não pedes sómente
a um velho; dá-t'as um amigo, que foi homem antes de ser frade, e
estudou os homens, depois que o mandaram sahir da sua cella, como cousa
inutil á sociedade. Se me não quizeres as lições, de que sirvo eu,
Jorge? Já agora irei prégando sempre, quer me ouçam, quer me repulsem,
como manda o apostolo.. Desagradou-te a allegoria do conto, e
convidas-me assim a ser mais natural. Jorge, repara bem no que te diz
este velho que, no teu modo pouco respeitoso de fallar a uma mãi, «te
premuniu com cabedal de philosophia christã, bastante para defender das
tentações todas as nações da biblia exterminadas por causa do peccado.»
Sei de cór as tuas palavras, porque m'as entalhou na alma o espinho da
ingratidão. Deves-me bons desejos de te fazer bom e honrado: não me
sejas ingrato. Agora, escuta, filho. Vinte e quatro horas antes de te
apparecer, procurei-te, porque do Porto fui avisado dos teus desvios:
como te não encontrei, fui colher mais informações; voltei á noite á
hospedaria tres vezes, e ás duas horas não tinhas ainda recolhido. No
dia seguinte, que foi hoje, procurei-te ás nove horas da manha: tinhas
já sahido. Déste-me tempo de sobra para eu me instruir das miudezas da
tua historia de tres semanas. Sei quem é a creatura que te ourou a
cabeça. É uma feia alma n'um formoso estojo; é uma aventureira...
--Meu tio, isso é crueldade e calumnia--interrompeu Jorge allucinado.
--Bate, mas escuta, dizia o philosopho: é uma aventureira de maridos,
que engodou o morgado de Santa Eufemia, em quanto julgou desnecessario o
consentimento do velho fidalgo para a realisação do casamento que a
fazia rica. Desvanecidas as esperanças do morgado, cuja rudeza lhe não
desdizia com o espirito arteiro, voltou-se para um rico brazileiro de
Cabeceiras de Basto; mas o brazileiro não lhe entendeu os pespontes da
eloquencia, e disse que queria mulher com quem elle se entendesse.
Chamada por uma prima, professora em armadilhas ao casamento...
--Francisca da Cunha?--exclamou Pires, erguendo-se nos estribos.
--Justamente, Francisca da Cunha, menina matreira que...
--Olhe que eu amo essa mulher, snr. padre Coelho!--interrompeu
solemnemente Leonardo.
--Pois faz v. s.ª muito bem: o amor do proximo é preceito divino: sou de
parecer que a ame; mas não lhe dou os parabens... Vinha eu dizendo que a
tal Silvina já no Porto, de mãos dadas com a prima, não duvidou visitar
uma estalajadeira de Margaride que viera a banhos de mar, porque esta
estalajadeira tinha um filho que viera do Brazil, com alguns centos de
contos, negociados na escravatura. E como o filho da estalajadeira não
andava acostumado a comprar senão negras possantes e trabalhadoras,
recusou comprar a compleição melindrosa da fidalga de Margaride. D'ahi
veio o saber-se, pelo dizer a snr.ª D. Silvina, que o poderoso
brazileiro é filho d'uma taverneira, e que fôra para o Brazil com umas
soletas e chapéo de Braga que lhe dera de esmola o pai da fidalga. Eis
aqui o que eu pude averiguar da pessoa por quem meu sobrinho troca os
carinhos de sua mãi, a dôce amisade de seus irmãos, e as lições
amoraveis de seu velho tio.
Jorge Coelho ficou enleado, e não replicou; Leonardo Pires, porém, que
nunca em sua vida pensára o que dizia, senão meia hora depois de o
dizer, exclamou:
--Mas ha-de confessar, snr. padre João, que ellas são boas mulheres!
--Boas!...--murmurou o padre, que não entendeu o sentido do
adjectivo--boas... quer-me parecer que não são muito!
--Ora essa! pois não as acha bonitas e elegantes?
--Eu não as conheço; mas creio que são bonitas e elegantes: e d'ahi?
--E d'ahi! _Amor omnia vincit!_ o amor tudo vence.
--Agradeço a traducção--disse, sorrindo, o padre, que, a fallar a
verdade, tinha uns sorrisos que muito justificavam o dito de ter sido
«homem» antes de ser frade.--O snr. Leonardo Pires não tem
mãi?--acrescentou o padre, após um curto intervallo, com summa
seriedade.
--Tenho, sim senhor; mas não tenciono namorar minha mãi--disse
precipitadamente Leonardo.
O padre fitou-o com tristeza e admiração, um momento, e depois disse-lhe
com bons modos:
--Praza a Deus que o coração esteja menos derrançado que a linguagem...
snr. Leonardo Pires, eu tenho setenta annos; deprava-se um rapaz; mas
respeita-se um velho.
D'esta vez, o imperturbavel Pires não teve que responder.
Tinham chegado a Vallongo. Jorge estendeu a mão ao seu amigo, e
disse-lhe suffocado:
--Adeus! não sei se te verei mais... Sinto a morte no coração!
O padre fez um frio comprimento ao amigo de seu sobrinho, dizendo-lhe:
--Deus o tenha de sua mão.
Leonardo partiu; e o egresso, com os olhos embaciados de lagrimas,
murmurou:
--Jorge! quem te abriu as portas da desgraça foi aquelle homem.

X.
Não esqueceram de certo ao leitor attento estas linhas da carta que o
morgado de Santa Eufemia recebeu do pai:--_Anda-te embora, logo que esta
recebas, que eu dou ordem ao meu amigo brazileiro para te dar para a
jornada cinco pintos._
O brazileiro amigo do fidalgo de Freixieiro era o snr. José Francisco
Andraens, natural de Cozelhas, desde 1844 estabelecido no Porto, onde
viera tratar do baço, do pancreas, e d'outras entranhas importantes do
snr. José Francisco Andraens. Na mente do illustre enfermo estava
retirar-se para a provincia de Piauhy, onde tinha a sua feira de pretos,
logo que restaurasse o estomago e as mais partes circumjacentes da sua
alma. Porém, como quer que um seu amigo velho, e companheiro de viagem
para o Brazil, em rapazes, estivesse no Porto com o titulo de visconde
dos Lagares, e este o fizesse conhecido por meio das gazetas por uma
esmola de cincoenta mil réis ao hospital da Santissima Trindade, o snr.
José Francisco viu-se tão festejado, tão requestado, tão necessario ao
Porto, que mandou vender os pretos em ser, e liquidar os creditos.
Tentemos um debuxo de José Francisco. Deve estar entre cincoenta a
cincoenta e cinco annos, estatura menos de mean, com tres barrigas, das
quaes a primeira, começando pela parte mais nobre do sujeito, principia
onde o vulgar da gente tem os joelhos, e, depois d'uma arremettida
adiposa, retrahe-se na linha imaginaria da cintura, e estreita-se em
fórma de cabeça. A segunda barriga pega da primeira, ondeia com tres
ordens de refegos por sobre as falsas costellas, ladêa tumida e retesada
como os flancos d'um ôdre posto de través, e vai perder-se nos sovacos,
mandando para as costas uma corcunda da sua mesma natureza. A terceira
barriga pendura-se da face interna do queixo inferior, amplia-se flacida
e lustrosa como um buxo mal cheio de vitella, e assenta sobre a segunda,
no ponto hypothetico do esterno. A parte anatomica d'este bosquejo toda
ella se libra em conjecturas. O author não assevera senão a existencia
das barrigas.
Isto tudo tem uma base caprichosa: são cousas que a linguagem do
paradoxo denomina pés. Vacilla a critica no confrontal-os com objecto
dos tres reinos: uma tartaruga envolta em bezerro dá-nos uns longes da
realidade; mas falta-nos o simile para os declivios, gargantas e
barrocaes dos joanetes. Os pés de José Francisco são a desesperação dos
Gavarni. O marrão do alvanel poderia arrancal-os d'um golpe d'uma
pedreira por acaso; mas Apelles mais depressa pintaria uvas que
enganassem o bico sequioso da passarinhada.
No tocante á cara o snr. Andraens é homem, apesar d'outros animaes que
lhe não disputam os fóros da humanidade, porque não teem um curso de
historia natural. O rubor do tomate desmaia ao pé das papeiras faciaes
do brazileiro. O nariz enfronha-se de envergonhado entre as trouxas de
tecidos, que lhe debruam os olhos de oppilações carnosas, sebaceas e
luzidias. A menina do olho é rutilante e azougada, posto que as
secreções visinhas lhe bezuntem a raiz das pestanas.
O snr. Andraens é commendador da ordem de Christo, desde que o seu amigo
visconde dos Lagares foi nomeado trinchante da casa real. Afóra isto, o
brazileiro de Cozelhas, na qualidade de accionista do Banco Commercial
do Porto, é orador vitalicio d'aquella assembléa, em que não são raros
os talentos de maior porte. Tal era o amigo do velho fidalgo de
Freixieiro.
José Francisco esperava que o filho de Vasco procurasse os cinco pintos,
segundo a ordem que recebera. Decorridos alguns dias, escreveu ao seu
amigo, a dizer-lhe que o fidalgo novo não apparecera para receber o
dinheiro. Tornou o velho a escrever ao brazileiro, encarregando-o de
procurar o filho, aconselhal-o que fosse para casa, e pagar a despeza
que elle tivesse feito na estalagem.
Foi o snr. Andraens á _Aguia d'Ouro_, e como não encontrasse Christovão,
deixou dito ao criado do quarto quem era e a precisão que tinha de
fallar com o morgado. Já vinha descendo as escadas, e voltou acima a
chamar o criado.
--Olhe lá, disse elle, o fidalgo deve muito cá na casa?
--Não, senhor: o fidalgo paga todas as semanas.
--Está bom, está bom, vossê não diga que eu perguntei isto, e pegue lá
para matar o bicho ámanhã.--Dizendo, abriu uma bolsa de retroz coalhada
de missanga, e tirou trinta réis que deu ao criado com a mão direita
fechada, para que a esquerda se não escandalisasse da prodigalidade.
Na manhã do dia seguinte, foi o morgado de Santa Eufemia a casa do
brazileiro, e conduziram-o ao seu quarto de dormir, porque José
Francisco estava ainda recolhido com a barriga n.º 2 envolta de papas de
linhaça.
--Estou aqui emplasmado, senhor morgado--disse José Francisco, arqueando
os braços por sobre a esphera abdominal.
--Então o snr. José que tem?
--Mande-se sentar, meu fidalgo. Eu estou aqui com uns calores cá de
dentro, que dão que fazer á botica; mas isto, se Deus quizer, não é
nada. Pois, meu senhor e amigo, seu pai escreveu-me, como ha-de saber,
para eu lhe dar um dinheirito, e depois tornou a escrever-me para eu ir
ter aonde a v. s.ª e dizer-lhe que o melhor é ir-se para casa, quanto
antes, porque o velho, pelos modos, está lá arrenegado por si. Então,
vai ou não vai?
--Por estes dias, irei; mas já já não se me arranja cá a minha vida,
snr. José.
--Então o senhor, ainda que eu seja confiado, que tem cá que fazer? Ahi,
por mais que me digam, anda derriço... Eu hei-de saber o que é quando
fallar com a fidalga de Margaride que o conhece muito bem ao senhor
morgado...
--Então o senhor conhece a D. Silvina de Mello?
--Conheço-a como os meus dedos...--respondeu o snr. Andraens, com um
sorriso intencional, que passou desapercebido ao morgado.--É bem boa
estampa, ó senhor morgado, não é? ora diga a verdade!
--É muito bonita, isso é.
--Rapariga d'uma vez! e bem-fallada!? isso então quando calha de fallar,
aquillo não despega nem á mão de Deus-padre! Falla em tudo quanto ha!
Até em Sebastopool, senhor morgado! Um d'estes dias tinha eu lá ido a
troco cá de certa pendencia, e veiu á collecção a guerra da Russia, e
ella começou alli a manobrar as batalhas, e se fôr como ella diz o snr.
D. Miguel (Deus o traga) não tarda cá. Eu não tenho partidos, e até a
fallar a verdade, sou commendador por esta gente, mas em fim, quero-me
cá com os velhos, e gente como era a antiga já se não topa. Pois é
verdade... eu...
--E a fidalga--atalhou o morgado--nunca lhe fallou em mim, snr. José?
--Fallou, pois então? disse-me até que o senhor queria casar com ella...
é assim ou não é?
--Isso é verdade. Paixão de raiz como a que eu tenho por ella não a
torno a ter pela mais pintada.
--Ah! que me diz?--acudiu o brazileiro com espanto--pois a cousa é isso?
Quer apostar que o senhor está aqui pr'a-mor d'ella?
--Em fim, o coração não mente... Á conta d'ella é que eu aqui estou.
Passaram-se uns poucos de mezes sem eu ter carta, desde que ella veiu
para o Porto. Arranjei como pude licença do pai, e vim encontral-a cá a
namorar outro, um trampolineirito a quem eu queria dar uma escovadela,
mas antes de hontem fugiu lá para cascos de rolha.
--Conte-me isso, conte-me isso--exclamou José Francisco com vehemente
interesse.
--É como lhe digo, snr. José. Agora preciso demorar-me alguns dias a ver
o que ella faz.
--Com que então diz-me o senhor morgado--disse meditabundo e detidamente
o brazileiro--que ella andava já com o miolo ás voltas por outro
sujeito!... As mulheres são o diabo!... Quer o senhor saber?! Mas isto é
pedra que cahe em poço, ouviu o senhor?
--Eu não digo nada; póde fallar snr. José.
--Pois então, vou desembuchar... Eu tenho emprestado algum dinheiro ao
Pedro de Mello, pai da Silvina, para elle mandar aos rapazes que andam a
estudar p'ra doutores em Coimbra. A casa do Mello é boa, mas está
empenhada até aqui.--(O snr. José Francisco poz um dedo na barriga n.º
3, que deu de si como um balão de borracha). Ha-de haver tres mezes que
eu fui levar á filha umas libras que o pai lhe mandou dar para
vestimentas. Eu andava com o olho em cima de uma quintarola bem boa
d'elle, que parte com os meus terrões da Lixa, e não se me dava de lhe
ir dando aos poucos algum dinheiro até lhe apanhar a propriedade que me
faz muita conta. E vai se não quando, meu amiguinho e senhor morgado,
veiu a fidalga á sala assignar o recibo, e p'ra'qui p'racolá, palavra
puxa palavra, eu deixei-me estar ao cavaco com ella e com a prima, e
jantei lá n'esse dia, e fiquei p'ra a noite. A fallar-lhe a verdade nua
e crua, como o outro que diz, eu não sei o que sentia cá no interior!
Que diabo é isto que eu sinto? disse eu cá c'os meus botões. Eu andei
por lá por esses mundos de Christo, vi muita mulata e branca de encher o
olho, tive as minhas rapaziadas, porque em fim, a gente é de carne e
osso; mas nunca me buliu cá por dentro mulher nenhuma como esta! Se o
senhor morgado ouvisse o palavriado d'ella! Deixe vêr se me lembro...
Não encarreiro... Ora deixe estar o senhor.. Eu tenho alli uma carta
d'ella...
--Uma carta d'ella!--interrompeu o morgado a fumegar.
--Pois então? uma carta d'ella, umas poucas; mas ha lá uma em que ella
escreve o mesmo que tinha dito de bocca. Faz o senhor favor de me ir
áquella gavetinha do meio da commoda, e dar-me de lá um caixotinho de
vidro, que tem uns bordados de papel dourado na cobertoira?...
Christovão Pacheco abriu com a mão convulsa a gaveta, e levou á cama do
snr. Andraens a caixinha indicada. O brazileiro tirou um feixe de
cartas, cintadas com uma fita de nastro, abriu algumas, regougando
palavras soltas de cada uma d'ellas, e por fim acertou com a carta que
procurava, e exclamou:--Cá está ella! tal e qual. Ora faz favor de lêr,
que eu não estou hoje muito escorreito dos olhos.
O morgado de Santa Eufemia, entalado, enfiado, tremulo e escarlate até á
raiz dos cabellos, leu o seguinte:
«Meu bom e muito querido amigo. Tanto eu como minha prima Francisca,
ella por amisade reconhecida, e eu do coração affectuoso lhe agradecemos
o valioso mimo com que se dignou brindar-nos a sua generosidade...»
--Isso foi, interrompeu o brazileiro, a respeito de umas pulseiras de
ouro que eu mandei ás duas, que me custaram dezesete libras e mais uns
pósinhos, não fallando na caixota em que foram os estojos que me tinha
custado em Paris quarenta e oito francos. Empreguei bem o meu dinheiro,
não tem duvida! Ora faz favor de continuar com essa trapalhice:
O morgado proseguiu na leitura acerba, limpando as camarinhas de suor
que lhe transpiravam da testa:
«Apreciamos a dadiva já pelo que ella vale, já pelos sentimentos
delicados que ella representa...»
--Isso é bem dito, não é, ó senhor morgado?--interrompeu o snr. José
Francisco.--Lá que ella tem uma cabecinha como não ha outra, isso pau
pau, pedra pedra, a verdade ha-de dizer-se. O que lhe falta é miôlo...
Ora ande lá... vá lendo:
«Nunca eu aceitaria--continuava a carta de Silvina--uma prenda de homem,
que não tivesse uma explicação honrosa. Esta, que eu tenho no meu pulso,
não me faz estremecer a mão de pejo. Os meus sentimentos a respeito de
v. s.ª tenho-lh'os dito tantas vezes, que repetil-os seria abusar da sua
attenção, e descer um pouco da minha senhoril, dignidade. V. s.ª sabe
como eu aprecio as paixões proprias dos meus annos...»
José Francisco Andraens deu dous galões no leito, e clamou:
--É ahi, é ahi onde está a cousa!
Christovão continuou, já deletreando, porque a raiva lhe nublava os
olhos:
«Não creio na duração do amor impetuoso. A violencia da vibração fatiga
as cordas da alma...»
--Olhe lá--atalhou o brazileiro--isso que vem a dizer? esse bocado não o
percebi bem... _A violencia da vibração fatiga as cordas_... que
diabo!...
--Quer dizer, respondeu o morgado com anciado esforço, quer dizer que...
sim... eu acho que isto vem a dizer... que as paixões fortes adoentam a
gente...
--Ah! sim, senhor, ha-de ser isso... eu cá sinto os estragos no
interior... Ora faz favor de vêr o resto.
O morgado leu:
«A minha ambição é encontrar um amigo verdadeiro, um coração sereno, um
homem para quem o mundo não tenha abysmos, dos que tem no fundo a
desgraça da esposa trahida, e esquecida. Receba no coração estas
palavras da sua dedicada e constante amiga, _Silvina_.»
--Que me diz o senhor a isso?--interpellou José Francisco, dando uma
palmada no hombro do entorpecido morgado.
--O que eu lhe digo, snr. José!...--tornou o morgado, atirando a carta
para sobre o leito.--O que eu lhe digo é que esta mulher...
--É uma mulher de pouco mais ou menos--concluiu o brazileiro, atando as
cartas com o nastro--Ora ahi tem... Agora, á vista d'isto, deixe-se
andar por cá atraz d'ella...
--E o senhor continua o namoro?--perguntou o morgado com os olhos
vidrados de lagrimas.
--Qual namoro, nem qual diabo! O que eu queria era melhorar da barriga!

XI.
José Francisco Andraens, mentiste á tua consciencia! Supposto que as
tuas barrigas te mereçam quantos desvelos cabem na alçada do oleo
d'amendoa dôce e da linhaça, o coração em ti é um musculo cheio de bom e
sadio sangue, sangue cruorico que por vezes te borbulha nas arterias, e
reçuma á cara em brazumes de ternura lubrica. Mentiste, José Francisco,
quando respondeste áquelle pobre morgado, que o que tu querias era
melhorar da barriga. Musculo enorme! tu amavas abrasado no lume da
faisca electrica em que se estremece cada uma de tuas fibras, rijas de
vida, saturadas do boi copioso que assimilas, e das tortas de frango com
que pejas diariamente as algibeiras do sobretudo, e das planganas de
farinha de pau e araruta que emborcas todas as manhãs. Commendador da
ordem de Christo! se o incognito da Providencia, chamado _acaso_, te
houvesse dado a faculdade de desafogar em vociferações contra a
fementida Silvina, dirias, no auge da tua angustia, blasphemias contra
as mulheres, injurias insultadoras contra a fidalga de Margaride, e
juramentos, por tua honra, de despresal-a e diffamal-a onde quer que
fosse a tua lingua peçonhenta e a dos teus amigos famintos de detracção
e escandalo. Os que assim procedem, fariam de ti riso, se te ouvissem o
dialogo com o teu amigo de Freixieiro; tu, porém, José Francisco
Andraens, que não sabes os quatro epithetos triviaes com que se vingam
amantes abandonados, ergueste os alçapões da tua alma, e deixaste romper
a torrente represada, com estas palavras: «Qual namoro, nem qual diabo!
o que eu queria era melhorar da barriga!»
Ai! se elle a amava!
Não houve ahi cancro de amor que afistulasse, tão no intimo, coração de
homem. Aquella propria dôr de estomago, rebelde á linhaça, nos está
dizendo finezas do amor de José Francisco, procedida, como é, do uso do
chá a que o forçavam successivas noites que passou em casa do tio de
Silvina. No principio, o hospede cauteloso recusou a chavena; mas a
fidalga teve a impiedade de dizer-lhe que não era extremamente do bom
tom rejeitar o chá, a pretexto de ser bebida nociva ao estomago. O
brazileiro, no dia seguinte, em vez d'uma, tomou tres chavenas, e em sua
casa, _para affazer a tripa_ como elle dizia, mandava cozinhar grandes
chocolateiras de chá, que a moça inexperta chamava o cozimento, e
carregava de folha até sahir negro na fervura. José Francisco conhecia o
veneno, punha a mão no buxo, e, se não dizia como o papa Ganganelli:
«hei-de morrer d'isto...» gritava pela cataplasma de linhaça, mitigava a
inflammação, e de puro amor continuava a immolar o estomago, como fino
amante que não tem mais que dar.
Ha ahi amadores, José Francisco, que cubiçam a pedraria oriental para
construirem um nicho para a mulher amada; pedem a Deus estrellas para
lhe marchetarem a alcatifa das botinhas; queriam a lua e as duas ursas
para o pavilhão do leito nupcial; os coriscos para lhe brincarem aos
pés; os jardins de Semiramis, recendentes de nardo e cardamomo, para lhe
deliciarem o olfacto; o sceptro do globo para a mão soberana, e o
diadema do universo para a fronte inspirada. Farelorio. Homem de
Cozelhas! o teu estomago estragado pelo chá, sobreleva em dolorosa
realidade a tudo quanto inventaram poetas, invejosos dos bens de Deus,
em quanto tu deixas em paz a lua e as estrellas, e compras dezesete
libras de pulseiras, ás quaes a propria Diana caçadora te estenderia os
seus divinos braços.
Ai! se elle a amava!
Por uma tarde de Agosto, na alamêda da Lapa, se andava José Francisco
passeando com o seu amigo visconde dos Lagares. A espaços, o amador de
Silvina desprendia uns como gemidos desentranhados com estridor de
arroto, e o açafroado das belfas, ora se enrubecia mais intenso, ora
desmaiava n'um pardacento, que deu nos olhos solicitos do visconde:
--Que tem vossê, sôr Andraens?!--perguntou o trinchante da casa real,
afervorando o zelo da pergunta com um suave empurrão.
--Que hei-de eu ter, amigo visconde? Vossê bem sabe que eu ando mettido
n'uma camisa de onze varas. A minha sina, que me lêram quando eu era
rapaz, dá-me que eu hei-de passar por um grande desgosto. Até ao
presente, em boa hora o digamos, a cousa não me tem ido mal; d'aqui por
diante como o outro que diz, um bomem deve estar tem-te não caias.
--Mas então vossê que medo tem?--tornou o visconde, variando a mimica
com uma palmada na espadua boleada de José Francisco.
--Homem, vossê casou quando era moço, e deu-se bem com a mulher, e tem
vivido sem sustos; mas eu já cá estão os cincoenta, não sou dos rapazes
da moda, e tenho ás vezes umas lembranças que me derrancam o coração.
--Ora, deixe-se d'isso, sôr Andraens! Pelos modos a senhora, com quem
vossê vai casar, é menina bem comportadinha, e vossê, quando casar,
deixe-se de ir muitas vezes ás assembleas, e pouco de visitas, e de
theatros; metta-se em sua casa a mais a mulher; trate da sua labutação,
e não a deixe pôr pé em ramo verde, sem ir com ella.
--Pois não pozeste!--acudiu José Francisco soltando uma risada aspera de
sacões, que valia bem um programma.--Vossê ainda está n'essa?
A minha mulher, quando eu a tiver, é cá para o amanho da minha casa.
Comer e beber, e vestidos, e enfeites d'ouro, não lhe ha-de cançar; mas
ir a bailes e a comedias... isso, snr. visconde... olhe cá se me vê
algum _T_ na testa! É verdade que a minha futura noiva é toda pronostica
e está avezada ao palavriado dos pantomineiros que não tem senão aquillo
e a sua miça; mas eu logo que case hei-de pôl-a na lei em que ha-de
viver.
A mulher é do seu homem, e casou para tratar-lhe das doenças, e do
arranjo da familia. Quem quer andar á tuna nas comedias e nos balancés
deixa-se estar solteira; não é assim, amigo visconde?
--Assim é; mas não será bom apertal-a muito, amigo Andraens... Isto de
mulheres, olhe que nem o diabo as quiz guardar, e quando ellas entram a
desatremar, adeus, minha vida!
--A desatremar!--clamou José Francisco com iracundia.--Então um homem
não é senhor de fechar as suas portas, e viver como quizer com a mulher
com quem reparte do que tem? do seu dinheiro? do que lhe não custou a
ella a ganhar? do seu dinheiro?
--Vossê diz bem, sôr José; mas é que ella a isso póde dizer que estava
melhor solteira.
--Homem, vossê nem parece visconde n'isso que diz!--atalhou com ironia
pungente José Francisco.--Eu vou já embuchal-o com uma pergunta:--Quanto
vale a tal madama?
--Pelos modos, disse o visconde, acho que pouco tem.
--Por tudo que ella tem não dou eu seiscentos mil réis. A casa é do
morgado, e os bens livres, repartidos por seis irmãos, nem p'ra pagarem
a minha divida chegam. E quanto acha vossê que eu tenho, ó amigo
visconde?
--Vossê, cá segundo os meus calculos, ha-de ter o melhor de cem
contos... p'ra cima que não p'ra baixo.
--Aqui que ninguem nos ouve, snr. visconde, disse José Francisco muito á
puridade, se não fosse aquella tapona que eu levei na costa d'Africa,
podia ter os meus quatrocentos contos; agora, mais cem, menos cem mil
réis a minha fortuna ha-de andar ahi por duzentos contos, e se as cousas
correrem regularmente, cá nos engajados, escuso de bulir no que tenho
apurado. Ora ahi tem vossê. Faz favor de me dizer se a rapariga, que não
tem nada, casar commigo, não fica a ser rica e respeitada no mundo!
Responda a isto, amigo, se é capaz!
--Sôr José Francisco, tornou o visconde com sisuda gravidade, olhe que
eu tenho andado muito mundo, e visto muita cousa. A rapariga, se casa
comsigo, é por que quer figurar. Vossê já não é muito moço, e não sei
como ha-de estar em casa mettido a entreter a mulher. Sabe que mais? se
está na teima de a não deixar ter alguma folga, o melhor é deixar-se
estar solteiro até lhe apparecer moça mais azada p'ro seu modo de vida.
Deixe cá o arranjo ao meu cuidado, que eu conheço muito negociante aqui
no Porto que tem raparigaças como castellos, e vossê não tem senão
escolher.
--Cale-se lá, homem!--interrompeu com azedume e paixão o de Cozelhas--Eu
gosto de Silvina d'uma vez! E, se quer que lhe diga a verdade, já fiz
alguma despeza com ella. Vossê inda a não enxergou?
--Ainda não á minha vontade; mas na semana que vem vou dar um baile só
para a vêr a preceito; já a lobriguei de longe, e alvidou-se-me que ella
era bem tirada das canellas, e que tinha a cinta muito delgada.
--Isso então!--exclamou o snr. Andraens, com os olhos rutilantes de
jubilo, e um sorriso de satyro, que lhe fazia recuar os refegos das
bochechas até ás orelhas, como dobras de cortinas apanhadas.--Bem feita
até alli! O pescoço é branco como a cal da parede; os braços parecem de
leite, e aquillo hão-de ser macios que nem veludo; os olhos, continuou
José Francisco, com precipitada torrente de imagens orientaes, parece
que entram no interior da gente, e andam sempre a bulir nos buracos como
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