Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 06

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dous grillos; os dentes são da côr d'essa camisa, e tão iguaesinhos que
parece mesmo cousa de fazer crescer a agua na bocca; quando ella anda
pela casa, aquillo é um gosto vêl-a! parece que está a casa cheia! E
ouvil-a fallar?! Vossê não faz uma pequena idéa! Até falla de
Sebastopool! (Vê-se que esta feição do talento de D. Silvina foi a que
mais deu no gôto do snr. José Francisco Andraens.) Em fim, amigo
visconde, mulher como ella não espero topal-a. Tenho-lhe sympathia cá de
dentro; sonho com ella todas as noites; dia em que a não veja, ando como
a cobra que perdeu a peçonha; se adrega d'ella ir visitar alguem, e eu
não a vejo, vou zangado p'ra casa, e já me tem acontecido não ceiar! As
cartas d'ella tenho-as na cabeça, e já comprei um livro muito grande,
chamado... chamado elle... assim uma cousa a modo... de... vossê hade
saber? Aquillo que ensina a escrever direitas as palavras!...
--Uma pauta, ha-de ser pauta...
--Qual pauta, nem qual diabo! é um livro, que ensina a escrever com as
letras todas... Já me lembra: um breviario.
--Ha-de ser isso, ha-de ser isso...--disse o visconde, que apreciou o
ensejo de saber que o breviario ensinava a escrever com as letras
todas--mas, a fallar verdade--continuou ingenuamente o brazileiro--não
me ageito com o tal livreco, e vou-lhe escrevendo como sei. Aqui trago
eu na carteira uma carta, respondendo á d'ella de hontem, a vêr se lh'a
entrego esta noite. Quer vossê vêr, amigo visconde? Eu p'ra si não tenho
aquellas. Ora escute lá; mas o mais acertado é lêrmos primeiro a que
ella me escreveu. Vossê vai ficar pasmado; ora ouça.
José Francisco sentou-se n'um dos bancos de pedra da alamêda da Lapa, e
leu correntemente o seguinte:
«Meu caro amigo.
«Soube que hontem me procurou. Quiz o meu infortunio que eu não
estivesse em casa. O tio anda a pagar visitas, e ordenou que eu o
acompanhasse. Passei uma noite insipida, lembrando-me que podia passal-a
no remanso duma dôce paz e contentamento d'alma ao lado do homem cujas
tão amantes como paternaes palavras me embalam o somno para os sonhos
d'um delicioso futuro...»
Aqui José Francisco sacudiu na mão o papel, e exclamou radioso:
--Olhe isto, amigo visconde! _os sonhos d'um delicioso futuro_!... Pelos
modos, quer dizer que o que ella quer é uma vida socegada para, em vez
d'andar em visitas, dormir na sua cama á sua vontade. Não é isto?
--Pois elle que ha-de ser senão isso?--disse o visconde gostoso da
modestia consultiva do seu amigo, e ia continuar reflexões a proposito,
quando José Francisco, menos jubiloso, continuou, lendo:
«Estará ainda longe o dia suspirado, meu amigo? Não tem já do meu
caracter um profundo conhecimento? Não se demore a confirmar o destino
que minha alma anceia, porque desgraçadamente a minha vontade não é de
todo livre, e bem póde ser que meu pai, antes da resolução de v. s.ª,
tome outra, contraria aos nossos intentos. Sua do coração, _S._»
--Á troca d'estas linhas do fim--disse o brazileiro um pouco recolhido e
melancolico--é que eu hoje tenho andado azoado, e a suspirar cá de
dentro. Ora escute lá a resposta:
«Meus amores!!! (Na pontuação guardamos a fidelidade que descuramos na
orthographia, cuja liberdade concedemos a José Francisco e pedimos
alternativamente para nós). As vossas letras recebidas ao fazer d'esta
até ao meio consolaram o meu coração saudoso!!... mas as que vem no cabo
da vossa carta penetraram qual duro ferro no meu coração saudoso!! Se
vosso pai não levar a bem o nosso casamento, ó céos!!! tanto faz querer
como não querer o arranjo ha se de fazer, ainda que eu vá ás do cabo;
estai descançada, joven Silvina amada!! Logo que eu tenha a nossa casa
da Lixa arranjada (que andam lá os estucadores e os pintores) estamos
casados e arruma-se d'aqui o pensamento!!! D'este vosso idolatrado até á
morte, J. F. Andraens, vosso futuro esposo.»
--Que tal?--murmurou com certo ar de pudica modestia o erotico
compositor de cartas incendiarias.
--Onde diabo aprendeu vossê tanto, ó sôr José?--disse o visconde com
sincero espanto.
--Isto que aqui vê fil-o de fio a pavio, sem ir ao breviario, amigo
visconde. Ponto é ter cá dentro o amor a puxar pelas memorias.
José Francisco ergueu-se triumphante com miraculosa agilidade; deu
alguns passeios floreando a bengala, e rindo a revezes do espasmo do
visconde, que, em sua consciencia, suspeitava de que fosse a carta
apocripha; mas, por delicadeza, calou as duvidas.
José Francisco tinha desafogado. O arroto já não vinha acompanhado do
suspiro. As tres barrigas funccionavam em toda a sua plenitude
phisiologica. O jubilo doudo da sua esperança sorria aos arreboes que
cintavam o horisonte do oceano; a viração da tarde, brincando na
folhagem dos alamos e acacias, rumorejava um soido mellico aos ouvidos
d'alma d'aquelle amante feliz.
Ai! se elle a amava!
Este expansivo dialogo fôra anterior quarenta e oito horas áquell'outro
que ouvimos entre o brazileiro, e Christovão Pacheco de Valladares.
Quem te ha-de crêr agora, José Francisco Andraens! Que se te dá a ti da
barriga, se tu amas tanto a mulher predestinada?! Descança, anjo do
amor, no teu céo de duzentos contos, que as filhas dos homens lá irão
buscar-te!

XII.
Ai! como elle a amava!
Quantos Paulos, e Romeos, e Othellos mettidos n'aquella côdea grossa de
José Francisco Andraens! Que requebros de namorado, e que furias de
cioso! Aquella é verdadeira paixão que ora se refrigera com orvalhos do
céo, ora se calcina nas labaredas do inferno. A paixão de José Francisco
era assim. Ha pouco vimos aquella alma a derramar-se em blandicias de
Petrarcha; agora arripia o vêl-a a espirrar coriscos da cratera que lá
referve dentro.
Mal Christovão Pacheco sahira, galgando atordoado as escadas quatro a
quatro, José Francisco arrancou de si a cataplasma d'um impeto que faria
lembrar Catão arrancando o proprio redenho. Saltou para o chão, calçou
as mouras escarlates que lhe serviam á farta de tapete, lançou sobre as
espaduas um capote de camelão de quatro cabeções, enfiou as mangas do
mesmo, e sentou-se á escrivaninha, resfolegando vaporadas pelas ventas,
que nem javali monteado por lebreus. A criada entrava n'esta occasião
com a terceira camada de linhaça, e fez pé atraz, enfiada de puro
horror.
--Que queres tu, moça?,--mugiu José Francisco.
--São as papas...--balbuciou a espavorida criada.
--Não quero mais papas. Vai chamar o meu compadre Amaro, e que venha já
de marcha para ir com uma carta a Margaride.
O brazileiro escreveu na pojadura da veia. O traslado da carta, com a
authenticidade do de todas as outras, não pude havel-o, apesar de suadas
canceiras que este paiz tão sovinamente remunera aos indefessos obreiros
das suas glorias. O que pude tirar a limpo foi ser a carta dirigida a
Pedro de Mello, pai de D. Silvina. José Francisco lembrava ao fidalgo a
sua divida de um conto oitocentos e vinte e cinco mil e setenta réis que
lhe emprestára sobre hypotheca da quinta da Lixa. Dizia mais que não
podia continuar a remetter as mezadas para os academicos da
universidade. Instava pelo prompto pagamento do seu credito, ou
trespasse da quinta hypothecada. Ameaçava-o com o poder judiciario, e
terminava com estas quatro linhas, unicas authenticas:
_Pr'ámor da sua filha é que é tudo isto. Se ella andasse direita comigo
outro gallo lh'avia de cantar. Assim o quiz, assim o tenha. Comigo não
se manga, e está arrumada a pendencia._
Ai! se elle a amava!
A carta partiu, e José Francisco, aplacado o maior afôgo da convulsão,
chamou a moça, pediu uma tigela de tapioca, e comeu á tripa fôrra.
Cotejemos agora com os do negreiro os ciumes do morgado de Santa
Eufemia. Egas de Encerra-bodes esperava o primo no hotel, curioso de
saber o fim a que o chamára o brazileiro. Christovão contou lealmente o
acontecido, já barafustando furioso, já enternecendo-se a lagrimas. O de
Matto-grosso descompunha-se em gargalhadas, e nem os prantos do primo
lhe embargavam as guinadas de riso. Começava a desconfiar o de Santa
Eufemia, quando Egas, composto o gesto e a postura, fallou assim:
«Um Pacheco Valladares a correr parelhas com um José Francisco na
conquista d'uma mulher! Um neto do governador de Cochim a disputar meças
de merecimento com um chatim de negros! um moço no mais florido dos
annos, gentil de sua pessoa, sacrificado á mazorral caricatura, que ahi
está symbolisando uma fortuna tão besta quanto assignalada das vergoadas
do látego com que o infame de Deus e dos homens fazia espirrar sangue
das costas dos escravos!... Primo Christovão, torne sobre si, peje-se
d'essas lagrimas que ahi derramou, e que eu escarneci para não tomar
ignominioso quinhão da sua dôr aviltante para evos e para vindouros! Que
mulher é essa, a neta do sargento-mór d'Amarante, que anda ahi a
chafurdar nos chiqueiros da sua cubiça um appellido que usurpou?
_Mello!_ Quem lhe deu a ella _Mello_?! Seu visavô era Antonio Gonçalves;
seu avô era Francisco Antunes Gonçalves; quem enxertou no pai esse
pomposo appellido? Silvina Antunes é como ella se chama, essa farrapona
que mendiga para uma carruagem e seis vestidos o preço dos ultimos doze
pretos que José Andraens mandou acorrentados ao mercado. Primo
Valladares, neto de Heitor Valladares, bisneto de D. Mafalda Pacheco e
Alvim, açafata illustre da côrte do snr. D. Pedro 2.º, descendente dos
Alvins de Braga, onde casou o condestavel D. Nuno Alvares Pereira!
primo, lembre-se de quem é, e esmague debaixo das solas das suas botas o
coração, se sente que uma gotta de seu nobre sangue se ha degenerado no
vilipendioso affecto que prodigalisou á esposa promettida de José
Francisco!»
Este aranzel fez bem ao coração do morgado. Entrou em si, coçou-se com
ambas as mãos algumas vezes, estirou os braços convulsivos com os punhos
cerrados, e exclamou de golpe:
--Que a leve o diabo!
Egas estreitou o primo ao coração com vehemencia, levantou-o tres vezes
em peso, e bradou por fim:
--Reconheço o meu sangue!
Sem embargo d'isto, o morgado de Santa Eufemia precisava de ar, abriu a
janella, sorveu tres grandes haustos, e repetiu a phrase que provára ao
de Matto-grosso a identidade da sua estirpe:
--Que a leve o diabo!
N'este comenos, vinha atravessando o largo da Batalha Leonardo Pires.
--Lá vem aquelle!--exclamou Egas--Vou chamal-o para lhe dar a noticia
que ha-de ser muito agradavel ao seu amigo Jorge. Olé! snr. Albuquerque!
_Psio_.
Pires fez uma continencia militar com o chicote.
--Suba cá--tornou o fidalgo de Entre-ambos-os-rios--temos que
contar-lhe.
--Viram aqui passar a Francisca da Cunha?--perguntou Pires.
--Não.
--Ando-lhe na pista, como galgo que perdeu a lebre, que eu desconfio bem
que seja gata, que a minha paixão me dá por lebre.
--É muito possivel...--redarguiu a rir o de Matto-grosso--Suba, e verá
que não está longe da verdade.
O da Maya circumvagou com a luneta em torno da praça duas vezes, e
subiu.
--Então que temos?! Dou-lhe parte que o meu amigo Jorge Coelho não tarda
ahi, e que o duello, se os cavalheiros insistirem, ha-de consummar-se.
--Quem falla aqui em duello?--acudiu Egas--Escreva ao seu amigo, e
diga-lhe que se deixe estar com a mãi e com o padre lá na sua aldêa, se
não quizer vêr Silvina, o anjo de candura, de braço dado com as fronhas
carnosas de José Francisco Andraens...
--Quem é José Francisco Andraens?--interrompeu Leonardo.
Egas de Encerra-bodes compelliu o primo a contar a historia, que, d'esta
feita, não sahiu com intermittentes de lagrimas. Era de vêr com que
graça soez o amante ultrajado ia já apimentando os sarcasmos detraidores
de Silvina, e os projectos de cynica desforra que elle offerecia ao
parecer dos seus amigos, projectos que, realisados, collocariam José
Francisco n'uma situação tão irrisoria como bemquista do siso commum, o
qual é uma cousa muito ao envez do que por ahi nos grandes alcouces da
opinião publica se denomina senso-commum.
O programma do morgado de Santa Eufemia foi applaudido com razões pouco
para se estamparem. Leonardo Pires disse que não avisava o seu amigo
para não perder occasião de o ter no Porto alguns dias, e cural-o mais
facilmente com a vista do espectaculo hediondo. N'isto, como estivessem
os tres á janella, viram assomar no topo da rua de Santo Antonio
Silvina, e Francisca da Cunha, seguidas de um criado de farda.
--Ellas ahi vem!--disse Pires, e sahiu a encontrar-se com ellas. O
morgado de Santa Eufemia, a rasoavel distancia, quando as damas vinham
com os olhos postos n'elle, fez recuar o primo, e fechou-lhes a janella
na cara. Silvina ria tanto como a prima, quando Pires, com o chicotinho
em arco, e quasi aos pulinhos como funambulo que vai fazer a sorte, se
lhe atravessou no caminho, dizendo:
--Criado de vv. exc.as
--O snr. Pires!--disse Francisca toda graça e affabilidade
ironica--Faziamol-o no seu _chateau_... Que é feito de si?
--Agoniso, minha senhora, agoniso.
--Ai! que funebre vem!--disse Silvina--póde-se agonisar com esse rosto
tão de vida, e rubicundo?
--Póde-se padecer muito, minha senhora, com o rosto rubicundo--replicou
Pires--Eu sei de creaturas, metaphoricamente chamadas humanas que
soffrem muito, sem impedimento das massas de toucinho que as envolvem.
Darei a v. exc.ª um exemplo. Conheço uma metaphora chamada José
Francisco Andraens... (Silvina córou e franziu a testa) monstro cevado
em sangue humano, que elle distilla em banha e asneiras, o qual
monstro,--ninguem o ha-de crêr, minha senhora--neutralisa o combustivel
da paixão com o refrigerante das cataplasmas de linhaça. Ahi tem v.
exc.ª um exemplo que justifica de sobra a minha agonia.
--Vamos, prima, que são horas--disse Francisca da Cunha, condoida do
enleio desacostumado de Silvina.
--Pois sim, vamos--disse esta, corrida de modo, que incutiria compaixão
em homem que não fosse Pires.
--Dão-me as suas ordens, minhas senhoras?--disse elle,
ladeando--Ah!--continuou Pires de sobresalto--esquecia-me dizer á snr.ª
D. Silvina que o nosso Jorge vem ahi...
--Ah! vem?--disse machinalmente Silvina.
--Vem, sim, minha senhora, a requerimento meu, por que lhe conheço
grande curiosidade de naturalista, e desejo mostrar-lhe José Francisco
Andraens, a hyperbole de enxundia, monstro, de quem eu tive a honra de
fallar a vv. exc.as, e que até ouso recommendar-lhes, para que vv.
exc.as admirem não só o bruto, mas o effeito prodigioso da linhaça.
O enleio de Silvina redundou em colera.
--O senhor, disse ella, está-me insultando por que eu e minha prima,
confiadas na cortezania da sociedade em que vivemos, sahimos sem um
homem, cujo desforço nos desafronte com honra.
--Dizes bem, prima--acudiu Francisca, tambem colerica por
contagio--Deixemos o villão.
Pires, quando lhe voltaram as costas, deu dous passos em seguimento
d'ellas, e tomou-lhes o passo.
--Continua a petulancia?--disse Silvina irada--olhe que eu trago um
criado!
--Com libré emprestada, minhas senhoras?--disse o imprudente fidalgo da
Maya, que trazia os ouvidos cheios das diffamações geanologicas d'Egas
de Encerra-bodes.--Snr.ª D. Silvina, eu fui quem lhe apresentou a nobre
alma de Jorge Coelho, que v. exc.ª quiz estragar. Empeçonhou-lh'a, mas
não ha-de enlameal-a. Quem vinga Jorge sou eu, Leonardo Pires de
Albuquerque. Saiba v. exc.ª que José Francisco Andraens é meu. Aquelle
problema de carne hei-de desatal-o eu com o escarneo, e v. exc.ª ha-de
ficar submersa nas avalanchas d'aquella montanha de cebo. Agora nós,
snr.ª D. Francisca da Cunha. V. exc.ª, que só sabe lêr as cartas do
linheiro das Hortas, e que tem tido o indiscreto recreio de me andar
ridicularisando _no boudoir_ das suas dignas amigas, ou se encastella
com o linheiro das Hortas lá no seu burgo de Traz-os-Montes, ou tem de
esconder-se nas rimas de estopa em que seu futuro esposo lê de pernas ao
ar as suas epistolas. Sem mais.
Pires, vibrando no ar estalinhos com o chicote, entalou a luneta no olho
esquerdo, e foi expandir o jubilo em folgada palestra com os morgados,
que o espreitavam.
Silvina, quando entrou n'uma casa nobre de Traz da Sé, soffreu um
insulto nervoso que desabafou em gritos. Queria Francisca da Cunha
consolal-a; mas estava esperando de instante a instante ser assaltada
tambem do mesmo insulto. As senhoras da casa á competencia desfaziam-se
em desvelos; mas Silvina respondia apenas: «hei-de vingar-me!»
Desiderio Erasmo, como sabem, escreveu a «Apologia da tontice.» Eu não
me afouto a encarecer a de Leonardo Pires; porém, assim como os
regedores das republicas nobilitam com mercês e titulos não só a
estupidez--isso é o menos--mas a infamia soberba d'uma opulencia cevada
e medrada em cruezas e deshumanidades, que muito se aventurarmos um voto
de louvor a alguns selvagens da civilisação, doudos providenciaes que
atiram a vaza do insulto a caras já de si tão sujas, que não ha medo de
enferretal-as?
Alguns homens, como Pires, seriam muito proveitosos n'uma sociedade como
esta. Houve-os sempre com differentes nomes e appellidos. Na
antiguidade, chamaram-se Aristophanes, Diogenes, Marcial e Plauto; na
meia idade eram os prophetas, os padres da igreja, e, com menos caução
de suas prerogativas censorias, os histriões palacianos. Na correnteza
d'esta geração por excellencia policiada, mas de todas a mais gafa do
que ahi se chama «ridiculo» e do que mais é para chamar-se lastima, ha
muito quem tire a campo de zombaria os «ridiculos» do mundo; mas ninguem
se vê copiado n'elles, e os copistas de modo o fazem que fique salvo o
orgulho de cada azêmola que fita a orelha ao ornejar da copia, mas não
responde. A isto é o que ahi dizem «guardar as conveniencias»: á mesma
cousa, chamavam d'antes «guardar as costas.»
Seja o que fôr, a satyra assim não vinga fructo de servir á geração que
está nem á porvindoura.
Satyra prestadia, se alguma houve, é a de Leonardo Pires. Eis ahi um
doudo, que tolos e sisudos lançarão de suas casas com horror; e todavia
qual de nós não sente um Pires, na consciencia, a travar-se de razões e
murros com a nossa soberba? Seis Leonardos activos no Porto purificavam
o ar pestilencial que para alli veiu das terras de Santa Cruz. Na idade
media, os tabardilhos, as pestes fulminantes; no seculo 16.º o verme
roedor que desmedula os ossos através de vinte gerações que hão-de
lembrar-se sempre de Colombo pelo mimo; no seculo dezenove, mais que
nunca, a peste do Brazil, de que adoecem espiritos empinados em seu
orgulho como o de Silvina e Francisca da Cunha.
D'um lado Leonardo Pires; de outro lado José Francisco Andraens, e o
linheiro das Hortas. Quem levará a melhor? É tola a pergunta. Ha-de ser
o linheiro das Hortas, e José Francisco.

XIII.
O apostolico e dicasissimo padre João Coelho, desde Vallongo até
Amarante, excedeu-se a si proprio prégando ao sobrinho o melhor e a
maior parte do que disseram philosophos, santos padres, moralistas e
casuistas ácerca do amor mundanal e da mulher. Jorge não replicava, por
que o não escutava. O egresso, tomando o silencio como victoria, tirava
dos corollarios theses novas, que ia defendendo com tamanha profusão de
tiradas latinas que, a ser verdade o que elle disse abordoado a Seneca,
Santo Agostinho, Euzebio cezariense, e Bredembachio, o amor mundanal e a
mulher são cousas muito peores do que pensa o vulgar da gente. Padre
João não era erudito que sómente fizesse praça dos exemplos que
authorisa a historia. O pulso rijo da engenhosa memoria d'elle entrou
nas idades fabulosas e trouxe pelas orelhas certos heroes que os poemas
orphicos e os homeridas nos encamparam como sujeitos apresentaveis na
boa sociedade. Marte, segundo o padre, era um adultero; Apollo um
valdevinos que se andava lamuriando na piugada de Daphne; Hercules um
maricas que fiava de cocoras na roca de Omphale; as heroinas da odissea,
da iliada, e das tragedias de Eschylo um femeaço impudico e deslavado.
Do Olympo desceu padre João aos antigos imperios, e poz pelas ruas da
amargura Xerxes, Ciro, Dario, Holophernes, Absalão, Sichem, Salomão,
Herodes, Marco Antonio, e muitos outros que pelos modos não deram boa
conta de si, ou as mulheres não deram boa conta d'elles.
O leitor de certo se convertia ouvindo o egresso; mas Jorge Coelho ia
tão dentro em si, tão lacerado pelo abutre da paixão sem esperança, que
as palavras do douto velho lhe eram como esponja de fel e vinagre
espremida nas chagas. Pernoitaram na Amarante, onde chegaram ao fim da
tarde do segundo dia de jornada. Em quanto o egresso entrou no velho
templo a fazer oração a S. Gonçalo e visitar os cubiculos onde viveram
santos varões da sua creação, Jorge foi sentar-se á beira do Tamega, e
ahi rompeu em pranto desfeito, com os olhos postos nas ondulações das
serranias para além das quaes lhe ficava o Porto. O padre sahiu
indignado do mosteiro praguejando, menos evangelicamente que de seu
costume, contra o governo que permittia á municipalidade amarantina que
as vivandeiras do destacamento aquartellado nos dormitorios do mosteiro
dançassem ebrias e meio nuas a canna verde e a sirandinha no refeitorio
e na claustra. É de crer que as mulheres recebessem com galhofa o
egresso venerando, cujas botas de borla e chapéo tricorne deviam de
parecer cousa de entrudo ás bacchantes que a onda da civilisação
revessou no remanso dos monges, em quanto outra engolfou os monges no
porto suspirado da sepultura.
Ahi me vou eu sahindo com o impertinente vêzo de lastimar os frades!
D'esta vez hei-de represar a piedade com que n'outros livros tenho
desdourado, no conceito de muita gente, os meus altos espiritos de
operario que trabalha á candeia do seculo XIX. Que me importa a mim que
nos cubiculos do mosteiro de S. Gonçalo se alojem as vivandeiras do
destacamento, e que na claustra sobre as cinzas dos frades vão ellas,
repletas de vinho e despejo, dançar a sirandinha e a canna verde? Se eu
disser que no tempo dos frades não se viam semelhantes desacatos, hei
grande medo que me ponderem que outros desacatos mais attentatorios da
religião de Jesus ahi se viram no tempo em que os frades comiam no
refeitorio, e medravam nas cellas, onde agora coze o seu vinho o
mulherio da tropa. Se o padre João Coelho quizesse, esse é que podia
responder a preceito; mas, para bem do leitor, ninguem n'aquella hora se
lhe atravessou com argumentos, estando elle na estalagem da Amarante,
sentado no escabello, a dizer cousas de sorte magoadas, a respeito da
profanação do convento, que todo o auditorio chorava, sendo tres das
carpideiras as mais lubricas bailarinas da claustra.
Entretanto, Jorge escrevia a Leonardo Pires, dizendo-lhe que resolvera
não escrever a Silvina, em quanto lhe durasse a impressão amarga que
recebera das revelações do tio, impressão immorredoura, dizia elle.
Recommendava-lhe que se informasse da verdade d'aquellas revelações, e
sem piedade lhe transmitisse o excesso de peçonha que havia de matal-o.
Ajuntava elle que já não amava Silvina; mas que não podia despresal-a; e
que entre o amor e o despreso estava o odio, serpente insaciavel que se
lhe enroscara no coração.
Esta serpente de que se queixa Jorge Coelho é uma alimaria a que os
poetas de animo socegado chamam cupido, deus de Gnido, de Paphos, e Amor
em estilo chão. Permitte a rhetorica aos amadores enraivados denominar
serpente a cousa que d'um dia para outro se transforma em rola gemedora.
Não é raro encontrar sujeito que tem aninhado no seio um viveiro d'estas
serpentes, as quaes, depois de cuspirem a peçonha, n'uma carta arrufada,
em meia duzia de adjectivos azedos como malagueta, metamorphoseam-se em
pombal de candidissimas pombinhas que se catam e beijam umas ás outras
com langorosos requebros. Da metamorphose o que fica é a peçonha
instillada e derramada na circulação sanguinea. Na correnteza do tempo,
vem esta peçonha a consolidar-se no coração, e d'ahi procedem as
postemas, que degeneram em aleijões, commummente denominados
scepticismo, cynismo, devassidão, libertinagem, impudencia, e outras
molestias pegadiças. As rolas e as pombas, desde que o coração
inficionado as afugenta, passam para o dominio do estilo, e concorrem
para que no banquete d'um amor revelho, gotoso e glutão hajam sempre
aves.
Vem a pêllo fallar da gorda gallinha que padre João trinchou na
estalagem da Amarante, em quanto Jorge Coelho, recolhido ao seu quarto,
se atirava vestido sobre o leito abafando contra o travesseiro os
soluços da afflicção, que o egresso, tão de boa fé como crente na
efficacia da historia, julgára minorada com a quarta dissertação que
fizera ácerca do amor, segundo a carne, e nomeadamente do amor em Roma
na época dos Cezares.
Citou versos de Marcial e Juvenal, como prova de que o amor era mau em
toda a parte; e, sem elle querer, tambem provou que nas livrarias dos
mosteiros entravam livros de moralidade muito equivoca. A ultima these
de padre João Coelho assentava n'esta proposição de S. Paulo: «Quem não
ama está na morte;» mas tão engenhosamente o erudito frade torceu o bico
ao prego que as conclusões eram todas contra o baixo amor terreal, e
pregoeiras do amor divino, que elle orador por sua parte cumpria á
risca, sem embargo de se pascer em delicias na choruda gallinha, em
quanto o sobrinho abafava de dôr no quarto. Esta é a grande vantagem dos
que andam empinados em amores do céo, que nunca deixam de comer ás suas
horas, e de digerirem em regalados somnos a materia bruta que lhes não
pesa na consciencia. Não ha pois duvidar de Montesquieu (parece que foi)
que disse--que a religião christã, depois de nos felicitar n'este mundo,
nos segurava a felicidade do outro.
Padre João dormiu nos coxins macios da sua limpa consciencia; Jorge,
apenas o tio se fechou com o breviario, e adormeceu ao quarto psalmo
penitenciario (um egresso repleto de gallinha cozida a resar um psalmo
penitenciario! parece um paradoxo! Tomára eu saber se David compoz
aquellas lastimas antes que as caricias de Bethsabé o enfastiassem!)...
Estas incisões intermittentes hão-de perdoar-m'as os leitores que
souberem o que é escrever um romance n'um carcere, onde já não ha
carrasco, mas existe o espirito do carrasco identificado a uma cousa que
nós cá os assassinos e os salteadores denominamos as _authoridades_, que
medram no cêvo do erario, uns chamando-se procuradores do rei, outros
carcereiros, outros chaveiros, outros guardas, a mesma familia
representando o rei de theor e modo que fazem odiosa a palavra do
symbolo que lhes legitíma a crueza, a barbaridade que lhes tem
ladrilhado o coração, e muitas vezes a infamia que se abona com a
justiça, essa divina irmã dos anjos, que os cafres trazem tão nusinha e
pustolosa por sobre os esterquilinios d'elles.
Agora é que me eu perdi de todo... Perdido devéras andava aquelle pobre
Jorge Coelho, pelas ruas da Amarante em quanto o padre dormia o somno do
justo. Chegou á celebrada ponte, curvou-se no parapeito, e teve tentação
de precipitar-se. Foi instantaneo o accesso de loucura. Jorge viu a
imagem de sua mãi no scintillante reverbero da lua que se espelhava no
Tamega, Levantou os olhos para o céo, e disse:
«Ó Providencia Divina! leva esta dôr ao coração de minha mãi, para que
ella, a santa, peça por mim!»
Eram onze horas d'aquella formosa noite de Setembro. Soava apertada nos
rochedos a torrente, que scintillava em escamas de prata. De longe vinha
a toada soidosa d'uma flauta que tocava a chacara popular dos «Dous
renegados.» Jorge amava desde os doze annos os versos maviosos e
truculentos d'aquella canção de amor que chora como anjo e obsecra como
demonio. Proferiu a letra cadenciando-a com a flauta, e rematou
chorando, já não em ancias, mas suavissimamente, como se o espirito de
sua mãi lhe alcançasse do céo a mercê das lagrimas que desopprimem.
Um vulto entrou na extremidade direita da ponte: era uma das mulheres
que padre João vira com santa indignação, a tripudiarem sobre as ossadas
dos monges na claustra. Veiu direita a elle, e pediu-lhe uma esmola.
Jorge deu-lhe tudo quanto tinha. A mulher viu bastantes moedas de prata,
e, estupefacta ou douda de jubilo, nem se retirava nem agradecia.
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