Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 08

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--Isto a mim!--tartamudeou ella entre admirada e vexada.
--Sim, minha senhora, a v. exc.ª--teimou o criado.
Silvina pregou os olhos abrasoados em José Francisco, que lhe abria um
sorriso apaixonado por entre o costado d'um pombo. Ao sorriso respondeu
ella com um tregeito de colera. Cheguei ao ouvido de Silvina, e
segredei-lhe:
«Minha senhora, José Francisco envia-lhe um suspiro d'alma; e como a
alma de José Francisco é uma ucharia, os suspiros de José Francisco são
perús.»
Quando Silvina volvia os olhos fuzilantes, tinha eu desapparecido. Fui
ao ouvido de José Francisco, e disse-lhe á puridade:
--A sua noiva está indignada de o vêr comer assim! Sacrifique a Cupido o
oitavo pombo, amigo José.
O que decorreu depois d'isto, não sei dizer-te meu caro Jorge. A minha
cabeça não podia já com encargo da chronica até final: sahi. O ar fresco
da madrugada, que aspirei até ás cinco horas, restituiu-me á bestial
vida commum. Não posso mais.
--Resta-me dizer-te que, se choraste uma lagrima por Silvina,
envergonha-te de chorar segunda.
Adeus. Teu
L. PIRES.»

XVII.
Verificaram-se os presagios do padre João. Jorge, depois da ultima carta
d'aquelle singular e diabolico Pires, quiz reanimar-se, e já não pôde.
Debil de compleição, quebrantado de insomnias, sorvido incessantemente
na funesta scisma de que não havia ahi na terra voz humana que o
chamasse ao amor da vida, nem no céo misericordia que o remisse da
immerecida pena, Jorge, sem um queixume, sem uma lagrima, sem dar de si
incentivo á piedade dos seus, desculpou-se com um ligeiro incommodo, e
ficou um dia no leito. A pobre mãi alvoroçou-se, e com ella toda a
familia, que via chorar. Veiu logo a sciencia que trata magistralmente
dos achaques do estomago, e d'outras visceras nobres, e declarou que a
molestia do doente era cousa moral, paixão, hypocondria, ou romance. O
facultativo capitulou assim a enfermidade com um sorriso supicaz, e
disse á viuva que não era nada aquillo, e ao padre, piscando o olho,
acrescentou que era aquella uma das feridas que se curam com o pello do
mesmo cão. Chiste de cirurgião de aldêa.
D. Antonia recobrou-se do seu desmaio; mas o egresso entrou em maiores
cuidados.--Para o Porto, e sem demora, o rapaz--disse o padre á cunhada.
--Mas o cirurgião não receia, nem Jorge se queixa...--acudiu D. Antonia,
temerosa da separação.
--Deixe fallar o cirurgião, senhora. Seu filho morre sem se queixar.
--Não me diga isso!...--exclamou a mãi consternada.--Pois as suas
palavras tão persuasivas, mano, e a religião não hão-de poder nada?
--A religião póde muito: se elle fizer uma confissão contricta, e morrer
com sincera dôr dos seus peccados, a religião encaminha-o para Deus; mas
o que nós queremos é que elle viva. Que me responde a isto, mana
Antonia?
--Eu antes o queria com Deus, que perdido no mundo--disse ella suffocada
pelos gemidos.
--Respondeu acertadamente; mas a supposição de que Jorge se perde no
mundo, acho-a exagerada. Deixe-o ir onde elle se envergonhe de padecer,
que eu lh'o dou por salvo. Torno a repetir-lhe, mana, que eu fui homem
antes de ser frade, e a senhora foi sempre o que é--uma alma cheia de
innocencia, de bondade, e de ignorancia.
--Pois bem, meu amigo, faça o que entender, mas salvem-me o meu filho.
--Aceito o encargo com uma condição: a mana não chora mais uma só
lagrima na presença de seu filho; finge acreditar que elle precisa de
banhos do mar; exige que vá já para o Porto, e de lá para Coimbra, se
fôr vontade d'elle ir a Coimbra este anno. Conforma-se com isto?
--Com tudo que de mim quizerem--murmurou ella enxugando as lagrimas.
--Agora cuide da bagagem de Jorge, que eu vou fallar-lhe.
Jorge Coelho estava sentado na cama, lendo a _Nova Heloisa_ de J. J.
Rousseau. O egresso foi de mansinho ao pé do leito, tirou pausadamente
os oculos d'um enorme estojo escarlate, montou-os na ponta do nariz,
abriu e arredondou os beiços, pendido o queixo, e examinando o livro,
disse:
--Era um grande homem esse Saint-Preux, ó Jorge!...
--Pois o tio conhece Saint-Preux?!
--Relacionei-me com esse cavalheiro e com outros da sua estofa ha bons
quarenta annos. Nunca t'o apresentei, quando praticavamos litteratura,
por que sempre entendi que o ias encontrar a Coimbra, de parçaria com os
muitos filhos que elle gerou para amparo de muitas Heloisas novissimas,
de que está inçado o mundo, graças ás novellas, e ao descredito a que
baixou a roca e o fuso. Que carta lés?
O egresso levantou o nariz com os oculos á linha horisontal dos olhos, e
leu algumas linhas da pagina.
--Ah!--continuou elle--trata do suicidio... Está mui atiladamente
debatida a questão por uma e outra parte. O Rousseau era mestre em
paradoxos; e sabia bastante de musica; mas os paradoxos dava-os de mimo
á humanidade, e para elle guardava a vida com todas as suas paixões
villãs, mal resguardadas por uma côdea de soberba e orgulho. Ensinava o
mundo a educar os filhos, e mandava os d'elle para a roda. Atassalhava a
impudicicia do seu confrade Voltaire, e escrevia as suas _Confissões_,
com esqualido recheio de desvergonhamentos, para prova de que até o
impudor tem a sua soberba. E depois, meu sobrinho, o philosopho, a
luminaria do seculo, vendo que a ulcera, aberta no coração da sociedade
pelas más doutrinas, ia lavrando, defendeu de concerto com os seus
tresvalios, uma these apologetica da ignorancia... Vou-me alongando, e
já receio de ter dito de mais. Isto são reminiscencias das minhas
leituras de ha quarenta annos. Quando orçares pelos sessenta, Jorge,
has-de abrir a tua _Nova Heloisa_ n'essa pagina, e has-de rir da
impressão, que te magoava, quando a lêste, aos vinte annos.
--Não me sinto magoado por impressão alguma, meu tio--disse Jorge,
sorrindo, e depondo o livro.
--Não mintas, meu sobrinho--tornou o padre com branda severidade--Faz
quanto em ti couber por salvar dos teus temporaes desfeitos do coração,
o melhor thesouro d'elle, a _verdade_, filho. Sofres, e soffres muito,
Jorge. Pensas em morrer, e dás de bom grado a tua vida a Deus, se é que
a Divina Providencia transluz nas tuas imaginações negras. Não te culpo,
rapaz de vinte annos. O mesmo seria culpar-te e reprehender o naufragado
que não soube salvar-se. Nem de fraco te accuso. Se eu quizer que uma
tenra vergontea, dobrada pelas minhas mãos, se levante commigo, não
hei-de molestar-me se me chamarem insensato. No mais verde dos annos,
não responde o mancebo de suas fraquezas: a sociedade que responda por
elle, e o temperamento tambem. Isto do _temperamento_, digo-to aqui
muito á puridade, que nós cá, os theologos, não queremos ceder nada aos
temperamentos. Ora vamos, Jorge, a pé d'essa cama!
--A pé!--disse Jorge--e poderei eu?!
--Pódes porque queres. Hoje e ámanhã de convalescença; depois de ámanhã
para banhos do mar.
--De que me servem banhos de mar, meu tio?
--A resposta é do fôro da medicina. Vaes para o Porto. Hospedas-te em
casa de D. Marianna Ferreira, a amiga da creação de tua mãi. Vaes do
Porto á Foz tomar o teu banho. Se, no fim do mez, quizeres ir frequentar
o primeiro anno juridico, vai; se não quizeres, fica o inverno no Porto,
e vem para casa em Maio, caso tenhas saudades nossas e da primavera dos
teus arvoredos.
--Peço licença--disse Jorge com amargura sincera--para contrariar a
vontade de meu tio.
--Teu tio não concede a licença pedida.
O moço fitou os olhos nas mãos cruzadas sobre o seio, e não respondeu. O
egresso lançou-lhe sobre o leito o fato, e sahiu, dizendo:
--Vou mandar pôr o teu talher na mesa.
Jorge disse entre si:--Morrer aqui ou lá... que importa?
Na passagem do seu quarto para a casa de jantar, Jorge recebeu de um
criado duas cartas. Uma era de Leonardo Pires; o sobrescripto da outra
fez-lhe uma convulsão: era de Silvina. Abriu, e leu o seguinte:
«Não sei que mal fiz a v. exc.ª para merecer-lhe uma vingança tão baixa!
Collocou ao meu lado um insultador petulante que me vexa em toda a
parte. Que fiz eu ao snr. Jorge Coelho?
«Aceitei os seus galanteios com amor, e aceitei o seu abandono com
paciencia. Que queria que eu fizesse para não ser insultada pelo seu
amigo? Diga-me se é necessario pedir-lhe perdão de ter sido abandonada.
Não hesitarei em fazel-o com tanto que v. exc.ª me garanta a certeza de
que não serei injuriada nas praças e nos bailes. De v. exc.ª--eu muito
respeitadora, _Silvina de Mello_.»
Jorge cahiu extenuado n'uma cadeira: a orla roixa das palpebras fez-se
negra; apanharam-se-lhe as faces, como se a doença, em poucos minutos,
progredisse mezes. D. Antonia vinha chamal-o, e encontrou-o assim, com a
carta na mão tremula.
--Que tens, meu filho?--clamou ella ajoelhando diante d'elle, e
abraçando-o.
--Nada, minha mãi, é fraqueza... Não chore, por piedade, não chore, que
eu estou bem.
E, erguendo-se com vacillante esforço, foi para a mesa. Forcejou por
comer; mas as lagrimas cahiam-lhe das faces no prato, e a violencia não
conseguia desentalar-lhe a garganta.
--Que é isto?--disse o egresso.
--Foi uma carta...--respondeu D. Antonia.
--Não é nada, meu tio. Recebi uma carta que me fez mal. A impressão
gasta-se, e eu d'aqui a pouco estou bom. Agora pedia licença para me
erguer da mesa, e dar um passeio no jardim.
--Vai--disse o padre.
--Eu vou comtigo, meu filho--acudiu a mãi levantando-se.
--Não vai, mana; deixe-o ir sosinho.
Eram imperiosas as palavras do padre: D. Antonia sentou-se. Jorge desceu
ao jardim, e foi sentar-se n'um banco de cortiça encostado a um maciço.
Abriu a carta de Pires, que resava assim:
«A Providencia não é uma mentira. José Francisco Andraens apanhou uma
indigestão de pombos, salame e salmão no baile do visconde, e está em
risco de rebentar. Eu estou de atalaia a vêr quantos Jonas sahem
d'aquelle bojo! O morgado de Santa Eufemia veiu dar-me a noticia,
jubiloso, como quem espera empalmar Silvina, extincto o bruto. O qual
bruto já se confessou, a vêr se a gente se persuade que existe uma alma
n'aquellas cavernas de sebo!
Parte o correio.
Teu do intimo
_L. Pires._»

«_P. S._ O linheiro das Hortas ainda não appareceu com a corda.»

Se a carta de Silvina fosse uma dorida invocação ao amor de Jorge,
simulando razões e desculpas, ou accusando o silencio do desleal amante,
que a despresara sem motivar o menospreso immerecido, é de presumir que
o brioso moço nem respondesse á carta, nem se doesse dos hypocritas
queixumes de uma caprichosa estouvada. Porém, o estilo, assim magoado
como arrogante d'aquella carta, turvou de tal sorte a cabeça e o coração
do academico, que já elle a si mesmo se accusava de indiscreto, de
ingrato e de extremamente facil em acreditar o tio. E--o que é mais
é--sentiu rancor áquelle leal amigo da Maya, que, por conta d'elle, se
andava expondo no Porto a ser expulso de todas as casas!
Quantas idéas lhe occorreram todas advogavam a innocencia de Silvina.
Absolvida e amada eram a mesma cousa. Agora já a esperança de ir vêl-a
ao Porto lhe era um desafogo, e não sei mesmo se contentamento. O pobre
moço, como nem sabia se quer contrafazer-se, denunciou nos exteriores de
inquieto regosijo quanto a resolução do tio lhe era grata. A mãi,
compondo a roupa no bahu, chorava sempre; os irmãos choravam ao pé
d'elle, e elle fugia de todos para que o não vissem alegre.

XVIII.
O leitor é uma pessoa de juizo limado e occupações serias. Estou que não
lê romances de ninguem, e muito menos os meus, que são escriptos em
lingua portugueza e modelados em cousas de Portugal, onde é sabido que
não ha imaginação que invente a novella, nem modos de vida que saiam bem
no romance. D'onde vem que o romance portuguez, se não é copia do
estrangeiro, e aborrecida inverosemelhança, orça por cousa peor, que é a
semsaboria.
Eu tenho escripto alguns volumes de semsaborias: creio que são vinte e
tantos. Entre estes, mergulharam de cachapuz no rio
_do negro esquecimento e eterno somno_
tres livros denominados: ONDE ESTÁ A FELICIDADE--UM HOMEM DE BRIOS--e a
VINGANÇA.
N'estes tres romances figura um homem, ao qual eu nunca puz nome. Umas
vezes chamei-lhe poeta, outras jornalista, outras litterato, e assim fui
aguentando com embaraços da composição, mas venci a minha. Custava-me a
falsificar o nome d'um homem que copiei com esmeros de rigorosa
fidelidade; figurava-se-me irreverencia o que em si não era senão
escrupulo banal. Ainda agora me deixo levar da criancice, e não acabo
commigo dar um nome qualquer ao homem. Quer-me parecer que ha uns longes
de poesia n'este segredo. Diga o leitor que é tolice, e saldemos assim
as contas amigavelmente: eu dou-lhe a troco da injuria esta revelação da
minha crendice, e guardo as chimeras como o homem de boa fé guarda o
tôco de cera benta para se alumiar á hora da morte.
Pois é verdade. Aquelle poeta era o amigo de Guilherme do Amaral e de
Augusta.
Espectros sombrios, memorias queridas e amargas da minha alma em
infancia de illusões, passai um instante luminosos na escuridade d'esta
recamara da sepultura, onde até a lampada da esperança se vai
extinguindo na mão do anjo do conforto! Vinde a mim, corações amigos,
cujas lagrimas eu vi, e contei uma a uma, quando apenas tinha a
intuscepção da alma, predestinada ao vosso fel, para lhes avaliar o
travo. Na vossa mortalha foi o melhor da minha vida, o crêr nas
promessas do coração, nos levantados desejos do espirito que não caiam á
terra sem se infamarem; foi comvosco a fé na religião da poesia, que era
a minha fé unica, porque não havia crêr nem sentir em mim em que não
estivesse Deus, que eu convidava, sem temor sacrilego, a gosar-se das
delicias que eram d'elle, creações suas, umas sujas, outras empestadas
pelas mãos dos homens! Comvosco foi o meu ultimo dia de oração, a minha
ultima acção de graças, a palavra final da profissão de fé, que devia, a
meu vêr, remontar-me ao céo, e que, ao revez das mais espirituaes
theorias de Platão, de Socrates, de Jesus, e de todos os Messias da
redempção das almas, deu commigo em baixo n'um golfão de lama, onde ha o
ranger de dentes d'estas bestas feras, que até na lama sustentam o
egoismo da sua propriedade!
Ó visões immorredouras, que me ensinastes o amor e o sentimento, e
levastes comvosco o segredo de morrer antes do longo paroxismo do tedio
da vida, vós bem vistes com que saudosa unção eu vos offertei dous
livros e um ramo de perpetuas, que valiam mais que os livros, e menos
que esta pagina em que bem vedes com que fervor me atrevo á prosa
d'estes annos, á mofa d'estes industriaes, que me estão perguntando se a
apostrophe ha-de ser muito comprida, para tomarem fôlego, e accenderem o
seu charuto.
Pois accendam o seu charuto, e retirem-se as almas evocadas, e mais os
romances, que não tem que vêr com elles o leitor, que tanto conheceu as
almas, como se lhe dá dos romances.
Veiu isto a ponto de estar aqui já comnosco o amigo de Guilherme do
Amaral e d'aquella Augusta por quem choram as flôres do Candal, e as
almas desamparadas d'aquelles que... Lá ia já sahindo outra tirada de
sentimento. É enguiço, que me ha-de retirar a protecção de muita gente
boa, que não precisa de lêr um folhetim para convencer-se do seu direito
de espriguiçar-se, e voltar a gazeta de costas, e calcular
perspicuamente as relações economicas que podem dar-se entre a alta do
cravo dito girofe e a baixa do cacau.
Ora ahi vai agora o conto direito. O antigo jornalista, amigo da
defuncta baroneza de Amares, estava no Porto de visita em casa de
Bernardo Joaquim Ferreira, ahi nos ultimos dias de Outubro de 1855.
D. Marianna, esposa do snr. Ferreira, e suas quatro filhas, e dous
meninos, e varias outras pessoas, estão sentadas em roda de uma grande
mesa jogando o quino. O jornalista está sentado n'um sophá, conversando
com o dono da casa, sobre cousas do Brazil, d'onde o primeiro tinha
vindo depois de cinco annos de ausencia. A conversação foi interrompida
pela entrada de uma filha do snr. Ferreira, que a mãi e irmãos receberam
com muitas vozes de alegria, ás quaes ella respondeu dando um beijo na
fronte da mãi, e outro nos labios das irmãs. Com a bem vinda entrou
tambem o marido. O litterato, já de pé, deu dous passos, e disse á dama
que entrára:
--Quero vêr se me conhece ainda, minha senhora.
--Se o conheço!--exclamou Rachel.--O mesmo que foi para o Brazil; o
mesmo que era ha cinco annos... Não se admire da nenhuma surpreza com
que lhe fallo porque eu já sabia que o vinha encontrar. A mãi, quando o
senhor chegou, mandou-m'o dizer para a quinta, e deu-me sempre noticias
suas. Agora pertence-me a mim perguntar-lhe se me acha muito mudada.
--Quando, ha cinco annos, me despedi de v. exc.ª--disse o poeta--se bem
me recordo, tive a honra e o prazer de ser propheta, dizendo-lhe que a
viria encontrar cinco, dez, ou vinte annos depois, bella como a deixava,
minha senhora. Noto-lhe apenas uma differença sensivel.
--Qual?--perguntou D. Marianna com solicitude de mãi.
--Acho-a mais bella--respondeu o poeta.
Por entre os dizeres usuaes que vem sempre depois de um dito feliz como
aquelle, ouviu-se a voz aspera do snr. Manoel Pereira, marido de Rachel,
dizendo:
--Então, vamos a isto?--E escolhia cartões do quino.
Queria dizer na sua o snr. Manoel Pereira que bastava já de
comprimentos, em que a formosura de sua mulher era encarecida por um
homem da antipathia d'elle.
As senhoras sentaram-se, e Rachel, obrigada, pela indicação do marido,
ficou com as costas voltadas para o jornalista.
--Não vem jogar?--disse Rachel ao hospede.
--Vou, sim, minha senhora.
As damas deram-lhe lugar immediato a Rachel. Manoel Pereira estorcegou
machinalmente um cartão entre os dedos convulsos, e fez-se escarlate,
cravando os olhos no rosto descuidado de sua mulher.
O jornalista viu tudo isto, e riu-se para dentro.
Agora descreve-se Rachel; depois Manoel Pereira; por fim alguns traços
geraes d'esta familia, e fechará o capitulo.
Rachel tem vinte e quatro annos. É encorpada, mas a robustez não desdiz
da gentileza. Não tem attitude alguma de estudo, e parece esculptural em
todas ellas. Nos mais communs movimentos ostenta graça, e garbo que vem
de seu natural, e ninguem o dirá se a não tiver visto em toda a sua
desaffectada singeleza no recesso das suas occupações caseiras. Quando
Rachel está n'um baile... N'um baile foi que eu a vi a primeira vez. Era
ella solteira, e teria quinze annos. Isto já lá vai ha quinze. Se eu me
não lembrar do que ella era então, melhor me será despedir de mim esta
bruta alma que nem para a saudade já serve. As minhas reminiscencias
dão-me Rachel vestida de branco. Não lhe hei-de aqui chamar anjo, porque
não foi essa a impressão. Era tudo magestade, tudo estatuario n'aquella
criança; não a vi a descer do céo, onde os poetas teimam em ir buscar
tudo que é excellente, como se o céo não fosse um puro congresso de
espiritos que valem de certo lá muito mais do que pesam, mas que
passariam desapercebidos nos nossos bailes, se não tivessem a esperteza
de entrarem em corpos como o de Rachel. Eu quando a vi lembrou-me a
Grecia, as artes, em requinte de pompas, a numerosa familia das Venus,
todos esses marmores eternos, que hão-de sobreviver á mythologia dos
anjos, dos archanjos e dos seraphins. Os olhos de Rachel... estou-os
vendo; nem as franjas sedosas e longas das palpebras m'os escondem;
poderiam as arcadas espessas e travadas do sobr'olho quebrar a luz
d'aquelles olhos; mas nem assim! Como tu olhas, Rachel! Diz a
antiguidade que na Scythia havia umas mulheres que matavam olhando se o
rancor lhes fuzilava nas pupillas; porém tu que paixão tiravas da alma
toda amor, para a lançares de ti como um incendio que te abrasaria, se
eu, se todos, que te viam, não tomassem de joelhos um quinhão d'esse
fogo! Que haverá alli de mysterios n'aquelles olhos, se o fluido
electrico não basta a dizer o que é que vem de lá como corpo estranho
que vos entra no seio, e vos não cabe na alma, e quer fugir ás ancias do
coração que o aperta, e vos leva do amor ao transporte, do extasis ao
phrenesi, do rir ébrio da felicidade ás lagrimas incessantes de noites
desveladas! E, depois, porque não eram só os olhos o condão d'esta
mulher? Diante de Deus todos somos iguaes! Na alma se quizerem, e o
Creador, lá se avenha com os que o injuriam assim; mas que desigualdade
diante do divino artista! Lembra-me que a um lado de Rachel estava uma
menina de olhos vesgos; do outro lado uma senhora com um nariz impio;
mais longe outra menina em torturas para esconder quatro dentes
enclavinhados; além aquell'outra franzindo os labios, e exercitando uma
laboriosa mechanica do sorriso para corrigir a natureza que lhe dera uma
bocca limitrophe das orelhas. E ella, Rachel, toda primores, a
estremecida creatura, com uma luz serena de céo n'aquella face em que se
espelhava o seu Creador, o Deus que nos fez para a adorarmos, a rever-se
n'ella! Abençoada sejas tu de todas as venturas, que tão perfeita és,
tão cheia de tua belleza, tão digna dos thronos da terra, já que o
Creador, o teu Pygmaleão, te não arrebatou para si! Onde está, ó Senhor
Deus das maravilhas, o homem digno d'aquella obra tua, aqui posta entre
nós que apenas temos thronos, imperios, talentos, epopeas, as riquezas
da Asia, e o sangue das nossas veias para lhe offerecer! De que barro, ó
mão divina, fizeste o homem que ha-de primeiro embriagar-se nos aromas
que recende aquella virgem? Onde está o homem que...
O homem elle aqui está. É o snr. Manoel Pereira. Já quinou tres vezes.
Feliz no jogo, infeliz no amor; é certo o proverbio... até com elle!
Manoel Pereira tem cincoenta e cinco annos! estatura mean, cabeça
quadrilatera, e plana como um queijo do Além-Tejo desde o occipicio até
á cisura do coronal. As arcadas zygomaticas (vejam um compendio de
anatomia comparada) entestam com o rebordo esponjoso dos olhos
arrastando cada uma para o seu lado a venta correspondente que termina
em fórma de fava. O nariz não tem canas; parece que é formado de
parafusos. Começa do centro da testa por uma verruga, transforma-se em
lobinho, ladea em pequenos abscessos escarlates, e pega no beiço
superior, repuxando por elle de modo que o dono não póde exercitar as
funcções olfactorias sem enviezar o beiço. Este nariz ha-de ser
lithographado e distribuido aos assignantes, concluido o romance. O
nariz é o homem. Quem o vir organisa o complexo de Manoel Pereira, como
Cuvier recompunha o reptil iguanodo, e o megaterio.
Temos á roda da mesa a snr.ª D. Marianna e quatro filhas. É de notar em
Rachel o typo perfeito d'aquella familia. A mãi, senhora de quarenta
annos, é bonita ainda. Se a perfeição das raças é admissivel, nunca mais
sensivel foi a gradação do aperfeiçoamento como entre D. Marianna e
Rachel. Das outras filhas, uma é formosa, se bem que já ferida da
tisica, que d'ahi a mezes a levara para o lado de uma sua irmã que a
mesma enfermidade matou, quando lhe sorriam duas primaveras, a das
flôres, e a dos prazeres da vida. Outra é uma linda criança de doze
annos, com os olhos de Rachel. A que porfia em belleza desvantajosamente
com a mais bella é já casada, e tem vinte annos. Ha uma outra de aspecto
vulgar, posto que o não pareça entre outras que não sejam suas irmãs.
Bernardo Joaquim Ferreira, o pai d'estas lindas meninas, tem uma
agradavel physionomia de homem de cincoenta annos, e maneiras polidas,
sem embargo do trafego commercial em que labuta desde rapaz. Revela a
esperteza ordinaria na sua classe, temperada pelo uso da boa sociedade
em que desbravou as rudezas congeniaes, e as adquiridas nos seus
primeiros annos.
Ácerca d'esta familia, outras miudezas seriam intempestivas agora.
Saudemos com lagrimas a entrada de Rachel n'esta historia, que principia
desde hoje a tomar as proporções d'um escandalo monumental.

XIX.
--Não sabes quem hoje me escreveu?--disse D. Marianna a Rachel,
terminada a partida do quino?
--A minha Antoninha do convento.
--Sim? que novas lhe dá ella do filho? A mãi disse-me que a pobre
senhora vivia muito consternada com a paixão do rapaz pela tal Silvina.
--Segundo me ella diz, continuou D. Marianna, o pobre Jorge está
enfeitiçado, e cuida ella que a maneira de o desenguiçar é mandal-o para
aqui, a fim de elle, á vista do comportamento de Silvina, se desenganar.
Acho esquisito o remedio.
--O remedio é eficacissimo, snr.ª D. Marianna--disse o litterato.--O que
a mim me espanta é ser uma senhora quem o receita. O fim da sua amiga é
fazer com que o filho se sinta aviltado por amor de uma mulher ridicula.
O amor rompe todos os tropeços, transige com muitos defeitos e mesmo
vicios da pessoa ou... cousa amada; mas da mulher escarnecida é que não
ha cegueira que o aproxime.
--Conhece a tal Silvina de Mello?--disse Rachel.
--Já a encontrei em algumas partidas na Foz, minha senhora.
--Que idéa fez d'ella? A sua apreciação deve chegar-se muito á verdade.
--Pareceu-me, respondeu o poeta, que era galante, e até mesmo esperta.
Ouvi-a declamar acrimoniosamente contra uns folhetins que denomina
_Felizardas_ as senhoras provincianas, e pasmei da imprudencia com que
desprimorou as damas portuenses, chacoteando-as por um lado que é
justamente, a meu vêr, o mais vulneravel da fidalga do Minho...
--Qual é?--interrompeu Rachel com vivacidade. O jornalista, reconhecendo
a inconveniencia da resposta ajustada, fez, como por disfarce, esta
pergunta:
--Não é certo estar tractado o casamento da tal senhora com um
commendador fulano de tal Andraens?
--Assim dizem--respondeu D. Marianna--pelo menos cuido que...
--Parece-me que não é anno de fortuna para ella... atalhou o snr. Manoel
Pereira, coçando a verruga media da aza esquerda do seu nariz.
--Por que?--disse Rachel olhando de través o marido.
--Por que o meu amigo commendador, desde que foi o baile do visconde dos
Lagares, nunca mais se levantou, e vai cada vez a peor. O homem já
soffria molestia interior, e comeu tanto á ceia, que esteve a
rebentar-lhe a tripa... Ainda ha quem queira bailes!... Se elle
estivesse em sua casa...
Rachel, prevendo que seu marido aproveitava o ensejo para uma enfadosa e
desconchavada diatribe contra os bailes, cortou-lhe logo o fôlego
comprido das tolices com esta fina ironia:
--Nem toda a gente leva aos bailes as tripas dos teus amigos... Com que
então--continuou ella, voltando-se para o jornalista--o amor não será
capaz de vencer a indigestão do noivo?
--Segundo ouço ao snr. Manoel Pereira--respondeu o litterato em tom
lastimoso--a gentil menina está em risco de vêr o coração, que tão caro
lhe era, romper-se, batido pelas explosões do estomago que rebenta,
deixando a seu dono a gloria de morrer como Tito.
Rachel e uma das irmãs sorriam; Manoel Pereira desconfiou do riso da
mulher, e disse mal encarado, com o nariz já roixo:
--Se elle quizesse mulher tão bonita e mais rica que ella, não lhe
faltavam por ahi ás duzias.
--Ninguem contesta o dito de v. s.ª--redarguiu o escriptor.
--Mas o senhor parece que estava caçoando com o meu amigo...--tornou
Manoel Pereira.
--É injusto o cavalheiro. Eu se tivesse quatro irmãs dar-me-ia por
ditoso se o seu amigo quizesse casar com todas quatro, e lamento não
saber o segredo de um tal Lucius que Plinio viu transformar-se em
mulher; por que se me eu podesse felizmente mudar em mulher, havia de
galantear o amigo de v. s.ª, e morrer de amores por elle se uma
indigestão rival m'o arrebatasse.
Rachel soltou uma risada contagiosa: riram todos, salvo Manoel Pereira,
cujo nariz reluzia ao reflexo da luz, em differentes côres desde o
açafrão até ao talo da couve lombarda.
O jornalista continuou, fallando para D. Marianna:
--Tive tambem occasião de conhecer no hotel da Aguia d'Ouro o filho da
amiga de v. exc.ª Fallei com elle, e fez-me bem o perfume d'aquelle
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