Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 07

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--Vá-se agora, embora, mulher--disse Jorge, sem enfado, mas desejoso da
solidão que tão suave lhe estava sendo.
--O senhor dá-me este dinheiro todo?!--disse a mulher, que os homens
chamam perdida, e que não o estava, nem o podia estar aos olhos do seu
Creador.
--Dou, sim.
--Bem haja, meu senhor!--tornou ella, com lagrimas na voz--já tenho com
que ir para a minha familia. Eu sou uma desgraçada, que vim do Algarve,
ha tres annos, fugida a meus paes, com um rapaz meu parente, para
casarmos onde podesse ser. Elle requereu ao commandante; mas não teve
licença para casar commigo; eu depois fui lançar-me aos pés da senhora
do commandante, e consegui licença. Quando estavamos muito contentes,
mandei buscar a minha certidão e mais papeis á terra; mas disseram-me de
lá que nós eramos primos, e não podiamos casar sem dispensa. Não
tinhamos dinheiro para ella, e fomos vivendo até vêr se Deus dava
remedio. N'este entrementes, o meu primo namorou-se de outra, e
deixou-me a morrer á fome. Agora com este dinheirinho vou já amanhã para
o Porto, e de lá vou n'um hiate para Tavira, e vou botar-me de joelhos
aos pés de minha mãi.
--Pois vá, não mude de resolução, e faça por ser boa filha--disse Jorge
com maviosa caridade.
--O senhor será um anjo do céo?--disse a feliz creatura lavada em
lagrimas.
--Não sou anjo do céo, não... Vá com Deus.
A mulher retrocedeu, e foi ajoelhar diante de um antiquissimo retabulo
de granito em que na fachada do templo de S. Gonçalo sobresahem os
grosseiros relevos de uma Senhora com Jesus morto no regaço. Jorge viu,
ao clarão sereno da lampada que pende sobre a imagem, a mulher
ajoelhada. Banhou-se-lhe o espirito de um contentamento, que não poderia
existir na terra, se acima d'este tremedal, não velasse um Deus as
acções do homem que póde erguer-se do seu rasto até hombrear com os
anjos.
Entre Jorge e aquella peccadora que resava, avultou ainda a imagem da
mulher pura, a mãi, a santa, onde chegára talvez a revelação das penas
do filho. Silvina, n'esse momento, nada era na vida de Jorge. Nem a
poesia da paixão pôde disputar o espirito do mancebo á poesia da
caridade.
Entretanto, o varão justo, o padre João Coelho, acordava com a digestão
consummada, voltou-se para o outro lado, e reatou a nota quebrada de um
beatifico ronco.

XIV.
As prelecções de historia antiga que padre João fizera, desde o Porto
até casa, não tocaram o juizo nem o coração de Jorge; mas as singelas
palavras da indulgente mãi, e as caricias dos irmãos, acalmaram algum
tanto a febril paixão do academico. D. Antonia, de proposito, passou com
o filho no adro da igreja rural, quando, ao fim da tarde, se celebrava
dentro um baptisado. Entraram na modesta igrejinha, e foram ajoelhar no
arco. A viuva, depois que orou, foi sentar-se n'um banco tosco da
capella-mór, e chamou para junto de si o filho.
--Senta-te aqui, Jorge;--disse ella--quero fallar com o meu filho ao pé
da sepultura de seu pai. Não a esqueceste ainda, pois não?
Jorge desceu a vista sobre uma das lages que formavam o estreito
pavimento da capella-mór. D. Antonia continuou:
--Tenho fé em que o meu coração n'este lugar, onde ha cinco annos venho
chorar todos os dias, te saberá dizer o que teu bom pai te diria, filho.
Se Deus me não fizer o milagre de ajuntar ao teu espirito mais dez
annos, serão perdidas as minhas consolações, e tu as tomarás como
conselhos importunos...
--Não, minha mãi...--atalhou Jorge, commovido pelo terror santo do
local, e pela imagem de seu pai, em cuja fronte morta elle dera um beijo
cinco annos antes--os seus conselhos...
--São conselhos de mulher, conselhos de mãi, que quer desterrar da tua
alma lembranças d'outra mulher que me rouba o coração de meu filho. Deus
levou-me teu pai, Jorge; e Deus não me podia enganar quando d'aquella
tribuna, estando eu ajoelhada sobre esta lousa, me dizia que a
compensação da boa alma que chamou para si, eras tu. Lembras-te d'uns
beijos fervorosos que eu te dava, quando erguias as mãos ao pé de mim
n'este mesmo sitio? Não te deixava eu a face molhada de minhas lagrimas,
Jorge? Lembras-te?
--Lembro-me, minha mãi... E porque está chorando agora?--disse
compadecido o moço.
--Parece-me que é saudade das dôres de então, filho... As de hoje são
inconsolaveis... Nunca tive orgulho peccaminoso, Deus sabe que não; mas
orgulho do meu dominio no teu animo, Jorge, tinha-o muito grande; e
agora vejo que pequeno valor tem o dominio de mãi, logo que um acaso
infeliz depara aos dezoito annos de uma criança os affectos verdadeiros
ou simulados da mulher que nunca se viu, nem conheceu nos brinquedos da
infancia. Isto é triste! A natureza poderá justificar este vulgar
infortunio; mas a piedade e o dever choram-se, e não ha razão que
convença uma mãi a conformar-se com a desvalia em que tu tiveste os meus
rogos durante tres mezes.
--Eu não desvaliei os seus mandados, minha mãi--disse Jorge em tom de
carinhosa submissão--Havia uma corrente invencivel que me prendia á
desgraça...
--E partiu-se essa corrente, filho?... O teu silencio diz-me que não...
Olha, Jorge... se essa mulher fosse digna de ti, eu dizia-te que me
trouxesses para casa mais uma filha; se ella fosse virtuosa e pobre,
seria um thesouro, na nossa casa onde sobra o necessario; se fosse rica
e creada nas regalias da sociedade, aconselhava-te que a não
sacrificasses á nossa solidão e pobreza comparativa; mas, filho, essa
menina, que te enganou o coração, não tem virtudes que suppram a
riqueza, nem a riqueza que possa compensar o coração estragado e sem
escrupulos do homem, que não és tu, mercê do Senhor! Antes de teu tio ir
ao Porto, já eu sabia, meu filho, quem era Silvina. Nada disse ao padre
do que sabia, quando lhe pedi que fosse em meu nome pedir-te que viesses
para nós, que te choravamos. Tu sabes que eu tive uma companheira no
convento de Braga, menina de muitas virtudes, que mereceu a Deus casar
com um negociante do Porto. Foi a ella que eu escrevi pedindo-lhe
informações da tua vida, e não se demoraram. O marido d'esta senhora
procurou-te varias vezes, e nunca pôde encontrar-te. Andavas perdido na
tua cegueira, meu pobre filho! Abre os olhos da tua alma, e attenta nas
lagrimas da pobre mãi que não póde contar com o amparo de tres meninas,
nem ellas contam com outro amparo senão o teu. Não achas tanta gente boa
a pedir-te amor, filho? Tudo nos queres tirar a nós para o atirar aos
pés de uma mulher que d'aqui a um anno será na tua memoria apenas um
remorso, senão fôr antes uma vergonha?
--Uma vergonha!... atalhou Jorge, mais ferido na vaidade que
surprehendido da qualificação.
--Pois qual é o nome que dá o mundo ás paixões que humilham os que as
soffrem, e mortificam uma familia que não espera d'ellas senão
amarguras, desgraças, e abysmos?! Jorge, meu querido filho, faz um
esforço de vontade! Vence-te, que podes. Ajuda a efficacia das minhas
orações. Em nome d'estas cinzas queridas, peço-te em nome de teu pai,
que tantas vezes me disse, quando te via triste, aos quatorze annos;
«não tires da tua vista este menino, que ha-de perder-se, se entrar no
mundo, d'onde me eu salvei com o teu amor»; é teu pai que te pede pela
minha bocca, Jorge, esquece essa mulher; não lhe escrevas, os teus
amigos que te não fallem d'ella; absorve-te no meu amor; folga com a
innocencia de tuas irmãs: volta a Coimbra quando o desejo do estudo
renascer no teu animo socegado; entrega-te de novo aos teus prazeres da
caça; restaura a tua saude, que trazes tão quebrantada; eu pedirei aos
amigos da nossa casa que a frequentem mais a miudo; teu tio ha-de saber
conversar com o teu espirito instruido; compra os livros que quizeres;
satisfaz todos os caprichos que te não arruinem a saude nem a alma; tens
a duas leguas d'aqui uma villa onde ha sociedade, e familias que te
estimam. Lucta, filho, deixa triumphar tua mãi do prestigio d'essa
mulher, que nunca te deu uma lagrima, nem sabe o travor das que tu me
tens feito chorar...
--Basta, minha mãi--murmurou Jorge, levando aos labios a mão tremula da
magoada senhora--Luctarei, e... morrerei, se não vencer.
--Vences, filho, vences! exclamou D. Antonia com a vehemencia da sua fé
e da sua razão.--Vences, porque Deus não dá ás más paixões o poder de
matarem uma creatura, que póde desafogal-as nos braços de sua mãi.--E
erguendo as mãos para o altar, disse com a voz convulsiva--Graças, meu
Redemptor!
Anoitecera. Padre João, que era o vigario da freguezia, andava
discretamente passeando no adro, e entretendo os sobrinhos para não
interromperem a pratica, cujo assumpto elle adivinhara. D. Antonia
ergueu-se, tomou a mão do filho, e sahiu da igreja. No adro, estavam
brincando as tres irmãs de Jorge, a mais velha das quaes tinha nove
annos, e o irmão mais novo que nascera depois da morte de seu pai.
Saltaram os mais novos aos abraços á mãi, e as duas meninas ao pescoço
de Jorge, com grande alarido. Sentou-se elle nos degraus do cruzeiro do
adro, e tomou para sobre os joelhos as duas meninas, que á fina força
queriam ennastrar-lhe nos cabellos as suas rozas brancas. D. Antonia
contemplava o grupo com o semblante banhado de alegria. O egresso,
debruçado sobre a parede baixa que contornava o adro, fallava com o
mordomo da festa de S. Sebastião ácerca do numero de padres e do
prégador que devia chamar. Os meninos mais novos já tinham largado a mãi
para apedrejarem as andorinhas que chilreavam em redor do campanario,
cuja sineta unica era movida debaixo por um cordel, que os pequenos a
muito custo respeitavam por alli estar o tio padre.
Resolvido o negocio da festividade do orago, padre João tirou pela
corda, e tocou as nove badaladas das Ave-Marias. Todos ergueram as mãos,
e resaram em voz alta. «Ora, Deus nos dê boas noites.»--Disse o padre.
Rodearam-no os meninos a beijar-lhe a mão, e Jorge tambem depois que sua
mãi lhe deu a fronte.
Terminado este lance, cuja poesia santa não ha pedil-a a corações que
deram com ella no pégo da lama brilhante onde dizem que a poesia está,
Jorge Coelho fitou os olhos no occidente, e reconheceu o anoitecer dos
seus dias passados; viu o boleado pardacento das serranias longiquas que
lhe estavam redizendo os pensamentos da sua infancia; ouvia ainda as
vibrações do sino que repicava no baptisado de seus irmãosinhos, e
dobrára na morte de seu pai, reconcentrou-se; sentiu uma secreta
amargura que não era angustia de saudade, nem pavor de previsões
afflictivas... Que era, pois, esse vulto lá muito ao longe, ao pé
d'aquella myriada de estrellas que repontava na cumieira da montanha?
Era a imagem de Silvina ainda perto do céo, porque de lá vinha cahindo,
bella como os anjos que lá nasceram; e, rebeldes á piedade, á virtude, á
suprema graça, aqui se despenham, e despenhados vencem ainda disputando
ao Senhor as almas immaculadas. Era Silvina, toda de festa e risos,
reptando-o á lucta com um sorriso affrontoso, e esgares de escarneo ao
protesto santo jurado sobre a sepultura d'um pai, e assellado com
lagrimas de mulher sem macula. Era a visão maldita, a fada inexoravel
dos que vem a esta hecatomba, predestinadas victimas, que o mundo
sacrifica e cospe.
Era Silvina, sempre Silvina, a dizer-lhe:
«Que mulher viste mais linda que eu!? Quem te deu philtros de mais
saborosa peçonha!? Vê se te sorriem uns labios com mais dôces favos de
phrases que assignalaram a mais bella hora da tua vida!»
Meu pobre Jorge Coelho! Tua mãi não te salva d'esse captiveiro. Teu pai,
esse resgatava-te, se te désse um lugar no seu leito!... _É intransitivo
o calix!_

XV.
A primeira carta de Leonardo Pires ao condiscipulo dizia que Silvina ia
todos os dias á Foz de carroção, e almoçava bifes e fiambre no hotel
inglez. Ajuntava a isto o picaresco informador que a menina usava de
anquinhas no vestido de banho, e fazia de nereida saracoteando-se na
agua, requebrando-se em risos e ditos galanteadores aos tritões de baêta
azul que a rodeavam, e sahindo dos braços de Neptuno mui peneirada aos
saltinhos pela praia, que eram umas delicias vêl-a. Dizia mais, que
Francisca da Cunha, ao sahir do banho, era uma cousa desazada como perua
que saltasse de um tanque a escorrer agua. Este era sempre o estilo do
fidalgo da Maya. Rematava dizendo que o morgado de Santa Eufemia fazia
todos os dias a Silvina o sacrificio de se lavar no oceano, dando
grandes urros, e devorando bois assados no hotel da Boa-vista.
Jorge Coelho tragou este veneno, e odiou o amigo que sem piedade lh'o
vasava no coração. O innocente esperava que Leonardo lhe enviasse, senão
uma carta, ao menos palavras consolativas de Silvina, incentivos
apaixonados á esperança, lagrimas de saudade e protestos de firmeza
eterna.
Na segunda carta dizia Leonardo Pires que tendo elle azo de encontrar-se
com Silvina na calçada dos Clerigos, na loja do snr. Antonio das
Alminhas, lhe fallara de Jorge, contando-lhe o motivo da sua repentina
partida para a provincia, com o que a boa da menina se rira grandemente,
dizendo que seria muito de receiar que o tio padre trouxesse uma
palmatoria debaixo da sotaina. A isto respondera Leonardo--e não
duvidamos acredital-o--que Jorge devéras merecia meia duzia de
palmatoadas, quando sahiu do baile da assemblea, apaixonado por um anjo
que fizera presente das suas azas á gravata do morgado de Santa Eufemia.
E como quer que Silvina redarguisse com voltar-lhe as costas, Leonardo
fôra fallar a Francisca da Cunha que estava á porta do snr. Antonio das
Alminhas, conversando amores com um linheiro das Hortas, o qual linheiro
lhe estava dizendo que o dia estava muito bonito.
Jorge Coelho respondia a estas cartas sem fallar de Silvina, e dizendo
pouco de si. Divagava por assumptos tristes, dissabores da vida que em
seu começo tropeça na desgraça; rebates de saudade d'um tempo que mais
não voltaria; os encantos perdidos do céo, das arvores e das montanhas
que elle amara tanto; a magia do viver em familia despoetisada; o
coração desaffeito das caricias maternaes e já insensivel ao sabor
d'ellas; longos dias, sem um sorriso, encadeados a noites desveladas
sobre livros em que elle, como Hamlet, não via senão _palavras_,
_palavras_, _palavras_.
Na terceira carta dizia Jorge ao seu amigo que talvez não fosse a
Coimbra, porque a saude lhe minguava com a vontade, e a perspectiva da
morte era a visão mais risonha que o visitava ao cahir da folhagem dos
seus bosques, onde elle passava os dias com um anjo de nove annos, a sua
irmã Angela.
D. Antonia não entendia o filho. Via-o triste; mas triste o vira sempre
desde criança. Espreitava-o de noite no seu quarto, e achava-o sempre
com os cotovêlos na mesa de estudo, o rosto entre as mãos, e um livro
aberto. Se o interrogava ácerca da sua saude, Jorge respondia sempre que
não soffria senão o mal-estar da sua doentia imaginação. A mãi, fiada em
suas orações, esperava o melhor, e agradecia já a Deus a cura completa
de seu filho.
Padre João, porém, via mais de perto o fio ás cousas.
--O rapaz come muito pouco!...--dizia o sagacissimo egresso á
cunhada--Não nos fiemos n'aquelle exterior pacifico, mana. Alli ha
amargura secreta enfronhada n'uns ares de serenidade, que não é
d'aquelles annos. Jorge está magro, macilento, e não dorme. Debaixo da
janella d'elle encontro a miudo muito papel rasgado. Já pude concertar
uns pedacinhos, e lá encontrei o nome da fada má, que nos ha-de perder
Jorge.
--Perder!... não diga tal, mano João!--exclamou a viuva, estorcendo os
dedos, e já com as lagrimas, a fio.
--Perder, sim!... Mana Antonia, eu já tive vinte annos, e entrei no
mosteiro aos trinta e dous... Vou aconselhal-a. Quer resgatar o seu
filho das ciladas da sereia?... Olhe que só Ulysses venceu uma vez
sereias. Que me conste; desde Ulysses até nós, as vencedoras são ellas
sempre, quando as victimas as não podem examinar de perto, e vêr que
ellas escondem na agua a metade monstruosa do corpo. (A erudição
mythologica do padre nem D. Antonia poupava!)
--Então que conselho me dá, mano?--atalhou a senhora.
--Quando Jorge der signaes de doença grave, quando uma ponta de febre
lhe accender as faces, mande-o para o Porto.
--Para o Porto?! Que desproposito é esse!?
--Deixe-o ir examinar de perto o monstro. Deixe-o cahir na conta da sua
indigna paixão. Deixe-o ir ouvir o descredito da tal mulher. Ha mulheres
como a lança de Pélias: curam a ferida que fazem. Eu já me arrependi de
obedecer aos rogos da mana. Jorge devia deixar o Porto espontaneamente.
Logo que eu sube que mulher era a tal Silvina, devia abandonal-o a elle
á miseria da sua illusão. A esta hora estava elle talvez desenganado.
Sabe porque? Aqui tenho uma carta do negociante Ferreira, casado com a
sua amiga do convento. Diz-me que Silvina arranjara a final um
brazileiro millionario, tão monstruoso em corpo como ella é monstruosa
na alma. Se Jorge estivesse a esta hora no Porto, cercado de homens que
fazem zombaria das affeições serias e das ridiculas, curava-se. Aqui, se
lhe eu annunciar as baixezas da Circea que o bestificou, não me
acredita; e, se me acreditar, não temos balsamo que lhe feche a chaga;
verá que elle a rasga mais com as suas proprias unhas, Mana Antonia, o
meu parecer é este. Não me argumente, que não sabe, nem póde. Se a sua
vontade fôr outra, lavo d'ahi as minhas mãos...
D. Antonia foi direita ao quarto do filho, e entrou de sobresalto.
Surprehendeu-o a escrever. Jorge fez um gesto machinal para entremetter
n'outros papeis a folha em que escrevia.
--Escondes de mim o que escreves, filho?--disse D. Antonia, com magoada
brandura.
--Não, minha mãi, não escondo...
--Pois eu não vi?!--tornou ella, sorrindo tristemente.
--São cartas para os meus condiscipulos.
--Deixas vêr-m'as, Jorge? Que poderás tu dizer aos teus amigos, que não
dissesses a tua mãi?! Fallas das tuas amarguras? Conta-m'as tambem a
mim.
--Eu não fallo de amarguras, minha mãi--disse Jorge, erguendo-se, para
afastar a mãi da banca.--Communico a um amigo os meus estudos, as minhas
impressões de leitura, cousas que não podem recrear uma senhora...
--Assim será, Jorge... Tu nunca me mentiste, nem mentirás, pois não?
Jorge guardou escrupuloso silencio, respondendo com um tregeito, que
valia tanto como a supplica de perdão.
N'este momento, apeava no pateo um cavalheiro da villa proxima, que
vinha visitar o academico. Jorge foi logo á sala, a mãi acompanhou-o até
fóra do quarto; e retrocedeu a examinar os papeis, logo que o viu
entretido. Foi fácil estremal-o dos outros pela frescura da tinta. No
alto da folha, leu estas palavras: «AO ANOITECER DA VIDA.» Depois seguia
assim:
«Vou d'este mundo, quando custa morrer aos que se estorcem entre uma
saudade e uma esperança. Saudade! de que hei-de eu tel-a?! E que posso
esperar? Quem me dera já as trevas! Esta luz, que me alumia, é ainda a
d'aquelle clarão infernal do baile. Queria fugir de mim proprio, como de
um inimigo. Não me has-de tu matar, paixão! Morro porque não podia
viver. Se não fosse aquella mulher, era outra. Eu vejo e palpo a morte
ha muitos annos. A fugir da morte, refugiei-me no coração de Silvina.
Porque me disse ella: «no mundo deve existir a imagem da mulher digna de
senhorear-lhe a alma com a de sua mãi, cuja face eu beijaria com
respeito e ternura de filha?» E como Deus pôde crear no coração humano
para zombaria pensamentos assim! Á mulher infame devia morrer a memoria
das palavras com que se exprime a virtude... Sinto-me tranquillo... A
compensação dos affrontados é esta. No mal e no bem te reconheço,
Providencia Divina!... Mas o mal para que é? Se é necessaria na ordem do
mundo a ignominia, a crueza, a infamia, a desgraça, fôra digno da
perfeição divina deixar ás almas inculpadas o galardão de não sentirem a
absurda justiça do Creador.
«Que és tu, bem? que és tu, virtude?... que és tu...»
Aqui fôra interrompido Jorge pela subita entrada da mãi.
D. Antonia quasi não entendera o escripto; mas algumas palavras, as do
titulo só, bastaram a compenetral-a de consternação e terror. Ouviu os
passos de padre João, chamou-o anciada, e mostrou-lhe o papel. O egresso
leu, e respondeu risonho:
--Não tem de que se lastimar por em quanto, minha irmã. Isto é um
accesso de febre; mas não me assusta; o que eu receio é a outra que não
interroga a Providencia, e obriga o enfermo a inclinar a face para o
seio, e esperar resignadamente a morte. Vá á sala, que o hospede quer
comprimental-a.
D. Antonia sahiu, e padre João escreveu o seguinte no papel que lêra:
«O pucaro pergunta ao obreiro porque o fez quebradiço. O oleiro
responde: porque eras barro antes de seres pucaro.»
«Virtude é o diamante em que se pulverisam os raios da desgraça. Aquelle
é virtuoso que olha em torno de si, e vê prostradas as calamidades.»
«O reino de Deus não está em palavras sonoras; mas em virtudes. (S.
Paulo--aos impacientes de Corintho).»
«Coração apoucado, sossobra, se não podes com a tua miseria; mas não
abandones a tua memoria a uma piedade vã, que é quasi uma zombaria.»

XVI.
Traslado fiel de uma carta de Leonardo Pires a Jorge Coelho:
«São 6 horas da manhã. Venho do baile do visconde dos Lagares. Tenho o
coração a trasbordar de amargura! Deixal-o trasbordar, que é uma gotta
de absintho n'um oceano de champagne. Um bago de uva matou Anacreonte.
Eu sinto-me triplicar de existencia na uva. _Evohé!_ Como a vida é
linda! que vergeis de flôres recendem á tona d'este lamaçal! Vem cá,
Fortuna! Schakspeare chamou-te prostituta. Linda, vem cá, que eu bem te
vi no baile, como o poeta inglez te via nos paços e nas tavernas!
Senta-te aqui nos meus joelhos, impudica! Solta d'essa larynge recozida
de alcool um dithyrambo! Ri-te commigo, e não me venhas dizer que és
filha da Providencia, infame blasphema!...
Cançou-me o folego, Jorge! O meu vinho nunca foi para grandes
apostrophes. O descriptivo é o meu forte.
Fui ao baile. Pude lograr a causa da moral publica. Deves presumir que
estou desacreditado no Porto, e em vesperas de um duello. Sou o varão
justo a braços com a adversidade: _vir fortis cum mala fortuna
compositus_--a maravilha que punha Seneca em extasis! O champagne do
visconde é litterario como as aguas da Aganippe. Que abundancia de
pegasos eu vi beber na sala da ceia, e apparecerem Homeros na sala do
baile!
Pedi a quatro conhecidos que me arranjassem convite. Era impossivel. O
visconde respondia que eu era um _bolas_, que descompozera no largo da
Batalha uma menina, noiva de um seu amigo. Eis que encontro o João da
Thereza da Cancella! Este João é meu caseiro ha cincoenta annos. Vê-me,
corre a abraçar-me, e exclama: «Fidalgo, o meu Francisco chegou!»--«Quem
é o teu Francisco, amigo João?»--«O meu Francisco--tornou elle--que
estava no Maranhão! pois não sabe?»--«Não sabia... Vem rico?»--«Rico
como um burro!»--«Está bom; estimo; é barão de...?»--«Não, senhor; barão
ainda não é; mas está aquartelado em casa do snr. visconde dos
Lagares.»--«Sim?!»--«É como digo, fidalgo, e, pelos modos casa-lhe com a
filha; é arranjo tratado já lá do Brazil.»--«Fazes-me um favor,
João?»--«É pedir por bocca.»--«Teu filho será capaz de me arranjar que
eu seja convidado para um baile que vai dar o visconde amanhã?»--«Que
remedio tem elle, senão arranjar?! Quem foi que lhe pagou a passagem
para o Rio senão o paisinho do fidalgo?!»--«Vai depressa, e volta aqui
com a resposta.»
Meia hora depois, voltou João da Thereza da Cancella, com a carta, e
disse-me: «Olhe que o homem não queria dar o officio; foi preciso eu
dizer que dava duas libras por elle, sendo preciso; o meu Francisco
chamou-me bruto, e depois lá se mexeram como poderam, e aqui tem.»
Dei um abraço democrata no meu caseiro; procurei os meus quatro
conhecidos, mostrei-lhes o cartão, e fiz o elogio do seu valimento
d'elles.
Apenas entrei no baile, fui comprimentar a viscondessa, que fallava com
Silvina. Esta, quando me viu, resfolegava como se eu fosse uma grande
botija destapada de vinagre de sete ladrões. Retirei-me a rir, e, na
reviravolta impetuosa, bati n'uma grande esponja: era José Francisco
Andraens.--Perdão!--disse-lhe eu. José Francisco grunhiu, e enviezou-me
um olhar sanhudo--Perdão!--tornei eu. O cerdo poz as mãos na linha
hemispherica do seu globo, constituiu-se vaso etrusco, e regougou: «O
senhor anda a embarrar pela gente?!»--Foi uma _embarração_ inopinada,
snr. Andraens!--repliquei eu--Se lhe offendi os tecidos,
desculpe-me.--«Estes meliantes...» disse o brazileiro, e foi-se embora.
Adiante encontrei os morgados de Santa Eufemia, e de Matto-grosso.
--Que ha de novo?--perguntei eu.
--O casamento de Silvina com o brasileiro está definitivamente
tratado--disse-me Egas de Encerra-bodes.
--Com o brazileiro?
--Com o brazileiro. Veiu ahi o pai d'ella; expoz á filha as vantagens do
casamento, e ella poz os olhos no céo, e disse:--cumpra-se a vontade do
Senhor,... e a de meu pai!
--E cá o amigo Christováo Pacheco que diz a isso?--perguntei eu,
voltando-me para o de Santa Eufemia, em quanto Egas ria estrondosamente.
--Eu digo--respondeu elle--que já cá botei as minhas contas, e que
hei-de tourear o tal José Francisco!... Estou civilisado;--cá o primo
tosqueou-me o pello.
--Vi-te n'aquelle momento, meu caro Jorge. Vi a tua candida alma, n'esse
ermo, a penar, em quanto a vil, que te mentira o apunhalara, se andava
alli glorificando de que a indigitassem como futura quinhoeira dos
duzentos contos do negreiro. Fervia-me o sangue em borbotões de raiva.
Jurei tirar alli uma vingança em teu nome, a vêr se me assim despenava
da culpa de te apresentar, de te immolar aos rasos instinctos d'aquella
mulher. Busquei ensejo de fallar-lhe; mas ella evadia-se, não largando
nunca o braço de um ou outro homem. O millionario, filho do João da
Thereza, levou-me á casa da ceia, e serviu-me tres copos de um vinho que
tinha um nome barbaro. Abrazou-me as arterias; mas a minha raiva medrava
nas chammas como a salamandra. Tornei ás salas, encontrei Francisca da
Cunha pelo braço do linheiro das Hortas; parei diante d'elles, e disse,
com a solemnidade do estilo:--Boccacio e Fiammentta! Bettina e Goethe!
Fornarina e Rafael de Urbino!
O linheiro, voltou-se para Francisca e murmurou:--Não conheço este
sujeito.
Eu continuei: Beatriz e Bernardim!
--O senhor está enganado comnosco--disse o linheiro na sua boa fé de
linheiro. Francisca, tirou-lhe pelo braço com força, e afastaram-se. Não
sei o que lhe ella segredou. O homem, pouco depois sahiu-me de cara, e
disse-me:
--V. s.ª parece que, ha bocado, me quiz insultar.
--Eu não o quiz insultar ha bocado, senhor... como é a sua graça?
--Eu chamo-me Antonio José Guimarães.
--Pois senhor Antonio José Guimarães, como passou?
O linheiro açafroou-se, mediu-me tres vezes perpendicularmente, e disse:
--O senhor ha-de dar-me uma satisfação.
--N'esse caso, satisfaça-se, e, quando estiver satisfeito, avise-me,
snr. Antonio.
--Na rua nos encontraremos.
--Pois sim, repliquei eu, na rua nos encontraremos. O snr. Antonio quer
duello a todo o trance e sem misericordia? Eu não me bato com armas
brancas nem pretas. O snr. Antonio, como tem a materia prima de casa,
leve uma corda, que o hei-de enforcar.
O linheiro ficou chumbado ao tapete, e suava como uma abobora porqueira
em manhã de orvalho.
Tocou á ceia. Entrei na sala. O champagne estalava. Os crystaes
retiniam. Os talheres tilintavam. Eu tinha no craneo a musica das
espheras. José Francisco Andraens ia atamancando um empadão de pombos,
cujos arcabouços lhe pendiam das belfas em fragmentos. Silvina
defrontava com elle, e comia a duodecima Sandwich. Estavam tres perús,
ou seis, ou não sei quantos perús intactos na mesa. Fui collocar-me
atraz de José Francisco Andraens, e chamei um servo agaloado de prata. O
snr. commendador Andraens--disse-lhe eu a meia voz--quer que vossê leve
um d'estes perús de mando d'elle áquella senhora que tem uma grinalda de
flôres brancas. Disse e fui collocar-me a pouca distancia de Silvina.
Chegou o criado com a travessa, e disse:--Minha senhora, o snr.
commendador Andraens manda isto a v. exc.ª
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