Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 01

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ANNOS DE PROSA
Romance
por
CAMILLO CASTELLO-BRANCO

A GRATIDÃO
Romance

O ARREPENDIMENTO
Romance


PORTO.
Editor, Antonio José da Silva Teixeira.
Rua da Cancella Velha, 62
1863


Typographia de Antonio José da Silva Teixeira,
Cancella Velha, 62
1863



ANNOS DE PROSA.



ANNOS DE PROSA.

DISCURSO PROEMIAL.
Altissima é a missão do escriptor, e a do romancista principalmente. O
mestre Ignacio da cartilha velha, amoldurada ás necessidades do seculo,
é o romancista. Mal hajam os sacerdotes das letras derrancadas que
vendem peçonha em lindos crystaes, e desfloram as almas em luxuriante
florescencia da sua primavera. O mau romance tem afistulado as entranhas
d'este paiz. Não ha fibra direita no coração da mulher que bebeu a
morte, e--peior que a morte--algumas dezenas de gallicismos no que por
ahi se escreve e copia. O anjo da innocencia foge de certos livros, como
os editores de certos authores. A candura virginal de uma menina de
quinze annos é a cousa mais equivoca d'este mundo, se a menina leu cousa
em que os pedagogos do coração a ensinaram a conhecer-se, antes que a
experiencia a doutrinasse.
Para cumulo de infortunio, Portugal é um paiz onde se está lendo muito.
Acontece aos estomagos famintos, quando se lhes depara alimento bom ou
mau, assimilarem-n'o com tamanha sofreguidão, que o encruamento do bôlo,
e o marasmo são inevitaveis. Assim e por igual theor, quando os Lucullos
e Apicios das letras expõem á voracidade publica as suas iguarias
estragadas, a fome de aprender a vida nos romances locupleta-se com
tamanha intemperança, que o resultado e as dispepsías espirituaes,
tormento de angustias vomitivas, que fazem descer o coração ao lugar do
estomago, e subir o estomago ao lugar do coração.
Eu tenho assistido a esta deslocação de visceras com lagrimas nos olhos,
enxutos para tudo o mais. Muitas vezes tenho perguntado ás velhas se
isto assim era no tempo d'ellas. Faz dó vêr a consternação com que
algumas expedem um gemido, unisono com o assobio da pitada! Compunge vêr
rolar a lagrima preguiçosa do olho desvidrado d'outra, que se recorda da
honestidade com que foi amada pelo seu quinto amante!
Ha cincoenta annos que as senhoras não liam romances, por uma razão cujo
descobrimento me custou longas vigilias:--não sabiam lêr. Algumas,
rebeldes á vontade paternal, conseguiam soletrar e escrever á tia uma
carta em dia de annos, copiada do _Secretario portuguez_ de Candido
Lusitano. Os paes aceitavam com repugnancia aquelle abuso de
intelligencia, e castigavam a filha, forçando-a a um trabalho litterario
semanal: escrever em cada segunda feira o rol da roupa. Este systema
penal tinha só a vantagem de tirar ao vicio os enfeites da
intelligencia, reduzindo-o á essencia bruta de sua nudez primitiva. Já
não era pouco para exemplo e edificação das almas. O melhor moralista
será aquelle que despir o delicto do coração das galas que lhe veste o
desejo, e o cobrir de farrapos repulsivos.
Por esses tempos, e nos dez annos sequentes, os propagandistas da
corrupção tentaram exercitar o seu maleficio, vertendo para pessima
linguagem portugueza novellas francezas, que transpozeram as fronteiras
no couce da bagagem do Junot.
Em 1814, a immoralidade, até esse anno sopeada pela impertinente virtude
das novellas, taes como _A virtude recompensada_ e o _Escravo das
paixões_, quebrou as ferropeas, e despejou do regaço dissoluto a versão
de _Tom Jones_, o _Sophá_, o _Candido_, e quejandas faúlas incendiarias,
que pegariam nos corações, se a manteiga e o paio das tendas não
esfriassem a força comburente d'essa droga, que acirrava os paladares
anthropóphagos d'aquelle festim de 1793.
Bemdita e louvada seja a ignorancia! Os romances francezes, até 1830,
encontraram as almas portuguezas hermeticamente calafetadas. Ate esse
anno infausto, a mulher era o anjo caseiro, a alma da despensa, a
providencia da piuga, e sobre tudo, a femea do homem, qual Jehovah a
fizera d'uma costella do mesmo.
O salão era um como trintario cerrado, onde, a espaços, uma gosmenta
matrona espirrava, e a sociedade, a cabecear de somno, surgia
estremunhada, dizendo: _Dominus tecum_. A menina casadeira não se erguia
de ao pé da mãi. O noivo mirava-a de longe em fellina beatitude; e, no
auge da sua casquilha audacia, piscava-lhe a furto o olho, onde
reslumbrava a paixão.
Não havia então d'estes homens mulherengos, que alambicam a parlenda
assucarada, coando por ouvidos incautos o veneno do estilo, que é o mais
corrosivo de quantos ha na toxicologia do amor. A mulher actual é quasi
sempre victima da rhetorica requentada do romance, que esteril
peralvilho lhe encampa como cousa de sua alma. Algumas conheço eu que
resvalaram ao abysmo da perdição pela rampa de um adverbio
euphonicamente intruso n'um periodo arredondado. Este sortilegio da
linguagem, que enfeitiça e dá quebranto ás mulheres, é apanhado no
romance. O coração de certos individuos acha-se, muitas vezes, a paginas
tantas de tal novella. Sem figurinos e romances, não haveria corpos
apresentaveis nem espiritos insinuantes.
Muita gente se espanta das gloriosas aventuras de alguns sujeitos
pyramidalmente tolos. Eu não. Tal ha que se vos afigura mazorro d'alma,
e, não obstante, ao lado de mulheres, dispara descargas de phrases
amorudas que é um pasmar. Asneira, dita em nome do coração, não ha uma
só que não seja laureada. Cada Petrarcha lorpa tem, a final, o seu
capitolio.
A mulher, por via de regra, é de seu natural tão boa, sensivel e
generosa, que chega a recompensar a pertinacia do homem que, primeiro, a
nauseou: o segredo d'este paradoxo está na influencia contagiosa da
tolice. A mulher que fez chorar o tolo, e viu rebentar lagrimas de uma
cabeça de granito, cuida que fez o milagre de Moysés na rocha de Horeb.
Alliciada pela serpente da vaidade, succumbe como Eva.
Que mudanças!
D'antes o caixeiro principiava sempre a carta de namoro por: _Meu amado
bem!_ Agora já diz: _Anjo!_ ou _Seraphim!_ Era d'antes a phrase
sacramental do exordio: _Vêr-te e amar-te foi obra de um momento._ Agora
não é raro encontrar d'estes arrojos: _Amar e morrer é meu destino!_
E, depois, o maleficio do romance não está sómente no plagiato
irrisorio; o peior é quando as imaginações frivolas ou compassivas se
entalham os lances da vida phantasiosa da novella, e crêem que a norma
geral do viver é essa.
Em quanto a mulher estuda sómente a phrase que applica, bem ou mal,
quando a enlouquece a vaidade de parecer o que não é, bem vai. Dá-se um
exemplo: A apaixonada de um amigo meu, ao recebêl-o, pela primeira vez,
em sua casa, no patamar da escada, antes de deixar-se beijar a mão,
estendeu o braço direito em magestosa attitude, deu á frente a regia
altivez de uma Phedra de aguas-furtadas, e disse em tom cavo e solemne:
_Juraes levar-me ás aras?_ O meu amigo, que balbuciava um prefacio de
longo estudo, soltou um frouxo de insolente riso, e desceu as escadas,
por não poder com o espectaculo da dama corrida do insulto. Eis-aqui uma
que os romances de Arlincourt salvaram; quantas, porém, perdidas por
guardarem as phrases ridiculas para o final?...
Grande mal é o identificar-se o espirito ás visualidades do romance.
Quando a leitora se ri das crendices da sua infancia e dos absurdos
principios que lhe apoucaram o imaginar e o voar do espirito, vem-lhe os
enfados, o escutar as mentiras do coração que se emancipa, o crêr que a
vida passada foi apenas um vegetar do vulgo, e que o viver da alma
assim, será como o do arbusto bravio que dá flôres sem aroma, e fructos
sem sabor.
Seja, outra vez, bemdita e louvada a ignorancia de nossas mães, e nossas
irmãs, e nossas esposas!
A vida caseira, esta deliciosa monotonia, que a poucos é já saborosa no
viver intimo, requer muita estupidez, muito somno a toda a hora, um
estomago exigente e forte, muita digestão soporosa de substancias
pesadas.
Esta bemaventurança ha-de restaural-a a ignorancia supina, não hão-de
ser as palavrosas theorias de Michelet ácerca do _amor_ e da _mulher_.
Comecem os paes de familias por circumvalarem suas casas de um cordão
sanitario contra a peste do romance, que não se abonar com a promettida
pudicicia d'este, e de outros com que o author, coração aberto a todas
as chimeras, e de entranhas lavadas, tem querido enxertar no tronco
carcomido da humanidade toda a casta de virtude.
Vou lembrar um alvitre, cuja adopção poderia ser momentosa na
regeneração dos costumes.
As reliquias das velhas virtudes portuguezas, se as ha, acham-se nos
velhos, que beberam ainda as escorralhas dos seios puros do seculo
passado. O Porto, de preferencia, graças á força refractaria da sua
organisação, encerra boas quatro duzias de archontes dignos da Grecia
antiga. Fôra facil eleger de entre estes--(abstenho-me de os nomear,
porque a modestia n'elles dóe de insoffrida como ulcera em lombo de
muar, e não é raro responderem ao elogio com o couce)--eleger d'entre
estes, digo, uma corporação censoria, encarregada de examinar os livros,
que giram no mercado, e referendar os que a juventude feminil podesse
lêr sem deterioramento da innocencia. D'esta arte, os anciãos não
restringiriam a sua egoista virtude á missão balda de condemnarem o
vicio da mocidade inexperiente. O exemplo dão-no optimo; a doutrina é a
que nós sabemos; mas não os devemos desquitar de se constituirem
entulhos contra a torrente do vicio, desviando-a de levar ao regaço das
futuras esposas e mães o romance peçonhoso.
Pelo que, d'aqui já sotoponho este livro á censura, e assim dou publico
e voluntario testemunho de quanto venero as cãs e as virtudes. Fadario
triste! A minha sina capricha, até hoje, em fazer-me malvisto d'esses
que eu mais quizera bemquistar, ainda á custa de um panegyrico á
corrupção senil dos raros que desgarram da trilha austera por onde a
virtude os vai guiando ao céo, no qual os proprios anjos se espantam das
colonias que vão d'aqui.
Porto--1858.


PRIMEIRA PARTE.

I.
«Em quanto ao fogo d'aquelle meu phantasiar de genio, fadado para
desgraças, encendrei as imagens das formosas apparições da terra, as
creações do meu espirito eram magnificas e brilhantes como as myriadas
do céo estrellado.
«Eu tinha horas de tão dôce scismar! O ideal de Fausto, a melancolia do
poeta d'Elvira, os coriscos de Byron, as satyras mordentes do
Diabo-Mundo, as facecias elegantes de Fielding, e as vaporosas
subtilesas de Senancourt! Ai! havia de todas essas feições do genio um
traço de cada uma, no meu espirito.
«Mas, n'aquelle dia, á entrada do meu caminho, n'aquella noite calmosa,
quando o sangue estuava nas arterias, quando as azas do coração, como as
da aguia ferida, baixavam á terra, aquella mulher...
«A mulher fatidica! O despertar do sonho de dezoito annos. A Beatriz, a
Laura, a Leonor, vingando-se na essencia d'uma, porque eu ousára crêr e
dizer que mentira Tasso, e mentira Petrarcha, e mentira Dante.
«Que mulher! Bella? Ai! não, não é essa a palavra. Bella como a filha do
anjo rebelde, a quem Deus vingativo dera o dom de crear a formosura que
mata, o olhar das chammas magneticas do crime, a fascinação do abysmo
onde o cahir é perder-se o homem para si, para a humanidade, e para
Deus.
«Eu era poeta.
«Com que enthusiasmo eu pedia o meu quinhão na herança das celebradas
agonias de tantas victimas de si, mansissimos cordeiros immolados no
calvario do talento!
«Este augusto titulo, mercê do céo, rubricado por sello divino no
coração do homem, tornou-se epitheto ridiculo ou injurioso.
«Gela-se-me o sangue, quando a ignorancia petulante faz um tregeito de
menospreço ao talento, e diz: _poeta!_
«Mal sabeis que brutal atrevimento, ha ahi no tom de escarneo com que as
bestas-feras insultam a intelligencia!
«Um bando de collarejas abrias, atirando-me em injurias a lama que lhes
extravasa da alma, seria para mim harmonioso cantico das graças,
comparado ao sorriso affrontoso do nescio que me diz: _poeta!_
«Ha ahi um rir do vulgacho, que dá em terra com a alma. Oh! o rir da
gentalha maltrapida é menos fulminante que o escarneo da plebe
engravatada, de todas as escorias sociaes a mais alvar e incorrigivel!»
Parou de escrever o meu amigo, quando eu entrava no seu gabinete de
trabalho.
Este nosso amigo... Consinta o leitor a apresentação, e de amigo logo,
porque eu sei que elle o é de conhecidos e desconhecidos, tirante os
estupidos maus.
Este nosso amigo é uma afflicção permanente, um como pelicano que se
está continuo espicaçando o peito para alimentar do sangue proprio seus
filhos insaciaveis, suas imaginações escandecidas.
Entrou na vida pela porta do inferno. Os olhos da alma abriu-lh'os uma
paixão das que alumiam a carreira do crime até á morte moral. A
consciencia de sua individualidade, desunida das mil formosas
existencias que se identificára, deu-lh'a o ser mais poetico da terra, a
soberana da creação--a mulher!
Aos dezoito annos expulso do paraiso pelo anjo a quem dobrára o joelho!
Até então, Jorge Coelho amou sua mãi e irmãos, flôres, estrellas, fontes
murmurosas, os pinhaes rumorejantes, o céo azul e as nuvens abertas em
coriscos, os repiques festivos do campanario da sua aldêa e o dobre de
finados, a cantilena da pastora e o gemer convulsivo da viuva e da
orphã.
Tudo lhe era n'este mundo poesia, desde a grinalda de flôres da esposada
até á baeta negra do esquife.
Não sou crendeiro em horoscopos de epiderme; todavia, tres rugas que lhe
avincavam a testa entre as bossas frontaes, impressionaram-me. Um poeta,
da alteza d'elle, diria que semelhantes vincos eram vestigios da vara
com que a mão de um genio funesto o ferira, no berço. Moço de dezoito
annos, que sobe ao empinado das serras, e circumvaga os olhos lagrimosos
pelos confins dos horisontes, e me diz:--«a minha alma não cabe aqui»
esse tal é de crêr que se fine na flôr dos annos, depois de haver
experimentado as dôres todas de longa vida.
«A minha alma não cabe aqui»--disse-me elle, sentado no tôpo de um
fragoedo, com a arma caçadeira encostada ao peito, e afagando com a mão
o focinho do galgo que a lambia.--«Nasci hontem, e já me cança a vida.
Sou um como hospede, que se sente ebrio antes de assentar-se á mesa do
festim. Meus irmãos estão contentes ao pé de minha mãi. De manhã são
abençoados e beijados; á noite vão restituir-lhe o beijo com a face
alumiada de santa alegria; recebem a segunda benção da virtuosa, e vão
dormir serenas horas, em quanto eu, fechado com os meus livros, tento
debalde entreter o espirito nos deleites da poesia, ou subjugal-o ás
paginas graves da philosophia que me disputa á fé, e da fé que me
arranca aos tedios indigestos da philosophia.»
--Nunca sahiste d'aqui?--interrompi, suspeitando da candura de Jorge
n'este tecido de palavras presumidas.
--Nunca sahi d'aqui. Fui litterariamente educado por um tio frade, que,
ha um anno, me entregou ao ensino de minha mãi, dizendo que a semente da
sciencia não podia germinar em terreno, onde faltava o amanho da boa
educação religiosa.
Minha mãi não me entendeu melhor que o frade. Fallou-me do temor de Deus
como principio da sabedoria humana. Eu tenho um Deus que não temo,
porque o amo e adoro com espontanea devoção, porque o vejo luminoso em
todas as minhas creações impalpaveis, porque o respiro e converto em
seiva da minha alma, que tanto mais se amplia quanto mais se engolfa na
immensidade divina.
Minha mãi é uma virtuosa senhora que só acha digna de Deus a linguagem
dos psalmos penitenciaes, e os actos contrictos de peccados imaginarios.
O circulo, que ella traça ás minhas aspirações, é estreitissimo. Para
ella, o futuro é a successão dos dias travados uns nos outros, iguaes e
serenos, como os viveram meus avós, e como ella pretende herdal-os a
seus filhos. O futuro para mim é o grandioso imprevisto, é a vida com os
seus desertos e oasis, é o oceano com as suas calmarias e borrascas, é a
peregrinação do israelita, agora perseguido nas aguas do mar vermelho,
logo alumiado pela columna de fogo.
Que sinto eu aqui?--proseguiu elle, pondo a mão na testa, cujos vincos
se afundavam--Será o pensamento confuso do girondino á vista da
guilhotina? Será o abutre gerado n'um sangue que, cedo ou tarde, tem de
trazer-me a congestão ao cerebro?... Não sei...
--Porque não será a alma que geme solitaria como a rôla, que, além, no
ramo secco d'aquelle azevinho, está chamando o companheiro que ha-de
vir?--disse eu em phrase lyrica para não destoar da linguagem levantada
de Jorge Coelho.
--Não creio--acudiu logo o meu amigo.--Eu tenho lido o amor dos livros,
o amor dos romances, o amor da historia, o amor da poesia. Não me
inquieto, nem me acho n'esse sentir. O que não entendia aos quatorze
annos, não o entendo hoje melhor. As impressões que então recebi,
recebo-as agora semelhantes. Os quadros de Dido e Eneas, de Helena e
Páris, são duas telas borrifadas de sangue. O amor não póde ser aquillo.
Paulo e Virginia, Julieta e Romeu são duas catastrophes que apertam a
alma entre a admiração e o dó. A felicidade não está n'esses amores tão
celebrados. Werther e Carlota, Chatterton e Kit-Bell, com o anjo
inexoravel da virtude entre si, ao despenharem-se um apoz outro no
abysmo da morte, para se salvarem do abysmo da perdição, são dous entes
desamparados do anjo bom que nem sequer já serve para galardoar heroicos
martyrios. Pois não irão mais longe os meus anhelos de gloria?
A região da felicidade estará delimitada pelas raias do amor, que o
romance, e a historia, e a epopea me pintam, glorificado por lagrimas e
sangue?
--Mas ha um amor--redargui--que não é o amor da historia, do romance, e
da epopea. É amor reflectido de mais alto amor, que as almas adivinham e
não entendem. É amor, preludio da bemaventurança, e prelibação da
ambrosia celestial.
--É o amor do romance, esse, creio eu...--interrompeu Jorge Coelho
sorrindo.
--Não é, meu amigo; e, se me contradizes n'essa idade, inculcas baixeza
de affectos, que eu não posso acreditar, por honra da especie humana. O
que te authorisa a desmentir um homem de trinta annos, que por sua honra
te jura que esse amor existe? Queres achar Vestigios dos trabalhos e
calamidades que me custou a descobril-o?
Repara nos meus cabellos brancos.
Colombo achou curtas as fadigas, que lhe deram o novo mundo, e a
perpetuidade do nome d'elle, mais valioso que o novo mundo.
Experimentaria Colombo as vertigens de prazer, que me endoudeciam,
quando encontrei a mulher mais perfeita que os primores da minha
phantasia?
Não te allucines, porém--prosegui, vendo nos olhos de Jorge a lucidez do
enthusiasmo, accusando o proposito de se abrasar no primeiro amor, que
lhe deparasse o acaso.--Não te allucines em presença de qualquer mulher
com sorrisos de Virginia, que tanto servem de elogio ao pudor como de
epitaphio da innocencia. Não respires com sofreguidão o aroma das
primeiras flôres, que encontrares. Lirios e mandragoras são bellas
flôres, que matam, se as não lançares de ti, aspirados os primeiros
effluvios. Ha mulheres como as flôres venenosas: se te detiveres com
ellas mais tempo que o necessario para lisongeares a sensação, e
regalares a phantasia, sentir-te-has tomado de um marasmo de espirito,
em que serão delidas as tuas mais nobres faculdades, e, a mais válida de
todas, o mais nobre apoio da tua dignidade de homem--a liberdade. Esta
doença, no começo da vida, deixa achaque para sempre; é como a bala
recebida em pleno peito e lá encerrada: o ferido vive; mas, a revezes, a
dôr lhe está lembrando que a bala pesa sobre o derradeiro fio da vida.
Mulheres, que matem corações generosos, ha muitas para cada homem.
Mulher, que salve, ha uma só.
A minha vida é uma elegia continuada desde o berço até esta ante-camara
do tribunal da morte, onde estou esperando que me chamem: não tem
romance: são desastres concatenados, sem intermedios d'esse
contentamento vulgar, que os fortunosos denominam amargura. Todavia, se
tivesses mais doze annos, Jorge, seria eu o teu conductor pelos infernos
d'este mundo, que Dante não cantou de preferencia aos do outro, porque a
civilisação da idade media não tinha em si os supplicios d'esta
sociedade em que vaes entrar.
E que lucrarias tu, ouvindo a minha historia? Vêr-me-ias longo tempo
enredado na torpeza, na irrisão, e na brutalidade dos differentes
algozes, que me suppliciaram a alma. Se quizesses que te iniciassem no
segredo de sondar a perversidade dos corações, não poderia eu, porque a
aspide, que te mede o salto do seio da mulher, só vibra a farpa mortal
depois que varas em terra embriagado de aspirar o aroma do ramilhete,
que a esconde.
A sombra da mancenilha é grata como a de todas as arvores; suave é a
viração que lhe estremece a coma; o sol nem sequer mosqueia o chão em
que refazes os membros lassos; mas agonia mortal será o teu despertar se
a formosa folhagem distillou sobre o teu corpo um sumo corrosivo que te
faz morrer em acerba palpitação de todas as fibras. Conheces tu a
mancenilha n'este deserto, que vaes palmilhar, encalmado das ardencias
do coração? Saberás tu, aos dezoito annos, distinguir a mulher, que
mata, da mulher, que salva? Os trinta abysmos, d'onde me eu levantei,
com as faces a escorrerem sangue, estarão cobertos de flôres para ti? Eu
creio que o poeta é um condemnado, a sua patria primitiva um outro
mundo, este, em que nos encontramos, amigo, o purgatorio. Que montam os
suffragios do padecente experimentado para te remir? Nada. Cumpre a
sentença, porque é intransitivo o calix...
..........................................................................
Decorrido um anno, encontrei Jorge Coelho, não vos direi aonde, porque
ha repugnancia em deslocar uma scena, quando a verdade não póde, por
motivos sagrados, ser dita á curiosidade malevola.
Encontrei-o escrevendo os periodos iniciaes d'este capitulo. Outros de
igual azedume, assignados por elle, me haviam denunciado a residencia
d'esse moço, na terra, em que eu, de passagem, assentára a minha barraca
de bohemio.
Reconhecendo-me, ergueu-se, abraçou-me com expansiva vehemencia, e
proferiu aquellas ultimas palavras do estirado discurso do anno
anterior:
_Cumpre a sentença porque é intransitivo o calix._
--E muito amargo? perguntei eu.
--Amargo, e nauseabundo. Fel e lama. O insulto e o aviltamento. Adormeci
debaixo da mancenilha, meu amigo; e acordei nos paroxismos de que não
posso morrer. Achei uma das mulheres, que perdem. A sociedade
applaudiu-a, quando eu cuidava que a indignação do mundo me vingaria.
Ajuntei á minha dôr o que devia ser pejo, deshonra, e remorso n'ella.
Quiz desafiar a piedade do mundo com o paciente silencio da minha
desgraça. O mundo viu-me passar de olhos baixos para esconder as
lagrimas, e fez da palavra «poeta» um synonymo chocarreiro de insensato.

II.
Contou-me Jorge Coelho a sua historia. Foi assim:
Sahira, pela primeira vez, da sua aldêa para cursar a universidade. A
mãi, abençoando-o, ungira-o de lagrimas, e lançara-lhe ao pescoço um
crucifixo.
O tio egresso, vencido na resistencia que fizera á sahida de Jorge,
mostrara-se a final condescendente, e introduzira nas malas do sobrinho
alguns livros de moral religiosa, que ambos sabiam de cór, um á força de
repetil-os, outro de ouvil-os em discursos hebdomadarios, que
principiavam sempre com a epigraphe:
_Initium sapientia est timor Domini_--O temor de Deus é a base do saber
humano.
Jorge deu de si boa conta no primeiro, anno, cursando as aulas
preparatorias para a faculdade de jurisprudencia. Contou elle que,
durante esses oito mezes, apenas sentira o coração na dôr da saudade de
sua mãi, de seus irmãos, do tio padre, das suas montanhas, e das sombras
dos seus arvoredos. Consolava-o o prazer de uma carta de casa, todas as
semanas, em que a expressão maternal pintava o anceio com que lá se
contavam os dias, na esperança d'aquelle em que seus irmãos iriam buscar
ao caminho o mano doutor, como elles já o denominavam.
O anjo da poesia dos dezenove annos povoava-lhe então a phantasia de
ridentissimas imagens. Mezes antes, abafava no extenso horisonte, que
descobria do topo das serras onde trepava para dar á sua imaginação
sedenta a vaga imagem da immensidade. Agora, parecia-lhe que á
sofreguidão da alma lhe bastaria a soledade, o silencio, a tristeza dôce
dos saudosos ermos da aldêa, que conheciam o seu poeta desde os onze
annos.
Anteviu os tres mezes de ferias como quadra de contentamentos novos.
Tudo eram promessas de infantil ledice aos seus arrobos de saudade.
Imaginava-se sosinho ao pé da arvore conhecida, em cujo tronco uma vez
entalhára a ante-data de seis annos, com uma interrogação ao lado, e
como se perguntasse o segredo do seu destino á sibylla dos seus queridos
bosques.
O anno assignalado era esse em que estava. A resposta aos vagos
presentimentos dos quinze annos ia dal-a agora, mais anhelante e
auspiciosa de venturas certas do que elle a previra ao deixar o encargo
de responder a mal-agourados futuros.
«Quão longe eu estava da verdadeira felicidade, minha querida
mãi!--escrevia elle na primavera de 1855, quando as margens do Mondego
reverdecidas lhe festejavam as saudades e as esperanças maviosas. A
imaginação enganou-me. Cuidava eu que o coração de minha mãi faria o
milagre de communicar uma faisca do seu amor ao seio de cada pessoa que
eu encontrasse fóra da nossa aldêa! Pensei que a imaginada formosura da
natureza começava áquem dos horisontes, que eu descobria do alto das
montanhas. As impressões novas antecipavam-se-me cheias de espiritual
deleite, e abundantes da vida que me lá faltava ao pé de pessoas vistas
a todo o instante, com o sorrir da amisade, e ao pé das arvores, vistas
em cada primavera, com as mesmas grinaldas, e em cada inverno com a
mesma nudez funerea, que me confrangia o espirito.
«Castigou-me o desengano, quando dobrei a ultima collina, d'onde via o
cume da serra em que tantas vezes me assentára, ideando ao longe o
caminho da minha imprevista felicidade. Era tudo estranho para o meu
coração. O vento do outono despia as arvores da sua folhagem; mas a
poesia melancolica e contemplativa d'essa transfiguração, qual a eu
sentia na minha aldêa, convertera-se agora em profundo aborrecer-me, em
cerração d'espirito, em arrependimento doloroso.
«A duas leguas de nossa casa, minha boa mãi, quiz retroceder: reteve-me
a vergonha. Depois de ter passado uma noite--primeira de minha
vida--fóra do meu quarto, n'uma estalagem, ergui-me com proposito de
vencer o pejo, e ir lançar-me chorando em seus braços. Conteve-me ainda
o receio do _ridiculo_, palavra e sentimento terrivel, que, ha dez
mezes, me foi entalhado no coração por um homem, onze annos mais velho
que eu, propheta do meu destino, tão verdadeiro como terrivel propheta,
que me vaticinou a sensibilidade immensa do poeta, e as lagrimas
inexhauriveis do incessante desengano.
«Já verti as primeiras; essas, porém, são talvez uma puerilidade que o
mundo escarneceria, por que, bem averiguada a causa da minha tristeza de
seis mezes, encontra-se um bom coração de filho e irmão, a nubelosa
saudade dos dezenove annos, e o pesar de haver com tanto afan rebatido o
parecer de meu tio, que me quiz demover da tenção de estudar em Coimbra.
«Eu prometti-lhe, minha mãi querida, a noticia exacta das minhas
impressões.--Descreve-me ao menos a bellesa dos abysmos como ella se
afigurar á tua imaginação--foram as suas palavras. Não posso
descrever-lhe nem, se quer, as formosas miragens do meu deserto. Se
deponho com fastio os livros, que só abro por obrigação, interrogo de
novo o meu espirito, tento sondar a indole mysteriosa da minha vontade
oscillante, e encontro sempre enigma. Quer-me, ás vezes, parecer que
estou em vesperas de uma grande transfiguração no meu modo de ser e
pensar; escuto o surdo rumor das idéas, que ameaçam rebellar-se contra a
moderada esperança em que minha alma se acalenta; sinto-me impellido á
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