Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 14

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da cidade, sempre eu o julguei, por que era muito gentil e linda para
ser camponeza; mas que eu partilhasse tal ventura, nunca o imaginei.
Rosa e sua avó foram alojadas, em casa da viscondessa, em dous quartos,
muito perto d'aquelle em que habitava D. Julia; que assim o tinha
exigido para ter a sua protegida junto d'ella, o que se executou com
muita censura e reparo de D. Bertha.
--Era só o que faltava--dizia um dia, a orgulhosa D. Bertha, a D.
Francisca de Meirelles, sua amiga--trazer para nossa casa estas duas
mendigas. Podes tu, minha querida, explicar-me como é que Julia pôde
affeiçoar-se tanto a estas duas creaturas?
--Tua irmã, Bertha, tem o coração muito sensivel; basta que lhe façam
uma choradeira, ou que lhe contem uma historia triste para acreditar em
tudo, e logo se affeiçoar a qualquer, e lhe dedicar carinho é protecção.
--Mas na verdade, esta sociedade não é tão agradavel e
attrahente?--disse D. Bertha com um sorriso ironico.--Se a cega e a neta
contam commigo para lhes fazer companhia, affirmo-te que lhes hei-de
deixar muito tempo para se aborrecerem.
Conforme com estas _bellas_ resoluções D. Bertha evitava o mais possivel
dirigir a palavra a Rosa e sua avó, e, quando por necessidade o fazia,
era com um modo tão sobranceiro, imperial e chocarreiro, que as duas
infelizes ficavam confusas e envergonhadas.
D. Julia tentou por diversas vezes fazer nascer no coração de D. Bertha
sentimentos mais nobres e mais christãos, mas infructuosamente, por que,
procurar commover e sensibilisar o coração empedernido e orgulhoso de D.
Bertha, era um trabalho improbo e esteril.
D. Julia, feliz por ter em sua companhia a querida de seu coração, a sua
discipula, recuperou algum vigor, e ainda pôde recomeçar as lições. A
fadiga, que d'este trabalho lhe podia provir, era attenuada pela
attenção e estudo, que Rosa prestava ás prelecções.
D. Julia ainda quiz ensinar desenho a Rosa.
--Queres dar a Rosa--disse uma occasião a viscondessa a sua filha--uma
educação e instrucção superiores á sua posição na sociedade, e não
receias que isso para o futuro lhe cause embaraços e dissabores?
--Como resposta a essa pergunta tenha, minha querida mãi, a bondade de
ouvir o que a minha protegida me dizia outro dia:
«O meu maior desejo, minha boa amiga e mestra, é alcançar bastante
instrucção e saber, para um dia ser professora. Como me julgaria feliz
podendo dizer ás minhas discipulas: era uma aldeã muito ignorante e
rustica; uma boa menina, a snr.ª D. Julia, filha da snr.ª viscondessa do
Candal, teve a bondade de me tomar sob a sua protecção e de me ensinar.
É a ella, meninas, a quem devo o que sei e o que vos ensino. Se me
amaes, deveis igualmente amar a snr.ª D. Julia, minha bemfeitora; e
então ellas vos renderão graças, assim como eu vol-as rendo agora.»
--Não te torno a dizer mais nada--disse a viscondessa--Continua, minha
filha, pois Rosa é digna dos teus cuidados e desvelos, e para que elles
se tornem mais proficuos ajudar-te-hei a leccional-a.
A viscondessa cumpriu a sua promessa e, alternadamente com D. Julia,
dava as lições a Rosa.
Estes estudos não fizeram pôr de parte a preparação de Rosa para receber
dignamente a primeira communhão. Foi com uma piedade exemplar que ella
cumpriu este solemne acto, e o futuro provou não ter sido esteril para o
seu coração.
D. Julia passou o verão entre as alternativas de melhoras e recahidas
nos seus padecimentos, que tinham uma successão quasi regular e
periodica. Umas vezes nem levantar-se da cama, ou d'uma cadeira de
braços, para onde a levavam, lhe era possivel; outras vezes chegava a
poder dar uns pequenos passeios pelos campos das visinhanças. Aos
proprios medicos custava a comprehender como ella vivia.
D. Julia, porém, não se illudia sobre o seu estado de saude. Quando sua
mãi a entretinha fazendo projectos, ou, como ordinariamente se diz,
_castellos no ar_, para o futuro, ella sorria-se e respondia: que ainda
faltava muito tempo para a sua realisação, e que não chegava a vêl-os
confirmar.
A sós com Rosa D. Julia fallava livremente sobre a proxima terminação da
sua existencia, e então ella supplicava-lhe com instancia, que
repellisse da sua imaginação tão sinistras idéas.
--Não posso crêr,--dizia ella--que Deus nosso Senhor me queira tirar
d'este mundo todos os meus protectores: não sei que crime tenha
commettido, que mereça semelhante castigo.
--Resta-te ainda minha mãi, minha Rosinha--respondia D. Julia--que estou
certa nunca te ha-de desamparar.
Rosa terminava esta penosa conversação abraçando D. Julia e procurando
distrahil-a por todos os meios possiveis.
O que a dedicação mais sincera e real póde suggerir de mais bello, tudo
Rosa executava, recebendo, por galardão, ou recompensa a mais grata, um
terno sorriso de D. Julia, ou um agradecimento da viscondessa, e para os
merecer faria o impossivel se necessario fosse.

XII.
D. Julia apparentava exteriormente um socego d'espirito, que
interiormente não sentia, por que receiava muito a chegada do outono,
época, que os medicos tinham marcado, a mais longa a que poderia chegar.
A anciedade, pois, que todos soffriam pela aproximação d'esse termo
fatal, era geral.
Chegou o outono. Por um d'estes phenomenos, que a tisica muitas vezes
apresenta, a molestia não offereceu n'esta estação alteração alguma.
A esperança, de que D. Julia ainda poderia vencer a fatal doença,
começou a penetrar em todos os corações, e até no da propria enferma.
Rosa chegou a dizer á viscondessa, que tinha uma convicção firme de que
D. Julia não morreria, por que Deus Nosso Senhor era bom e não a havia
de privar da sua protectora.
A viscondessa, que até ahi estava convencidissima, de que sua filha não
passaria além do termo marcado pelos medicos, vendo-o passar sem que a
sua fatal predicção se realisasse, começou a crêr que se tinham
enganado, e que D. Julia ainda lograria saude.
Houve portanto grande alegria em casa da viscondessa. Todos os criados,
que não amavam só, mas que veneravam D. Julia, por que era sempre boa e
affectuosa para elles, crendo que a sua joven ama, não tendo morrido na
época marcada, estava salva, pediram unanimemente para a felicitarem;
tal foi a alegria e contentamento, de que se apoderaram com esta
esperança e crença.
Estas demonstrações respeitosas de sympathia e amisade, que os criados
lhe deram, penhoraram e commoveram muito D. Julia. A todos agradeceu com
reconhecimento esta nova prova d'affecto.
Porém, de todas as felicitações, a da sua discipula e de sua avó, foi a
que mais a impressionou.
Quando Rosa, conduzindo sua cega avó, se ajoelhou com ella junto da cama
de D. Julia, e lhe exprimiu, com candura e ingenuidade, a alegria e
prazer, que sentiam pelas suas melhoras, e os votos, que faziam a Deus,
para que o seu restabelecimento fosse real e breve, não pôde soffrear a
sua commoção, e as lagrimas correram-lhe em fio pelas faces, agradecendo
a Deus o prazer que tinha gosado com a felicitação que acabava de lhe
ser dirigida.
Passou-se o inverno, sem que o estado de saude de D. Julia soffresse
alteração sensivel.
Com a chegada da primavera D. Julia recomeçou os seus passeios pelos
campos e pinheiraes visinhos, na companhia da sua inseparavel Rosa, a
que algumas vezes se aggregava tambem a viscondessa.
Na quaresma seguinte Rosa recebeu pela segunda vez o sacramento da
communhão, e pouco tempo depois, D. Julia, querendo que a sua protegida
progredisse nos seus estudos, pediu a sua mãi que lhe escolhesse uma
professora.
A viscondessa annuiu immediatamente ao pedido de sua filha.
Pouco tempo depois entrou para casa da viscondessa, sob recommendação e
abono do abbade de S. Cosme, uma joven senhora, a quem ha pouco acabava
de ser concedido o titulo de capacidade.
Rosa esforçava-se por todos os meios possiveis para corresponder
dignamente aos beneficios, que, D. Julia e sua mãi, lhe estavam
constantemente prodigalisando; procurando sempre não dar o mais leve
desgosto ás suas protectoras; comtudo, é preciso dizer que Rosa não era
perfeita. A sua vivacidade natural levava-a muitas vezes a
impacientar-se, e o seu ainda pouco peso ou juizo a commetter algumas
faltas nos seus deveres; mas reconhecia com tanta facilidade os seus
erros, e mostrava-se tão arrependida e desejosa de os emendar, com tanto
afinco e perseverança, que era impossivel tratal-a com rigor por muito
tempo.
Rosa dava as suas lições, umas vezes no quarto de D. Julia, quando o seu
estado de saude o permittia; outras vezes no da viscondessa, que sentia
um verdadeiro e sincero prazer em observar os progressos da predilecta e
querida de sua filha.
D. Maria d'Almeida, assim se chamava a professora, correspondeu
dignamente á confiança, que a viscondessa n'ella tinha depositado,
confiando-lhe a instrucção da sua pupilla.
O progresso e desenvolvimento, que Rosa sob a sua direcção experimentou,
foi grande, dando já signaes de que em breve a discipula se tornaria uma
excellente professora.
Rosa, assim que as suas obrigações e deveres estavam terminados,
dedicava-se exclusivamente a D. Julia, e sua avó. Esta, desde que viera
viver para casa da viscondessa do Candal, andava alegre e folgazã, e
ainda julgava estar sonhando, tal era a placidez e amenidade do seu
viver.
Tinha já decorrido parte do anno; o outono estava quasi findo, e o
estado de saude de D. Julia não denunciava signal algum de peoramento; a
molestia, porém, que até então estivera encubada, reappareceu com grande
violencia, e em oito dias as crises succederam-se tão proximas umas das
outras, que pozeram a enferma em estado de se não conceber esperança
alguma de a salvar.
A illusão, que até ahi existira em todos, desappareceu completamente: já
não esperavam senão o golpe final... Rosa, nem um só momento desamparava
a sua querida protectora, e juntamente com a viscondessa, cuidava e
tratava de D. Julia; não consentiam que mais ninguem lhe prestasse o
mais insignificante serviço, chegando até a ter zelos uma da outra.
Tanta dedicação e amisade teriam feito com que Deus revogasse a fatal
sentença dada a D. Julia, se o Creador, na sua alta sabedoria, não
tivesse resolvido chamar á sua presença, a receber o premio das suas
virtudes, aquelle anjo de bondade e resignação.
D. Julia, já moribunda e quasi expirante, pediu a sua mãi, como ultima
graça que lhe fazia, que não abandonasse Rosinha, a sua querida
discipula e amiga; que se não affligisse, nem desanimasse, porque em
Rosa lhe deixava, estava certa d'isso, uma filha obediente e dedicada,
que havia de substituir no seu coração o lugar que ella deixava vasio, e
a Rosa recommendou-lhe que amasse sempre muito sua mãi, por que n'ella
encontraria um sincero apoio, e uma terna e carinhosa amiga.
Apenas D. Julia proferiu estas palavras, a hora fatal tinha soado;
abraçou sua mãi, e Rosinha e, pronunciando os nomes de Rosa... e minha
mãi... expirou, voando a sua candida alma á presença de Deus a receber a
glorificação de suas virtudes.
Assim terminou D. Julia a sua existencia, que, se tinha sido breve para
o mundo, fôra longa pelas boas obras, que sempre praticára, e pela
pureza em que sempre vivera.

XIII.
Já decorreram seis annos depois das scenas descriptas no capitulo
antecedente.
Não deixaremos, porém, a nossa muito conhecida casa, perto de S. Cosme,
pertencente á viscondessa do Candal, por que é no caminho, que a ella
conduz, que tem lugar o que passamos a contar.
Uma senhora ainda joven, e outra já de mais idade caminham em silencio,
e commovidas.
A mais idosa é a nossa muito conhecida viscondessa do Candal.
O pesar da morte da sua querida filha Julia desfigurou-a muito. O rosto
tem-no emmagrecido, e sulcado de profundas rugas, e os cabellos
embranquecidos antes do tempo.
A sua companheira é uma joven que figura ter dezesete para dezoito
annos, d'apparencia ingenua e modesta; é a nossa Rosa, a pequena dos
ramos e cestinhos.
A viscondessa caminha apoiada no braço da sua companheira. Depois
d'alguma hesitação Rosa decidiu-se a dirigir-lhe a palavra.
--Receio, minha querida senhora--disse Rosa respeitosamente--que esta
visita vos cause uma grande commoção e vos prejudique a saude. Por que a
não deixaes para quando estiverdes mais restabelecida?
--Não, Rosa, não. Ha oito dias, que não vim visitar a campa onde jaz a
minha Julia, e oito dias já é um espaço muito longo. Sinto-me hoje
melhor, não despresarei portanto esta occasião que se me offerece, por
que, quem sabe se recahirei?
--Não penseis em tal, senhora viscondessa. Creio que ainda haveis de ter
muitos annos de vida; tenho fé, que Deus vos não roubará á minha ternura
e reconhecimento.
--Se as orações d'um anjo, Rosa, podessem deter a morte, conheço que as
tuas me preservariam d'ella. Mas, ai de mim, a morte da minha sempre
lembrada Julia despedaçou-me o coração. Não estou eu só n'este mundo?
Bertha não me abandonou logo que casou? Que faço então aqui n'este ermo,
a que chamam mundo?
--Ah! senhora, esqueceis então a pobre Rosa, que vos estima e ama, e que
vos é tão dedicada como se fôra vossa filha?
Estas palavras, pronunciadas com um accento de submissão, penetraram até
o imo do coração da viscondessa: sensibilisaram-na tanto, que abrindo os
braços recebeu n'elles Rosa banhada em lagrimas.
--Sou uma ingrata, Rosa, bem o reconheço,--disse a viscondessa cingindo
Rosa ao coração. Recebo com indifferentismo os teus cuidados e carinhos,
e a tua inexcedivel dedicação. Perdôa-me, minha filha, minha querida
filha. Conheceste Julia, e melhor que outra qualquer sabes quanto era
merecedora da minha ternura e amisade, e quanto é digna de ser
pranteada. Mas Julia, antes de morrer, deixou-te na minha companhia,
para me servires de consolação e allivio na minha dôr. Abraça-me Rosa,
minha filha querida.
Rosa, por unica resposta, abraçou com ternura a sua bemfeitora.
As lagrimas, que lhe cobriam as faces, diziam bem alto e eloquentemente,
o que a commoção lhe embargava nos labios.
Ainda caminharam por mais algum tempo e chegaram ao cemiterio.
A viscondessa do Candal, como tributo á memoria de sua filha,
mandára-lhe levantar um lindo e rico mausoléo de marmore branco, no qual
ella tambem queria ser encerrada á sua morte. Em volta das grades
viam-se alegretes em que haviam violetas, geranios e rosas amarellas,
que Rosa cultivava e cuidava com muito esmero, como recordação das
flôres com que enfeitára o cestinho, que fôra causa da intima união, que
se estabelecera entre ella e D. Julia.
A viscondessa e sua filha adoptiva oraram por muito tempo sobre a campa
d'aquella, que tanto tinham estremecido em vida, e que tanto choravam na
morte.
Rosa, depois de ter examinado e regado todos os alegretes e pés de
flôres, um por um, para que os insectos, ou a seccura os não
estiolassem, dirigiu-se á viscondessa.
--Deixo-vos, senhora--lhe disse ella--por um instante. Vou rezar junto
da campa de minha avó.
--Tambem quero acompanhar-te--replicou a viscondessa.
Não muito distante do mausoléo de D. Julia se elevava uma cruz simples.
Era ahi que jazia, havia dous annos, a pobre cega. Terminára os seus
dias socegadamente, bemdizendo a ternura de sua neta, e a caridade
affectuosa da sua bemfeitora.
Devido ainda ao zelo de Rosa a campa da pobre cega, adornada com
diversas flôres, semelhava um jardimsinho.
Rosa ajoelhou-se, e depois de ter rezado com fervor e devoção por algum
tempo, levantou-se, e dando o braço á viscondessa retiraram-se, fazendo
ainda uma ultima visita ao tumulo de D. Julia.
Quando se recolheram, Rosa encontrou uma carta da sua antiga professora
D. Maria d'Almeida, na qual lhe participava, que d'ahi por dous mezes se
havia de proceder aos exames d'habilitação para os titulos de
capacidade, por isso, se ainda estava decidida a propôr-se a exame, que
enviasse os documentos necessarios ao commissario dos estudos.
Rosa apresentou esta carta á viscondessa.
--Sempre estás decidida a propôr-te a exame?--lhe disse ella.
--Sim, minha senhora. É o meu mais fervente e afanoso desejo. Quero,
senhora, que a instrucção e saber, que vos devo, e a vossa querida e
chorada filha, aproveite ás crianças, que a pobresa retem na ignorancia
e na rudeza. Se eu poder ser util, ainda que seja a uma só d'entre
ellas, como, senhora, me reputarei feliz e bem paga do meu trabalho!
--Tinha a esperança de te conservar sempre na minha companhia---replicou
a viscondessa.--Occuparias para sempre o lugar do anjo, que Deus me
levou, da minha Julia. Não queres, Rosa, ser minha filha?
--Ah! senhora, quero sim, ser vossa filha; isso ainda vai além da minha
ambição. Mas recordo-me que era uma pobre rustica, e que só aos vossos
beneficios devo a minha instrucção, e a cultura da minha intelligencia.
Quero, senhora, dar de barato, e ter a vangloria de dizer que os vossos
cuidados não foram perdidos, mas com isso não me devo tornar vaidosa,
por que faltaria assim aos meus deveres. Serei sempre para vós uma filha
adoptiva, carinhosa, humilde e terna, e que achareis sempre ao vosso
lado, esforçando-se por pagar a sua divida de gratidão e reconhecimento:
Recebendo e aceitando a vossa affeição e amisade, para mim preciosa e
apreciavel, não me devo esquecer da classe onde nasci. O meu lugar é
mais humilde; mas como elle parece bello e grandioso ao meu coração,
quando me recordo do bem, que posso fazer a essas infelizes crianças,
que vivem na bruteza, ensinando-lhe o que sei e que é obra vossa! Ha
muito que concebi este meu projecto, e que o declarei a vossa filha: «Ás
pobres rapariguinhas das aldéas--lhe disse eu--farei o mesmo que a snr.ª
D. Julia me fez. Ensinar-lhes-hei a serem felizes com a sorte, que Deus
lhes destinou n'este mundo; cultivarei o seu coração e o seu espirito, e
por unica recompensa não quererei mais do que ouvil-as bem dizer os
nomes da exc.ma viscondessa do Candal e de sua filha.»
--Rosa, minha querida Rosa--disse a viscondessa abraçando-a, e com os
olhos rasos de lagrimas,--que Deus te pague a felicidade, e prazer, que
me fazes nascer no coração com as tuas palavras.
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Dous mezes depois, a nossa, hoje, D. Rosa de Jesus e Sousa comparecia
perante o jury nomeado para proceder ao exame das concorrentes ao
professorado. O titulo de capacidade, em grau superior, foi-lhe
concedido por unanimidade e com distincção.

XIV.
Dous annos se passaram já, depois que foi conferido a D. Rosa de Jesus e
Sousa o seu titulo de capacidade.
Estamos em fins d'Outubro, n'uma casa caiada de branco, que se encontra
ao entrar na freguezia de S. Cosme, do lado de S. Pedro da Cova. Na
frente ha um pateo largo e espaçoso. Sobre o muro pendem os ramos
verdejantes de dous chorões. Nas trazeiras da casa ha um pequeno jardim,
muito bem tratado, com as ruas areadas com saibro, e que termina por um
caramanchãosinho, que, pelo bem cerrado que está, indica que no verão
deve alli haver uma frescura agradavel, auxiliada pela corrente d'uma
levada, que corre proximo. Na sala que fica ao nivel do jardim ouve-se
um murmurio confuso. Entremos, para examinar a que elle é devido. Que
vemos? Grupos de lavradeirinhas, ao todo umas trinta, pouco mais ou
menos, vestidas de branco, e tendo todas na mão um raminho de flôres do
campo, com um laço de fita. Ao fundo da sala vê-se uma rica imagem de
Nossa Senhora da Conceição, collocada sobre um altar, bem adornado com
castiçaes de prata, velas de cera e jarras com flôres.
N'um dos lados da sala ha quatro cadeiras de braços; n'uma d'ellas está
sentada a viscondessa do Candal, a quem D. Rosa, de pé, junto d'ella,
está dizendo os nomes das suas discipulas.
A viscondessa passeia a vista por todas ellas, e conhece-se-lhe na
expressão do rosto, que aquelle espectaculo a regosija e encanta.
O modo, porque todas dirigem as vistas para a porta e pelas janellas,
indica que se espera alguem.
O abbade da freguezia e o administrador do concelho entram n'este
momento pelo portão.
Um sorriso alegre se vê deslisar em todos os rostos. Eram as pessoas por
quem se esperava.
A viscondessa e a sua pupilla vieram recebel-os á porta, e
conduziram-nos ás cadeiras que lhe estavam destinadas.
As crianças tomaram os seus lugares, e restabelecido o silencio, o
abbade da freguezia tomou a palavra, e fez o seguinte discurso:
«Sinto, minhas meninas, um prazer immenso por vos vêr aqui reunidas para
a celebração do primeiro anniversario da installação d'esta escóla,
devida á muita philantropia e caridade christã da exc.ma viscondessa do
Candal, e á dedicação exemplar da vossa digna professora a snr.ª D. Rosa
de Jesus e Sousa. Julgo desnecessario o rememorar-vos, que um tal
sacrificio merece um eterno reconhecimento, por que entendo que entre
vós, minhas filhas, não ha ingratas. Vós respeitaes e veneraes a exc.ma
viscondessa, e amaes com um verdadeiro amor a vossa professora, não é
assim? É, assim o creio. Mas ha ainda uma pessoa, para quem deveis ter
uma saudosa recordação, e que tambem deveis encommendar a Deus nas
vossas orações. Prestai-me attenção, que vos vou dizer quem é essa
pessoa, cuja recordação vos deve ser grata. Ha pouco mais ou menos doze
annos, que uma pobre lavradeirinha ganhava a sua vida fazendo cestinhos
de juncos, e ramos de flôres silvestres. Uma joven e nobre senhora, que
reconheceu n'ella amabilidade, modestia e humildade, sympathisou com
ella, e encarregou-se de a educar e instruir. Como a sua bemfeitora a
achou sempre digna dos seus beneficios, encarregou-se tambem da sua
posição futura. Essa joven senhora, de que vos fallo, é a exc.ma snr.ª
D. Julia, filha da exc.ma viscondessa do Candal, e essa lavradeirinha, a
quem ella dispensou os seus carinhos e a sua affeição, é a vossa douta
professora. Ha já alguns annos, que a alma da exc.ma snr.ª D. Julia voou
á presença do Deus eterno a receber o premio das suas virtudes e das
boas obras, que praticára n'este mundo; uma das quaes ainda existe, que
foi o deixar-vos a vossa professora e amiga.
«Mostrai-vos, meninas, sempre merecedoras dos beneficios, que vos fazem,
porque isso é o unico desejo das vossas bemfeitoras e a unica
recompensa, que recebem da sua dedicação, que estou muito convencido
sempre fareis por merecer.
«Não quero, porém, retardar por mais tempo o momento de receberem o
premio e galardão, que merecem pela sua applicação ao estudo e amor ao
trabalho, áquellas que d'isso se tornaram dignas; e ás que d'esta vez
não são galardoadas resta-lhes a esperança e o meio de, pela imitação
das suas condiscipulas, se tornarem dignas de o merecerem para o anno
futuro.
«Vamos por tanto proceder á distribuição dos premios.»
Um sussurro d'alegria acolheu as ultimas palavras do digno sacerdote.
A conferencia dos premios foi esplendida.
Os premios consistiam em livros religiosos e d'instrucção, que tinham
sido cuidadosamente escolhidos pela viscondessa, e sua filha adoptiva,
todos ricamente encadernados. Era interessante e bello vêr a alegria,
que se deslisava no rosto das que tinham sido contempladas na
distribuição.
Terminada a conferencia dos premios teve lugar debaixo do caramanchão um
bem servido _lunch_.
--Como é magnifico o espectaculo, que apresentam estas crianças, alegres
e satisfeitas--disse a viscondessa--Recordar-me-hei sempre d'este dia,
como o mais grato e feliz da minha vida. Tu, minha querida Rosa,
attrahes as bençãos do céo sobre nós, e sobre a memoria da minha
querida, e chorada Julia.
--Ah! senhora,--disse Rosa com os olhos rasos de lagrimas--que a vossa
prophecia se realise, e a minha mais cara aspiração ficará satisfeita.
..........................................................................
..........................................................................
O desejo de Rosa realisou-se. A escóla está cada vez mais florescente, e
a freguezia ufana-se pela possuir. Todos os moradores do lugar ainda
hoje bemdizem os nomes da viscondessa do Candal, de sua filha e de D.
Rosa, modêlo raro d'um coração verdadeiramente grato e reconhecido aos
beneficios que recebera.
FIM.

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