Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento - 03

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--Não sabe o meu nome? isso não importa disse a dama.--Eu me apresento.
O meu nome é Silvina. Tenho a gloria de ser tambem aldeã. Nenhum dos
tres póde rir dos outros. Então o snr. Jorge não dança?
--Não, minha senhora, eu não sei dançar--disse Jorge com infantil
ingenuidade.
--Não sabe, porque não ama a dança, não é assim?
--Em minha casa ninguem aprendeu a dançar. Minha mãi foi educada n'um
convento, e de lá sahiu para ser esposa, e governar sua casa n'uma terra
onde nunca se deram bailes. Eu sahi da minha aldéa ha menos d'um anno, e
tenho consumido todo o meu tempo no estudo...
Estava Silvina gosando sem motejal-a a simplicidade de Jorge, ao passo
que Pires lamentava as pueris historias do seu acanhado amigo. Como
quizesse salval-o, o imaginoso academico interrompeu-o com não sabemos
que espirituosa semsaboria, que Silvina atalhou logo:
--Deixe fallar o seu amigo que me está encantando com a singelesa do que
diz...
--Eu retiro-me, minha senhora--disse Pires, arqueando-se--porque estou
compromettido para a seguinte polka.
--Tambem eu...--disse Silvina, já quando o par se avisinhava, ao qual
pediu desculpa, de não dançar, por causa de uma forte dôr de cabeça. E
voltando-se para Jorge, que não soubera avaliar a fineza do fingido
incommodo:
--Tem aqui esta cadeira... Sente-se, e conversemos da sua familia,
porque talvez precise desafogar saudades d'ella em coração que o
comprehenda.
Jorge cobrára alento com este ar de familiaridade. Fez-se para elle
profundo silencio em todo aquelle borborinho da sala.
Era a primeira vez que se via em face de uma mulher, que lhe não chamava
irmão ou filho; e, todavia, tanta ingenuidade fraterna respirava o rosto
de Silvina, que, por encanto, o timido moço, sem forcejar contra o
enleio da alma, tirou de lá expressões de sorte affectuosas que nem os
mais destros comicos de sala as diriam assim.
--Tem muitas saudades dos seus, snr. Jorge?--disse Silvina com brando
mimo.--Está ancioso por chegar aos braços de sua mãi?
--Quizera que v. exc.ª a conhecesse--disse Jorge maviosamente.--Havia de
amal-a... que minha mãi está tão longe d'este mundo brilhante, vive d'um
modo tão differente do das pessoas educadas como ella foi, que me faz dó
o que era e tem sido ha vinte annos, contando hoje apenas trinta e seis,
n'uma aldêa, sem outra convivencia senão a de seus filhos, e sempre
magoada das saudades de meu pai... Ha duas horas que penso em v. exc.ª e
n'ella...
--Em mim?--atalhou Silvina, com sorriso de bondade--lisongeia-me
infinitamente a companhia que me deu no seu pensamento; mas poderá
dizer-me que analogia de imagens achou entre mim e sua mãi?
--Immensa, e não sei dizel-a. Se eu podesse bem interpretar este
sentimento mysterioso, diria, d'outro modo, que hoje, pela primeira vez,
se espelharam em minha alma duas imagens de mulher. Até ha pouco, havia
lá a de minha mãi sómente, e os traços informes, a sombra, o indefinido
do ser que vaga entre o céo e a imaginação do poeta. Agora...
--Essa segunda--interrompeu Silvina com uma gravidade impropria de sua
idade e modos usuaes--não poderá jámais deslumbrar a de sua mãi, porque
os entes de imaginação, visualidades passageiras, nunca usurpam a posse
aos entes que a natureza nos está dando todos os dias em realidade de
amor e carinhos. E depois, snr. Jorge, verá que é inutil esperar aquelle
puro original da cópia que a sua phantasia vai debuxando, em quanto o
coração novo e enganado lhe empresta as côres do céo. Affirmo-lhe, senão
authorisada pela experiencia, amestrada pelo exemplo e confissões
sinceras das minhas amigas, affirmo-lhe que o seu indefinido de poeta
nunca lhe ha-de avultar em corpo e alma, se os olhos descerem do céo a
procural-o na terra. Guarde, pois, com extremosa avareza a imagem de sua
mãi, e não consinta que outra lhe dispute o exclusivo amor que lhe dá.
Disse.
O academico ouvia, pela primeira vez, a expressão floreada, a linguagem
musical, o periodo arredondado, como de folhetim ambicioso, na bocca de
mulher. Achava elle certa incongruencia entre as feições menineiras da
provinciana e o tom sentencioso do discurso. Relanceou-lhe subito na
memoria o meu nome, segundo me elle contou depois. Lembrou-se d'aquelle
meu estirado discurso, na sua aldêa, dezoito mezes antes. Tropeçou na
hypothese de que o singelo exterior da palavrosa menina mascarava um
coração desbaratado por desenganos, e engenhoso de armadilhas a corações
noviços. Alguem diria que o silencio de Jorge, seguido á ultima
expressão de Silvina, era acanhamento. Já não: era a duvida.
--Ficou tão pensativo, snr. Jorge--tornou Silvina.--Está pesando no seu
juizo a verdade das minhas palavras? Impressionaram-no tanto!...
--É verdade, minha senhora; estava pesando as palavras de v. exc.ª com
outras que me disse um homem de trinta annos.
--Contrarias ás minhas?
--Semelhantes na intenção; mas muito mais desconsoladoras na fórma.
Disse-me elle que ha muitas mulheres que matam, e uma só que salva.
--Mas affirmou-lhe haver uma que salva?
--Sim, minha senhora.
--E quantas vezes lhe disse elle que podia ser victima de sua devoção e
generosidade a mulher que sente em si o coração salvador?... Creio que
me não fiz comprehender...
--Comprehendi, minha senhora. Pergunta v. exc.ª se a mulher capaz de
erguer a alma despenhada de sua grandesa, não se despenhará ella mesma
n'essa generosa tentativa;
--Entendeu.
--Não sei responder, snr.ª D. Silvina. Eu não sei nada do mundo. Ignoro
os precipicios em que póde cahir o homem, e não sei tambem a que alturas
póde levantal-o o amor. Já imaginei o mundo mais agradavel: começo a dar
cem illusões por cada realidade. Não cuide v. exc.ª que eu fiz pé atraz
á vista da verdade despoetisada, e feia como dizem os pessimistas que
ella é, vista á luz da razão pura; vejo, porém, que se vão fenecendo as
flôres da minha imaginação á maneira que escuto e pondero, com religiosa
crença, as palavras que v. exc.ª me diz, e as que me disse o bom ou
funesto despertador da minha razão, que dormia acalentada nos braços da
poesia. De que serve o desengano antes que a fatal experiencia no'l-o
dê?! Para que me diria v. exc.ª, com ar de tanta verdade e segurança,
que eu nunca encontrarei o puro original da cópia que a minha phantasia
entrevê?!
--Diz bem! atalhou Silvina meigamente triste, ou adoravelmente
dramatica--diz bem! Arrependo-me da injustiça que fiz ás mulheres, e
mesmo da crueldade com que me tratei a mim propria. Fallei pela bocca da
sociedade, snr. Jorge Coelho. Tenho ouvido, e lido nos romances as
palavras geladas e desanimadoras que lhe disse, com o immodesto animo de
distinguir-me a seus olhos. Menti-lhe, e menti ao meu coração. Não se
desalente ao entrar na vida, e nunca de mim se lembre como de fada má,
que lhe fadou a desventura. Espere, creia, e obedeça aos impulsos do
coração, em quanto a peçonha da mentira o não contaminar. No mundo deve
existir a imagem da mulher digna de senhorear-lhe a alma com a de sua
mãi, cuja face eu beijaria, hoje, se podesse, com respeito e ternura de
filha. Quando estiver nos braços d'ella, diga-lhe que encontrou no
Porto, e n'um baile--onde raro sentimento grave entretem por momentos o
espirito--diga-lhe que encontrou uma mulher que lhe manda n'esta rosa um
beijo de sympathia e veneração.
E, dizendo, tirou do decote espeitorado do vestido a rosa, chegou-a aos
labios, e deu-a com gracioso ademane a Jorge, que lh'a recebeu com mão
tremente.
--Cumpre o meu pedido? tornou ella.
--Pergunta-me se cumpro? É este um encargo doce que v. exc.ª faz ao meu
coração. Farei que minha mãi receba nos labios o beijo que vai n'esta
flôr. Depois, pedir-lhe-hei que m'a ceda, que eu possa chamar-lhe minha,
enthesoural-a como se ella para mim cahisse da grinalda d'um anjo... Se
ha no coração poesia mais sublime que a da saudade...
--Ha, sim... a da esperança...
--A da esperança!... balbuciou Jorge, levando machinalmente a rosa aos
labios, e córando da irreflectida acção que se lhe afigurou menos
respeitosa.
(Oh santa innocencia! não sei se és mais tola que santa!)
Desculpem o parenthesis que desfeia um pouco o bello e harmonioso da
fórma dialogal. Guarde-me Deus de motejar com insulsas facecias a
candura, o rubor, a timidez encantadora dos vinte annos de Jorge.
Invejo-lhe o que já não posso haver nem sequer com grande esforço
d'arte; mas rio-me d'elle e de mim, quando as galhofeiras memorias do
que fui, ha hoje quinze annos, sahem d'entre as flôres mirradas da minha
primavera, e vem cá a este glacial dezembro da vida fazer-me assuada e
zombaria, para que eu me dôa e corra das criancices de então. Pois
rio-me com effeito, que é para isso a cousa, e riam-se, á vontade, os
que de mim souberem que muitas vezes todo eu me incendiava em carmim e
rosa, quando o olhar logrativo da mulher me alvoroçava o pudor a ponto
de afeminar-me, e fazer de mim uma menina que... Quasi me escorregava
agora dos bicos da penna uma necedade das que se não desculpam á propria
santa innocencia que, repito, não sei se é mais santa que tola.
Vamos á historia com ajuda da providencia dos romancistas, a qual
providencia, muitas vezes, abre mão d'elles, e deixa-os para ahi
parvoejar que é mesmo cousa de peccado.
Silvina deu fé do rubor de Jorge, e...--querem saber a verdade
inteira?--não gostou. É um segredo da essencia mulheril o dissabor que a
molesta, a seu pesar... (vá, diga-se a _seu pesar_) quando o homem se
amulherenga ao pé d'ella, e lhe não deixa o exclusivo de mulher. Receios
de desmerecer em graças quando lhe é força ser mulheril? Consciencia
ingrata d'uma superioridade que a desenfeita? Recursos que perde de
captivar pelo mimo, com a brandura caridosa, por estremecimento do
pudor, toques do pejo virginal, que ora lhe transluzem nas faces, ora
lhe cerram os labios? Não sei se é tudo, ou alguma cousa, ou nada
d'isso. A verdade é que a mulher não gosta de homens que coram, de
homens que choram, de homens que... não são homens, está dito tudo, e
n'isso ficaremos, se acham que está discutida a materia. _Materia_...
que aleivosia! Isto é espirito o mais espiritual que póde ser. Espirito
transcendental, d'aquelle que devia andar na mente de muito casquilho,
paralta, janota, ou como é que se chama a tal alimaria, que se
desentranha em lufadas de cynismo nos botequins, e vai ao pé das
costureiras tartamudear jaculatorias de ternura.
Fica, pois, justificado o desgosto de Silvina, quando viu Jorge córar,
por ter beijado a flôr, onde os labios da peregrina minhôta haviam
imprimido o beijo de encommenda para a provincia.
--Agora, disse ella; são dous os beijos que leva a sua mãi, em uma só
flôr. Queira Deus que o halito dos labios do filho não tirasse o perfume
ao dos labios da amiga.
--Creio que sim--disse Jorge corando outra vez--creio que sim...
--Porque?!--atalhou Silvina com despeito mal comprimido.
--Porque sinto no coração o perfume do seu beijo.
Sahiu-se melhor do que eu pensava. É aquella uma das respostas que
costumam ir de casa gizadas; mas creio no improviso. E assim, explicado
o segundo accesso de escarlate, desvaneceu-se o desaire em que estava
Jorge na opinião caprichosa da dama, que replicou muito requebrada:
--Pois não esperdice o perfume, porque nunca sentirá no coração outro
mais puro, mais digno de incensar o seu amor reflectido do céo.
--Amor!--interrompeu Jorge com exaltado impeto de criança--Olhe que essa
palavra póde ser-me veneno para toda a vida, se v. exc.ª consentir que
eu a guarde...
--No mais intimo de sua alma... Guarde... que nunca a proferi com tão
pouco conhecimento de quem a dou, e tão pouca esperança de a vêr florir
em venturas.
Jorge Coelho ia naturalmente córar terceira vez, quando Francisquinha da
Cunha chegou, com ar de zanga, e disse:
--Vamos, prima, que o pai quer sahir... e é tão cedo... que raiva!
estava agora ouvindo uma enfiada de tolices tão peregrinas...
--De quem?
--Eu sei cá de quem? d'um homem que se chama Pires, e que este senhor
conhece... Não lh'o diga, não? Eu fui indiscreta...
--Não diz nada--acudiu Silvina--pois não, snr. Jorge?
--Eu, minha senhora!...
--Asseverou-me--continuou Francisca gesticulando vertiginosamente com
cabeça e braços--que se eu o não amasse, havia de espirrar á minha
fronte de algoz o seu sangue de Larra, de Werter, de... Ai que homem,
que homem aquelle! O que se produz na Maya! Ó filha, eu não posso perder
aquillo!... Pires é meu...
Ai! o pai... Vamos, Silvina.
Silvina estendeu a mão a Jorge, e disse a meia voz:
--Vá vêr-me ámanhã ao jardim de S. Lazaro.
Jorge balbuciou alguma cousa que não vinha do coração. N'este momento,
um receio doloroso o affligia com esta pergunta: «Esta mulher irá
escarnecer-te, como viste escarnecido o teu amigo?»

VI.
As occorrencias do jardim de S. Lazaro, no dia immediato, não merecem
chronica. O que póde, porém, succeder a um moço, que passeia o coração
amante, no jardim do Porto, é bom de dizer-se, e folga a moral de
ouvil-o.
Se o leitor está no Porto, e vai apaixonado ao jardim de S. Lazaro, e
conhece a familia da menina casadoura, por quem anda em brasa, faz a sua
primeira cortezia, e foge de encontral-a segunda vez, porque repetir a
cortezia é, além de provincianismo puro minhoto, cousa que cheira a
inconveniencia, e póde ser até escandalo. Resta-lhe o expediente commum,
e salva assim a honra das familias: é amoutar-se como fauno por entre as
murtas e bosques de acacias, lobrigando aqui, e além, a caça estranha.
No jardim de S. Lazaro os dous sexos dão ao passeio o que as sovinas
municipalidades não tem querido dar-lhe; isto é, uma luxuosa
superabundancia de estatuas, as quaes, tirante a alma, nem sempre se
avantajam ás do marmore nacional. Sentam-se as meninas, mui bem
compostas e ageitadas de mãos e cabeça, e alli se estão deleitando na
vista do repuxo, em quanto o papá rufa com tres dedos na tampa da caixa
do tabaco o compasso da modinha conhecida de Verdi ou Donizetti, que as
trombetas bastardas estão executando... _executando_, sim, é a palavra.
Ao relance artistico dos olhos não é feio aquillo. Cuida enxergar o
myope em cada renque de cadeiras uma fileira de _madonas de la sedia_;
mas a illusão d'um myope não vale os desconsolos de tanta gente que tem
a sua vista escorreita, e pensa que a estatua deve ter um _quantum
satis_ de espiritualidade.
Ha pontos na casca do globo em que a virtude custa pouco. Não sei se a
bemaventurança é accessivel por igual de todas as terras; mas,
convencido da rectidão que assiste aos negocios dos outros mundos,
quer-me parecer que quatro virgens a um tempo, sahidas em espirito, uma
de Pekin, outra de Constantinopla, outra de Paris, e a quarta do Porto,
devem de ter differente recebimento e quartel nas regiões da gloria,
onde ha premios para a virtude.
Na razão directa da tentação, nos esforços em rebatel-a, é que deve ser
aferida cada alma victoriosa que, apesar dos demonios succubos e
incubos, se alista nas legiões do céo. Não se dogmatisa, entendam:
quer-se escassamente enunciar idéa nova, resaibada de heresia, a vêr se
algum hypocrita illustra o livro, com as injurias da sua caridade
apostolica. Não ha no romance outro merito que o inculque, nem
perspectiva melhor agourada para o editor.
As adoraveis virtudes das senhoras do Porto não são de todo um
merecimento: orçam mais por uma necessidade. O homem d'alli sente um
terço, ou ainda menos das precisões espirituaes que, n'outras partes,
incommodam o coração humano. Esta feliz frugalidade procede do geito
d'aquella sociedade, geito antigo que degenerou em aleijão, rachitismo
moral, corcunda hereditaria, e de mais a mais pegadiça, por quanto, se
não é do Porto, e por lá apégar alguns mezes, leitor, apalpe as costas,
e topará uma protuberancia a crescer, a crescer, até se formar corcunda,
que irá comsigo a stoda a parte.
Aquelle aleijão, de barreiras do Porto a dentro, não fica mal a ninguem.
Os liliputianos, conta Swift, chanceavam o viajante europeu, que tinha a
ridicula felicidade de ser um homem bem apessoado e perfeito. As
bellezas do Congo recuam de puro nojo diante de um formoso nariz branco
sem pingentes. No Porto ha o escarneo e o tedio que explicam o paradoxo
do selvagem.
A juventude masculina da cidade heroica está em contacto com a
civilisação d'este seculo pelo alfaiate. Não poderam os velhos trancar
as portas do burgo de Moninho Viegas á invasão dos figurinos. Calção e
rabicho foram banidos; o tamanco e o chinelo d'ourélo cederam,
constrangidos, o joanête indigena ao verniz, e ao couro da Russia; o
difficil, porém, era pentear, vestir e calçar o espirito de gaito e arte
que a gente, fitando em rosto o filho da civilisação portuense, não
tivesse de descer os olhos a buscar-lhe nos pés o tamanco. É o sestro
das transfigurações de golpe e abruptas.
Um joven bem estrellado de minas e camapheus, chama-se no Porto um
janota. A menina ingenua diz á visinha: «conhece aquelle janota?» ou
«fulaninha namora um janota louro.» Não se cuide, porém, que este
epitheto implica mofa ou menospreso como em Maçãs de D. Maria, ou Lamas
d'Orelhão. O janota portuense é uma cousa séria, que póde ser vereador,
e irmão da ordem terceira.
Por via de regra, o janota é uma creatura que nasce, cresce, abre-se em
florescencia variegada de frakes, e colletes, e pantalonas; toma posse
do balcão paterno aos trinta annos, corta o bigode para que lhe
descontem as letras, põe oculos se teve o infortunio de estragar a vista
com a luneta que lhe servia de não vêr nada, fructifica em crianças
gordas que entrajam á escoceza, e escôa-se de vida através de quarenta
annos de lerda pachorra de espirito, legando á prole um nome limpo, com
pequenas farruscas que se ensaboam na barreia de um necrologio, e dous
legados de cincoenta mil reis ás entrevadas da Cordoaria, e alguma cousa
ao hospital do Terço.
D'este viver assim resultam duas cousas que explicam muitas outras:
primeira, que o elegante portuense dispende os annos perigosos da
adolescencia vestindo-se de manhã para sahir de tarde; segunda, que as
meninas, ao despegar da costura, ageitam os laçarotes do toucado,
entufam os punhos das manguinhas, encostam o cotovello ao peitoril da
janella, seguem o olhar de esguelha que lhe vai revirando o terceiro ou
quarto janota predilecto, e fecha a janella quando a passagem do quinto
é duvidosa.
D'est'arte, as paixões são innocentes e ao mesmo tempo substanciaes como
um caldo de gallinha. As relações epistolares não derrancam a pureza das
olhaduras. A carta, em regra, é declaração escripta que tolhe a poesia
da declaração muda. Palestras, quer de sala, quer a horas mortas, da rua
para a janella, que piedosa criada deixou aberta, são, se a patrulha o
tolera, a morte de ambas as declarações, porque o janota que falla é
muito menos soffrivel e grammatical que o janota que escreve. Ainda
assim, o casamento remata isto que se chama o _namoro_. E o mais é que
ella e elle, nas suas horas de recolhimento, cada qual a só por só com a
sua consciencia, contempla saudoso o passado e diz: «Que bella mocidade
eu tive! muito me diverti!»
Ponderam alguns authores que a morigeração dos costumes portuenses é o
necessario effeito do atraso da civilisação e policia da classe media,
em que as outras no Porto se embaralham e perdem. Esta palavra
«civilisação» anda mal trazida para tudo. Se o refinamento das
industrias, se a arte de crear capitaes, no minimo do tempo e com
diminuto trabalho, constitue a maxima civilisação material, o Porto
ganha a aposta aos mais ambiciosos prospectos de riqueza aventados pelos
economistas. E assim é que alli enxameam os Midas no ouro e nas orelhas;
porém, menos castigados que o fabulado Midas da theologia grega, logram
digerir o boi e o toucinho na succulenta substancia que a natureza lhes
deu.
Os que negam ao Porto a vanguarda do progresso industrial, que é a mesma
civilisação, irmã gemea da intellectiva, e fonte da sã moral, derruem
desde os alicerces a sciencia moderna, confessando assim a utopia do
systema vulgarisado nas escolas, nas gazetas, e nas fórmas de governar
das nações mais cultas. No Porto, dão-se as mãos a riqueza e os costumes
edificativos, para se justificarem estes por aquella, e a primeira pelos
segundos. A industria é a de hoje: os costumes são os de ha um seculo. O
chefe de familia poderá ser moedeiro falso, negreiro aposentado com
exercicio na casa real, alliciador de escravos brancos, contrabandista
tolerado; mas a filha d'esse homem da época vive intemerata como a filha
de Virginio; cuida que seu pai, recolhendo a casa encalmado e suado, vem
de servir a patria como Cincinnato; e, chegada a occasião de exercitar
as virtudes antigas, não duvidará ser Lucrecia, e Lucrecia menos
equivoca que a de Colatino.
Sobre este assumpto, mediocre seria o engenho que não produzisse um
volume. Em louvor do Porto, escreveu o socio da academia real das
sciencias Antonio Augusto Teixeira de Vasconcellos dous folhetins de
nervo e polpa, com muito sal attico á mistura. O abundoso escriptor
escreveria in-folios, se lhe aprouvesse, porque já um dos sete sabios da
Grécia, Pittacus, parece que era, escreveu um volume dos louvores da mó
d'uma atafona; e, para encarecimento do rábano, deixou Marciano um
tractado muito de vêr-se. O talento é uma cousa temivel.
Ora não vão já d'aqui os malsins de intenções maliciarem essas
inoffensivas palavras, que não desprimoram, nem arguem deshonra ao
paladium das liberdades patrias, como usam dizer os artigueiros da terra
a proposito de qualquer empeço que lhes assombre o seu municipio, se
acontece o governo ir de encontro a alguma postura sobre a carne de
porco, ou cousa assim em que valha a pena lembrar ao mundo que o Porto é
o paladium das liberdades patrias.
N'isto pensava eu no jardim de S. Lazaro, n'aquelle dia em que Jorge
Coelho, mais imprudente que atrevido, se avisinhára de Silvina, que,
passados minutos de conversação, lhe disse:
--Não se demore mais tempo, porque toda a gente nos observa com ar
espantadiço. Eu cuido que estamos dando grande escandalo.
Jorge Coelho retirou, e deu o braço ao amigo Pires, que fremia de raiva
resultante d'uma desfeita que recebera de D. Francisca.
--Desfeita!--disse Jorge--pois uma senhora faz desfeitas!?...
--O requinte hediondo da insolencia!--vociferou o fidalgo da Maya
tascando com phrenesi a ponta do charuto.
--Que te fez?
--Ouviu-me hontem na «Assembléa » uma declaração, acolheu-a com doudo
enthusiasmo, disse-me que eu era um homem tão admiravel como perigoso;
tremeu de pavor quando eu lhe fiz sentir o desfastio com que me
arrancaria as entranhas, se me ella não aceitasse a vida como
complemento da sua. Tudo isto me authorisava a offerecer-lhe hoje uma
carta, com a certeza de me ser aceita. Offereço-lh'a, e ella responde-me
que não sabia lêr se não letra redonda! Leonardo de Sousa Pires e
Albuquerque sabe vingar-se. Vou ámanhã á Maya; depois... ai d'ella e de
mim!

VII.
Christovão Pacheco de Valladares, morgado de Santa Eufemia, esteve sete
dias e sete noites emparedado no seu quarto da hospedaria da «Aguia
d'Ouro» depois d'aquelle desastre da «Assembléa.» Alguns hospedes
repararam na reclusão, e averiguaram dos criados que exquisito homem era
aquelle. D'estes hospedes, o mais grado era o morgado de Matto-grosso,
solarengo de «Entre-ambos-os-rios» homem de grandes brios e musculos.
Apenas informado, foi bater á porta de Christovão Pacheco, dizendo pela
fechadura que abrisse que era parente e amigo. A identidade do
parentesco foi de facil prova.
--O primo Pacheco não póde duvidar--disse o morgado de Matto-grosso--que
um irmão de meu setimo avô, que havia nome Heitor Moniz de Valladares
foi casar á casa de Santa Eufemia com D. Urbana Pacheco, filha de Lopo
Pacheco, governador de Cochim...
--A fallar-lhe a verdade--disse o de Santa Eufemia--eu não sei nada de
linhagens; mas tenho ouvido fallar a meu pai n'esse governador de
Chacim.
--Cochim, primo Christovão, Cochim.
--Ou Cochim, ou lá o que é...
--E saiba que da sua prosapia sahiram os mais illustres sangues das
familias do Minho. Talvez v. exc.ª, primo, não saiba que a nossa
linhagem está mui de perto aparentada com Porto-Carreiros!
--Não sabia, nem sei de que sirva isso.
--De que sirva isso!--acudiu Egas de Villas-boas Cão e Aboim
Encerra-bodes, que assim se chamava o morgado de Matto-grosso. Não diga
tal, primo Christovão Pacheco. Pois ignora que do solar dos
Porto-Carreiros, fidalgos mais velhos que a monarchia trezentos annos,
sahiu ha cinco seculos um infanção, que casou em Castella, e foi tronco
da descendencia que vem illustrar-se na pessoa da actual imperatriz de
França?[1]
--Não sabia, palavra de honra, e isso que faz?--tomou o de Freixieiro.
--Faz que somos parentes da imperatriz, e que podemos dizel-o á bocca
cheia a esses de sangue azul da capital, que nos chamam a nós fidalgos
de meia tigella, esquecidos de que os mais nobres barões da côrte de
Affonso edificaram os seus solares entre Douro e Minho, e d'aqui, por si
ou seus filhos, acompanharam os reis da primeira dynastia ás conquistas
do restante da Lusitania, e d'além-mar.
--A fallar-lhe a verdade, primo, quando entro a pensar n'essas cousas
com que meu pai me quebra a cabeça, parece-me que trocava toda a minha
fidalguia por algumas libras.
--Oh! que blasphemia!--Exclamou Egas n'um impeto de sincera
indignação.--Troca-se por libras um neto de Heitor Moniz de Valladares!?
--Não é trocar-me por libras;--acudiu desabridamente o de Santa
Eufemia--é que eu estou de vinte e oito annos, e ainda não pude sahir de
casa senão duas vezes com esta; e não tenho remedio senão ir-me embora
para Freixieiro, por que meu pai escreve-me hoje essa carta que o primo
póde lêr, e depois me dirá se me não era melhor ser antes um caseiro das
minhas fazendas, que me não servem de nada, n'esta idade em que eu
preciso de dinheiro.
--Vejamos isto--disse o de Matto-grosso, abrindo a carta, e lendo o
seguinte:
«Meu estimado filho.
Já te disse que venhas para casa, que não ha dinheiro para andar em
folganças. Os tempos estão muito bicudos, e o bicho já pegou nas
videiras. Os bezerros do caseiro da Portela lá estão com a molestia, e a
cheia levou a parede do lameiro do Quinchoso. Tudo são despezas. O
abbade pegou-me pela palavra, e quer que eu mande pôr a porca no sino da
igreja. O milho ainda não chegou á conta; os quatro carros que se
venderam não chegaram para pagar as decimas. O garrano está de todo
espravonado; pozes-te-o bom com a tua ida ao Porto. Tudo são desgraças.
Em quanto á roupa nova, deixa-te disso; a casaca que levaste está muito
boa, e o melhor é fazel-a em Guimarães, que são mais em conta os
alfaiates. Anda-te embora, logo que esta recebas, que eu dou ordem ao
meu amigo brasileiro para te dar para a jornada cinco pintos; olha se
ajustas a cavalgadura sem gorgeta. Dou-te a minha benção, e sou teu pai
carinhoso,
«_Vasco._»
--Que me diz a isso?--exclamou Christovão.
--Eu sempre ouvi dizer--respondeu o primo Egas--que meu tio Vasco era um
tanto fona; comprehendo que na idade do primo Christovão custa muito não
brilhar na sociedade, a que o nosso nascimento nos dá direito; não
obstante, seu pai está accumulando para o seu filho unico uma grande
casa, e é preciso perdoar-lhe a intenção que é boa. Vamos ao mais
importante: o primo quer dinheiro? quer os meus cavallos? quer os meus
lacaios? tem tudo ás suas ordens; o que eu não consinto é que diga que
trocava os seus brazões por algumas libras. Vamos, franqueza, precisa de
fato? Chama-se já aqui o alfaiate: hoje mesmo póde sahir de ponto em
branco. Tenho cá dous cavallos, o _corisco_ e o _phaetonte_: o primo
monta qual quizer. Diga-me agora a que veiu ao Porto.
O morgado de Santa Eufemia, entre jubiloso e magoado, contou ao primo a
historia do _seu amor de raiz_, como elle dizia. Mostrou as cartas de
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