Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 10

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estão facilitando ao trabalhador rural o goso da propriedade. Ignoro
como a parceria agricola facilita ao trabalhador o goso da propriedade.
Saberá explical-o o sr. P. de M.. Os salarios capitalisados a que se
refere conheço-os de ha muito; de uma epocha em que elle, provavelmente,
apenas começava os seus longos e profundos estudos sobre estas complexas
materias. Paguei-os e vi capitalisal-os, em enxugos de ribeiras
paludosas e em extensas lavras de arroz, entre as bahias do Tejo e do
Sado. Quem eram, porém, os capitalisadores? Mancebos solteiros, no vigor
da edade, que vinham durante mezes trocar a saude e alguns annos de vida
n'um clima insalubre por poucas moedas de economias, obtidas mais pelas
pequenas empreitadas do que pelo salario. E ainda assim, para
enthesourarem limitadas sobras, cumpria-lhes cortar pelo estricto
necessario, por uma alimentação já de si insufficiente n'aquellas
paragens, e não raro o enfraquecimento physico e a insalubridade do
clima tornavam as longas doenças herdeiras d'esses peculios. Os
cultivadores sinceros d'ente Tejo e Sado poderão dizer ao meu humano
contendor se eu descrevo um facto isolado ou assás commum. Este meio
indirecto de chegar á propriedade não me parece merecer nem confiança,
nem applauso. Chamo-lhe indirecto, porque não é immediato nem exclusivo
para que o proletario rural, isto é, para que o homem que nada possue,
senão a propria actividade e a robustez dos proprios braços, entre no
goso da propriedade. Todo o individuo que adquire um capital maior ou
menor, seja por que modo for, pode convertel-o em dominio territorial.
Fal-o, em regra, por um contracto oneroso, embora variem as fórmas
d'esse contracto. Ora o sr. P. de M. aponta como primeiro instrumento da
conversão do trabalhador em pequeno proprietario o aforamento, que
qualifica de pouco oneroso. Se o é actualmente para o pobre, teremos
depois occasião de o examinar. Em todo o caso, fazendo essa restricção,
reconhece que não pode ser para o jornaleiro um meio senão excepcional,
e as ponderações que fiz, na segunda carta que tive a honra de dirigir a
v. ex.^a, sobre a quasi impossibilidade em que está o simples
trabalhador chefe de familia de fazer economias na alta transitoria dos
salarios, não me parecem de desprezar. De certo, se foram mal cabidas, o
meu illustre contendor não levará tão longe a sua indulgencia para
commigo, que deixe de corrigil-as ou refutal-as.
Resta o aforamento; resta a emphyteuse, considerada absolutamente e em
si. A emphyteuse, sim; n'essa creio eu. No meu modo de ver, esta enorme
vulgaridade, esta tradição dos seculos, para a qual certos theoricos
modernos olham com scientifica sobranceria, é a mais poderosa alavanca
para a um tempo afastar da emigração os jornaleiros ruraes e alistal-os
entre os defensores da propriedade, da paz e da ordem. Apezar de todas
as contrariedades, da falta de auxilio social sufficiente no sentido de
obter taes fins, esse elemento vivaz e fecundo, ajudado pela ambição de
possuir a terra, que domina o proletario rural, está ha muitos annos
produzindo o bem. A questão é se precisa de ser modificado e por que
modo, quaes os obstaculos que ha a remover para que elle funccione com
toda a sua energia, e de que favores carece para esta se tornar mais
forte e de mais rapidos e seguros effeitos. Reservo, como já disse, para
logar opportuno expor a v. ex.^a o que penso a este respeito. São
alvitres de um profano. Os competentes acharão outros melhores; mas cada
qual paga á sociedade o seu tributo de idéas em conformidade dos seus
recursos intellectuaes, como no imposto directo cada qual _deve_ pagar
na proporção dos seus haveres. O que é certo é que sobre este ponto
tenho por mim a valiosa auctoridade do sr. P. de M., que não deixará,
com a sua mil vezes superior sciencia e experiencia, de supprir,
emendar, e estabelecer mais solidamente o que nas minhas opiniões houver
incompleto, erroneo ou mal fundamentado.
Não desejo que, em geral, o jornaleiro venha a possuir algumas geiras de
terra e uma choupana, porque queira ou supponha que n'essa situação
fique em melhores condições relativas que o grande e o mediano
proprietarios, nem que possa eximir-se de trocar com elles o trabalho
pelo jornal. Os meus desejos são mais modestos. Vejo n'isso unicamente
um meio real de tornar permanente e sufficiente o salario da familia
obreira, applicada e fructifera toda a potencia do trabalho nacional em
relação á riqueza agricola. Escuso de affirmar de novo a minha crença
ácerca do bem que d'ahi ha-de resultar para reduzir consideravelmente a
emigração e fortificar a sociedade, emquanto é tempo, contra os perigos
que surgem, embora em remoto horizonte. Que o proprietario cultivador
mais ou menos abastado possua os commodos e gosos que o habito converteu
para elle em necessidades; mas que o trabalhador tenha os meios de se
isentar da miseria pelo trabalho; que a familia obreira desconheça a
nudez, a fome e a falta de abrigo. O christianismo, a humanidade e a
justiça impõe ás consciencias honradas o dever de adherirem a todos os
esforços que se façam em tal sentido. A classe media, a classe
predominante, se pensar n'isso, verá que faz um bom negocio
associando-se a este pensamento. O egoismo, quando illustrado e sensato,
pode muitas vezes ajudar a obter o bom resultado de conselhos sinceros e
moderados, que, se até certo ponto aproveitam aos desvalidos, porventura
aproveitarão ainda melhor ao interesse d'aquelles que, ignorando a
historia dos grandes cataclismos das sociedades, vêm n'esses conselhos
leaes o intuito de os prejudicar.
O artigo do sr. P. de M. conclue por me chamar a um terreno ardente e
escorregadio, no qual cuidadosamente tenho evitado entrar. É o das
relações moraes entre o operario rural e o grande ou mediano cultivador.
Não vou. Sei aonde elle me pode conduzir. N'esta edade, ama-se a paz.
Todavia, isso não obsta a que me associe cordealmente aos votos que o
meu illustre adversario faz para que nos campos se restaurem os laços da
vida moral. Tem-nos, com effeito, despedaçado quasi completamente as
luctas de ambições politicas, a cubiça imprevidente de influencias
obscuras, a depravação e a incapacidade do clero, o vicioso e incompleto
das instituições, o desleixo dos governos, a impotencia das
magistraturas ante a preponderancia de forças extra-legaes. É o que
explica de sobejo a decadencia moral do campo. Nos sitios em que vivo,
não conheço esses reformadores de má nota, principaes missionarios de
idéas perniciosas e dissolventes de que o meu caro contendor se queixa,
salvo se eu proprio o sou, sem d'isso dar tino. Creio mais facil
descobril-os entre as populações urbanas. Pela minha parte, se pequei,
foi na persuasão de que as vozes que soam do pulpito da imprensa não
chegam aos ouvidos do rustico trabalhador, e de que, ainda quando as
ouvisse, elle não as entenderia. Persuadi-me de que fazia bom serviço ao
paiz se dirigisse aos animos dos que podem ouvir-me e entender-me
palavras que os fizessem reflectir sobre os seus verdadeiros interesses,
e lhes despertassem o sentimento em que, por assim dizer, se encerra
todo o christianismo--a piedade para com os que padecem. Estou
certissimo de que a alta intelligencia do sr. P. de M. faz plena justiça
ás minhas intenções. Que outros a façam ou não, pouco me importa. Todas
as classes sociaes, cujos interesses, mais ou menos legitimos, são
feridos por qualquer opinião, acham sempre essa opinião perniciosa e
dissolvente. É a natureza humana.
Nada mais certo do que a necessidade de supprimir a anarchia moral e
estabelecer o respeito _mutuo_, não direi entre as diversas classes, mas
entre os direitos das diversas classes ou categorias sociaes. No campo e
na cidade, a moral publica é egualmente necessaria: n'este ponto, não é
possivel a discordancia entre nós. Que o jornaleiro e o creado ruraes se
abstenham do tão generalisado vicio dos pequenos, mas continuos furtos e
estragos nas grandes, nas medianas e nas pequenas propriedades; que dêem
ao cultivador, ao amo, o trabalho que lhes devem pelo jornal ou soldada
que recebem, cumprindo um contracto livremente celebrado; que não tornem
pouco digna de compaixão a sua miseria, pelo jogo, pela embriaguez, pela
devassidão; que aprendam a respeitar os laços santos da familia; que por
preguiça, indolencia ou genio brutal, não causem perdas graves e diarias
no capital movel ou semovente do agricultor; que não tractem, por todos
os meios que a malicia e a dissimulação lhes suggerem, de transtornar os
melhoramentos de cultura, que em beneficio proprio, e muitas vezes em
beneficio d'elles, tenta com sacrificios custosos o grande ou o mediano
cultivador; que não busquem vingança dos procedimentos que reputam
injustos com a calumnia, com o incendio covarde, com as aggressões
atraiçoadas. Forcejemos todos por arredar d'estes habitos funestos o
trabalhador rural. Mas que o grande ou mediano proprietario ou
agricultor...
Agora reparo que esta carta vai já demasiado longa, e que excedo os
limites rasoaveis de ser importuno. Tractarei de me cohibir de futuro,
quando outras occupações me permittirem dirigir-me de novo a v. ex.^a.

VIII

Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Nas cartas precedentes tenho dicto e repetido
que, na minha opinião, o mais poderoso instrumento para combater de modo
efficaz a emigração do trabalhador rural, quando ella proceda do
desequilibrio entre as suas necessidades impreteriveis e os seus meios
de as remediar, seria o promover energicamente os aforamentos.
Accrescentei que as providencias dirigidas a occorrer a um mal assás
grave seriam ao mesmo tempo prevenções não menos efficazes para obstar
ás perturbações profundas que ameaçam a Europa, contra as quaes as
outras nações se premunem, e de que não devemos suppor que ficaremos
isentos.
Não basta, porém, dizer isto. É preciso descer a considerações mais
particularisadas sobre o systema emphyteutico; fazer sentir toda a
extensão da sua benefica influencia; examinar os obstaculos que se
oppõem ao seu desenvolvimento; ver como, até onde, e em que sentido, a
lei deve promovel-o, sem quebra das maximas fundamentaes do nosso
direito publico, mas, sobretudo, sem a minima offensa do direito de
propriedade, que precisamos de fortificar e não de enfraquecer.
As vicissitudes da emphytheuse, as suas transformações successivas, o
seu maior ou menor predominio em diversas epochas e nos diversos paizes
da Europa central e meridional, desde a sua origem na sociedade romana
até o nosso tempo, são cousas alheias á questão da sua indole actual.
Tomemol-a como a constituiu a nossa legislação civil, e vejamos depois
se esta legislação tem de ser modificada para que ella possa desenvolver
completamente a sua acção em chamar a classe trabalhadora,
exclusivamente trabalhadora, ao goso da propriedade.
Dos tres elementos em que se decompõe o producto da industria agricola,
a renda, o custo da producção, e o lucro do agricultor, elementos que a
rigorosa analyse reduziria a um unico--a retribuição do trabalho, tanto
physico como intellectual, tanto consolidado como em acção--o que, no
predio emphyteutico, apresenta um modo de ser especial é a renda. No
predio allodial, o trabalho consolidado e, por assim dizer, n'elle
immanente, d'onde a renda deriva, é sempre e integralmente do
proprietario. Se este deixa a outrem a faculdade de cultivar, não lhe
transmitte a minima parte do seu dominio pleno. A concessão é
temporaria, por mais longa que seja, e a quebra de qualquer condição do
contracto de arrendamento pode annullal-o. D'esse contracto deriva a
fruição do uso transitorio da terra; nunca, porém, a do uso perpetuo.
Se, com permissão ou sem permissão do dono, o rendeiro consolida ahi
algum trabalho, este, retribuido ou não retribuido pelo proprietario,
conforme as circumstancias, incorpora-se forçosamente no dominio pleno.
Na emphyteuse o dominio divide-se em directo e util. Ha dois
possuidores: um do senhorio eminente, outro do uso perpetuo. Cada um dos
dois factos, na sua esphera, é completo, absoluto. Economicamente, o
dominio directo corresponde á propriedade do capital de trabalho
consolidado na terra até o acto do aforamento: o censo ou foro
representa a renda d'esses valores accumulados, o juro d'esse capital
productivo. O uso perpetuo ou dominio util habilita o acquirente a
consolidar no predio adquirido novo trabalho, capital novo, cuja renda é
sua. Abstrahindo da solução do foro e das consequencias que d'isso
derivam, o emphyteuta está perfeitamente na situação do proprietario
allodial.
O codigo civil, abolindo o laudemio, presuppoz implicitamente esta
doutrina. O laudemio representava, na hypothese de venda, uma quota dos
valores capitalisados na terra pelo foreiro, deduzida do preço total do
predio, em beneficio do senhor directo. O codigo respeitou, quanto ao
passado, a extorsão consentida e absolvida pelo contracto; mas prohibiu
que continuasse de futuro á sombra de uma praxe, cujo unico fundamento
era um inveterado abuso. Reconheceu no praso duas propriedades
incorporadas no mesmo solo, mas distinctas e ambas completas na
respectiva esphera, e por isso equiparou no privilegio do direito de
prelação o senhorio e o foreiro.
Á luz economica, o foro não pode effectivamente ser senão a
representação do juro ou renda de um capital de trabalho associado
inseparavelmente com a terra. No estado actual das nações mais ou menos
civilisadas a separação da terra e do trabalho seria difficil. Por via
de regra, só pode dar-se na abstracção, subjectivamente: no real, andam
sempre unidos. A meu ver, o trabalho é a unica base do direito de
propriedade territorial, como de quaesquer direitos analogos, e é a essa
luz que elles podem defender-se com vantagem das aggressões socialistas.
A terra, considerada em si, exclusivamente, é tanto objecto do direito
de propriedade, como a atmosphera, a luz, a chuva, o vapor, a
electricidade. As suas forças productivas dormem inuteis e infecundas
emquanto não as desperta o trabalho, e o trabalho é a prolação do
individuo, a manifestação da sua intelligencia e da sua força. A sua
intelligencia e a sua força estão lá. Mutilam-no se o expulsam do solo
vivificado por elle. Se consumiu o producto que resultou d'aquelle
facto, voltou ao individuo o que do individuo saira. Se não o consumiu;
se o converteu em instrumento cooperativo da nova producção, essa deriva
tão completamente da sua intelligencia e da sua força, como o primeiro
producto. Assim por diante. D'ahi a perpetuidade inseparavel d'este
direito primario; d'ahi a faculdade da transmissão, que as leis
positivas regulam, mas que não criam, porque procede inevitavelmente de
um direito primordial.
Na emphyteuse o dono do solo nada, em rigor, transmitte ao foreiro;
retira, apenas a sua acção sobre a terra; e como o capital do trabalho
ahi accumulado não pode separar-se d'ella, em vez de o transmittir por
um preço convencionado, como na venda, fal-o representar pelo juro
respectivo. É assim que a lei, na falta de outro meio de apreciação,
considera como equivalentes ao capital do foro vinte prestações
emphyteuticas.
Parece oppor-se a esta doutrina o aforamento de terrenos incultos. Se,
porém, descermos á analyse dos factos economicos e sociaes correlativos,
achal-a-hemos confirmada por aquillo mesmo que apparentemente a infirma.
Peço a attenção de v. ex.^a para as subsequentes considerações.
Ver-se-ha depois quanto ellas importam para resolver, sem offensa dos
principios, certas difficuldades que obstam á accessão do proletario á
propriedade territorial.
O trabalho humano que vai, transformado em valor, incorporar-se n'um
tracto de terra nem sempre tem a apparencia de uma incorporação real.
Se, por exemplo, construo um aqueducto para regar um campo, e o levo,
atravez de predios alheios ou de terrenos de uso commum, até á beira
d'aquelle campo, o trabalho ou capital que custou o aqueducto está
inherente, na sua manifestação sensivel, a esses predios ou terrenos;
mas o seu valor adhere ao campo que as regas vão fecundar. Ás vezes é um
trabalho alheio e individual, feito sem a minima intenção de me
beneficiar, que vem, pela força das cousas, tornar-me participante dos
seus resultados permanentes, e incorporar no meu dominio uma porção do
seu valor. Possuo, por exemplo, um predio situado na parte inferior de
um valle varrido por nortadas impetuosas e destruidoras. A parte
superior do valle, e as collinas nuas que o cercam pertencem a outro
dono. Para annullar a impetuosidade dos ventos, elle povôa as collinas
de extensos pinhaes. Foi a sua unica intenção ser util a si; mas sem
elle o querer, sem o pensar, o seu capital ou o seu trabalho ajunctou um
valor á minha propriedade. Assim em outras hypotheses, que seria facil
exemplificar.
O terreno inculto, mais ou menos visinho de habitações, proximo de vias
publicas, de fontes publicas, de canaes ou correntes que a mão do homem
converteu em meios de transporte, tendo facil communicação com os
grandes mercados; esse terreno, capaz de ser possuido, porque o complexo
dos factos e de instituições sociaes tornou possivel a sua occupação,
adquiriu um valor que se uniu inseparavelmente ao solo. Este valor é uma
quota do trabalho collectivo da sociedade, que a sociedade destinou ao
uso commum, e que só pode realisar-se individuando-se. A estrada é util,
porque o individuo pode caminhar por ella; o canal, porque o individuo
pode ahi navegar; a segurança, porque o individuo pode ser protegido por
ella. Cousas taes e outras analogas tem valor só pela individuação.
E esta interferencia do trabalho social na creação de valores que caem
sob o dominio particular não é uma hypothese gratuita para explicar sob
certo aspecto a propriedade territorial; é o facto constante, passado e
presente, que sem interrupção se realisa, tanto quando a civilisação se
inicía, como quando progride. Os poderes publicos, colligindo parcellas
do trabalho individual e applicando-as com o intuito do bem commum,
espargem ineluctavelmente os resultados dos esforços collectivos na
creacão ou no accrescimo de valor em objectos de dominio privado, embora
a manifestação sensivel fique ligada ás cousas que, na subtancia,
pertencem á communidade.
Supponha-se um tracto vastissimo de terreno inculto, contendo em si as
mais energicas faculdades de producção, mas situado n'um paiz deserto,
rodeado de brenhas impervias, murado por alcantís inaccessiveis,
retalhado por correntes invadiaveis, e acolheita de animaes ferozes. Que
valor apreciavel teriam os terrenos contidos n'essa região, fosse qual
fosse a energia creadora dos elementos latentes alli? Nenhum. Abram-se,
porém, largas estradas atravez das brenhas, achanem-se os alcantís,
converta a arte os rios em vias aquaticas, ou domem as pontes as suas
resistencias á communicação dos homens, façam-se brotar as fontes de
agua potavel, destruam-se ou expulsem-se as feras, e o que não tinha
valor impregnar-se-ha d'elle. Que o homem surja e se apodere de um
tracto maior ou menor d'esses terrenos, a individuação realisou-se. Como
d'antes, aquella superficie conserva o rude sello que ahi estampara a
natureza: nada apparentemente mudou; e todavia, como lá se encontraram o
homem e o valor, producto do trabalho social, a propriedade nasceu.
As forças da natureza são dom gratuito de Deus. Empregal-as como
auxiliares do trabalho é direito commum, direito egual para todos. Se me
apoderei das da terra em certo espaço d'ella, só um direito melhor que o
meu poderia vir depois destruir esse facto. Ora, o direito de outrem é
precisamente egual ao meu. Ha, pois, duas forças eguaes que se
equilibram. Portanto, o meu acto, que é anterior, subsiste. Não é ainda
a propriedade; mas se o trabalho, quer collectivo, quer individual, veiu
associar a esse acto uma parcella de valor--o elemento radical da
propriedade--essa propriedade é minha, porque aquelle valor se
incorporou e immobilisou no objecto em que exerço o meu direito ao livre
uso das faculdades productivas da terra. Por outro lado, se uma parcella
do trabalho commum cáe sob o meu dominio exclusivo, tambem n'esse
trabalho commum ha, pela acção directa, ou representada no imposto, uma
parte com que eu contribui. Que viesse augmentada ou diminuida, em
consequencia das leis economicas e dos seus, muitas vezes imprevistos, e
sempre incoerciveis effeitos, a quota que me coube é na essencia uma
restituição.
Assim, no territorio de uma sociedade organisada, om um grau maior ou
menor de civilisação, o valor do predio inculto, sob o dominio de
qualquer individuo, teve, ou n'elle ou nos que lh'o transmittiram, uma
origem tão racional, constitue uma propriedade tão legitima, como o
valor do predio cultivado. A unica differença está na diversa
intensidade dos dois valores. De certo o possuidor do predio onde apenas
se acha consolidada uma quota do producto do trabalho commum, não
exigirá o mesmo preço de venda ou o mesmo foro que exigiria, se com essa
quota se achasse incorporado o producto do seu trabalho directo. N'isto
está unicamente a differença: diversidade de capital e diversidade de
juro.
Qual é, pois, o facto que se dá na emphyteuse? O possuidor da terra
conserva ahi pelo dominio directo o que é seu, e só abandona o uso das
faculdades productivas do solo, dom gratuito da natureza. Não ha pois
transmissão de propriedade no contracto emphyteutico, quer este seja
respectivo a terrenos incultos, quer a terrenos cultivados. Na
emphyteuse ha um acto e um contracto: contracto de censo, de juro, de
renda perpetua, como a linguagem juridica lhe quizer chamar; acto de
abstenção do uso de certas forças naturaes que não podem constituir
propriedade.
Das precedentes considerações derivam duas consequencias luminosas que
podem guiar os poderes publicos nos seus esforços para trazer o
proletariado rustico a melhores condições de existencia, libertando-o da
emigração quando a ella o fórça a miseria, ligando-o á manutenção da
ordem e da propriedade pelo proprio interesse, tornando-o cooperador
mais energico e efficaz do accrescimo da riqueza publica, e
moralisando-o pelo bem estar domestico. A primeira consequencia é que
todas as disposições legislativas tendentes a obter estes fins devem
especialmente promover a emphyteuse nos terrenos incultos, onde, de
ordinario, o foro é moderado, e onde o colono não pode deixar de
incorporar no solo uma parte avultada do seu trabalho; convertido em
valor immanente, em capital productivo, que augmente de anno para anno o
bem estar da familia obreira, e crie para ella a verdadeira propriedade
territorial. Aparcellar, por pequenas emphyteuses, vastos terrenos já
reduzidos a cultura, tem vantagens e desvantagens que mutuamente se
annullam e que seria longo e extemporaneo discutir aqui. Nos baldios, as
desvantagens desapparecem e as vantagens subsistem, como depois veremos.
A segunda consequencia é que no complexo de leis e providencias
destinadas a elevar a condição moral e material do trabalhador agricola,
o respeito ao direito de propriedade e á justiça nunca se ha-de
preterir, á sombra de qualquer pretexto de utilidade commum, ou de
qualquer sophisma politico mais ou menos subtil. O estado pode
distribuir a quem entender, e como entender, a porção de solo que tem
legalmente debaixo do proprio dominio. É uma pessoa moral que usa do seu
direito. Se prefere a individuação allodial, em grandes ou pequenos
tractos de terra, commette, a meu ver, um erro, mas erro legitimo. O que
não pode é dispor do que é alheio, em nome das conveniencias sociaes. As
leis agrarias, as leis de sesmaria, mais ou menos applaudidas outr'ora
pela irreflexão, seriam na epocha actual, em relação á propriedade
individuada, um absurdo brutal, uma pura violencia. Os desvarios do
socialismo podem desculpar-se e perdoar-se quando rugem nos grandes
receptaculos das profundas miserias; mas o socialismo, descendo das
regiões do poder, que representa a sciencia, a consciencia e a vontade
justa e serena da sociedade, será fatal ainda mais para as gerações
futuras do que para a geração presente. Se a liberdade é contagiosa, o
despotismo é prolifico. A mancenilheira, que mata, cresce e braceja como
as arvores cujos fructos mantêm a vida. Em questões cuja solução possa
collidir com a liberdade e a propriedade individuaes, cumpre sobretudo
que a lei seja suasoria, e tenha, quanto for possivel, um caracter
facultativo. A persuasão da lei consiste em oppor um interesse maior e
novo ao interesse menor e antigo. Deixem o resto ás tendencias ingenitas
do coração humano. Tenho pouca fé no bem que pode provir da extorsão ou
de outra violencia, da quebra dos direitos originarios dos cidadãos.
Vai-se longe, guiado pela mão da logica, logo que se entra n'este triste
caminho.

IX
*Val-de-Lobos, janeiro de 1875.*

Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Meu amigo, n'estes sitios, onde a oliveira,
nos annos de safra, representa o mais importante papel agricola, e onde
sempre as sementeiras das nossas terras, geralmente pobres, carecem de
ser temporans, não sobra demasiado tempo ao cultivador, durante os mezes
de outubro a dezembro, para estar enfileirando idéas, e sabe Deus se
apenas phrases, sobre o papel. É por isso que tenho deixado respirar v.
ex.^a da tediosa leitura das minhas cartas. Se, porém, a tardança lhe
foi allivio, vai esta provar-lhe que ainda não expiou de todo o delicto
de as haver provocado.
A ultima das que a precederam suscitou a severidade da critica.
Achei-me, sem saber como, paradoxal. Pasmará v. ex.^.a Não pasme. É que
a palavra paradoxo significa hoje cousa diversa do que pensa. No nosso
tempo significava uma proposição verdadeira ou falsa (de ordinario
falsa) contraria ao sentir commum. Pois bem. Sabe v. ex.^a em que
consistiram os meus paradoxos? Em suppor que havia direitos primordiaes,
originarios, absolutos, e em imaginar (_horresco referens_) que o
possuidor legal de um terreno inculto era dono legitimo d'elle. Podem
ser dous erros grosseiros: mas que fossem paradoxos é o que nós não
suspeitariamos quando frequentavamos as escolas. São-no hoje: que quer
v. ex.^a que eu lhe faça? E todavia estes dous erros estão no amago de
uma questão suprema--a da legitimidade ou illegitimidade das condições e
essencia do liberalismo, do molde social por cuja manutenção ambos nós
temos longamente combatido; v. ex.^a com os seus poderosos e variados
meios; eu com os meus fracos recursos. Se porventura são erros, se
acertos, havemos de averigual-o. Custar-me-ha entretanto considerar os
taes paradoxos como desacertos, e provavelmente a v. ex.^a succederá o
mesmo. Estou velho, e v. ex.^a tambem. Os velhos são tenazes em manter
as suas opiniões da edade viril. Até, ás vezes, ignoram redondamente
muita cousa boa, que não foi do seu tempo. Digo isto por mim. Ando no
inverno da vida tão arredado do mundo e dos livros, que o ignorar os
mais recentes progressos do espirito humano não é em mim nenhum milagre.
A civilisacão, como os rios caudaes, deslisa pela amplidão das eras
majestosa e serena, e todavia rapida. Quem não a acompanha nas suas
incessantes evoluções acha-se abraçado com o erro quando cria abraçar a
verdade. Nada mais facil do que estar eu dando hoje um lastimoso exemplo
da exacção d'esta doutrina.
Consinta-me, em todo o caso, v. ex.^a que, antes de proseguir, recorde e
resuma aqui, nas menos palavras possiveis, o estado da questão sobre a
qual teve a imprudencia de pedir o meu voto. É uma razão de ordem.
Tracta-se da emigração para a America. Na minha opinião, salvo certos
actos vulgares de protecção e policia, rigorosamente contidos dentro dos
limites constitucionaes, nada ha a fazer sobre este assumpto, que seja
fecundo e legitimo, senão proceder de modo que a miseria, causa efficaz
da emigração, e quanto a mim a mais efficaz de todas, cesse de impellir
os nossos trabalhadores ruraes para além do Atlantico. As demais causas
de emigração ligam-se com a liberdade e responsabilidade individuaes, e
n'um paiz livre, nada ou muito pouco seria licito aos poderes publicos
tentar para as remover. Parece-me tambem que o grande e, talvez, unico
meio de combater vigorosamente essa miseria consistiria em associar ao
trabalho rustico a propriedade territorial, de maneira que mutuamente se
auxiliassem para melhorar a condição do obreiro. Seguindo esta senda,
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