Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 12

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luz economica, a substituição será util, se o novo detentor fizer o que
promette. Mas a difficuldade juridica subsiste, e as nações não se regem
só pelas leis economicas e pelas conveniencias materiaes. A moral e o
direito tambem tem voto na governança, e desconfio, até, de que tem voto
de desempate. É axioma juridico que, se o exercicio do meu direito
perturba os interesses de outrem, não se me pode impor por isso a minima
responsabilidade. No systema do sr. P. de M., não só se me deve impor,
mas, se faço a outrem o desarranjo de não o deixar constituir
propriedade no que possue e disfructa em virtude da lei natural, essa
responsabilidade vai até á suppressão absoluta do meu direito ao
usufructo dos dons gratuitos da natureza.
O que, porém, excede a minha comprehensão n'aquelle systema é querer-se
compensação para o detentor expulso. Compensação de que, e como? Segundo
o sr. P. de M., os effeitos do trabalho collectivo que cria o valor,
objecto do direito de propriedade, não podem redundar em beneficio
peculiar d'este ou d'aquelle; ou, por outra, a sua incidencia não pode
juridicamente especificar-se: hão-de redundar em proveito de todos. Mas
raramente os resultados directos d'esse trabalho, e nunca os indirectos,
abrangem todos os cidadãos. Ora, se o valor creado por elle, por mais
indirecto que seja, não pode tornar-se propriedade particular, aquelle
valor tem forçosamente de ficar sempre no dominio do Estado, que não
ultrapassará as suas attribuições, antes cumprirá o seu dever (concedido
que, como governo, possa ser proprietario) se chamar a contas todos os
possuidores de bens de raiz, quer cultivados, quer incultos. Se acha que
ás cousas possuidas por um individuo accresceu valor, resultado
indirecto do trabalho collectivo, e que o mesmo valor não accresceu aos
bens de todos os outros cidadãos (ainda aos dos que os não tem),
recolhendo a si o accrescimo, não faz mais do que reivindicar o que é
seu. Assim, a compensação dada ao possuidor do predio inculto não tem
razão de ser. Restam os productos espontaneos immediatamente utilisaveis
que elle usufrue, aliás sem melhor direito que os outros, conforme quer
o sr. P. de M. Estes productos não tem valor de troca; não podem,
portanto, apreciar-se. Por isso a compensação é tão impossivel, como
substituir o amarello pelo redondo, ou o cubico pelo encarnado.
Mas, dado este systema, que sem duvida é judicioso, exequivel e justo,
acho ainda uma dureza na precedente doutrina, doutrina aliás
fundamental. A theoria continúa a reger a materia depois de empossado o
novo detentor, que _ha-de_ vir a ter o direito de propriedade quando
associar ás forcas naturaes o _seu_ trabalho. O valor consubstanciado no
predio por effeito indirecto do trabalho collectivo é do Estado, que não
pode dal-o a um, porque é de todos. Que se ha-de pois fazer? Ou o
Estado, pessoa moral, vende aquelle valor criado pela acção do
Estado-governo, ou, considerando-o como um capital que vai mutuar,
fal-o-ha representar pelo juro. No primeiro caso, o proletario, que não
tem com que compre cousas taes, em vez de ser chamado ao dominio
territorial, ficará excluido peremptoriamente d'elle, e a consequência
unica será a accumulacão de mais propriedade rustica nas mãos dos que já
a possuem, ou do capital habilitado para a adquirir. No segundo caso,
temos o aforamento, a emphyteuse de ominosa memoria, que, apezar de
todas as demonstrações historicas em contrario não refutadas, nem por
isso deixa de ter sido instrumento de extorsões e vexames, que por via
d'ella podem resuscitar.
Dão-se hypotheses, que o systema do sr. P. de M. forçosamente ha-de
abranger, e cuja solução, que me atrevo a antever, a consciencia publica
tem de applaudir com assombro. As convulsões da natureza, por exemplo,
os phenomenos meteorologicos imprevistos e violentos convertem ás vezes
o predio cultivado n'uma cousa mais desolada, mais improductiva, mais
nua, do que o era quando esses terrenos ainda incultos, mas por isso
mesmo mais capazes de resistir ao furor das procellas, apenas offereciam
ao homem fructos espontaneos e forcas latentes. A hypothese não é rara.
Ainda ha pouco Macau nos deu um horroroso documento do facto na
propriedade urbana. A tempestade destruiu tudo no predio rural, quebrou
ou arrancou as arvores frondiferas, areiou os campos, revolveu as
vinhas, derrubou a morada e as officinas da granja. Os gados morreram,
as apeiragens levou-as a cheia. O dono, attonito, desanimado, sem meios
para renovar o seu capital fixo e movel, falla em vender o predio.
Ouve-o o Estado e grita-lhe, estribado nos bons principios: «Alto lá,
burlão! Que é o que pretendes vender? Os fructos espontaneos, as forças
latentes? São utilidades que se não vendem. Quererás, porventura,
alienar o valor que te accrescentou ao predio a excellente estrada por
onde conduzias os productos ao mercado? A justiça que encontravas nos
tribunaes quando te disputavam alguma estrema? A segurança real e
pessoal com que alli vivias, mantida pela força publica? As vantagens,
em summa, que eu fiz adherir ao teu predio e que não posso ceder-te? Não
sabes que tudo quanto ahi resta é valor que me pertence? Destruiu a
tempestade os fructos accumulados do teu trabalho. Chamo-me eu a
tempestade? Se practicares o acto que meditas, a Africa te espera. A
burla está prevista no codigo penal.»
Depende a applicação do systema do sr. P. de M. de providencias cuja
contextura ignoro e desejaria conhecer para admirar. Deve ser uma das
mais notaveis assignalar precisamente o que é terreno inculto e o que é
terreno cultivado. Cumpre que os caracteres de um e do outro sejam
definidos, bem exactamente descriptos, indubitaveis, de modo que se
torne impossivel confundirem-se. A confusão seria o arbitrio, e o
arbitrio em questões de propriedade chama-se despotismo e espoliação.
Não convirá, ao menos n'isto, o sr. P. de M.?
Não pretendo negar a solidez do systema, nem embrenhar-me em questões de
principios. Exponho duvidas sobre a applicação practica d'elle; sobre o
_quid et quomodo faciendum_. É possivel que vão por ahi algumas
exuberancias de logica. Não sei retel-a a tempo, segundo dizem; mas eu
não tenho culpa de ter nascido com a intelligencia debil. Se ha culpa, é
da logica, em aproveitar-se d'este imbecil do meu espirito, para correr
á solta pelo campo das desattenções.
Desejo aplanar difficuldades aos progressos da evolução. As doutrinas
revolucionarias de 89 sobre os direitos originarios e imprescriptiveis
do homem estão velhas e gastas, como a minha razão. Os deuses vão-se.
Com o mau habito de repugnar ao arbitrio e de odiar a oppressão, tanto
de muitos por um, como de um por muitos (identica anarchia, identica
tyrannia), desejara que o absolutismo dos Cesares e o absolutismo das
multidões achassem diante de si e desenhando-se-lhes nas consciencias,
ao menos para uso dos remorsos, padrões que assignalassem os limites
entre o campo da auctoridade e as gandras silenciosas do despotismo.
Quizera que, no logar do antigo direito natural que expira, se
consagrassem principios novos accordes com os novos systemas, com as
evoluções e com as evoluções das evoluções _in infinitum_. Quizera que o
pretendente a detentor do predio inculto, ao sacudir d'alli o detentor
antigo, podesse estribar-se n'algumas maximas juridicas geralmente
acceitas. É provavel que o desapossado clame; é provavel que invoque as
doutrinas herdadas pelo seculo XVIII às sociedades modernas; é provavel
que faça um discurso ao pretendente. O perigo inspira. Naturalmente
diz-lhe assim, pouco mais ou menos:--«Cidadão proletario, exiges que te
ceda este solo inculto que possuo, para d'elle fazeres surgir as forças
latentes da natureza e casal-as com o teu trabalho, a fim de procrearem
o direito de propriedade, demonstrando ao mesmo tempo o transformismo de
Darwin pela selecção sexual, cousa importantissima para a solução da
contenda que vens alevantar. A tua pretenção, meu amigo, parece-me um
pouco exorbitante. Tu queres auferir d'este solo as forças naturaes; eu
aufiro já d'elle os seus productos espontaneos e gratuitos. O teu
direito de apprehensão é excellente, mas o meu não é ruim. Sou
preguiçoso e nasci com vocação campestre: contento-me de assar a minha
caça nas raizes carbonizadas do carrasco e da aroeira; de estirar-me ao
sol no inverno sobre o colchão perfumado do tomilho e do rosmaninho; de
aspirar voluptuosamente no estio os effluvios da giesta e da madresilva;
de scismar vagamente ao lusco-fusco, olhando para o viso crespo e
dentado da collina deserta, a que fazem espaldar, colgado do ceu, os
ultimos clarões do dia; de me dessedentar, debruçado sobre o arroio que
passa; de attender, ás vezes, ás insinuações imperiosas do estomago com
a azinha e o medronho da selva ou com a camarinha da gandra e a amora do
silvado. Deus me livre de obstar ao teu direito de trabalhar,
perfeitamente egual ao meu de fruir. Terás uma vantagem: acharás quem te
compre o fructo do teu trabalho, e eu não acharei quem me dê um ceitil
pela fruição dos dons da natureza. Se vender este predio, dar-me-hão o
restricto equivalente do valor de que o impregnou, sem intenção e pela
força das cousas, o trabalho social, em que tambem á fina força me
fizeram lidar, com grave prejuizo da minha indolencia. Vae, amigo,
trabalha. Se te appetece a agricultura, agriculta. É ampla a face da
terra, e posso asseverar-te, sem medo de errar, que o genero humano
ainda não desbravou nem apropriou, pelo trabalho dos individuos ou do
Estado, a decima parte d'ella. Ha no mundo charnecas a trasbordar. Se o
Estado faz gosto de que sejas lavrador n'estes sitios, não digo que não.
Vae ter com o Estado, e dize-lhe que me offereça vantagens, não tocando
no meu alvedrio. Pode ser que troque por ellas estes dons naturaes; que
sacrifique a minha vocação campestre. Acredita que sei calcular, e que
não nasci absolutamente idiota. Emquanto isso não se arranja, deixa-me
priguiçar n'este chão brenhoso, como tu has-de priguiçar quando a
propriedade adquirida pelos teus esforços, e em que terás um direito tão
absoluto como este meu, te habilitar para o fazeres, sem que ninguem te
ralhe por isso. A differença estará em que os teus commodos e gosos
serão, como é de razão, bem superiores aos meus. Com que então, o
usofructo não vale nada? Um civilista era capaz de te dizer que o meu
constitue uma especie de propriedade. A natureza deu-me o que podia dar:
eu acceitei o que podia acceitar. Contracto perfeito. Não irei tão
longe. O trabalho, querido proletario, é um dever moral. Confesso-o. O
que não te confesso é que seja uma obrigação juridica. Podes
vituperar-me no sanctuario da tua consciencia: não podes condemnar-me no
tribunal da tua justiça. Se não te apraz sair da tua patria, do teu
concelho, da tua freguezia, isso é altamente louvavel: prova que tens um
coração amoravel, mavioso; não me perturbes, porém, no exercicio do meu
direito. N'esse caso, muda de rumo, e deixa-te de agriculturas. As
forças naturaes tem modos indefinitos, senão infinitos, de se associar
com o trabalho. Não sejas birrento. Um capricho não destroe um direito.
Vês aquelle ribeiro? Aproveita as suas forças latentes: constroe um
moinho á beira da agua n'aquelle descampado, além da minha estrema, e
faze-te moleiro. Se é tarde para aprenderes o officio, nem por isso
ficas com os braços atados. Não desesperes do consorcio do teu trabalho
com as energias da natureza. Submette, por exemplo, aos teus esforços a
maleabilidade do ferro augmentada pelo calorico, e sê malhador de
ferreiro. Mette depois as sobras do teu salario na caixa economica.
Estás proprietario. Explora, até, a minha intelligencia, aproveitando-te
dos meus conselhos. Ainda melhor: explora a tolice humana, uma das
forças naturaes mais energicas. Faze-te védor d'aguas ou constructor de
estados sociaes novos; inventa um remedio secreto ou uma imagem que faça
milagres; vende bilhetes de loteria ou bullas da sancta cruzada. Depois
capitalisa. Faze tudo, menos bulir no meu usofructo das utilidades
gratuitas que, n'este tracto de terra, me subministra a natureza.»
Sei que os sophismas e os insulsos dicterios do retentor do predio
inculto caem diante da irresistivel theoria que supprime os direitos
primordiaes, guardando-lhes aliás todos os respeitos e sepultando-os com
todas as continencias. Mas se o retentor effectivo fica desarmado pela
theoria, tenho minhas suspeitas de que o pretendente a retentor não fica
melhor armado. Desconfio de que atraz d'aquelles gracejos de mau gosto
estejam aninhadas algumas formidaveis verdades. Restará a forca material
para dirimir a contenda; mas a força bruta, em questões de direito,
significa anarchia ou tyrania. É por isso que espero sejam substituidos
os direitos originarios ultimamente fallecidos por uns direitos
originarios novos que se amoldem ao progresso das successivas evoluções
sociaes, e que, demittidas do serviço publico as maximas juridicas
antiquadas, se formulem outras de indole perfeitamente evolutiva, isto
é, que vão seguindo, pela folhinha, a pista das festas moveis.
E o capitulo da desforra? Ia-me esquecendo. Ficará para mais opportuna
occasião.

XI
*Val-de-Lobos, 16 de marco de 1875.*

Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Foi apoz uma primeira e rapida leitura do
quinto artigo do sr. P. de M. sobre a extirpação das rainhas heresias
economico-juridicas, que pedi licença a v. ex.^a para dividir a presente
carta em duas secções ou capitulos. Depois, quando pensei no segundo,
hesitei muito sobre se deveria reduzir-me a significativo silencio.
Moveram-me em sentido contrario duas considerações. O silencio podia ser
offensivo para o meu antagonista, e ao mesmo tempo nocivo para uma idéa
que reputo altamente boa e practica, e de cujas vantagens, se fôr
applicada, estou intimamente convencido. Ha muita gente, e ás vezes
preponderante, que acha sempre razão a quem, para debellar uma idéa,
discute um individuo. Esta especie de criterio amolda-se a todas as
capacidades. É ruim o individuo? Ruim deve ser a sua doutrina. Má
arvore, mau fructo. É assim que os habeis argumentadores, quando a
discussão os cansa ou os irrita, recorrem, ás vezes irreflexivamente, a
esse ardil de guerra, que, se não mata, debilita, ao menos, a opinião
adversa. Eis as razões que afinal me induziram a fazer alguns reparos
sobre a substituição da analyse das minhas opiniões pela analyse do meu
caracter e da minha intelligencia, substituição a que, aliás, alguem
achará um merito--o de provar de modo irrefragavel que a maneira mais
justa, mais facil, mais simples, de chamar os proletarios rusticos á
posse de poucas geiras de terra, e de os converter em defensores da
propriedade é espoliar os donos dos terrenos incultos para repartir
estes com elles.
No artigo do sr. P. de M. ha dois logares que suscitam reflexões graves
e dolorosas; graves e tristes para elle, dolorosas para mim. N'esta
longa discussão, busquei sempre manter illesa a pessoa do sr. P. de M..
Não fiz senão o meu dever. Posso ter tractado com pouco respeito, talvez
com excessiva dureza, as suas idéas; nunca, porém, as expliquei por
vicios de caracter, por uma indole moral ou intellectual aleijada. Era
mau e era pueril. Ralharia, por certo, a consciencia commigo, e a
consciencia não me diz nada. Tenho o direito de avaliar as opiniões: não
o tenho de avaliar o individuo a proposito d'ellas. Se o fizesse, daria
um terrivel documento da irritação que se me attribue. Só a irritação
absolve taes lapsos. Os jesuitas, quando os faço agoniar, chamam-me
atheu, protestante e pedreiro-livre. Acho isto regular. Mas entre mim e
o sr. P. de M., cousa analoga seria monstruosa e moralmente impossivel.
Entendo que elle erra ás vezes, como elle entende que eu erro.
Digo-lh'o, e elle diz-m'o. A discussão é isto. Se não é, em que
consiste? As minhas cartas ahi estão. Onde aggredi o caracter, a indole,
ou descubri os _dotes_ condemnaveis do sr. P. de M.? Nem tinha motivos
para isso, nem que fosse fundada a aggressão, vinha a provar cousa
nenhuma no debate. Onde fiz o anachronismo de ir buscar o sudario frio
do morto para o lançar sobre os hombros do vivo? Demonstraria isso,
acaso, que os donos dos predios incultos são ou não são donos d'elles?
Ainda quando por esse meio se impedisse ou facilitasse a pacifica
evolução de uma lei agraria, nunca por causa d'isso ousaria nomear-me a
mim mesmo juiz substituto do juiz effectivo dos mortos, do magistrado
inflexivel mas justiceiro, que se chama a posteridade, e muito menos
ousaria matar ninguem, posto que hypotheticamente, para avolumar o rol
dos culpados sujeitos á minha usurpada jurisdicção.
Sinto mais pelo meu antagonista do que por mim que elle busque tornar
suspeito o individuo, como meio de tornar suspeita a idéa; mas sinto
incomparavelmente mais que assevere havel-o eu transformado em
communista, quando é elle que, em relação a mim, teve, segundo diz,
serias apprehensões ao ler, n'um escripto meu recente, que _parecia ser
chegado o tempo_ de se darem ouvidos ás caramunhas socialistas do homem
de trabalho. Sinto, sobretudo, e isto não só por elle, mas tambem por
mim, que o sr. P. de M. affirme que as minhas crenças sociaes e
politicas _mais modernas_ se declaram _á ultima hora_ cartistas. V.
ex.^a que, como eu, estima as excellentes qualidades do meu contendor e
leu a minha ultima carta, lamenta decerto, como eu lamento, que,
promettendo não perder a tranquillidade de animo, elle desminta a
promessa na mesma conjunctura em que a faz. Espero que o sr. P. de M.
(vai n'isso o seu pundonor) citará o escripto e a pagina, e transcreverá
textualmente a passagem, origem da sua anterior consternação e dos seus
profundos terrores ácerca das minhas intenções tenebrosas. Poupará assim
á synthese moderna o trabalho de me fulminar. Negára o meu adversario a
existencia dos direitos originarios, que eu invocava em defeza dos
possuidores de predios incultos. Lembrei-lhe as consequencias d'essa
negativa, que envolvia a condemnação do liberalismo e da Carta:
lembrei-lhe que, recusada a immutabilidade d'aquelles direitos, o perigo
de cair, de deducção em deducção, atravez dos systemas socialistas, nos
tremedaes do communismo, era inevitavel. Sabe v. ex.^a, sabem todos que
pela imprensa tiveram conhecimento d'aquella missiva, que nos periodos a
que o meu antagonista se refere, ha isto, e unicamente isto. Creio até
que, passado o impeto da paixão, no fim de vinte e quatro horas, e
apenas publicado o seu quinto artigo, o sr. P. de M. sabia já, como nós,
que a significação que dera ás minhas palavras era de todo o ponto
falsa. Ou ellas equivaliam a uma inepcia, ou, para valerem um argumento,
cumpria que tivessem exactamente a significação contraria. Era preciso
que eu suppozesse no meu contendor respeito á Carta e afferro ás crenças
liberaes. Ninguem diz ao que se ungiu com lodo e se enfileirou nas
cohortes da anarchia e do crime:--«Olha que te perdes; olha que, se
abandonas os principios eternos do justo, vais precipitar-te pelos
despenhadeiros obscuros, que conduzem á morte da consciencia; olha que
desmentes o credo liberal, os dogmas da tua religião politica; olha que
negas a Carta: sim, a Carta, cujas imperfeições é possivel que tambem eu
conheça um pouco, mas que é o pacto social do teu paiz, e que eu, tu,
nós todos temos obrigação de respeitar e manter, emquanto os poderes
legitimos não a alterarem ou substituirem; a Carta, sim, que, apezar dos
seus defeitos, nos assegura uma liberdade real, ampla, tranquilla,
liberdade que tem sido fonte de constantes progressos, e que está
attrahindo a attenção e a sympathia da Europa, pela tua pobre terra, tão
insultada e até calumniada em tempos bem pouco remotos.»--Acha-me o sr.
P. de M. cartista da ultima hora; acha o cartismo a minha crença _mais
moderna_. Isto a mim! Era o sr. P. de M. uma creança quando o cartismo
era um grande e nobre partido. N'aquelle tempo havia em Portugal
partidos. Segui-o do berço ao tumulo; segui-o desde que se ergueu como
um protesto contra o tumulto das ruas até que, desvairado, foi
suicidar-se no tumulto dos quarteis. Amortalhado nos estandartes da
soldadesca, diziam-n'o vivo. Que me importava, se, atravez da téla, bem
via que estava morto? Fui cartista emquanto houve cartismo, da primeira
até á ultima hora. Fiquei depois solto. Pertencera a um partido; não
pertenci a um cadaver. Desde então até hoje pensei e senti
exclusivamente por minha conta, em politica, bem como em tudo. Achei-me
só e isento. Se fiz bom negocio n'esta isenção, não alcancei fazel-o de
graça. Tive de recalcar bem fundo no coração todas as ambições. Nenhuma
parcialidade, desde a do pseudo-cartismo até a mais recente das que lhe
succederam, ha-de encontrar o meu nome no rol dos seus adeptos. Tambem
durante o periodo de quasi quarenta annos, nenhum governo deixou
commemoradas nos archivos das secretarias as mercês que d'elle
solicitei, ou que sequer lhe soffri. É por isso que na escala da
gerarchia social o meu logar, passado bem mais de meio seculo, é ainda o
mesmo onde nasci. Das reliquias dos sete mil e quinhentos loucos do
Mindello, não sei ao certo quantos mais dos não inteiramente obscuros,
podem dizer o que eu digo. Se houvera servido n'alguma cousa este paiz,
e tivesse por isso direito a solicitar recompensa, pediria que me
deixassem morrer em paz e depois dormir esquecido no adro da aldeia
visinha. Eisaqui o resumo e o fito das minhas crenças mais modernas e a
historia do meu cartismo da ultima hora. Virá tempo em que o meu honrado
adversario tenha pena de haver dito o que n'esta parte me disse. Quando
eu deixar o mundo, ainda cá ha-de ficar a injustiça.
Poucas mais palavras agora.
Acredite o sr. P. de M. o que lhe vae affirmar um velho luctador da
imprensa, que crê ter dado alli provas, não só de alguma energia e
pericia, mas tambem de sinceridade austera. O seu ultimo artigo
ageitava-se admiravelmente a crueis represalias, porque o dictára a
colera. Esteja bem certo d'isso. Algumas d'ellas iam-se accumulando
sobre o papel. A meio caminho, envergonhei-me de mim. Rasguei o que
estava escripto. Aos sessenta e cinco annos, que me batem á porta, não
ter equanimidade para reprimir o amor proprio, uma das poucas e
enfraquecidas paixões que nos perseguem até a velhice, é fraqueza que
humilha o orgulho legitimo. Domando a vaidade, fico bem commigo. Ha
miseraveis que, ás vezes, cumpre punir duramente, quando não o sejam a
tal ponto que imponham o silencio; mas tractar como uns ou como outros
um homem de brio e de talento que se transvia, pode não ser injusto em
abstracto, mas é em concreto iniquo.
O que não quero é tornar a fazer o papel de Mephistophles; arrastar de
novo o sr. P. de M. a batalhar n'um campo que, em momentos mais
placidos, reputaria defezo. Embora com prejuizo meu, cessarei de lêr os
seus artigos sobre a emigração e a agricultura. Continuando a dizer a v.
ex.^a o que penso ácerca de um assumpto, que cada vez se complica mais,
transformando-se, a ponto de se converter em materia principal o que era
incidente, é natural que as minhas opiniões repugnem ás suas
frequentemente, porque vemos as questões sociaes a diversa luz: eu ao
frouxo clarão das preoccupações cartistas que me invadem de novo; elle
aos vivos esplendores de atilada e consciente democracia. Abstendo-me de
o ouvir, a collisão das doutrinas é mais que provavel: a disputa é que
fica sendo impossivel.
Se todavia, depois de madura reflexão, o sr. P. de M. entender alguma
vez que a bem do paiz e das proprias convicções é necessario desenhar
com vigor os defeituosos lineamentos do meu caracter, deixo á sua
disposição o meu ser moral, não só nas manifestações da vida publica,
mas até nas da vida familiar e intima.
Desculpe v. ex.^a este, acaso immodesto, desafogo, e creia sempre que
sou, etc.
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