Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 02

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administrativa e parlamentar, o desenvolvimento do paiz, desenvolvimento
innegavel, posto que muito inferior ao que devera ter sido, foi apenas a
consequencia das providencias da primeira dictadura, e de alguns poucos
actos da revolução de 1836, em que appareceu um homem de verdadeiro
talento e de verdadeiro patriotismo, mas que, perdoe-nos elle, quasi
compensou o bem que fez com os males cuja semente lançou á terra,
transportando do campo da theoria para o dos factos as idéas
proteccionistas. Ainda eram, comtudo, idéas: ainda era um reflexo de
1832. Depois só houve politica esteril ou reaccionaria. O progresso,
independente das instituições, das leis e da acção administrativa, que
se realisou n'este periodo, tem-se devido ás idéas e aos esforços
particulares, á razão e á actividade dos cidadãos, movendo-se n'um
ambiente de liberdade intellectual; porque é preciso confessar que
n'esta longa epocha de pequenas paixões e de turbulencias interminaveis
a iniciativa individual e a liberdade dos espiritos, fóra da esphera
politica, tem sido geralmente respeitada.
O cansaço quebrou por fim a violecia das facções e trouxe o periodo do
repoiso. Boas ou más que fossem as doutrinas dos partidos militantes,
ellas eram bandeira, não crença. A prova ahi está na historia dos
ultimos quatro annos. Modificaram-se e mollificaram-se as opiniões,
porque não tinham sido senão o estandarte dos interesses particulares, e
porque nas phases variadas da longa lucta das parcialidades aquelles
interesses chegaram mesmo, por acaso, a uma combinação politicamente
possivel. Mas este facto trouxe outro mais grave: o paiz, que suspeitava
de muitos, descreu de todos. É um mal ou um bem absoluto? O futuro o
dirá. O que é certo é que desanimou e tornou-se indifferente aos
partidos. Entretanto é incontestavel que vivemos n'uma quadra
tranquilla. Que os homens influentes da situação o attribuam, não á
indifferença do paiz, ao seu tedio de conflictos mais ou menos
sanguinolentos e devastadores, mas sim á illustração, á justiça, á
moralidade e ao liberalismo do poder, e á sua propria philosophia
politica, que se remonta acima da comprehensão de nós outros homens
vulgares, que importa? É uma rixa domestica; é uma questão entre os
labios e a voz intima do coração. Nada temos com isso. O que nos importa
é o facto, e o facto é que gosamos de paz e de liberdade de discussão
ácerca de todas as materias politicas e sociaes. A quem nos deixa isto
deve-se perdoar alguma coisa. Pode-se ter qualquer sentimento a respeito
dos homens da situação: ter-lhes odio seria impossivel. Estão abaixo e
além d'isso.
E no meio da paz e da liberdade da palavra e da escripta apparecem
tendencias, e mais do que tendencias, esforços para a realisação de
novos progressos. O governo actual é arrastado pela opinião publica,
como o seria qualquer outro que o substituisse, a melhorar as
communicações internas, e no Minho ergue-se o povo para tomar n'esta
parte a iniciativa. As questões d'instrucção popular, que passavam
desapercebidas, excitam já a attencão e o interesse: não tardará que a
opinião reclame a sua solução practica tão imperiosamente como reclama
as estradas. As doutrinas da liberdade da industria e do commercio não
só combatem face a face as preoccupações contrarias, mas até são
chamadas á prova, e legitimam-se pelos resultados. Os espiritos começam
a comprehender que o credito rural pode deixar de ser uma utopia, a
associação uma vã palavra. No parlamento é atacada a instituição dos
vinculos, e parece aproximar-se a ultima ruina d'estes. O governo,
emíim, abriu o caminho para se chegar um dia ao verdadeiro systema
tributario, sem o qual o triumpho completo do livre commercio e da livre
industria é impossivel. Por ora a repartição do imposto directo,
substituida á decima, pouco mais é do que uma troca de palavras, e Deus
queira que não deixe de o ser antes de tempo; mas o povo vai-se afazendo
á idéa, e é essa uma grande difficuldade vencida para o futuro.
Estes factos são importantes, e estão, em geral, no espirito da
revolução de 1832; mas todos elles tem uma desenvolução posterior, e
essa desenvolução é que ha-de aproximal-os ou afastal-os do systema
d'aquella epocha. Oppõem-se-lhes as tendencias reaccionarias, algumas
das quaes já se manifestam nas leis e traduzem-se nos factos. Quando em
muitos animos preponderam os desejos da restauração do passado; quando
estes desejos começam a apparecer na legislação, é preciso estar de
sobreaviso para que a reacção se não introduza no progresso sob o manto
da imparcialidade. É esse o perigo das doutrinas, que nos aconselham
afastemos os olhos das questões de ordem moral para só pensarmos no
melhoramento material. Servirão taes doutrinas a tal ou tal situação,
porque precisará d'ellas para se absolver a si propria; mas não servem
ao paiz, e podem ser ainda fataes áquelles mesmos que as propugnam.
Cumpre na desenvolução de cada reforma ligal-a pelas suas condições ao
systema da liberdade.
Se repetidos exemplos de corrupção fizeram descrer o paiz dos homens
publicos, o progresso material, desligado e independente das condições
politicas da sociedade actual, pode fazel-o descrer d'essas condições. O
governo representativo não é commodo nem barato. É preciso que o povo
considere as vantagens do bem estar como inseparaveis dos incommodos e
sacrificios que as instituições exigem. O triste espectaculo, que hoje
presenceamos, de uma grande nação privada dos seus fóros é a mais
tremenda lição que nos offerece a historia sobre as consequencias de
converter o porco de Epicuro em symbolo exclusivo da religião social.

III
*Abolição dos vinculos*
O pró e o contra

Entre as reformas pendentes merece attenção particular a abolição dos
vinculos. Agita-se hoje essa questão, á roda da qual vêm accumular-se
outras mais graves. Considerada em si, e só em relação aos seus
resultados economicos, a extincção d'esta fórma de propriedades
realisar-se-ha de um modo. Considerada em relação a todas as
consequencias da medida, tanto economicas como sociaes e politicas,
ha-de realisar-se de outro. A abolição dos morgados e capellas pode, até
certo ponto, remediar o mal que resultou do systema inconveniente
adoptado na distribuição e alienação dos bens nacionaes, se essa
abolição se reputar um problema subordinado, uma hypothese que entra na
questão geral da organisação da propriedade em relação ao bem estar
material, moral e politico da sociedade. A esta luz a solução da questão
geral determina forçosamente a da hypothese. Não é possivel, portanto,
separal-as. Nas considerações que vamos fazer, considerações talvez
incompletas, mas que cremos uteis, procuraremos quanto fôr possivel
attingir á generalidade.
As principaes objecções que se podem oppôr á existencia dos vinculos são
de diversa ordem: moraes, politicas e economicas. Uma parte d'ellas
entram na questão geral da grande e da pequena propriedade. Outras
pertencem á ordem politica e á ordem moral.
Oppõe-se aos vinculos que, sendo estes uma fórma de propriedade em que o
direito de testar é tirado ao possuidor d'ella, convertido em simples
administrador, falta a este o principal estimulo para os melhoramentos
permanentes. Tudo pelo contrario o incita a tirar dos predios que possue
a maxima utilidade pessoal. Salvas as hypotheses de viva affeição
áquelle, que, não elle, mas a lei e a instituição fazem seu herdeiro, ou
de uma decisiva paixão pela agricultura, o administrador do vinculo será
sempre o peior entre os proprietarios ruraes, e a terra vinculada será
constantemente um modelo de atrazamento e de incuria, um obstaculo
permanente ao progresso agricola. A historia e o estado dos vinculos em
Portugal demonstram _a posteriori_ a verdade e o alcance d'esta
objecção.
A instituição vincular é injusta excluindo os irmãos menores de egual
quinhão na herança paterna, tornando-os dependentes, por um subsidio, do
irmão mais velho, ao passo que não podem obstar a que este annulle os
recursos para o pagar. Aquelle incerto meio de subsistencia é, alem
d'isso, um incentivo de preguiça e ignorancia, uma fonte de irremediavel
miseria para o homem a quem um berço illustre poz sem culpa sua fora do
direito commum.
O vinculo é a negação permanente de uma das primeiras condições da
propriedade: n'elle os dois dominios estão incorporados n'um só, mas
esse dominio não está _actualmente_ em parte nenhuma. Ficou, digamos
assim, chumbado na campa de um tumulo: o tumulo retem-n'o até o fim das
gerações. O morto desmentiu o direito dos vivos. O seu herdeiro, o homem
que lhe succedeu na posse da terra e que elle chamou a isso por um acto
livre e espontaneo, é pouco mais que um simples usufructuario. Mas ha
outro que deva depois d'elle succeder com pleno direito, porque o
affecto nascido dos laços domesticos ou do sentimento da gratidão moveu
o instituidor a tornal-o proprietario d'essa terra apoz o
quasi-usufructuario? Não ha. Ha só uma serie de descendentes que o
instituidor desconhece, e, na falta d'estes, os de collateraes que não
lhe importam. O fundador de um vinculo não fez mais do que empilhar os
corpos de individuos tirados das diversas gerações para sobre elles
assentar o throno da sua vaidade. Decretou-se homem grande: teve pena de
que o futuro esquecesse personagem tão importante. Certa escola
socialista mais moderada nega no que possue o direito de testar: os que
estabeleceram a jurisprudencia dos morgados foram os precursores d'essa
escola. Os antigos sacrificavam ao Deus desconhecido, _ignoto deo_; os
instituidores de vinculos sacrificam _ignoto homini_.
Os vinculos refogem, pela condição da inalienabilidade, aos impostos
sobre transmissão por venda. Tornam, n'esta parte, em virtude de um
privilegio, impossivel de se realisar ácerca d'elles a proporcionalidade
constitucional das contribuições.
A existencia dos vinculos, derivando de um privilegio, está
absolutamente em antinomia com a lei política, não se provando que essa
existencia seja de utilidade publica.
Admittidos entre nós os vinculos em epochas, nas quaes o atrazo agricola
tornava pouco productiva a terra, esta só podia constituir um morgado ou
capella importante, vinculando-se uma immensa extensão de solo. No meio,
porém, de população rara e de cultura pouco intensa e pouco frequente,
elles não ofereciam grande obstaculo á exploração da terra. Agora,
porém, que já o agricultor arrosta com os terrenos de segunda qualidade,
e que a população se desenvolve e cresce, cada decada, cada anno, cada
dia estão mostrando mais claramente o absurdo de se conservarem
terrenos, muitas vezes de primeira ordem, incultos ou mal cultivados por
causa de uma instituição, cuja existencia não é legitimada por nenhum
motivo attendivel.
A propriedade d'esta especie esta em regra condemnada á ruina e ao
atrazamento. O predio vinculado, passando livre ao successor, é uma
pessima hypotheca. O capital não se põe em contacto com elle senão por
meio de exorbitantes usuras. Comprehende-se como um mau administrador de
vinculo para satisfazer os proprios appetites ou paixões sacrifique á
agiotagem um futuro que é seu; mas não se comprehenderia egual
sacrificio da parte de um homem cordato, que pretendesse applicar um
capital avultado aos melhoramentos de propriedades arruinadas pelo
desleixo e falta de economia dos seus antecessores. Embora as
bemfeitorias sejam encargo transmissivel, é certo que o dinheiro seria
sempre incomparavelmente mais caro para elle do que para o proprietario
cujos bens podem ser executados, e o dinheiro caro é para a agricultura
do nosso paiz como se não existisse.
Na verdade, trazida sem restricções a propriedade vinculada ao direito
commum, o mau administrador desbarataria facilmente os proprios haveres;
mas o bom poderia com uma parte d'esses bens, por qualquer modo
alienados, tornar solido o resto da sua fortuna: mais; poderia tirar do
sacrificio os meios de dar á porção salva um valor egual ou maior do que
tinha todo o vinculo. Por certo que para isso necessitava de actividade,
de economia e de intelligencia; mas favorecer taes dotes não seria uma
das menores vantagens da abolição.
Se a facil divisão do solo tem em geral uma grande importancia economica
e social; se a tem egualmente a facil transmissão pelos contratos de
compra e venda; os vinculos, contradizendo completamente esses dois
factos, devem cessar de existir.
Taes são as considerações principaes que se offerecem ou podem offerecer
para se abolir esta forma especial de propriedade. Os seus defensores
recorrem não raro a subterfugios e a razões insignificantes. Ha todavia
algumas considerações que parecem favorecer os vinculos. Contrapol-as às
allegações em contrario é mostrar que se busca sinceramente a verdade.
O direito de propriedade é virtualmente atacado na abolição dos
vinculos. O instituidor de qualquer d'elles estabeleceu-o em bens seus
inteiramente livres, e sem offensa das leis de successão. Se elle tinha
o direito de testar esses bens, tinha tambem o direito de regular o modo
de succeder, de limitar e impôr condições á fruição do que era seu.
Nas monarchias representativas considera-se a existencia das
aristocracias como um facto social legitimo. Pelas instituições esse
facto é convertido em principio politico manifestado no pariato: ou,
antes, o facto indestructivel da desegualdade social é circumscripto por
aquellas instituições dentro da orbita politica, ficando ao mesmo tempo
excluido das relações civis legaes. Desde que, porém, a aristocracia,
representante da desegualdade, é considerada como elemento politico,
torna-se necessario garantil-a. Os vinculos, destinados a manter e
perpetuar as familias aristocraticas, estão portanto essencialmente
ligados á existencia da monarchia representativa.
A divisão indefinita do solo tem os inconvenientes que a França, onde as
instituições de direito publico e de direito civil a favorecem
excessivamente, já experimenta em larga escala. A idéa de allodialidade
absoluta da terra, e de favor para a subdivisão contínua da propriedade,
prevalecendo entre nós no commum dos espiritos, e manifestando-se já nas
tendencias de certas leis, ha-de emfim vir a produzir os mesmos males
que produz em França e em outros paizes, e contra os quaes varios
estados de Allemanha tratam de prevenir-se por via de leis positivas e
terminantes. A existencia dos morgados estabelece uma compensação a
similhantes tendencias, e equilibra a grande e a pequena propriedade.
Suppondo, porém, que em geral a grande propriedade prepondere hoje;
suppondo ainda que a parte allodial d'ella se não transforme pelo
decurso do tempo, e que resista ás tendencias e leis que favorecem a
divisão do solo; nem ainda assim os vinculos devem ser abolidos por
manterem a grande propriedade. Esta não pode ser considerada como um
inconveniente, visto parecer demonstrado que a grande cultura produz
mais barato, que dá em resultado maior producto liquido, e que não ha
grande cultura sem vasta propriedade. Deduzir da situação accidental dos
vinculos, situação que ainda se não examinou se podia ser melhorada,
argumentos contra a essencia de uma instituição, que pode contribuir
para a creação de importantes valores, parece pessima logica e ainda
peior economia politica.
Na hypothese, porém, de que a propriedade perfeitamente livre tenda sem
remedio a subdividir-se indefinidamente, opinião que tem por si os
factos e as previsões de distinctos economistas, abolidos os vinculos,
que é o que fica para satisfazer á necessidade economica da existencia
de grandes predios ruraes?
A centralisação é o grande defeito dos governos representativos:
centralisação da soberania; centralisação da administração pelo
executivo; centralisação da justiça; centralisação da força publica. Mas
todos os poderes centraes tendem a destruir a independencia ou a acção
uns dos outros e a elevar-se acima d'elles. Não raro acontece isto, e a
experiencia ensina-nos que por via de regra é o executivo quem triumpha,
sobre tudo pelos meios de corrupção, triumpho tanto mais perigoso,
quanto é certo que se mantem de ordinario as apparencias
constitucionaes, e que esse absolutismo é mais facil de sentir do que de
demonstrar quando acata certas formulas tornadas estereis. A força dos
agentes administrativos é, n'esta hypothese, immensa; porque se
multiplica de um modo incalculavel a energia da centralisação já d'antes
exaggerada. Abolindo-se os morgados e capellas, e destruindo-se por esse
modo a grande propriedade e as influencias dos nomes historicos, não se
faz mais do que remover obstaculos ás demasias dos delegados do poder
central. O _cavalheiro de provincia_, essa entidade com recursos
materiaes e moraes para contrastar a autocracia do funccionalismo,
cessará de existir. Retalhados os predios allodiaes pelas heranças, os
morgados seriam o ultimo e unico refugio da resistencia legal ao
despotismo da centralisação administrativa.
Ainda outros argumentos a favor da manutenção dos vinculos se costumam
deduzir de certa ordem de considerações moraes. Tal é a difficuldade de
os abolir sem offender direitos adquiridos ou as regras da equidade. Mas
tambem os adversarios dos vinculos vão buscar nessa mesma ordem de idéas
considerações que se oppõem á sua conservação. Subsequentemente teremos
de avaliar alguns d'esses encontrados argumentos quando a successão das
idéas nol-os suggerir. Aqui só quizemos indicar as ponderações mais
graves que mutuamente se contrapõem sobre um problema, de cuja solução
pendem muitos interesses, não só geraes mas tambem particulares, e em
que por isso as exaggerações e argucias são frequentes e é difficil a
imparcialidade.
Basta porém attender ás considerações principaes para se conhecer que a
sua confirmação ou refutação dependem do modo de resolver os mais serios
problemas sociaes, taes como a indole e fins das aristocracias nas
sociedades modernas, a organisação do poder central, e o equilibrio
politico pela descentralisação administrativa, as vantagens e os
inconvenientes da grande e da pequena propriedade, da grande e da
pequena cultura, as leis que determinam o augmento da riqueza publica,
tudo, emfim, quanto mais intimamente se liga com o progresso material e
moral do paiz. Importa ter idéas claras ácerca d'esses graves assumptos
para dar um voto sobre a questão dos morgados. Sem isto os instinctos ou
os interesses de classe, de partido ou de individuos influirão
exclusivamente na abolição ou não abolição, e, supposta a primeira
hypothese, nas disposições da lei por que forem abolidos.

IV
*O principio vincular considerado na sua legitimidade*

A primeira consideração que parece favorecer a conservação dos vinculos
é de ordem juridica; liga-se com a maxima questão social--o direito de
propriedade. O commum dos morgados em Portugal foram instituidos em
terças, de que os instituidores podiam livremente dispor; e quando, com
licença do rei, então arbitro supremo, abrangiam os bens de legitima,
resalvavam-se os alimentos, a que se entendia terem jus os filhos por
direito natural, que ao rei não era licito infringir. Os instituidos,
com permissão regia, em bens de corôa, em commendas, etc., ou fundados
por individuos sem herdeiros forçados, é evidente que não offendiam
direito algum particular, e que o instituidor não fazia senão practicar
um acto legitimo, dando esse futuro destino a bens que podia livremente
testar, ou de que a auctoridade suprema lhe consentia dispor para esse
fim como de cousa propria. Assim a abolição, destruindo a fórma e
condições impostas na transmissão da propriedade pelo proprietario,
negaria retroactivamente o uso de um direito legitimo. A lei pode
prohibir as novas instituições vinculares; mas não pode converter o
administrador em proprietario, nem regular a successão dos bens de
vinculo pelo direito commum.
Na verdade os instituidores de morgados tinham o direito de transmittir
a propriedade de que livremente podiam dispor com as condições que
entendessem; mas as consequencias que d'ahi se deduzem estão longe de
serem incontestaveis. Se admittis a doutrina que apenas estriba o
direito de propriedade nas leis positivas, é evidente que ellas podem
modificar, restringir e até annullar esse direito. Se, com mais razão,
considerais a propriedade como de direito natural, ainda assim as
difficuldades subsistem. As opiniões variam ácerca da extensão d'esse
direito. Ha quem negue que a successão testamentaria e _ab intestato_ se
inclua n'elle; não seja de pura instituição civil: ou, por outra, que o
direito de propriedade possa subsistir além do tumulo. O acto, porém, de
instituir um vinculo não é mais do que levar o exercicio d'esse direito
não só além da morte, mas tambem á perpetuidade. Supponhamos, todavia,
que a successão esteja envolvida no direito natural da familia. Não se
comprehende melhor como a successão vincular se haja de fundar em tal
direito. Que é o que transmittiu o instituidor? Apenas uma parte do
dominio. Nenhum dos seus herdeiros tem o dominio absoluto dos bens do
vinculo: o que tem é, digamos assim, apenas meia propriedade. Resulta
d'aqui um facto. Pela nossa jurisprudencia os morgados extinguem-se: e
esta extincção dimana da sua natureza. Quando ao ultimo administrador
não restam parentes consanguineos, que tambem por consanguinidade o
sejam do instituidor, o morgado acabou. Os bens vinculados devolvem-se
então á corôa, á fazenda publica, á sociedade. Por mais intimos que
sejam os laços de familia que unam o derradeiro possuidor com outros
individuos, esses individuos são excluidos. Comtudo a legitimidade da
successão nos vinculos, como em outra qualquer propriedade, estriba-se
forçosamente ou na lei civil revogavel, ou no direito natural da
familia. N'esta ultima hypothese o vinculo repugna ao principio da sua
propria validade. Porque veiu a succeder o Estado? O dominio residia
n'elle? Dir-se-hia que sim. A idéa de semi-propriedade é uma idéa de
restricção, limitativa: cumpre por isso que exista a cousa restringida,
limitada. Concebe-se, por exemplo, perfeitamente o usofructo nos bens
não vinculados: após o usofructuario ha sempre um herdeiro definitivo.
Nos morgados não acontece assim. Existe á limitação sem a cousa
limitada, se não suppozermos o Estado revestido d'aquelle dominio que
não existe no possuidor. Em relação, pois, ao direito natural da
propriedade a existencia dos vinculos é uma cousa incoherente,
contradictoria, inexplicavel.
Mas ha uma consideração ainda mais grave a oppor áquelles que invocam os
fundamentos do direito em favor d'essa instituição. É que, para
subsistir, ella carece absolutamente das leis de privilegio. A sociedade
deve proteger o livre uso da propriedade e as disposições testamentarias
em quanto ellas se conformam com o direito commum. Lei de excepção para
taes ou taes hypotheses é que não deve nem pode admittir senão por um
motivo que virtualmente o faça entrar na regra geral--a utilidade
publica; e a utilidade publica só pode qualificar-se por uma declaração
legal, por uma disposição de direito positivo. Declarada não util a
existencia dos vinculos, o direito politico faz desapparecer
necessariamente desde logo as leis que mantêm os vinculos. Revogadas
estas, como se não pode conceber propriedade sem proprietario, ou o
dominio completo dos bens de morgado será considerado como _nullius_ e
recahirá no Estado, ou esse dominio se incorporará no meio dominio,
convertendo-se o administrador em proprietario. Seria, com effeito,
absurdo que qualquer individuo tivesse o direito de regular a applicação
e uso dos proprios bens _post mortem_ por tal arte que não se houvesse
de realisar a sua vontade sem certas disposições especiaes de direito
positivo, e que a sociedade fosse constrangida a promulgar ou a manter
semelhantes disposições. A soberania de tal homem excederia a da razão
publica, unica de legitimidade indubitavel.
A abolição, pois, dos vinculos, ou, para falarmos mais exactamente, a
revogação das leis positivas que os protegem, e sem as quaes a sua
existencia não se comprehende, respeita o direito de propriedade. A
questão pode versar sobre a conveniencia ou não conveniencia do
principio vincular, e sobre a maneira da abolição ou da conservação, mas
nunca sobre o direito que o paiz tem de retirar o seu apoio a esta
antiga instituição.
Tirada, porém, a base de um direito primitivo e indestructivel, os
defensores dos morgados appellam para o direito politico. A monarchia
representativa consagra o principio da desegualdade social, fazendo-a
representar pela aristocracia de berço, cuja conservação forçada deriva
da indole do pariato hereditario. Exigindo-se para este, além de outras
habilitações, uma renda avultada, importa que as instituições e as leis
mantenham a perpetuidade d'essa renda, em harmonia com as que consagram
a perpetuidade das funcções. A permanencia dos vinculos assegura esse
resultado, ao passo que a sua abolição importa a não existencia do
pariato hereditario.
A lei politica estabelece o pariato hereditario e o vitalicio; mas nem
determina a proporção de um ou de outro, nem, rigorosamente, exige a
existencia simultanea de ambos. Não a exige, porque seria absurda essa
exigencia. Sem as leis organicas e com a Carta na mão, o rei poderia
substituir o par fallecido sem herdeiro que o representasse por um par
vitalicio. Esta hypothese verificada em vinte ou trinta casos teria
acabado com o pariato hereditario. Vice-versa o rei poderia deixar de
supprir os logares vagos por morte dos pares vitalicios, ou tornal-os
hereditarios e acabar assim com a não hereditariedade.
A lei de 11 de abril de 1845, exigindo, além de outras habilitações, uma
certa renda ao individuo que succede no pariato, levou em mira a
manutenção da dignidade e independencia dos membros da camara alta. Ora
essas condições não podem verificar-se com uma renda imaginaria: é
preciso que esta seja real e effectiva. Mas são justamente os vinculos
que menos asseguram a realidade e effectividade de semelhante renda, e
que ao mesmo tempo offerecem mais meios para ser sophismada a letra e
desmentido o espirito da lei. O mau administrador de morgado (e a regra
é ser mau administrador do fundo quem não passa de pouco mais de
usufructuario) pode reduzir-se a si proprio á miseria dentro de um ou
dous annos, e perder a independencia e a dignidade que a lei requer
n'elle: pode, até, transmittir ao seu successor a propria miseria,
porque são vulgarmente sabidos os alvitres de que usa o capital, ou, se
quizerem, a agiotagem, para illudir o principio da immunidade vincular.
Na apparencia, porém, a renda exigida pela lei continua a subsistir: o
fundo não desapparece: o administrador actual lá possue nominalmente
_uma casa_ de quatro, seis ou oito contos de réis. Na verdade hoje não
tem que almoçar, ámanhã não terá que jantar; ao seu successor acontecerá
o mesmo; mas que importa? A letra da lei está salva: o que se annullou
completamente foi o seu intuito, o seu espirito, a razão que a
sanctificava. Se os bens do par fossem sujeitos á lei commum, este facto
servir-lhe-hia de poderoso incentivo para ser um cidadão economico,
activo e bem morigerado; porque a manutenção da dignidade de par, em si
e n'aquelle que houvesse de succeder-lhe, dependeria d'essas virtudes,
virtudes que aliás não deixariam de influir nas suas opiniões e no seu
procedimento politico, e de reverterem em beneficio da republica.
Mas admittamos por um momento que o pariato hereditario seja inseparavel
da existencia dos vinculos. Não se segue d'ahi a necessidade de os
conservar. É facil reformar o artigo constitucional que consagra
simultaneamente a hereditariedade e o vitalicio no pariato, reduzindo-o
a esta ultima fórmula. Se a abolição dos vinculos involve um grande
interesse social, a solução mais razoavel será a suppressão da
hereditariedade do pariato, suppressão que em nosso modo de ver
representaria um verdadeiro progresso na organisação politica, acabando
com uma idéa falsa.
Esta idéa, na qual se estriba o pariato por successão, é a de que a
aristocracia, elemento politico, é forçadamente o mesmo que a
aristocracia de linhagem: ou, por outra, que o facto indestructivel da
desegualdade humana se ha de manifestar eterna e quasi exclusivamente na
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