Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 06

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amplificações, de certo lyrismo tetrico, a critica socialista tem ás
vezes razão de sobra. É d'isto que me temo. Deixem ao socialismo a
legitimidade moral que lhe provém da existencia de certos factos, e
queixem-se depois do resultado definitivo da contenda.
As circumstancias difficeis em que se diz achar-se a agricultura
merecerão duvidoso credito aos desinteressados, em quanto por um
conjuncto de provas seguras não se mostrar a existencia do facto. As
affirmações valerão pouco, se indicios, que todos podem apreciar, lhes
forem adversos. Augmenta gradual e quasi constantemente a exportação dos
productos agricolas do paiz; a população rural cresce com mais rapidez
do que nunca; desbravam-se todos os annos novos terrenos; as aldeias
dilatam-se; as habitações dos agricultores revestem cada vez mais o
aspecto de aceio e conforto; o transito e o transporte pelos caminhos de
ferro e o movimento dos nossos portos elevam-se de anno para anno de
modo inesperado. Todas as apparencias, em summa, convergem para nos
persuadirem que estamos mais ricos do que eramos ha quarenta ou
cincoenta annos. Se essa riqueza é real, como explical-a, na hypothese
de uma decadencia profunda na principal industria do reino? Parece
altamente improvavel. Ao menos cumpre esperar pelas provas claras e
precisas d'essa contradicção economica.
Não devo acreditar que a affirmativa de uma elevação anormal dos
salarios assente em irreflexivas comparações chronologicas. Na successão
dos tempos, o mesmo preço de trabalho pode ser exprimido por algarismos
diversos. Depende tudo das oscillações do valor da moeda, em
consequencia da diminuição ou accrescimo dos metaes preciosos, e
portanto do seu valor. Não me persuado de que haja quem ignore a
abundancia sempre crescente d'esses metaes no decurso d'este seculo.
Assim, o algarismo 15 pode, por exemplo, representar rigorosamente o
mesmo preço de um dia de trabalho, que o algarismo 10 representava ha 30
ou 40 annos. A proporção entre o valor venal do producto e o salario do
trabalh o ficará sempre a mesma, porque a depreciação da moeda lá irá
manifestar-se de egual modo no algarismo d'esse valor, se causas
extranhas, com as quaes o obreiro nada tem que vêr, não vierem influir
na carestia ou na barateza do producto.
Mas, ainda evitando esse erro grosseiro, em que me parece ninguem
cairia, nem por isso fica removido o perigo de nos illudirmos em relação
aos salarios ruraes. Repugna á razão e á consciencia que se considerem
estes em geral como susceptiveis de reducção illimitada. O obreiro é,
por via de regra, o chefe ou o sustentaculo de uma familia.
Comprehende-se o padre ou o soldado segregados d'esta e celibatarios:
não se comprehende como o poderia ser a classe dos trabalhadores, que
constituem tres quartos ou mais da população, sem que esta decrescesse
gradualmente até chegar a extinguir-se. A familia do obreiro é
inevitavel, e por isso inevitavel que a reducção dos salarios não a
torne impossivel. Toda a industria em que o lucro ou retribuição do
industrial não possa, em absoluto, conciliar-se com esta condição
impreterivel, é uma industria condemnada fatalmente a perecer mais cedo
ou mais tarde, sejam quaes forem os arbitrios a que se recorra para a
aviventar. Ora, em Portugal, como em qualquer outro paiz, concebe-se o
desapparecimento d'esta ou d'aquella industria fabril: o que se não
concebe é o desapparecimento da industria agricola. Entre os dois
termos, immutaveis, inexoraveis como o destino--existencia da
agricultura e sufficiencia do salario--tem a sociedade necessariamente
de buscar a solução de quaesquer difficuldades economicas que possam
comprometter a nossa, não direi quasi unica, mas capitalissirna
industria. Propor que se reduza indefinidamente o preço do trabalho por
uma concorrencia artificial e illimitada, sem indagar até onde essa
reducção poderá conciliar-se em cada districto ou provincia com a
existencia da familia do obreiro, será dissolução: solução é que de
certo não é.
Sou cultivador, vivo no campo, no meio de outros cultivadores, e ouço
frequentemente os queixumes contra a elevação sempre crescente dos
salarios. Tenho pensado n'uma questão que me toca tambem. Sei quanto é
difficil, ás vezes, saldar _as despesas_ da producção com o valor venal
do producto por um saldo positivo; mas d'essas despesas, aquella que o
lavrador tem sempre deante dos olhos, pela sua permanencia, é a das
soldadas e jornaes. São as soldadas e jornaes que o obrigam mais vezes a
realizar em conjuncturas inopportunas o valor dos productos. Não
sabendo, em geral, distinguir com exacção as despesas productivas das
improductivas, as escusadas das inevitaveis, avalia-lhes a indole apenas
pelos algarismos que as representam, pelos obstaculos que lhe suscitam,
e pelos apertos em que o collocam. As maiores e mais frequentes são as
peiores: eis, em resumo, o seu criterio. Para elle o ideal do
improductivo é o imposto, e não acho impossivel que até certo ponto
tenha razão. O imposto, porém, que no seu espirito se confunde algum
tanto com a extorsão, com a espoliação, irrita-o; mas irrita-o uma vez
por anno. O salario, soldada ou jornal, é o espinho que o punge, ora
mais ora menos, na alta ou na baixa, mas de continuo; é a fonte perenne
de cuidados, de repugnancias, de coleras, de debates. As causas que mais
contribuem para attenuar, e ainda para inverter, a proporção entre a
importancia do custo e o valor do producto, tanto as que possam provir
da sua imprevidencia, das suas poucas luzes, do seu desleixo, das suas
preoccupações tradicionaes, da laxidão dos seus habitos, como as que
provenham do incompleto ou do vicioso das instituições, das leis, dos
regulamentos, que directa ou indirectamente attingem a agricultura, e
até as que derivam da perversão dos costumes publicos, raras vezes as
considera e aprecia nas suas relações exclusivamente agricolas. Os
effeitos d'essas causas não se exprimem em réis, não se especificam no
diario, supposto que se dê o caso de ter o agricultor algum simulacro de
contabilidade, embora assás simples para lhe ser possivel. Quizera eu
que se applicasse a causas tão variadas e complexas o dynamomelro da
economia rural, para avaliarmos com justiça e imparcialidade o quinhão
que lhes pertence e o que pertence ao salario nas difficuldades em que
se diz laborar a agricultura, e que não duvido se deem em certos casos.
Se houvessemos de seguir esta vereda, parece-me que seria um pouco
extenso o supplemento aos quesitos do questionario que v. ex.^a teve a
bondade de me remetter.
Mas, se, accusado de involta com outras causas deprimentes da
agricultura, o salario rural tiver de ir assentar-se ao pé d'ellas no
banco dos réus, é necessario que não lhe ponham mascara; que o levem
para alli com o seu verdadeiro aspecto. Não é só nas suas exaggerações
transitorias que elle deve ser considerado. A indole do salario agricola
é diversa da indole do salario fabril. O fabricante, debaixo do tecto da
sua fabrica abrigada atraz do paredão proteccionista, produz para um
mercado que não suppre completamente, e cujas lacunas deve vir
preencher, saltando por cima do paredão, o producto similar estrangeiro.
Os effeitos disso, subretudo n'um paiz pequeno, conhece-os decerto v.
ex.^a. Que o motor e os machinismos funccionem bem, que a má
administração não comprometta a fabrica, e o operario fabril que fizer o
seu dever pode contar com um salario, mais ou menos elevado, mas
regular, por todo o decurso do anno. As oscillações são ahi pequenas, e
raras as ferias do trabalho. São outras as condições do assalariado
rural. Na verdade, a soldada do _criado de anno_ tem, até certo ponto,
analogia com a retribuição do lavor fabril, porque assegura, pouco mais
ou menos, ao criado a habitação, o vestuario e o alimento por todo o
decurso do anno. Mas pela natureza das cousas, por motivos que fôra
demasiado longo enumerar, o criado está sempre exposto a passar á
situação de jornaleiro. É em relação a este que é grave a questão. No
jornal, as variações são repentinas, violentas, desordenadas. N'estes
sitios onde vivo, a constituição da propriedade rustica e da industria
agricola aproximam-se bastantemente do typo ideal (ideal, ao menos para
mim) da boa organisação da agricultura, no _momentum_ actual da evolução
agricola--a mistura da grande e da pequena propriedade, da grande e da
pequena cultura. A população aqui não é excessiva, mas é assás numerosa:
as aldeias crescem e até nascem; a charneca foge para o horizonte ante o
reluzir do alferce e da enchada. E todavia, quantas vezes, n'um domingo,
depois da missa, na _praça_, o lavrador, o feitor, ou o capataz é
_forçado a pagar o vinho_ para o jornal de 340 ou 360 réis durante a
semana, e no domingo seguinte faz o _favor_ de o pagar para o de 140 ou
160 réis! Decerto aquelle jornal de 340 ou 360 réis, associado ao
producto do trabalho da familia, e ao producto liquido da courella, da
vinha, do _foro_, em summa, que, por via de regra, o jornaleiro possue
(não sei se v. ex.^a conhece bem a entidade _foro_: o foro é o grande
moralisador dos campos, o supplente efficaz do parodio e do mestre,
mythos que a poesia politica inventou para entretenimento dos
parlamentos e das secretarias); aquelle jornal, digo, excede a verba
indispensavel para satisfazer as precisões, aliás tão limitadas, da
familia rustica. Mas pode dizer-se o mesmo do jornal de 140 ou 160 réis,
ou irão as tenues economias dos dias felizes supprir as lacunas do
insufficiente salario, e sobretudo a carencia absoluta d'elle nos dias,
nas semanas, nos mezes, até, de chuvas pertinazes, em que a terra
empapada em agua se recusa ao consorcio com o trabalho humano? Fôra
loucura pensal-o. Os jornaes de 340 ou 360 réis são a excepção: os
vulgares são os de 140 e 160 e os que oscillam entre estes algarismos e
o de 240 réis, aliás bastante raro, afóra os que se exprimem por zero.
Coincidem as altas excessivas, repentinas, com as ceifas, com as sachas
e rechegas, com as podas, empas e cavas, etc. Cumpre, porém, attender ao
periodo da sua duração. A natureza não se dobra aos caprichos e aos
calculos, ás vezes ineptos, do homem: o cultivador que mantém aquelles,
ou erra estes, paga-o. Os serviços hão-de fazer-se a tempo, aliás lá
está o producto com o látego na mão para punir o réu. São questões de
tres, de quatro, de seis semanas. Ora, por aqui, o calendario teima em
affirmar que o anno se dilata por 52 d'esses periodos semanaes, a
arithmetica protesta que 35 ou 40 são algarismos superiores a 12 ou a
15, e a physiologia e a hygíene mais rudimentaes continuam, impassíveis,
a ensinar que a familia do obreiro ha-de comer e vestir-se todos os
dias, e abrigar-se á noite das injurias da atmosphera: factos
impreteriveis, fataes, emquanto a sciencia não mandar o contrario.
Á vista d'elles e do questionario que v. ex.^a me remetteu, estive
tentado a indagar se uma porção dos nossos trabalhadores, ao
aproximarem-se as epochas d'esses serviços, costumavam ir contemplar as
florestas virgens da America, e voltarem só ao despenhar-se o salario
das alturas do excessivo nos limbos melancholicos do insufficiente.
Obstava a distancia: não tive remedio senão absolver o Brazil, ao menos
em relação á minha localidade, das altas desordenadas do salario.
Desconfio de que começo a ser importuno com esta carta, já em demasia
longa. É vasto o assumpto. Peça v. ex.^a a Deus que a multiplicidade das
minhas occupações me não consinta tornar a importunal-o tão cedo.

III

Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Se, conforme creio, as condições e a indole do
salario rural são actualmente como as descrevi na carta precedente,
salva uma ou outra modificação accidental, segue-se que não seria licito
empregar nenhuns meios directos ou indirectos tendentes a minorar as
altas repentinas e transitorias, sem que ao mesmo tempo se tractasse de
elevar o salario insufficiente. Mas, fechado no estreito campo da maior
procura ou da maior offerta de trabalho, tendo por causa unica a
diminuição ou o augmento de braços, o problema torna-se obviamente
insoluvel á luz da equidade. Se a multiplicação da offerta influir na
descida da alta, influirá do mesmo modo na descida da baixa, e tornará,
portanto, cada vez mais miseravel a situação do obreiro. Se, pelo
contrario, crescesse a procura sem que a offerta crescesse
proporcionalmente, suppondo-se, como se pretende, que as difficuldades
em que labora a agricultura d'ahi procedam, tornar-se-hiam cada vez mais
intensas essas difficuldades. Resulta d'aqui a necessidade de buscar a
solução do problema e o remedio á crise, se existe, n'uma ordem de idéas
diversa.
A meu ver, o mal não procede da escacez de braços: procede da errada
vereda que tem seguido entre nós o desenvolvimento agricola; do
deploravel esquecimento de certas leis economicas e de certos principios
e doutrinas indisputaveis da sciencia de agricultar. Se isto é assim
(depois o examinaremos) a emigração, que só pode influir na maior ou
menor affluencia de trabalhadores, é questão distincta da questão dos
embaraços agricolas, que não hão-de, na minha opinião, remover-se com a
depreciação do trabalho.
A emigração da miseria deve combater-se, não porque o agricultor vê
n'isso, bem ou mal, o seu interesse, mas porque o emigrante é, como nós,
filho d'esta terra; porque a emigração forçada tem para o coração humano
as mesmas amarguras do desterro; porque ao cabo das esperanças do
foragido (quando para elle exista a esperança) estão muitas vezes as
desillusões e a morte. A certeza de que os altos salarios são
transitorios, e de que após elles vem sempre o trabalho mal retribuido
ou a falta de trabalho, é poderoso incentivo para a emigração; mas
sel-o-ha ainda mais a manifestação de que as providencias, sejam ellas
quaes forem, para afastar os trabalhadores de emigrarem, tem por
principal intuito produzir uma descida nos jornaes elevados. Diz-se que
ha embaidores incumbidos de os alliciarem para além do Atlantico,
illudindo-os com promessas de vantagens imaginarias. É natural que seja
assim, porque a America, em grande parte despovoada e inculta, precisa
para o seu progresso dos braços laboriosos da Europa. Mas é justamente
por causa d'isso que não reputo prova de grande prudencia auctorisar
esses homens astutos a fazerem avultar as cores e lineamentos do seu
quadro de brilhantes promessas com as sombras carregadas dos intuitos
egoistas d'aquelles, que buscam reter o trabalhador na terra natal para
o converterem em instrumento do proprio interesse.
Abstrahindo da emigração razoavel, da emigração d'esses que vão para o
Brazil com determinado destino, e com a esperança fundada de adquirir
uma fortuna que não tem probabilidade de obter no seu paiz, ha nos que a
pobreza impelle _per la via dolente_ dois grupos que se distinguem por
indole e caracter diversos: uns naturalmente audazes e propensos a
guiar-se mais pelos impulsos das paixões e da imaginação do que pela
prudencia; outros, timidos e reflexivos, a quem as aventuras repugnam, e
que só se precipitam n'ellas pela urgencia das precisões. Reter os
primeiros sem violencia, quasi que o julgo impossivel, ao passo que
desviar os segundos d'esse deploravel caminho se me afigura
comparativamente facil.
A ignorancia e rudeza, meu amigo, não excluem a faculdade da imaginação,
e a credulidade impera na razão inversa da cultura do espirito. Como
evitar nos animos propensos ás maravilhas do extraordinario, do
longinquo, do indefinido, os effeitos das narrativas dos que voltam da
America opulentos ou remediados? Como occultar, n'um paiz cujas relações
com o Brazil são frequentes, intimas e variadas, qual é alli a
retribuição do trabalho, a certeza do salario, a facilidade de
occupar-se no commercio de retalho, a falta de operarios fabris, etc.? A
perspectiva da vida tranquilla, a que não faltem os meios de satisfazer
ás necessidades indispensaveis, mas uniforme, laboriosa, sem peripecias
(e é isto o mais que a sociedade lhes pode proporcionar) fraco
attractivo será sempre para os animos irrequietos, atrevidos, mudaveis,
quando ao lado da nudez e da fome, que os martyrisam ou os ameaçam, se
alevantarem as seducções, em parte verdadeiras, em parte suppostas, que
sorriem d'além do oceano. Sobre a tela de factos mais ou menos inexactos
borda a imaginação idylios e a credulidade milagres. E que muito, se a
individuos, incomparavelmente mais cultos que os obreiros ruraes, tenho
visto tecer d'esses contos de fadas em relação aos lucros do trabalho
litterario? Não sou, me parece, dos que podem como escriptores
lamentar-se da indifferença do publico americano. As maiores provas,
porém, de benevolencia d'este para commigo ficaram sempre muito áquem
das vantagens enormes que esses individuos, conforme o que lhes tenho
ouvido, tirariam da profissão das letras no Brazil, se a fatalidade não
os retivesse na patria, ou certa ordem de embaraços lhes não tolhesse
alli a venda dos seus livros. Um grande talento, a quem só faltou uma
educação litteraria condigna, e melhor sorte no seu paiz, lá foi acabar,
arrastado por essas illusões de poeta, depois de esgottar o calix de
amargos desenganos.
Sinceramente, meu amigo, creio que a eloquencia dos embaidores dos
operarios rusticos seria bem inefficaz, se a peroração do discurso não
fosse redigida pela miseria. Porque são raros os seus triumphos entre os
da nossa Estremadura e do Alemtejo, que aliás não me parece sejam
nenhuns Cresos, e são tão frequentes nas provincias do norte e nos
districtos insulares? A resposta que se poderia dar a esta pergunta não
seria a mesma que se poderia dar a outras até certo ponto analogas?
Porque se precipitam annualmente do norte para o meiodia do reino bandos
e bandos de trabalhadores nas epochas das _fainas_ da nossa triste
agricultura biennal e triennal? Qual é o embaidor que os arrasta para as
ceifas nas campinas do sul, requeimadas por sol abrazador, que ás vezes
os fulmina, ou para os alagamentos mornos dos arrozaes, onde ao
amanhecer e ao entardecer o nevoeiro, cultivador de intermittentes,
semeia dia por dia uma porção da sua terrivel seara? Nos valles do Minho
e da Beira, que o suor de quarenta ou cincoenta gerações tornou ferteis,
e cuja cultura é em certas relações admiravel, falta o estigma do pousio
não adubado, da folha não alqueivada, que pede unicamente ás influencias
atmosphericas o azote de que, um anno sim outro não, ou de dois em dois
annos, a esgottam rachiticos cereaes. E não falta só nos prediosinhos
que numericamente ahi predominam; falta era geral nos mais vastos, que
correspondem á pequena herdade alemtejana e á quinta e ao casal
estremenhos. Ahi cultiva-se annualmente todo o chão reduzido a cultura,
a qual até certo ponto é licito qualificar de intensiva. Não lhes faltam
os braços, porque esses amanhos, que podem chamar-se esmerados,
fizeram-se; e fizeram-se sem perda, porque aliás a agricultura do norte,
cujos productos augmentam, declinaria gradualmente, e a população, que
cresce alli, como por todo o reino, apezar da emigração, diminuiria, em
vez de seguir em progressão o accrescimo dos productos. A estatistica
official d'essa população, comparada entre duas epochas tão proximas,
como são os annos de 1864 e 1868, é eloquente[3]. Seja-me agora
permittido perguntar: se as _fainas_ da agricultura do sul não tivessem
attrahido por salarios, mais ou menos remuneradores, esses milhares de
obreiros, que por dois ou tres mezes, e ainda mais, de lá se ausentaram,
sem que os serviços ruraes deixassem de se ultimar, em que trabalhos os
teriam occupado os agricultores do norte? Até que ponto chegaria a
insufficiencia dos jornaes? Depois, quem nos diz que essas emigrações
temporarias dentro do paiz representam completamente um equilibrio entre
o excesso da offerta do trabalho no norte e o excesso da procura no sul?
As previsões e esforços ordinarios do interesse privado asseguram-nos
que a procura foi satisfeita por um preço mais ou menos elevado, dentro
das condições de tempo, impreteriveis em agricultura. Nada, porém, nos
prova que a offerta n'um mercado não excedesse a procura no outro. Em
tal caso o excesso da offerta significaria a miseria de mais ou menos
numerosos trabalhadores do norte.
Em que se occupa grande porção d'esses obreiros, que affluem todos os
annos para o sul de certo tempo a esta parte? No plantio de vinhas; e o
plantio de vinhas offerece um problema, que eu teria grande gosto em ver
resolvido pelos que acham na falta de braços a principal senão unica
fonte dos embaraços da agricultura. Creio que ninguem deixará de
confessar que, dos diversos ramos da industria agricola, o que mais
cresce e se dilata por quasi todos os districtos do reino é a
vinicultura. Repovoam-se de cepas os terrenos que desvastou o _oïdium_;
campos que produziam cereaes transformam-se em vinhas; de anno para
anno, collinas, recostos de montes, pedregaes, pousios apparentemente
repugnantes á cultivação, uns apoz outros, vão-se cobrindo de verdura no
estio com bacelladas novas; a vide invade as charnecas como o _pioneer_
da America invade os desertos; as solidões do Alemtejo, que de memoria
de homens ainda vivos não produziam vinho para o consumo dos seus raros
habitantes, exporta hoje centenares de pipas d'este producto. E todavia,
se exceptuarmos as lavouras de esgraminha dos terrenos já cultivados que
vão converter-se em vinhedos, qual é, no nosso actual systema de
viticultura, a machina que se emprega na plantação e subsequentes
amanhos da vinha? O braço do homem; exclusivamente o braço do homem.
Como, porém, conciliar este facto, que todos podem observar, que se
realisa quasi por toda a parte, com essa falta de obreiros, com esses
salarios monstruosos, impossiveis, que devoram a agricultura e de que é
culpado o Brazil? Dir-se-hia que grandes, medianos e pequenos
proprietarios se ligaram e ajuramentaram para um vasto suicidio
economico, e que, convertendo o vidonho em alliado da America, a ajudam
a cavar a ruina d'elles proprios e dos cultivadores de cereaes.
Felizmente não é assim. A vinha cultivada com mais esmero ha-de
contribuir para que a emigração diminua, trazendo não só a elevação dos
salarios, como a sua melhor distribuição. Com os amanhos reiterados de
uma cultura habil, e com um fabrico esmerado e cuidadosa conservação do
producto, que devem abrir aos nossos vinhos de pasto os mercados da
Europa, o trabalhador dos districtos vinhateiros, que são quasi todos os
do reino, evitará em grande parte as ferias que a penuria acompanha, e
que o fazem acceitar contractos muitas vezes leoninos, mas que lhe
promettem permanencia no trabalho, embora em regiões apartadas. É o que
a lavoura de cereaes, quer biennal, quer triennal, sobretudo como ella é
entre nós, não pode prometter-lhe. Afóra as sachas e colheitas do milho,
as mondas (quando se monda) e as ceifas dos cereaes colmiferos, ella
exige só o serviço de abegoaria, e a elevação, as vezes exaggerada, dos
salarios que produz não poderá nunca melhorar a condição do jornaleiro.
Creio que nenhuma pessoa medianamente versada n'estes assumptos porá em
duvida a superioridade da agricultura de França comparada com a de
Portugal. E todavia, um dos agronomos mais distinctos d'aquelle paiz,
Leconteux, ainda ha oito annos mantinha, na edição que então publicava
do seu notavel livro sobre os melhoramentos agricolas, uma passagem que
peço licença a v. ex.^a para transcrever. Depois de se referir á rotação
triennal, que ainda prepondera largamente em França, embora alli se
estribe no alqueive de primavera e estio (o que nem sempre entre nós
succede) o redactor principal do _Jornal de Agricultura Practica_
prosegue: «É verdade que, por beneficio da folha de alqueive, a rotação
triennal exclusiva conserva illesa a boa ordem no serviço das
apeiragens; mas pode dizer-se o mesmo em relação ao trabalho braçal? De
modo nenhum. Durante os trez mezes de ceifas e de gadanhar os fenos, é
avultado o numero de trabalhadores de que a lavoura carece. A estas
fainas, porém, seguem-se nove mezes feriados para os numerosos obreiros
que o lavrador chamou ás colheitas. Reduz-se tudo a ficarem na lavoura
alguns jornaleiros por eirantes. Mas que succederá á multidão dos
ceifeiros? Tem de ir buscar vida, uns na vinhataria, outros nos cortes
de lenha e madeira, outros nas suas fazendinhas. Mas se nem todos tem
estas saidas, o que succederá aos que não as tiverem? Perguntem á turba
de obreiros que annualmente abandonam o campo para se metterem nas
cidades, e terão de confessar que o amor do incognito não é o unico
motor de taes desvios. Movem-os sobretudo o medo do _não-ha-que-fazer_
nos trabalhos ruraes e o legitimo desejo de ganhar os salarios mais
elevados e mais regulares, que subministram os estabelecimentos de
industria fabril e as officinas e obras publicas. Que não estejam, pois,
todos os dias a fallar aos jornaleíros ruraes das venturas da vida
rustica. Remontem dos effeitos ás causas e verão que o systema triennal
com folha de pousio é um dos primeiros e mais poderosos causadores de se
ermarem os campos[4].»
Que se reflicta sobre estas ponderações de um homem competentissimo e
appliquem-se a Portugal. As nossas officinas, arsenaes e obras do Estado
são nimiamente restrictas comparadas com as de França, ainda dada a
differença entre um grande e um pequeno paiz; e na industria fabril
maior é a desproporção. Não podem por isso as cidades, os grandes
centros de população, absorver a torrente de trabalhadores, que um
systema errado de cultura arvense suscita e attrae para depois os
repellir. Assim, é a propria indole da agricultura, o afferro
intransigente do lavrador a antigas praxes, que facilita a tarefa dos
encarregados de induzir os obreiros a emigrarem. O cultivador queixa-se
da America: mas quem sabe se a Providencia deu ao Brazil o destino de
ser para comnosco um aspero missionario do progresso?
Ha um livro bem conhecido de v. ex.^a (porque interveiu mais ou menos na
sua publicação), cujo conteudo lança viva luz sobre alguns pontos d'esta
grave e complexa questão, postoque não os illumine todos por conter
apenas os resultados de trabalhos ainda incompletos. Fallo do volume que
tem por titulo _Primeiro inquerito parlamentar sobre a emigração_. É
obra de uma commissão da camara dos deputados e faz v. ex.^a parte
d'ella. Os documentos annexos ao relatorio são altamente instructivos.
Tem a primazia entre elles as informações de pessoas collocadas em
situação official, ou habilitadas por experiencia e estudo para tractar
a materia. Entre os documentos d'essa especie sobresaem pela sua
importancia o informe do sr. deputado Candido de Moraes relativo á
emigração dos Açores, o do dr. Bernardino de Almeida, obtido por
intervenção do nosso consulado no Rio, o do consul portuguez de Boston,
e sobretudo o do sr. Taibner de Moraes, secretario do governo civil do
Porto. Posso divergir de qualquer d'elles no que respeita a certas
doutrinas e a certos alvitres para obstar á emigração: o que não posso é
recusar a seus auctores o conhecimento dos factos e o estudo reflectido
d'esses factos. D'estes ha um em que todos concordam quando indagam as
causas capitaes da emigração. É elle a insufficiencia dos salarios entre
nós. Quanto aos Açores são notaveis as observações do sr. Candido de
Moraes. «São, diz elle, geralmente pequenos os salarios dos operarios, e
de todos elles são os trabalhadores os que menores attingem, e por isso
são miseraveis a sua alimentação e vestuario... Os trabalhadores
agricolas tiram do salario escassos meios para a sua sustentação e das
familias, por pouco numerosas que ellas sejam, e por isso procuram pelo
arrendamento de terras obter esses meios. D'aqui nasce uma concorrencia
irreflectida e altamente nociva para esses desgraçados... Succede por
isso um grande numero de vezes que esses infelizes completam a sua ruina
quando julgam terem alcançado os meios de melhorar a sua condição; e
completamente exhaustos, sem poderem satisfazer aos encargos que
tomaram, vão acompanhados das familias procurar no Brazil os meios que o
seu trabalhar incessante não podia proporcionar-lhes na patria.
Condemnar esses homens que fogem á miseria, porque não tem a coragem de
se deixar morrer á fome no paiz em que nasceram, parece-me injusto:
tolher-lhes a liberdade de sair da terra onde não acham os recursos
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