Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 09

Total number of words is 4482
Total number of unique words is 1664
30.4 of words are in the 2000 most common words
45.1 of words are in the 5000 most common words
52.8 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
Perdoe-me o meu amigo P. de M. uma supposição vaidosa até á
extravagancia. Se eu fosse o principe de Bismarck, com o systerna um
pouco militar da administração prussiana, mandava descançar os
inquiridores nas casamatas de Spandau, para lhes fazer notar que o
gracejo não é admissivel em objectos de serviço. Só deixaria de o fazer,
se particularmente lhes houvesse recommendado que achassem esses
resultados moralmente impossiveis. V. ex.^a sabe, de certo, por pessoas
doutas e tementes a Deus, que eu sou um grandissimo impio, peiorado
agora com minha nesga de petroleiro. Tolere-me, por isso, um acto de
incredulidade quasi brutal. Não creio uma palavra dos fins apparentes e
dos resultados objectivos do inquerito. Creio, porém, que milhares e
milhares dos mais robustos braços, que o rio caudal da emigração arrasta
annualmente, fariam enorme falta ás espingardas de agulha no dia em que
a França cedesse ao appetite de ser esmagada de novo. Se o chanceller
pensa seriamente em retel-os, não ha-de ser só a estatistica encarregada
de dar plausibilidade ás suas providencias; ha-de ser toda a sciencia
allemã sem exceptuar a critica de Strauss e a philosophia de Hegel.
Quando o imperador Guilherme prohibiu ás companhias de caminhos de ferro
que fizessem abatimento nos preços de transporte aos que se dirigiam aos
portos de mar para emigrarem, e que esta singular prohibição alevautou
altos clamores nos Estados-Unidos, o ministro allemão em Washington
viu-se constrangido a confessar que as providencias tomadas significavam
precauções contra as tentativas de desforra da França. Não eram
capitaes, eram braços que o governo queria reter. E de facto, se os
emigrantes não fossem em grande parte simples jornaleiros, simples
proletarios, não haviam de ser alguns thalers a mais na despesa do
transito que retivessem na Europa a multidão de peculios, equivalentes á
contribuição de guerra da França, que iam felicitar a America.
Se eu, de má fé, quizesse acceitar a theoria do meu amigo P. de M. sobre
a emigração, provaria contra elle que a emigração portugueza é essencial
e quasi exclusivamente de proletarios miseraveis. Se admittisse a força
impulsiva dos exemplos peregrinos, o pensamento estranho, modificando
por uma acção mysteriosa o pensar nacional, acharia uma influencia mais
potente pela força numerica dos exemplos, pela maior proximidade, senão
affinidade, de raça, e até pela unidade de crenças religiosas, para
produzir o milagre. Refiro-me á Irlanda. Se existe uma especie de
magnetismo da classe remediada de origem germanica sobre a classe
remediada portugueza, porque se não dará o mesmo influxo do proletariado
celta sobre o proletariado celtoromano? São, porém, a cubica e a
audacia, ou é a miseria que tem expulsado o irlandez da patria? Se em
meio seculo a America attrahiu da Allemanha 2.500:000 individuos, só nos
Estados Unidos, só pelo porto de Nova-York, e só em 20 annos (1847 a
1866) entraram 1.500:000 emigrados irlandezes. D'estas duas forças
uniformadoras, qual é a mais poderosa, e qual d'ellas, portanto, teria
actuado mais em Portugal, se esta acção existisse?
Posto que seja uma triste convicção, continúo a crer que a miseria é a
causa suprema da emigração dos campos. A insufficiencia do salario
produz por dois modos a desgraça do trabalhador--privando-o directamente
do necessario, e impellindo-o ás vezes, pela dor moral, a buscar o
estonteamento na embriaguez, que lhe augmenta a propria miseria. É um
phenomeno vulgar; e se, como observa Laveleye[13]--«quasi por toda a
parte o salario do obreiro é insufficiente para satisfazer as suas
necessidades racionaes»,--esse phenomeno geral abrange-nos tambem.
Forcejar por lhe amortecer a intensidade, por destruil-o, se é possivel,
tenho-o como dever e interesse communs. Assim, não só removeremos um
poderoso incentivo de emigração, mas tambem fortaleceremos a sociedade
contra perigos mais serios. Segue-se d'isto, acaso, que não existem
outras causas de uma emigração nociva? De certo não. O que não vejo é o
remedio para neutralisar essas causas, algumas das quaes só alterações
profundas no mechanismo social poderiam remover. Sirva de exemplo o
recrutamento, que basta para explicar a emigração dos nossos mancebos
pelos portos da Galliza, facto que só pode maravilhar os que ignoram até
onde chega a repugnancia, ou antes o horror da mocidade aldeã a
arrancarem-n'a por alguns annos do ninho paterno para a lançarem n'um
teor de vida desconhecido, mas que ella bem sabe não condizer com os
habitos, com as occupações, com os affectos, que constituem a historia
completa da sua singela existencia. Pode applicar-se aos que assim o
fazem o dicto de Quevedo--_matar-se por no morir_; mas é certo que a
isso os arrasta um impulso interior, irreflexivo e irresistivel.
Preoccupam quasi exclusivamente o meu caro antagonista os engajadores:
vê-os por toda a parte; vê, até, no oceano um dos mais terriveis. O
aspecto e o ruido das ondas attrahem para a America. Permitta-me elle
que advogue a causa do oceano. Não é muito: a causa de Deus já foi
defendida na Convenção franceza. Se o mar tem o segredo de attrahir os
habitantes dos districtos de Vianna, do Porto, de Aveiro e de Coimbra,
que banha por uma orla, mostra-se de pasmosa incapacidade para o mister
que exerce, logo que as suas vagas rolam para o sul da foz do Mondego a
visitar as praias e ribas dos de Leiria, de Lisboa e do Algarve, ao
passo que o districto de Braga, vendo-o e ouvindo-o apenas por estreito
espiraculo, e os de Vizeu e Villa Real, conhecendo-o só de nome, lhe
entregam aos milhares seus filhos. Não seria mais simples e conforme á
razão pôr de lado influencias em parte contradictorias, em parte
incomprehensiveis, e buscar na densidade comparativa das populações
ruraes a explicação do phenomeno? Não é facto eloquentissimo serem os
districtos onde a população mais rapidamente cresce, e mais densa é em
relação á superficie do respectivo territorio, os que subministram
numero incomparavelmente maior de emigrados? Que significa isto, não
digo em Portugal, digo em toda a parte, senão que a producção, por
defeito do solo ou do clima, por pouca intensidade ou imperfeição da
cultura, pela má constituição da propriedade, emfim, por qualquer causa
natural ou facticia, não corresponde á densidade da população? O excesso
d'esta em relação aos seus recursos foi, é, e ha-de ser, em todos os
tempos e logares, o incentivo ordinario das migrações que tem povoado e
hão-de ir povoando o globo. Mas o desequilibrio entre a producção e as
necessidades impreteriveis do total dos productores tem de traduzir-se
em miseria para alguns ou para muitos d'elles antes que o equilibrio
renasça. Sempre, porém, os symptomas do mal hão-de manifestar-se nos
orgãos economicamente mais debeis do corpo social, nas classes
trabalhadoras. Por isso continúo a persuadir-me de que é, não a
influencia germanica, nem o oceano, mas sim a miseria a verdadeira,
co-ré dos engajadores.
Pede o SR. P. de M. severidade para com elles. Eu, de certo, não os
applaudo nem os protejo; mas, quando theoricamente esquecemos ou negamos
as causas mais efficazes d'esta ou d'aquella ordem de phenomenos,
estamos arriscados a engrandecer tão desmesuradamente as secundarias
quanto o exige a logica do erro. É assumpto de particular estudo este
dos engajadores, ácerca dos quaes, se não faltam deplorações sentidas e
accusações genericas, falta a indicação particularisada de sufficientes
factos especiaes sobre que possam recair apreciações reflectidas. É
probabilissimo, não me cansarei de confessal-o, que os animos
emprehendedores e cubiçosos, as imaginações ardentes, sobretudo quando
os aguilhoar a pobreza, busquem na emigração melhor fortuna. Para elles,
porém, a influencia germanica parece-me já de sobra, e os induzimentos
dos engajadores um verdadeiro pleonasmo. Em todo o caso, com essas
influencias ou sem ellas, ambos nós estamos de accordo em que não se
devem nem se podem pôr embaraços a esta especie de foragidos. Restam-nos
os animos irresolutos, as indoles timidas, pobres de imaginativa,
moderadas nos desejos. Dada a não existencia do irresistivel incentivo
da miseria, é racionalmente crivel que esses individuos sem ambições
exaggeradas, sem resolução, sem precisões urgentes, emfim, sem nenhum
impulso physico ou moral, quebrem violentamente os laços que os prendem
á terra de infancia, laços fortes sobretudo no homem do campo, só porque
um individuo, provavelmente desconhecido, os convida a deixar o seu
prediosinho, a familia, os amigos, os mil affectos, em summa, que nos
retem na patria, para se arrojar ás solidões do oceano, dobradamente
temerosas para quem as desconhece? Isto é impossivel!
Mas o engajador não é uma pura invenção. Acredito; postoque me faltem
bastantes factos, precisos e indisputaveis, para avaliar a extensão das
suas malfeitorias. Supponhamos, porém, a não-existencia da miseria
involuntaria e honesta: desde esse momento o engajador deixa de excitar
a indignação e deve ser visto a luz diversa do clarão sinistro que o
allumia.
Nas profundezas da sociedade, como nas depressões das gandras, ha lagôas
doentias, charcos apodrecidos. As paixões e os instinctos degenerados em
vicios alimentam esses brejos. Fluctuam ahi entes embrutecidos. São os
desgraçados que designamos com os nomes desdenhosos de relé, de
gentalha, existencias anormaes, zangões dos enxames humanos. O seu
_habitat_ mais commum é no seio das camadas inferiores das populações
urbanas, mas o campo não está isento d'elles. Supprimida theoricamente a
miseria honrada, a actividade dos engajadores move-se forçosamente na
esphera do vicioso, do abjecto, da parte da população moral e
economicamente nociva. N'este caso o engajador seria um emunctorio, e
longe de se lhe contrariarem os esforços, conviria favorecel-os.
Ou me engano muito, ou é esta a consequencia que se deduz, a final, das
doutrinas do meu illustre contendor. De certo não a previu quando,
indignado, pedia aos poderes publicos que sustessem toda a propaganda
que tivesse por fim promessas fallazes. Se entendo bem esta phrase um
pouco obscura, parece-me que lhes pede o desempenho de missão difficil.
Não me occorre, dentro dos limites dos principios liberaes, meio nenhum
practico de impedir propagandas, quer verbaes, quer escriptas, posto que
não faltem meios de punir as que offendam as leis. Não sei tambem como
verificar antecipadamente se quaesquer promessas, contidas no ambito do
possivel, serão ou não cumpridas: questão do futuro que o presente não
pode resolver. Parece-me arriscado aconselhar cousas d'estas aos
governos, propensos sempre a ultrapassar no exercicio do poder a
barreira incommoda dos principios. O perigo da phrase de certo escapou á
perspicaz intelligencia do meu illustre adversario, que, liberal
sincero, proclama a eterna verdade de que o indivíduo é _em primeira_ e
ultima instancia o juiz do proprio interesse.
Depois de fundamentar a sua doutrina, o sr. P. de M. accumula as
considerações que entende invalidarem a minha. Quanto a elle o operario
rural, se não gosa de todos os commodos possiveis, caminha em movimento
ascendente para o bem estar, emquanto a grande e a mediana propriedade
rural vão em temporaria decadencia. Sem negar as contrariedades e
embaraços, não direi da grande e da mediana propriedade, o que não é o
mesmo, nem tem a mesma importancia, mas sim da grande e da mediana
industria agricola, é obvio que as minhas convicções sobre a situação
relativa das duas classes são bem diversas das do meu tão indulgente
contendor. Como elle, derivei-as de certa ordem de factos. Esses em que
a opinião adversa se estriba pareceram-me, uns insufficientes, outros
inadmissiveis, outros gratuitos ou mal interpretados. Illudir-me-hia? O
insufficiente, o infundado, o impossivel, o gratuito, podem estar nos
elementos de que me servi ou nas consequencias que d'elles tirei. É a
esta luz que devo considerar agora as observações do meu amigo P. de M..
Obstaculos da vida privada obrigam-me, porém, a interromper aqui a serie
das idéas que me occorrem sobre a materia. Em breve espero atar-lhes o
fio e chamar de novo sobre ellas a attenção de v. ex.^a.

VII
*Lisboa, outubro 1874.*

Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--É pela base que o sr. P. de M. começa a
demolição das considerações, que me levaram a crer que a emigração rural
tem por causa prominente a insufficiencia do salario e conseguintemente
a miseria do jornaleiro.
Entende elle que, se quizermos habilitar-nos para estudar a questão,
devemos previamente queimar os documentos officiaes onde se registam os
factos relativos ao assumpto, e ir estudar estes pessoalmente nos
diversos districtos do reino, porque os empregados subalternos de
administração são ignorantes, inhabeis, sem consciencia da propria
responsabilidade, e porque a estatistica não passa de uma sciencia
conjectural que cumpre pôr de parte.
Hesito, na verdade, em tomar o bordão de peregrino e correr os dezesete
districtos do reino só por estes fundamentos, porque duvido de que sejam
seguros. Os funccionarios subalternos, expressão demasiado vaga que pode
abranger toda a jerarchia administrativa, exceptuados os membros do
governo, são como o resto da sociedade, de cujo seio saem e a cujo seio
voltam, ignorantes uns, illustrados outros; uns remissos e desleixados
no exercicio das suas funcções, outros activos e zelosos; uns sem
consciencia do seu dever, outros pontuaes e briosos. A idéa,
infelizmente vulgar, de que o funccionario publico é geralmente mau,
parece-me inexacta e injusta. Como empregados e como homens não são
peiores nem melhores do que nós, os que não pertencemos a essa classe, o
somos, quer no exercicio das nossas respectivas profissões, quer na
nossa vida civil. Se a palavra official é indigna de credito, não sei
d'onde derive o melhor direito da nossa a ser accreditada. Se acaso eu
fosse de concelho em concelho interrogar o proprietário rural não
lavrador, o lavrador proprietario, o lavrador rendeiro, o caseiro ou
colono parciario permanente, o seareiro ou colono parciario annual, o
singeleiro, o criado de soldada, o jornaleiro proprietario, e o simples
jornaleiro, sobre a situação especial de cada uma d'estas classes e
sobre as suas mutuas relações, estou prevendo que, no fim da
peregrinação, havia de achar-me possuidor da mais estupenda collecção de
affirmativas contradictorias, de mentiras evidentes, de factos
improvaveis ou deturpados, de accusações apaixonadas, de convicios
reciprocos, resultados ordinarios da lucta de interesses oppostos.
Porque preferir esse meio de informação ás declarações da auctoridade
local, sobretudo quando é exercida por individuo estranho á parochia, ao
concelho, á comarca, ao districto? Se no meio das collisões de
interesses a corrupção pode leval-o a transfigurar os factos, não o
fará, por certo, em beneficio da classe dos operarios.
Para apreciarmos por nós mesmos as situações absoluta e relativa do
industrial agricola e do operario rural seria necessario que, além de
termos a consciencia segura acerca da propria imparcialidade,
exercessemos por dois ou tres annos a profissão de agricultores em cada
um dos diversos districtos do reino. Sem isso, a estatistica é
inevitavel; ou estatistica obtida dos que tem responsabilidade, que não
nego possam illudir, ou estatistica irresponsavel, e, o que mais é,
interessada. Abranger a totalidade dos factos economicos da industria
agricola de um paiz inteiro pela propria observação não cabe nem na vida
nem nas forças de um individuo. Pode essa observação dilatar-se por uma
área maior ou menor, mas será sempre assás limitada em relação ao todo,
embora produza ás vezes excellentes monographias que sirvam de
correctivo aos erros officiaes; mas colligir, de modo mais ou menos
imperfeito, a generalidade dos factos só o alcançam a vista e a acção
dos poderes publicos que se estendem a todo o paiz. Como nota De
Lavergne; as estatisticas geraes servem de aferição ás observações
individuaes. «Seria cousa nova--diz elle--o supprimil-as, como se, para
vermos mais claro, forcejando por accender um facho, começassemos por
apagar outro[14].
Se a rejeição dos meios officiaes de informação me parece inconveniente
e injusta, mais singular acho ainda a condemnação absoluta da propria
estatistica, votada ao ostracismo como sciencia conjectural. Ha aqui
forçosamente um equivoco. A estatistica tem por objecto colligir e
ordenar methodicamente os factos sociaes que se podem exprimir com
algarismos. Nada menos conjectural. Se em vez de factos se colligem
supposições, não se faz estatistica, faz-se novella. Na estatistica
applicada é que são possiveis as conjecturas e os erros que d'ellas
tantas vezes derivam; mas inferir d'isso a inanidade da estatistica é o
mesmo que negar a validade scientifica da arithmetica, porque muitas
vezes se erram sommas ou multiplicações. De que dependem por via de
regra as leis e providencias de indole generica, sejam de ordem juridica
ou moral, sejam de ordem economica? Dependem de um estudo estatistico
correlativo. É n'esse estudo que está a sua razão de ser.
Quando, convencidos da existencia de uma enfermidade social, desejamos
submetter á opinião publica os arbitrios que nos occorrem para a
remover, e estes arbitrios tem de estribar-se nos factos que a explicam
ou caracterisam, podemos contrapor livremente ao voto das maiorias o
voto individual pelo que toca ao valor e significação d'esses factos e
ás illações que d'elles se hão de tirar. Domina ahi o raciocinio e não a
auctoridade. Quanto, porém, á existencia dos mesmos factos, as nossas
affirmativas ou negativas hão-de esteiar-se em demonstrações claras e
indubitaveis, ou havemos de admittil-os como a sociedade nol-os
subministra. Querer que esta acceite o nosso vago testemunho, contra o
testemunho individuado dos seus agentes, parece-me exigir de mais.
Podemos recusar as informações d'elles quando evidentemente impossiveis
ou absurdas, porque n'esse caso o senso commum exerce a sua supremacia;
mas nem por isso as nossas affirmações em contrario precisam menos de
provas incontrastaveis. Esta é que me parece a boa doutrina.
Mas de que estatisticas me servi eu para verificar se a miseria do
operario rural era uma realidade, ou se era fundado o clamor dos
cultivadores contra a exorbitancia dos jornaes? Servi-me das indicações
subministradas por esses funccionarios do governo, para com os quaes se
mostra tão severo o meu illustrado antagonista? Apenas me referi ás
opiniões de alguns, que me não parecem ignorantes ou indifferentes. Como
prova de que nem elles nem eu nos enganavamos sobre a insufficiencia do
salario, recorri á comparação dos preços do meio dos principaes generos
de alimentação do trabalhador, e dos preços do meio dos salarios. Estes
elementos do calculo encontrei-os nos mappas communicados pelas camaras
municipaes. Nos concelhos onde predomina a propriedade rustica, as
vereações são compostas de proprietarios e lavradores, ou, pelo menos,
de individuos que mereceram a sua confiança, porque são elles que
preponderam nas eleições, pelo numero e pelas influencias. Fiei-me,
pois, em documentos de magistrados independentes do governo, e, o que
mais é, representantes da classe, cuja sorte o sr. P. de M. parece achar
mais digna de piedade que a dos trabalhadores. Os preços do meio não
foram de certo inventados para servirem aos meus argumentos. A fixação
annual d'elles é uma funcção exclusivamente municipal; é um facto
notorio, indubitavel, necessario. Depende d'isso a realisação de certos
contractos, a solução de certos encargos, e até o cumprimento de
mandados judiciaes. Haverá inexacções, para mais e para menos, na
fixação de taes preços; mas semelhantes inexacções compensam-se umas
pelas outras. Os meus calculos podem ser erroneos; mas as bases sobre
que assentam, creio-as inconcussas.
É singular! A situação da classe dos trabalhadores melhora gradualmente,
emquanto a dos proprietarios ruraes e lavradores peiora. E todavia
estamos de accordo em suppor que o signal do melhoramento da classe
operaria consistiria em ir-se transformando o simples jornaleiro em
proprietario. Parece que n'esse caso deveriamos deplorar a imprevidencia
do trabalhador que abandona uma situação progressivamente vantajosa,
para entrar n'outra que vai em decadencia. O meu talentoso adversario
sentiu que as suas affirmativas tinham o que quer que fosse que
suscitaria dúvidas. Explicou-as pois. A grande e a mediana propriedade
luctam com difficuldades e encargos novos, a que foge naturalmente a
pequena cultura, que tem limitadas precisões, que vive vida frugal, e
que não tem de pagar o trabalho que a si mesma subministra. Será esta
explicação exacta e sufficiente? Suspeito que não é. Os mais onerosos
encargos que definhavam antigamente a industria agricola desappareceram
em 1834 tanto para a grande como para a pequena cultura. Esmagam-na os
novos tributos directos? A verba total da contribuição de repartição,
que nos dizem representar ás vezes 12, 14 e mais por cento do liquido da
producção nacional, está por si mesma revelando o que é essa
contribuição directa, e ainda melhor se a compararmos com a verba total
dos rendimentos annuaes das nossas alfandegas, que, na sua generalidade,
representam uma percentagem de 10, de 20, de 30, ou ainda de mais, se
quizerem, sobre o valor venal dos objectos que, na maxima parte,
forçosamente se hão-de comprar com o producto liquido do trabalho
nacional, trabalho que sobretudo se manifesta nos valores creados pela
agricultura, e que indirectamente tem tambem de pagar as percentagens do
fisco e os ganhos do commercio. Todos nós sabemos um pouco da historia
contemporanea do tributo directo, ácerca do qual um illustre deputado, o
sr. Carlos Ribeiro, já teve occasião de dizer notaveis verdades. Se,
porém, na apreciação da materia collectavel, da renda e dos lucros
agricolas, ha erros graves, não creio que taes erros revertam de
ordinario em proveito dos proprietarios humildes e dos simples
jornaleiros. Mas, sejam quaes forem as nossas opiniões sobre o assumpto,
o que me parece evidente é que os melhoramentos materiaes do paiz nos
ultimos quarenta annos tem aproveitado, pela maior parte, á grande e á
mediana cultura. Possuimos caminhos de ferro, centenares e centenares de
leguas de boas estradas, principaes incentivos do desenvolvimento
agricola; temos a propriedade menos sujeita a extorsões e violencias
publicas e privadas; temos a liberdade e a paz, sempre e em toda a parte
fecundas de progresso e riqueza; temos dezenas de productos da industria
rural insignificantes ou desconhecidos para a exportação ha cincoenta
annos, e que hoje a fazem engrossar em milhares de contos de réis.
Affirmando que em algumas leis e instituições do paiz, e no nosso
systema fiscal, ha embaraços para a industria agricola, não creio que
sejam elles taes que annullem essas immensas vantagens, e sobretudo que
não abranjam a pequena como abrangem a grande e a mediana propriedade.
O meu tão cortez adversario aponta um facto como prova de que a sorte
dos proletarios ruraes tem melhorado. É a frequente accessão de um ou de
outro, durante os ultimos vinte annos, á posse da propriedade. Reconheço
a verdade do facto e o meu unico desejo é que elle se realise em
larguissima escala. Não é, porém, de vinte annos a esta parte que o
phenomeno se dá. Dá-se desde seculos remotos. Os archivos do estado, das
ordens monasticas e militares, das casas nobres, dos cabidos e mitras,
das pessoas, em summa, physicas ou moraes que tinham ou tem o dominio da
terra, ahi estão para o provar. Impediu d'antes, impede isso hoje, que a
grande maioria dos chefes de familia obreiros sejam simples proletarios?
Se nenhum de nós duvida da excellencia do meio, porque comparativamente
é elle tão pouco efficaz? Terei occasião de submetter a v. ex.^a algumas
considerações, que me persuado farão sentir como no complexo das nossas
leis civis e de fazenda se encontram graves obstaculos á posse do solo
pelo proletariado, ao passo que fallecem os incitamentos para esta se
realisar. O que explica a accessão do simples jornaleiro á propriedade é
a sua paixão ardente por ella, o seu amor á terra, que o faz tantas
vezes vencer esses obstaculos, que o fez vencel-os ainda em epochas bem
sombrias da historia do colonato. Crê, pelo contrario, o sr. P. de M.
que o proletario tem hoje não só grandes facilidades de acquisição, mas
tambem vantagens superiores ás dos grandes e medianos proprietarios para
obter prosperos resultados. Quanto a estas ultimas, diz-nos elle que o
pequeno agricultor tem poucas necessidades, vive vida frugal e não paga
o trabalho que fornece a si mesmo. São, quanto a mim, bem limitadas as
necessidades inevitaveis, impreteriveis, da vida rustica, e estas
communs ao grande, ao mediocre e ao pequeno agricultor. As outras, mais
ou menos facticias, seria excellente para os progressos agricolas que se
contivessem sempre dentro da orbita dos recursos de cada lavrador ou
proprietario rural. Não reputo grande fortuna do pequeno agricultor não
poder crial-as porque não tem meios de as satisfazer.
Por outra parte, a frugalidade não é uma virtude monopolio de nenhuma
classe; está á disposição de todas as vontades e de todas as
consciencias austeras. A mesa mais ou menos opipara é negocio alheio a
este ou áquelle methodo, a aquellas ou a estas condições da agricultura.
Tambem não me parece que o pequeno agricultor que não paga o trabalho a
outrem tenha alguma vantagem em não dar esse dinheiro, fazendo os
serviços por suas proprias mãos. Quem paga o trabalho da producção é o
producto. O salario representa a manutenção do obreiro. Que o ganhe
comsigo, que o ganhe fóra, ha-de viver e manter-se. A verdadeira
vantagem do jornaleiro proprietario é aproveitar a energia dos proprios
braços nos dias, nas semanas, nos mezes, em que não encontra quem lhe
pague essa energia. Se quando acha serviço alheio, prefere o seu, não
faz mais do que depositar na caixa economica chamada a terra o salario
d'aquelle dia. A sua situação, assim considerada, é a mesma dos grandes
e dos medianos agricultores-proprietarios. Como elles, representa duas
entidades economicas--o dono da terra que aufere a renda, e o industrial
que aufere o lucro liquido. A importancia dos jornaes que venceu como
trabalhador não se confunde nem com a renda nem com o lucro: é uma
deducção que ha a fazer no valor bruto da producção.
Outra ordem de factos vem confirmar isto mesmo. É vulgarmente sabido que
na grande e ainda na mediana cultura o producto liquido é
proporcionalmente maior do que na pequena, e o producto bruto maior
n'esta do que n'aquellas. Porque? Porque nas primeiras o emprego das
machinas, o poder dos motores, a divisão dos misteres, o trabalho não
interrompido e por grandes massas homogeneas, a simplificação das
operações, e outras vantagens analogas, reduzem o custo, embora tambem,
até certo ponto, reduzam o resultado. Na pequena cultura o emprego
exclusivo ou quasi exclusivo dos braços, o zelo com que estes trabalham,
o esmero com que os serviços são executados, os adubos frequentes, a
pulverisação da terra, o aproveitamento nas colheitas, a vigilancia
minuciosa nas pequenas cousas, que é um dos motivos da prosperidade
moral, mas que exige tempo e applicação, explicam a superioridade
relativa do producto bruto. Resultam d'estes factos diversos dois
phenomenos oppostos. O grande ou mediano cultivador consome comsigo e
com os seus uma pequena porção do que produz, e vende a maxima parte.
Com o pequeno succede exactamente o contrario. Consome a maior parte dos
productos, elle e os seus. Vende pouco; mas esse pouco, ás vezes
associado com os jornaes ganhos em serviço alheio, suppre melhor ou
peior aquellas necessidades da familia que não podem satisfazer-se com
os generos da propria lavra. Que significa este consumo quasi inteiro
dos productos? Significa salarios, seu, da mulher, dos filhos; significa
terem-se aproveitado bem todas as forças uteis da familia, emquanto no
trabalho interrompido e vacilante do simples jornaleiro uma grande parte
d'essas forças são annualmente annulladas.
No pensar do sr. P. de M., a pouco onerosa acquisição da terra pelo
aforamento, a parceria agricola, e, ás vezes, as sobras do salario,
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 10
  • Parts
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 01
    Total number of words is 4332
    Total number of unique words is 1672
    32.0 of words are in the 2000 most common words
    47.5 of words are in the 5000 most common words
    56.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 02
    Total number of words is 4430
    Total number of unique words is 1468
    33.0 of words are in the 2000 most common words
    48.3 of words are in the 5000 most common words
    56.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 03
    Total number of words is 4405
    Total number of unique words is 1483
    32.6 of words are in the 2000 most common words
    47.8 of words are in the 5000 most common words
    57.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 04
    Total number of words is 4438
    Total number of unique words is 1467
    28.9 of words are in the 2000 most common words
    43.0 of words are in the 5000 most common words
    51.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 05
    Total number of words is 4491
    Total number of unique words is 1629
    32.0 of words are in the 2000 most common words
    45.7 of words are in the 5000 most common words
    54.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 06
    Total number of words is 4598
    Total number of unique words is 1663
    30.3 of words are in the 2000 most common words
    42.8 of words are in the 5000 most common words
    51.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 07
    Total number of words is 4472
    Total number of unique words is 1660
    30.8 of words are in the 2000 most common words
    44.8 of words are in the 5000 most common words
    53.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 08
    Total number of words is 4554
    Total number of unique words is 1708
    32.2 of words are in the 2000 most common words
    45.6 of words are in the 5000 most common words
    53.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 09
    Total number of words is 4482
    Total number of unique words is 1664
    30.4 of words are in the 2000 most common words
    45.1 of words are in the 5000 most common words
    52.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 10
    Total number of words is 4560
    Total number of unique words is 1621
    31.1 of words are in the 2000 most common words
    46.1 of words are in the 5000 most common words
    53.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 11
    Total number of words is 4507
    Total number of unique words is 1600
    31.2 of words are in the 2000 most common words
    45.7 of words are in the 5000 most common words
    54.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 12
    Total number of words is 3933
    Total number of unique words is 1535
    33.0 of words are in the 2000 most common words
    47.5 of words are in the 5000 most common words
    54.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.