Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 07

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indispensaveis para subsistirem seria, mais do que injusto, cruel[5].»
Um illustre escriptor nosso, o sr. Mendes Leal, tinha, no jornal _A
America_, reputado principal origem da emigração a miseria, attribuindo
esta a diversas causas que o dr. Bernardino de Almeida em grande parte
rejeita. Admitte, todavia, e confessa, que a emigração dos trabalhadores
se explica tambem pela penuria, e na sua opinião a penuria procede da
insufficiente remuneração do trabalho[6]. O consul portuguez de Boston
explica egualmente a nossa emigração para os Estados Unidos pela
convicção que o obreiro tem de encontrar alli a remuneração condigna do
seu trabalho, que não acha no proprio paiz[7]. No informe do sr.
Taibner, onde abundam considerações graves, e por vezes tão verdadeiras
como profundas, reconhecem-se francamente as estreitezas que opprimem os
operarios ruraes. «Apezar do augmento sensivel dos salarios, pondera o
digno funccionario, pode dizer-se que não são elles sufficientemente
ente remuneradores do trabalho, e não evitam a emigração, a que dá causa
o desejo de melhorar de fortuna[8].
Não será esta mesma opinião a que está no amago do questionario que v.
ex.^a me remetteu? Como, sem isso, explicar o quesito 29? Para este se
entender racionalmente, é preciso presuppor a sobejidão de obreiros
ruraes nas provincias do norte, e por consequencia o seu inevitavel
consectario--a insufficiencia dos salarios. Ahi não se indaga se convirá
forcejar para que elles se conservem no seu districto ou provincia
natal: pedem-se desde logo alvitres para os attrair ao sul e fixar no
Alemtejo. Se a escacez de braços e conseguintemente a excessiva elevação
dos jornaes fossem, como se diz, geraes em todo o reino, com esse
movimento de translação a agricultura do norte ficaria completameate
arruinada.
Temos, pois, um conjuncto de opiniões respeitaveis sobre a
insufficiencia dos salarios ruraes. A estas opiniões vem a estatistica
dar plena confirmação, revelando com a irresistivel eloquencia dos
algarismos a verdadeira situação do jornaleiro, tanto em relação aos
seus recursos como ás suas necessidades. Incompletas por abrangerem só
uma parte dos districtos do reino, deficientes por omissões e falta de
especificação nos elementos subministrados por alguns municipios, os
quadros estatisticos addicionados ao _Inquerito parlamentar_, ainda
assim são bastante numerosos nas suas varias especies para poderem
deduzir-se d'elles conclusões geraes. Os mappas do valor dos generos e
do preço dos salarios durante o decennio de 1862 a 1871, communicados
pelas camaras de diversos districtos, suscitam reflexões e calculos que
peço licença para submetter á apreciação de v. ex.^a.
Já notei, e, conforme creio, provei, que avaliar a sufficiencia ou
insufficiencia da retribuição do jornaleiro pela media annual do salario
é um methodo illusorio applicado á questão da emigração. Escuso de
repetir o que disse, porque me parece de facil intuição. Entretanto
acceitarei a fórmula; porque, se, partindo d'essa media, ainda se provar
que a insufficiencia predomina em larga escala, desapparecerá a idéa de
que a elevação dos salarios e a falta de braços são as causas
deprimentes da agricultura, idéa por duas maneiras fatal, porque afasta
os agricultores de observarem e combaterem as causas verdadeiras do mal,
e porque ha-de ter uma pessima influencia nas deliberações que se
tomarem para destruir, não digo já a emigração em geral, mas o que
n'ella é, por assim me exprimir, artificial, e que não faz senão
conduzir a mais infeliz situação o proletario rural, já de sobra
desgraçado.
O districto do Porto é aquelle onde, mais do que em outro qualquer, a
emigração tem tido notavel incremento. Nos seis annos de 1866 a 1871, de
37:444 individuos que abandonaram o paiz pertenciam-lhe 16:450. N'um
periodo de dez annos, de 1862 a 1871, os salarios subiram n'aquelle
districto mais de 25 por cento; mas as consequencias d'este facto foram
attenuadas e talvez destruidas por uma circumstancia assás grave. Os
generos que predominam na alimentação do trabalhador do campo são o
milho, o feijão, e a batata. Ora dos 17 concelhos do districto, em 14
subiu o preço do milho, em 11 o do feijão, e em 7 o da batata. Na minha
opinião, o phenomeno não proveiu da diminuição dos productos: longe
d'isso. Proveiu da sempre crescente abundancia da moeda, devida
principalmente ao regresso á patria de avultado numero dos _nossos
brazileiros_. Seja, porém, esta ou aquella a causa, signifique a alta
dos generos o que significar, o que é certo é que ella diminuiu, se não
destruiu, o effeito da elevação dos salarios. Por outra parte, essa
elevação dos jornaes prova antes a sua pequenez em 1862 do que a sua
exaggeração em 1871; porque n'este ultimo anno a media d'elles em 8 dos
17 concelhos não excedeu a 200 réis, e dos restantes, apenas no do Porto
passou de 280 réis.
Os districtos onde, afóra o do Porto, a emigração é importante, são os
de Aveiro, Braga, Vianna, Vizeu, Villa Real e Coimbra. A commissão
obteve notas estatisticas sobre os preços dos generos e dos salarios nos
districtos de Aveiro, Vianna e Coimbra, além de outros (Lisboa, Leiria,
Bragança e Castello Branco), cuja quota de emigração é insignificante.
No de Aveiro, onde o numero de emigrados é o mais avultado depois do do
Porto, a comparação entre os preços dos principaes generos alimenticios
e os salarios ainda, porventura, é mais instructiva. Entre o primeiro e
o ultimo anno da decada de 1862 a 1871 o custo do milho augmentou em 9
concelhos e diminuiu em 6, o do feijão augmentou em 12 e diminuiu em 3,
o da batata augmentou em 8 e diminuiu em 5. Como, pois, considerar as
pequenas elevações dos jornaes, em geral, senão como compensação da
maior carestia das principaes subsistencias? Em 1871 esses jornaes
augmentados sobem, na verdade, um pouco acima de 200 réis em 7
concelhos; mas são de 200 réis e ainda de menos em 9. Tal é a enormidade
dos salarios que arruinam a agricultura! A estatistica do districto de
Vianna é assás deficiente, sobretudo em relação aos jornaes; mas vê-se
que alli o preço do milho e feijão subiu em 8 concelhos, diminuindo
apenas em um ou dois. Se houve elevação nos salarios, o facto explica-se
pela alta nos generos. No que respeita ao districto de Coimbra, as
informações são menos incompletas, posto que ainda insufficientes quanto
aos salarios ruraes. Ahi a proporção entre o accrescimo e a reducção no
preço dos generos é a favor d'esta; mas os salarios parece
conservarem-se immoveis, conforme as notas transmittidas pelas camaras
municipaes. Dá-se até a circumstancia de diminuirem nos concelhos de
Coimbra, Figueira e Cantanhede. Reduzidos, porém, ou estacionarios, por
todo o districto, á excepção de um concelho, foram em 1871 de 200 réis e
ainda de menos. O trabalho estacionou ou embarateceu como os generos.
Qual é o resumo e substancia d'estas observações? É que, de 1862 a 1871,
os salarios cujo augmento os fez ultrapassar a meta de 200 réis estão
para os que se mantiveram n'esse limite, ou nem sequer o attingiram, na
razão de 18 para 36, ao passo que o accrescimo do preço das principaes
subsistencias do operario rural está para a diminuição do custo d'essas
mesmas subsistencias na razão de 98 para 50. Manifesta-se, pois, uma
forte tendencia do salario para se conservar dentro d'aquelle limite, e
ao mesmo tempo uma não menos forte tendencia para a alta nos principaes
generos alimenticios do trabalhador. Deixo ao discernimento de v. ex.^a
tirar as illações que naturalmente dimanam d'estes factos.
Encontra-se nos mappas do preço do trabalho rural de alguns concelhos
dos districtos de Coimbra e de Castello Branco uma especie valiosa para
apreciar bem a situação economica do proletariado do campo. É pena que
no grande numero de concelhos em que, além d'esses, de certo existe o
facto, não o mencionassem. Seriam mais completas e indubitaveis as
reflexões que elle suscita. Refiro-me ás duas fórmas simultaneas da
retribuição do trabalho--jornal _a sêcco_, e jornal _com comida_. A
differença entre os dois jornaes representa o valor do sustento diario
do obreiro e corresponde forçosamente á realidade. Essa differença é
claro que resulta de um accordo livre entre o patrão e o operario, cada
um dos quaes poderia preferir a solução integral a dinheiro, se
porventura se reputasse lesado na avaliação do sustento. Esta é,
portanto, razoavel. Das notas de seis concelhos em que se menciona o
facto vé-se que, em dois, a manutenção do obreiro é computada em mais de
metade do jornal todo a dinheiro, n'um em menos, e em tres exactamente
na metade. Adoptarei essa metade para base do calculo, applicando este a
uma hypothese vulgarissima entre as familias rusticas--a de um obreiro
com mulher e dois ou tres filhos de um até dez annos de idade.
Supponhamos que a mulher, cumpridas as obrigações domesticas, pode ainda
trabalhar fóra os dias correspondentes aos dias uteis de um semestre,
ganhando metade do salario do marido. Supponhamos tambem que n'esses
seis concelhos (Pampilhosa, Oliveira do Hospital, Miranda do Corvo,
Goes, Fundão, Oleiros) foram os jornaes, em 1871, de 200 réis, embora só
o fossem no de Goes, e inferiores em todos os demais. Supponhamos ainda
que a alimentação da mulher e de dois ou tres filhos apenas equivalesse
á do jornaleiro. As condições da hypothese são o menos favoraveis que é
possivel ao que pretendo demonstrar. Pois bem: apezar d'isso, com taes
elementos, um calculo simples dá-nos em resultado a expressão de uma
verdade bem triste.

Salario de 200 réis em 365 dias 73$000
Dito de 100 réis em 180 dias 18$000
------------
91$000
Deduzindo:
Domingos e dias festivos; 60
para o marido e 30 para a
mulher ou 12$000 + 3$000
réis. Dias de interrupção de
trabalho por temporaes e chuvas
copiosas, calculados no decurso
do anno em 30 para o
marido e 15 para a mulher
ou 6$000 + 1$00 réis 22$500
------------
Rendimento annual da familia 68$500
Media da alimentação do obreiro
em 365 dias 36$500
Dita da mulher e filhos 36$500
------------
73$00
------------
Deficit 4$500

E as pobres roupas e trajos? E a pobrissima habitação? E os impostos em
dinheiro ou trabalho? E a falta de serviços? E a doença? Que o
jornaleiro não tenha um unico vicio; que não gaste mal um ceitil. Terá
por sorte a miseria.
Não sei se me illudo sobre a exacção d'este calculo. Se é exacto, deixo
a v. ex.^a deduzir d'elle as conclusões que lhe dictar a sua alta
intelligencia.

IV
*Val-de-Lobos, julho de 1874.*

Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Creio que já n'uma carta antecedente confessei
que a nossa agricultura lucta ás vezes com difficuldades e embaraços,
como, mais ou menos, luctam todas as industrias e todas as profissões.
Existencias que sem obstaculos, sem revezes, deslisem serenas na vida
são raras excepções. A lucta é o progresso: a resistencia das cousas ou
dos homens o incentivo dos supremos esforços: os erros que custam caros
os melhores mestres. N'este ultimo ponto a difficuldade está em acceitar
as lições. Somos propensos a attribuir aos outros as culpas proprias, e
é por isso que tantas vezes se inutiliza o proveito que poderiamos tirar
dos nossos desacertos.
As causas que obstam ao desenvolvimento agricola e á prosperidade a que
esta industria das industrias poderia ter-se elevado são complexas e
variadas, sendo talvez a principal a sua propria indole e a direcção que
tem seguido. É por isso que não posso ver na reducção do salario o
remedio para evitar os seus queixumes. Pelo contrario, como symptoma, a
lenta elevação dos jornaes, a immobilidade, ou o descenso d'elles são
indicios da lentidão do seu caminhar, do seu estacionamento, ou da sua
decadencia.
As reformas da dictadura de 1832 a 1834 impelliram energicamente a
industria agricola na senda do progresso, desonerando-a de multiplicados
vexames, vestigios de eras barbaras e obstaculo insuperavel á sua
prosperidade. Por este lado a revolução foi longe; mas a revolução não
podia transformar uma classe numerosa de agricultores atrazados em
homens que soubessem aproveitar practica e racionalmente os effeitos das
reformas. Assim, o progresso foi-se manifestando nos districtos do sul,
e em grande parte nos do norte, quasi exclusivamente na extensão da
cultura e pouquissimo na intensidade. Tem-se arroteado charnecas,
lavrado velhos pouzios, convertido pantanos em arrozaes, multiplicado as
vinhas e olivedos, desbastado e educado os chaparraes, dilatado por
bravios as roças e queimadas. Forcejamos por cobrir vastas áreas de
terreno de sulcos de arado sem perguntarmos a nós mesmos se pozemos
todos os meios para ser remunerado o nosso trabalho. N'um paiz
mediocremente cerealifero, ao menos com relação ás praganas, esgotamos
os terrenos ferteis com tristes rotações biennaes e triennaes, em que
raramente figuram as hervas de fouce. Pedimos a gandras, a encostas, a
chans, comparativamente fracas e pobres, as mais das vezes sem
alqueives, quasi sempre sem adubos, a maior porção dos cereaes
colmiferos. A cultura alterna é entre nós excepção rara, até porque os
terrenos que a admittem não são vulgares em Portugal. No sul do reino, o
prado artificial, que poderia tornar altamente progressiva a rotação
biennal, ainda não passou de uma curiosidade. Os nossos rios e ribeiras
vão direitos ao mar durante o anno inteiro, embora atravessem planícies
e valles uberrimos. Ahi a agua e o sol do estio subministrariam alimento
a gados numerosos, e conseguintemente produziriam massas avultadissimas
d'estrumes, cujos sobejos iriam gradualmente fertilisando os terrenos
pobres adjacentes, onde tantas vezes o lavrador tem de contentar-se com
tres ou quatro sementes. As vastas charcas, que suppririam a
insufficiencia das aguas correntias e a cuja construcção tão favoravel é
o accidentado do nosso solo, quem pensa n'ellas? E todavia, com a
cultura racional em vez da tradicional, metade dos terrenos fundeiros
produziriam o dobro ou mais, preparados para a irrigação, do que produz
o todo privado d'ella. Por outro lado, os nossos instrumentos agrarios
são em geral os mesmos que eram ha meio seculo, e os vehiculos rusticos
conservam-se, como os instrumentos, em hostilidade permanente com as
leis da mechanica. O que estes e dezenas de factos analogos influem no
curso dos productos agricolas conhecem-n'o pela reflexão e pela
experiencia os agricultores que sabem reflectir e experimentar. A outros
basta para explicar tudo a transitoria elevação do salario.
Costuma dizer-se que o poeta nasce. Em Portugal o que nasce é o
lavrador. A lavoura é profissão cujo tirocinio consiste em ser filho de
lavrador ou de proprietario rural. A sua divisa é o desdem do livro. O
livro é o supremo perigo da producção nacional. A praxe e a experiencia
não precisam de saber o que elle diz para o condemnarem. N'este genero
de industria a verdadeira superioridade está em não a reconhecer
n'aquelles que pelos factos provam que nos levam vantagem. O
jurisconsulto pode accommodar aos costumes, ás tradições, aos habitos
nacionaes a luz da sciencia que vem de fóra; o economista fazer selecção
nas doutrinas alheias de tudo quanto seja util ao desenvolvimento da
riqueza publica; o medico modificar pelas condições climatericas do paiz
os resultados do estudo e experiencia estranhos; o militar ir
apropriando á defesa do Estado o que nos progressos modernos da arte da
guerra se coaduna com a nossa indole e recursos, com as nossas aptidões,
com a configuração do nosso solo. Assim no mais, salvo em agricultura e
em economia rural. N'isto, basta-nos affirmar que ha muitas cousas em
que os estrangeiros teriam que aprender comnosco; que disfructamos um
clima abençoado, que isto é o jardim da Europa, e outros apophtegmas
egualmente sisudos e demonstrados.
Este horror ao livro não tem sido por certo menos fatal do que o
enthusiasmo cego por elle, achaque de que não pode negar-se que adoece
mais de um espirito illustrado. Resultam de similhante horror
consequencias funestas, mais funestas porque sem comparação mais geraes,
do que essas que derivam do fanatismo pela generalisação, pelas theorias
scientificas sem as restricções da experiencia. A agricultura, como as
outras industrias, talvez mais do que as outras, exige a actividade
physica, o movimento, a vida externa; mas, assim como os que se dedicam
ás industrias fabris sabem furtar ás lidas materiaes algumas horas para
estudar as questões technicas ou economicas que possam servir ao
progresso d'ellas ou contrariar a sua prosperidade, do mesmo modo o
cultivador precisa de dedicar quaesquer ocios a inquirir o que ha que
aproveitar na observação e no estudo alheios, e a habilitar-se para
apreciar o que na organisação economica da sociedade será vantajoso ou
nocivo aos interesses da sua classe. A incompetencia do productor rural
n'estes assumptos pode em certos casos ser para elle mais desastrosa que
todas as emigrações imaginaveis de proletarios. O lavrador portuguez,
por exemplo, é, geralmente fallando, proteccionista. Porque? Porque
ignora que os seus verdadeiros interesses estão ligados á liberdade
commercial. Não sabe referir ao seu paiz as questões que a tal respeito
se ventilam lá fóra, e nem sequer sabe que existem. Não sabe, nem quer
saber. Applaude candidamente o systema protector, e faz mais: sollicita
com affinco, talvez com colera, a manutenção de um systema, que apenas
tem o defeito de lhe liberalisar ampla protecção quando não a precisa, e
de lh'a retirar, ao murmurio das populações urbanas, quando carece
d'ella. Entretanto, á boa sombra d'esse admiravel regimen, tem de prover
ás necessidades da vida, ao vestuario, aos objectos de serviço
domestico, á alfaia rural, e, até ás vezes, a uma parte do alimento, por
preços artificialmente elevados. É até certo ponto a protecção que
explica a estagnação dos seus productos e a insufficiencia dos seus
recursos. Não pára, todavia, no bom caminho o _homem practico_, firme em
detestar o livro e as estrangeirices. No fim de trinta annos de
repugnancias, já na verdade hesita em condemnar absolutamente o caminho
de ferro, e começa a afrouxar nas suas sympathias pela azinhaga real, na
sua commiseração do almocreve, e a tolerar, e, no inverno, quasi a
bemdizer, a invenção de Mac-Adam. Não o faz, porém, sem prudentes
reservas, porque sobretudo é homem practico. No verão lança olhos longos
para a velha calçada do engenheiro juiz de fóra, e, se pode,
aproveita-a. As novas estradas são quasi sempre mais extensas pela mania
de evitar as ladeiras, e o chão batido de pedra britada esquenta os pés
do gado. Nada chega a uma boa calçada. Os seus carros aguentam-se bem
com as sobrerodas e os seus bois com as ladeiras, além de que seu pai e
seu avô sempre por alli passaram e não morreram por isso. Como ha-de
elle deixar, de conservar certo resentimento contra o rasto legal de
sete centimetros que lhe tolhe o prazer de margear o leito das novas
vias com o gume das rodas do carro de eixo movel, que ás vezes se põe a
arder com a _doçura_ dos attritos? A simples substituição do vehiculo do
norte e da Estremadura pela carreta alemtejana daria, na verdade, uma
differença no menor custo dos transportes acima de dez por cento, com a
mesma força de tracção. Não será, porém, mais simples obter essa
economia na reducção do salario dos jornaleiros?
Quantas ponderações equivalentes, ou pouco melhores do que estas, não
tenho eu ouvido a cultivadores, que em outros assumptos de interesse
privado, e até em certas questões geraes de agricultura são cordatos e
razoaveis! Dos seus contratempos e desastres nunca elles são os motores.
Se absolvem a natureza, no que não são faceis, as culpas vão
impreterivelmente cair sobre a sociedade. De certo nas instituições, nas
leis, nos regulamentos administrativos, na percepção e distribuição dos
impostos, ha erros, vexames, desegualdades, desvios, nocivos aos
agricultores; mas tambem no modo de pensar da maioria d'elles ha erros,
preoccupações, ignorancias, teimosias, não menos deploraveis nos seus
effeitos, sem contar com os que procedem de certos factos, não de ordem
economica, mas de ordem moral, imputaveis ao cultivador e de que me
abstenho de fallar.
Na população rural predomina um instincto ou como queiram chamar-lhe,
que no proletario será o mais poderoso elemento de bem-estar e de
regeneração moral para elle, e de paz e de progresso para a sociedade,
se esta souber favorecel-o e dirigil-o; mas que no agricultor mais ou
menos abastado é vicio ruinoso e difficil de corrigir, porque a
intelligencia obscurecida do vicioso o pinta a si proprio como
manifestação de providencias de economia, de amor ao trabalho, quasi de
virtude. Fallo d'essa affeição ardente, inquieta, tenaz, á propriedade
de raiz, á terra, que se mantém com o mesmo vigor no coração do homem do
campo desde a mocidade até ao ultimo dia, até a ultima hora da vida, e
que, apenas satisfeita, logo recrudesce. De todas as causas de ruina dos
agricultores nenhuma reputo mais desastrosa. É ella que de ordinario
deita a perder o lavrador laborioso, poupado, mas pouco reflexivo e
menos instruido. O que sobretudo escaceia ao cultivador portuguez é
cabedal para o grangeio. Por via de regra, a terra é mais forte do que o
seu cultor, e tarde ou cedo esmaga-o. Todavia elle acredita que é acto
meritorio, acto de homem que _faz casa_, converter em terras o capital
de que ha-de precisar para custeios, sempre incertos no seu _quantum_.
Ainda quando elle fosse de sobra, deveria applical-o a melhorar a alfaia
agricola, a adubos, a limpeza de arvoredos, a esgraminhar, a desviar
enxurros dos valles e a desobstruir ribeiros, a vallagens e esgotos,
etc. Mas o proprietario rural é radicalmente anguloso, e desadora com
isso. Estremece pela fórma circular. _Arredonda-se_ de continuo, podendo
e não podendo. Não é raro, até, vêl-o levantar dinheiro a 8, 10 ou mais
por cento para adquirir um campo que lhe dará o equivalente de uma renda
de 4 ou 5, se não menos. Se a cousa fazia tanta conta! Se endireitava a
lavoura! Se lhe proporcionava tão boa serventia! Havia de deixar que o
arrematasse outro confinante que cordealmente detesta? Concluiu-se o
negocio: os amanhos, que já se não faziam bem, são cada vez peiores, e
na producção apparece o castigo do erro. O capital loucamente amortisado
é supprido pelo que, em momentos de apuro, se vai buscar a 12, 15 ou 18,
por cento. Vendem-se os generos na baixa; vendem-se fructos ainda
pendentes; atrazam-se as soldadas, e a disciplina entre os creados
acaba. O gado anda magro, e o arado pára no rego emquanto se fuma ou
conversa. O agricultor nada d'isto vê, porque lhe empanam a vista as
soldadas em debito. A ruina tarda mais ou menos annos, espera ás vezes
pela morte do lavrador, mas vem quasi sempre, implacavel, fatal. Scismam
todos como um homem laborioso, economico, que em summa _fez casa_,
chegou, depois de _se arredondar_, a semelhantes termos. Os advertidos
começam então a lembrar-se das ruins searas que elle tivera desde tantos
annos, da pouca e má producção das suas vinhas e olivedos, da morrinha
do seu rebanho, das basseiras e ferrujões que lhe levaram dois ou tres
bois de trabalho. Mas advertem alguns, ainda mais experientes e
circumspectos, que essa é a historia de varios outros lavradores dos
sitios, incansaveis como elle em fazer casa. O facto tornou-se vulgar
desde que se não paga o dizimo a Deus, e que o reino está comido de
pedreiros livres. Depois, os tributos devoram tudo. Ha quem tenha feito
a conta. Paga mais a terra hoje do que nas epochas douradas dos quartos,
das jugadas, dos relegos, das coutadas, dos dizimos, das milicias, das
ordenanças, acogulado tudo com a decima d'el-rei nosso senhor.
Obviamente as terras produzem agora menos e as estações mudaram. Tem
muitas vezes notado estas cousas o reverendo prior da freguezia e o
fidalgo do logar, ancião respeitavel, que foi capitão-mór, e commendador
quando valia a pena de o ser. Lembram-se ambos com saudade dos bons
tempos em que o lavrador era completamente feliz... nas eclogas da
poesia classica.
D'essa insaciabilidade de terra resulta ainda outro mal não menos
grave--a dispersão do trabalho rural--causa de um sem numero de despesas
improductivas. Ha proprietarios que se resignam ao anguloso quando se
lhes torna impossivel o arredondarem-se; mas resta-lhes outro expediente
para se arruinarem. Como se tracta de satisfazer um vicio, os pretextos
não faltam. A acquisição de um campo, de uma belga de terra, de um
olival, de uma vinha, de um brejo, de um talho de matto, seja, em summa,
do que fôr, embora a meia ou a uma legua do centro da lavoura, é sempre
para os taes um negocio d'aquelles que raras vezes se fazem na vida.
Como elles esperam rir-se dos vendedores! Estes negocios raros, aliás
tão vulgares, trazem por via de regra mais damnos ao agricultor do que
todas as altas dos salarios. V. ex.^a conhece decerto o excellente livro
de Fermin Caballero, sobre a povoação rural de Hespanha, traduzido pelo
dr. Deslandes e publicado em Lisboa em 1872. É provavel que não sejam
muitos os exemplares vendidos. E, todavia, este notavel escripto deveria
ser tão lido e meditado (não digo cegamente adoptadas todas as suas
doutrinas) pelos nossos cultivadores pouco instruidos, como o admiravel
tractadinho de Matthieu de Dombasle sobre os acertos e revezes nos
melhoramentos agricolas o devera ser pelos turbulentos e insoffridos
reformadores das nossas velhas praxes, que tenho a fraqueza de não
suppor todas más. Infelizmente para o lavrador, que disputa aos chins
extremos de devoção pelo culto dos antepassados, a leitura de um livro
que contradiz as tradições avitas seria profanação. Que Fermin Caballero
faça apalpar aos seus hespanhoes as perdas enormes das lavouras
retalhadas e dispersas, cousas são de castelhanos: o cultivador
portuguez continuará todos os dias, a todas as horas e por toda a parte,
a fazer os taes raros negocios, que mais tarde ou mais cedo tem de lhe
inspirar serios queixumes contra os salarios devoradores, devoradores
sobretudo quando são pagos com dinheiro de 12 a 18 por cento.
Diz-se que a escola é uma grande necessidade para o rustico proletario.
Deve ser assim. Affirmam-n'o os entendidos das grandes cidades. Por ora,
suspeito que tem outras mais urgentes--a de melhor e mais abundante
alimento, a de mais roupa, e a de mais reparada habitação. A quem me
parece que aproveitaria desde já a escola é á _burguezia do campo_; mas
a escola como eu a concebo, a escola que ensina mais alguma cousa do que
a manear a ferramenta do estudo--ler e escrever,--a escola em que pouco
se tem pensado. Seria uma attenuação prodigiosa da suppressão dos
dizimos, da existencia do pedreiro livre, e até do fatal descobrimento
da America.
E é n'um paiz onde fallece a instruccão ao commum dos agricultores,
falta que lhes mostra do invez as questões economicas; que lhes mantém
as tendencias para immobilisarem todos os seus recursos pecuniarios,
desequilibrando de continuo os dois instrumentos essenciaes da producção
remuneradora--a terra e o capital; é n'este paiz que não existem
instituições de credito agricola, d'aquelle credito que, bem organisado,
poderia supprir com dinheiro barato a insufficiencia tão vulgar como
ruinosa dos capitaes de grangeio, sem que todavia favorecesse o vicio da
terra não menos vulgar, nem menos ruinoso! Pensámos nos proprietarios,
creando o credito hypothecario; não pensámos na industria rural,
esquecendo o credito agricola. Busca-se remover o perigo de que o dono
de tal predio, que se chama hoje Francisco, se chame ámanhã Antonio,
facto que, aliás, o credito hypothecario geralmente adia, mas raramente
impede, e que importa mediocremente á riqueza publica, se é que antes
não a contraría. Mas que o lavrador, rendeiro ou proprietario, ou
rendeiro e proprietario a um tempo, que exerce um mister indispensavel e
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