Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 08

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que não pode nem sabe exercer outro, se arruine atirando-se á voragem
dos juros excessivos para effectuar em epochas precisas,
intransgressiveis, os amanhos annuaes; que, arruinado, abandone a
profissão; que se esterilise assim uma actividade productiva; que esta
se converta em patriotismo eleitoral, e no estudo diurno e nocturno do
elenco dos cargos que tem a prover o Estado ou o municipio; eis do que
não cogitam os poderes publicos. É que o pretor não cura das cousas
minimas, conforme o velho brocardo da jurisprudencia romana.
Assim no mais. Durante quarenta annos, por exemplo, de governo
representativo não tem sido possivel encontrar um meio sério e efficaz
de manter a segurança pessoal do cultivador e o goso completo e
exclusivo do fructo do seu trabalho. Pode dizer-se que não existe
policia rural. D'aqui a necessidade nos grandes predios rusticos, e
ainda nos medianos, da existencia de um ou mais guardas particulares,
que desempenhem o serviço de segurança pessoal e real, que parece devera
ser a primeira applicação dos tributos que a terra paga. São gravissimas
as considerações de ordem moral e social que esse facto suscita, mas
limitar-me-hei a uma unica observação de ordem puramente economica.
Suppondo de 60$000 réis o vencimento annual de um guarda, entre
comedorias e soldada, se essa entidade viesse a tornar-se inutil e
desapparecesse, elevando-se ao mesmo tempo a media dos jornaes de 200 a
300 réis, o cultivador poderia pagar por este ultimo preço duzentos dias
de trabalho, sem que entre a sua receita e despesa houvesse alteração no
saldo.
Quiz, meu amigo, lembrar-lhe alguns exemplos dos obstaculos graves, mais
positivos que a alta de salarios attribuida á emigração, que embaraçam o
movimento da nossa agricultura e que attenuam a acção das causas que
deveriam ter-lhe dado maior incremento. Não é possivel nos limites de
uma carta considerar miudamente todos esses obstaculos e apreciar os
seus effeitos. Temos um systema de organisação militar analogo ao das
grandes nações, expressão de uma idéa aggressiva, e que inutilisa de
contínuo e aos milhares os braços mais robustos da população rural, em
vez do systema proprio dos pequenos estados, adequado unicamente á sua
defesa: temos os impostos municipaes applicados quasi exclusivamente aos
commodos da parte urbana dos concelhos, com esquecimento da aldeia e da
herdade ou casal solitarios: temos o _absenteismo_, posto que menos
frequente e esgottador do que o foi na Irlanda, mas temos além d'isso o
semi-absenteismo--a lavoura feita de longe--, com o que se tenta
conciliar a gloriola ou a necessidade de ser cultivador e as diversões
que só se encontram nos grandes centros de população: temos os pastos
communs, que significam a negação de boas pastagens e de bons
afolhamentos: temos a frequentação exaggerada das feiras e mercados, uma
das paixões do lavrador, que na falta de motivos sérios inventa
pretextos para ir dispender alli o que não deve e muitas vezes o que não
pode, emquanto os creados, livres da vigilancia do amo, addicionam a
essas despesas os resultados do seu descuido e perguica, quando não da
sua maldade: temos a tauromachia e a lavoura com gado bravo, duas
barbarias que mutuamente se auxiliam e que roubam annualmente a uma
agricultura sensata grande porção dos nossos terrenos de alluvião, isto
é, dos nossos terrenos mais productivos: temos a falta das cadernetas de
serviço dos creados de soldadas, que aliás, dados a nossa indole e
costumes, talvez fossem inuteis; mas que, todavia, fora conveniente
experimentar, porque o creado rural, desleixado, ratoneiro, ou perverso
pode trazer grave dispendio ao amo e ser em certos casos a origem da sua
ruina: temos as _contas de sacco_ tão vulgares e tão desastrosas, quanto
seria impossivel para o lavrador mediano a contabilidade complexa,
inculcada em certos escriptos de economia rural, e só applicavel a
grandes emprezas agricolas. Sobre estes e outros factos analogos fora
facil escrever um livro, onde ficassem patentes as causas reaes e
profundas do insufficiente progresso da agricultura portugueza. Elle
provaria que o quinhão da responsabilidade que a similhante respeito
toca á emigração, é insignificante ou nullo. O que não é possivel, como
já disse, é metter a materia de um livro na estreiteza de uma carta.
Qual é a illacão a deduzir d'estas considerações e d'estes factos? De
certo v. ex.^a adivinha o alvo em que ponho a mira. É em separar a
questão da emigração das vantagens ou desvantagens da agricultura, ou
antes dos agricultores; é em nobilital-a, elevando-a á esphera das
questões de humanidade, de patriotismo, e de ordem social. Isto não
impedirá que os arbitrios, a que haja de recorrer-se para pôr barreiras
a esse triste exodo de milhares de infelizes, possam influir no augmento
da população rural, na sua melhor distribuição, e no accrescimo dos
productos agricolas. Imaginar, porém, que ha-de combater-se a emigração
forçada, que a miseria alimenta, conciliando a suppressão d'ella com a
reducção dos salarios ruraes, cuja insufficiencia resulta dos documentos
colligidos pela commissão de inquerito, afigura-se uma pretensão
insustentavel, pretensão que só servirá para tornar suspeitos e odiosos
áquelles mesmos que desejamos salvar os nossos sinceros esforços para
obter esse fim.
Nas subsequentes cartas verá v. ex.^a que firmemente creio na
possibilidade de se atinar com a solução do problema, uma vez que se
pense, não no proveito d'esta ou d'aquella classe, mas exclusivamente em
atalhar o mal.
_P.S._ Na conjunctura em que concluia esta carta, leio nos jornaes que a
emigração tem diminuido n'estes ultimos tempos de modo singular. Os
recentes symptomas do rapido desenvolvimento da riqueza publica explicam
facilmente o phenomeno. N'esta mesma conjunctura, porém, acabam de
voltar aqui varios trabalhadores das aldeias vizinhas angariados para as
ceifas no sul e oeste da Estremadura e no Alemtejo, os quaes asseveram
terem obtido altos jornaes, que chegaram a elevar-se nas immediações de
Lisboa a 640 réis. V. ex.^a tem mais á mão do que eu os meios de
verificar se é exacto este asserto. A sel-o, v. ex.^a não deixará de
inquirir d'aquelles a quem isso cabe, a razão porque, ao passo que a
emigração notavelmente diminue, o salario rural se eleva de um modo não
menos notavel. As explicações devem ser curiosas e altamente
instructivas para nós todos.

V
*Val-de-Lobos, setembro de 1874.*

Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Vimos, meu amigo, que o interesse d'uma classe
abastada, senão rica, e que por muitos titulos merece a consideração de
nós todos, não deve, apesar d'isso, influir na indole das providencias
destinadas a reter na terra natal o trabalhador do campo. Vimos
egualmente que para obstar á emigração não ha outro meio efficaz,
liberal e legitimo senão remover, até onde for possivel, a miseria que
afflige os proletarios ruraes. Todas as reflexões sobre os
inconvenientes do desterro voluntario; todas as narrativas tetricas
ácerca da sorte dos que os precederam n'aquelle caminho serão baldadas,
porque as refuta peremptoriamente o padecer actual.
Á commissão de inquerito, de que v. ex.^a faz ou fez parte, parece que o
principal instrumento para arredar o proletario das tendencias para a
emigração é a escola primaria obrigatoria. Entende a commissão que o
saber ler e escrever o habilitará para ouvir os conselhos da razão e
evitar os laços dos embaixadores. Sinto discordar da illustre commissão.
Assim como podem fallar, os embaixadores podem escrever. Não faltam
escriptos que celebrem as opulencias da America, e os recursos que a
actividade e o trabalho encontram alli. Saber ler e escrever não
equivale a saber discernir onde está a verdade--se n'esses escriptos, se
nos que cinzelam o reverso da medalha. Nem attinjo a razão porque os
conselhos verbaes das pessoas illustradas serão impotentes contra
instigações egualmente verbaes. A meu ver, o mais efficaz antidoto da
emigração, como de quasi todas as resoluções arriscadas, violentas,
irreflexivas, das multidões, é a modesta felicidade domestica obtida e
mantida pelo trabalho. O estar bem induz á circumspecção; afugenta-a o
estar mal. A condição preliminar, indispensavel, para o melhoramento
intellectual e moral das classes laboriosas é o seu melhoramento
material. Sem isso, todos os esforços, por mais sinceros e energicos que
sejam, para derramar a luz da instrucção entre estas populações rudes e
agrestes, serão baldados, e illusorias as esperanças apparentemente mais
bem fundadas.
No actual estado de cousas, o ensino obrigatorio não passa de mais um
flagello para a pobre familia obreira, que lhe opporá constantemente uma
resistencia passiva, mas invencivel. Afigura-se-me que toca as raias da
crueldade dizer--«manda á escola teus filhos»--ao homem que
habitualmente dorme vestido na esteira de tabúa, na casa de telha vã,
onde, se géa, tiritam de frio elle, a mulher e os filhos, porque a roupa
falta; que, se chove, não tem fato para mudar, e ás vezes nem sequer
lenha para o enxugar; cuja alimentação é de ordinario ruim, quando não
insufficiente; e que, como se isto não bastasse, sente com frequencia
apertar-se-lhe o coração ao dizer-lhe o lavrador, no sabbado: «Para a
semana não ha que fazer.» D'esses filhos que lhe pedem para a escola,
um, dois, os mais velhos, são pastores ou ajudas; sustenta-os, dá-lhes
agasalho o lavrador, e os seus pequenos salarios mais de uma vez vão
supprir esta ou aquella falta urgente da familia: outro leva a comida ao
pai, que trabalha a um ou dois kilometros de distancia, o que facilita á
mãi exercer algum mister retribuido: os de seis a nove ou dez annos
discorrem descalços pelas estradas ajunctando nas pequenas cestas os
excretos que na vespera ahi deixou o transito dos animaes, miseravel
industria, que, todavia, no fim do anno produz o valor de alguns
cruzados, que resolvem uma ou mais difficuldades da dura vida do
obreiro: outro, pouco maior, vai á fonte, á lenha, ao recado; chamam-no
para guardar aves domesticas, para colher ervas ou flores medicinaes,
para afugentar os passaros que damnam os fructos ou as searas, para dez
ou para vinte serviços analogos. E todos esses serviços tem uma
retribuição, que se incorpora nos recursos da familia e lhe cerceia o
numero das privações. É humano, é justo; digo mais, é moral aggravar a
miseria do trabalhador, tornar mais escura a noite do seu viver em nome
da luz interior? Bem desejaria eu tambem tecer a minha olympica á escola
obrigatoria: as phrases, os periodos, as estrophes andam já vasadas em
fôrmas: basta haver novidade na invenção das suturas. Veda-m'o a
consciencia. Esperarei que ou a escola se ageite a estas condições da
familia obreira, o que vejo longe, ou que, melhorada a situação d'essa
familia, a escola deixe de significar para ella um intoleravel imposto.
A este proposito accrescentarei só uma ponderação, para a qual chamo a
attenção de v. ex.^a. Se ha paiz no mundo onde a escola obrigatoria
domine em virtude de leis austeras, severamente executadas, é a
Allemanha.
Ora, segundo os calculos de Molinari[9], a media annual da emigração
allemã orçava por 100:000 individuos em 1851, verificando-se n'ella a
regra geral de todas as emigrações europeas--o augmento gradual, embora
vacillante às vezes no movimento de ascencão por causas accidentaes.
Os calculos de Molinari foram feitos sobre as estatisticas de 1842 a
1851. Não será, portanto, exaggeração suppor que vinte annos depois, em
1870, fosse essa media de 150:000 almas, ou de 900:000 n'este e nos
cinco annos anteriores.
A proporção entre a população da Allemanha e a de Portugal é a de 10
para 1. Se a nossa emigração egualasse a allemã, seria no mesmo periodo
de 90:000 individuos. Todavia, cinco annos depois, de 1866 a 1871, ella
foi, no continente e ilhas, de 51:509[10], isto é, de pouco mais de
metade. Pode fazer-se conceito da immensa população que a Allemanha cede
á America, sabendo-se que nos seis annos, de 1861 a 1866, só no porto de
Nova-York desembarcaram 312:065 emigrados allemães[11]. Se, porém,
reflectirmos em que a União se compõe de mais de trinta Estados, muitos
com portos notaveis aonde tambem a emigração se dirige; que os allemães
não buscam exclusivamente fortuna no territorio da União Americana, e
que, por exemplo, nas colonias mais importantes, fundadas pelo governo
brazileiro, a maioria dos colonos é de origem germanica[12]; pode
afoutamente dizer-se que a emigração allemã é proporcionalmente maior
tres ou quatro vezes que a de Portugal. Não me parece, por isso, que a
lei do ensino primario obrigatorio, ainda cumprida severamente como na
Allemanha, ou antes porque o é, seja preservativo moral demasiado
efficaz contra o mal que pretendemos evitar.
Permitta-me, pois, v. ex.^a que, em vez de considerar a instrucção
elementar como meio indirecto de combater a emigração, eu substitua esse
meio por outro, na verdade menos espiritual e mais grosseiro, mas que me
parece dever precedel-o na ordem das nossas idéas. Consiste em buscar um
complemento ao salario rural, de modo que os recursos da familia do
trabalhador correspondam ás suas necessidades. Esse complemento
dar-se-hia, talvez, na elevação e permanencia dos jornaes, resultado de
uma direcção mais acertada, de uma transformação na indole da industria
agricola. Podem as leis, as instituições, a crescente illustração do
paiz favorecer as tendencias em tal sentido; mas a sociedade tem de
parar, n'estes assumptos, deante do alvedrio e da responsabilidade
individuaes. Não se legisla o progresso. Resta outra solução, para a
qual as leis e a acção administrativa podem contribuir fortemente,
respeitando aliás todos os direitos individuaes na sua integridade. Este
meio consiste em promover energicamente a associação do trabalho rural
com a propriedade rustica, de modo que o producto liquido do trabalho
accumulado e incorporado no solo, a que chamamos renda, suppra a
fluctuação no _quantum_ e a incerteza do salario. É preciso dirigir
todas as diligencias para a suppressão do proletariado rural. É preciso
que os obreiros-proprietarios se tornem cada vez mais numerosos, e que
sejam os verdadeiros representantes do trabalho agricola, assalariado ou
não assalariado.
É uma utopia que proponho como remedio ao mal? Parece-me que estou bem
longe d'isso. O postulado que julgo indispensavel para combater a
emigração, até onde é justo, conveniente e possivel fazel-o, só na
apparencia é arduo. Para o realisar gradualmente, temos um meio tão
efficaz como trivial, meio profundamente radicado nos habitos nacionaes,
tradição romana nunca inteiramente interrompida atravez dos seculos
barbaros, e que, na fundação e desenvolvimento dos estados néo-latinos,
povoou e desbravou a maior parte do solo habitado e cultivado do nosso
paiz e da Hespanha occidental; meio que ainda hoje é um dos instrumentos
mais efficientes da ampliação da cultura e do augmento da população, e
que de ha muito dá ao trabalhador laborioso e bem procedido accesso á
propriedade. V. ex.^a já, por certo, alcança que fallo da emphyteuse com
os seus varios nomes e nas suas variadas fórmas. Não é uma theoria de
equilibrio mais ou menos socialista; é uma praxe conhecida, que tem por
base a liberdade individual e a natureza de puro contracto, simples,
comprehensivel, como são por via de regra todas as concepções fecundas.
É uma cousa velha, applaudida por uns, condemnada por outros, mas que a
população rural cada vez solicita com maior ardor. Em politica as
revoluções radicaes podem ser ás vezes necessarias; no que, porém,
respeita aos usos tradicionaes e aos costumes juridicos das sociedades,
só de ordinario dão bons resultados as modificações, ou as
transformações graduaes do que existia d'antes. Nas questões publicas
d'esta ordem é inevitavel contar com os habitos, com as tradições, com a
historia. A meu ver, um dos grandes erros do socialismo é esquecer isto.
Não é menor, todavia, o erro dos que pretendem caracterisar como
fatalmente necessaria a miseria de milhares de familias, ou escondel-a
debaixo de um acervo de sciencia problematica, de argumentos que não
peccam por excesso de solidez, de invectivas e ironias, que
peremptoriamente refuta e condemna o grito instiuctivo da consciencia
humana.
Antes de passar a expor porque e com quaes condições a emphyteuse pode
conduzir rapidamente á associação do trabalho actual com o trabalho
consolidado a que chamamos propriedade, e d'ahi, por natural
consequencia, a attenuar em grande escala a emigração nociva, consinta o
meu amigo que ponha termo a esta carta com uma digressão sobre assumpto
connexo, e do mais subido quilate. Refiro-me aos perigos que ameaçam a
Europa por effeito das paixões excitadas entre as classes laboriosas
pelas escolas socialistas extremas, isto é, inexoravelmente logicas.
Esses perigos não são por ora demasiado graves entre nós. Contrahida a
propaganda de certas doutrinas a uma parte dos operarios urbanos,
parece-me que ella se estriba mais no amor da novidade e da moda, do que
nas coleras reaes e funestas, que, n'outros paizes, suscita ás vezes o
excesso do padecer. Mas hoje é tão intimo o contacto entre os povos
civilisados, tão efficiente a mutua acção das idéas e dos factos, que
não seria prudente affirmar que taes perigos se não tornarão um dia
sérios para nós. As apprehensões ácerca das influencias estranhas
parecem sobretudo legitimas no seio das nações pequenas. O generalisar a
propriedade rustica; ligar o salario, que se recebe, com o dominio, que
se exercita, não é só privar de adeptos as doutrinas dissolventes: é
recrutar soldados para a manutenção da paz e da boa ordem. Desde que o
trabalhador rural achar no producto liquido da sua fazendinha um
complemento mais ou menos amplo do jornal; ou, antes, desde que não
considerar o jornal senão como complemento d'esse producto, a negação da
propriedade individual, longe de o lisongear, ha-de irrital-o, e os
apostolos da demoliçao social farão bem em não evangelisar deante d'elle
a lei nova, porque o trabalhador do campo é naturalmente rude. Seria o
caso de applicar, porventura com mais verdade, o dito agudo, a respeito
de Inglaterra, que De Lavergne celebra:--«Não aconselho ás choupanas,
que se amotinem contra os solares. Esmagavam-nas logo. São vinte contra
um.»--Depois da fusão, na familia do jornaleiro, do trabalho actual com
a propriedade, não aconselharia ás assosiações internacionalistas
urbanas que se amotinassem contra esta. Achar-se-hiam em bem restricta
minoria. A paixão da terra, tão forte e tão nociva no grande e no
mediano agricultor, arde com dobrada violencia no coração do proletario
rural. Que sacrificios, que tenacidade, que imaginação, que industria
para alcançar propriedade! Quando elle chega a poder proferir, de pé
sobre as belgas do chão esmoutado e vallado, as palavras magicas--«O meu
foro»--essa fronte, habitualmente inclinada para o solo, com os olhos
fitos na enchada, ergue-se e illumina-se de esperança no futuro e de
confiança no presente. Todos os ocios voluntarios ou forçados do
jornaleiro e dos seus vão-se transformando em trabalho que a arroteia
absorve, e que aflora depois na vinha, no tanchoal, no campinho de
cereaes, na figueira, na ameixeeira, no batatal. A taberna perdeu acaso
um freguez, o baralho e o chinquilho um parceiro, a rixa um arruador. É
que o proletario recebeu da nossa mãi commum o baptismo de cidadão.
_P.S._ Ao cerrar esta carta recebo o _Jornal do Commercio_ de 8 do
corrente, onde vem transcripta a minha penultima carta. Precede-a um
artigo do sr. P. de M., que parece destinado a corrigir factos e
apreciações contidos no que tenho escripto. Quando accedi á publicação
d'estas cartas, desde logo resolvi responder com o silencio ás
impugnações mais ou menos innocentes, mais ou menos habeis, mais ou
menos irritadas, que eram de esperar. Firo interesses e preconceitos
arreigados, rejeito opiniões adoptadas talvez sem sufficiente exame.
Como o homem physico, a idéa aggredida defende-se. É cousa natural. O
desgosto tem o direito de exprimir-se conforme a indole de quem o
padece. Deixal-o manifestar-se em paz, e consolar-se com um facil
triumpho. Declaro-me desde já vencido e refutado. Posso, porém, tractar
do mesmo modo o trabalho do sr. P. de M.? De certo não. Ao nobre e
independente caracter do auctor, ao seu talento, á sua especial
competencia n'estes assumptos, ajuncta-se a sua nunca desmentida
benevolencia para comigo, benevolencia que, longe de desmentir-se agora,
se duplica, talvez, até á exaggeracão. Podemos ver o assumpto a luz
diversa; mas somos ambos desinteressados. Pediu-me v. ex.^a a minha
opinião: dou-a, boa ou má, sinceramente, lealmente.
Sobejam-me annos e fallecem-me ambições: por isso não calculo se agrado
ou desagrado a uma escola, a um partido, a uma classe, e ainda ao
proprio paiz. Quando, porém, a nobreza moral, a inquestionavel
competencia, e o conhecido desinteresse me advertem que errei,
entristeço, porque é provavel que efectivamente errasse. O erro, ainda
quando involuntario, é sempre um mal. Vou estudar detidamente o trabalho
que precede, no _Jornal do Commercio_, a minha penultima carta. Não me
custará a retractação, a que é natural me conduza esse estudo: apenas me
ficará a magua de ter tomado o tempo a v. ex.^a com as minhas reflexões
menos acertadas.

VI
*Lisboa, outubro 1874.*

Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Meu amigo, depois de ter lido com a attenção
de que era capaz o escripto do sr. P. de M., sinto não poder
converter-me.
E sinto-o pelo prazer que teria em reconhecer a importancia do seu voto,
e em estribar as minhas opiniões na sua auctoridade indisputavel e
indisputada sobre o assumpto d'estas cartas. Ao primeiro aspecto, elle
parece concordar commigo na substancia. Dou a miseria como causa suprema
da emigração rural, e, no dizer do meu illustre contendor, _em tudo_
quanto escrevo a tal respeito _ha um fundo de verdade_. Occorrem, porém,
factos que tornam menos seguras as minhas conclusões.
Nem sempre, diz elle, a emigração deriva da miseria. Quem o duvida?
Decerto não sou eu, que não só admitto, mas até especifico outros
incentivos d'ella, e não só em certos casos a absolvo, mas até a
applaudo. A questão é se esta causa existe, e sobretudo se existe em
relação á emigração rural, que era o ponto sobre que v. ex.^a me pedia o
meu voto, visto ser a essa luz que se considerava o assumpto no
questionario que me remetteu. Se existe e actua em larga escala, os
poderes publicos devem forcejar por destruil-a; porque a miseria, como
phenomeno geral e permanente, deriva sempre de um vicio na economia
social. No meu modo de ver a acção d'esses poderes não vai mais longe.
Tremo da tutela publica; porque a tutela publica é o ponto de contacto
entre o despotismo e o socialismo. Nos actos commummente licitos da vida
civil não concebo a intervenção da auctoridade para que um unico d'esses
actos deixe de se practicar. N'esta parte o auctor do artigo, espirito
esclarecido, liberal e justo, parece que em these concorda commigo.
O sr. P. de M., reconhecendo a principio que ha um fundo de verdade no
que digo sobre a insufficiencia do salario, reconhece a existencia da
miseria que fatalmente deriva d'essa insufficiencia. O que parece não
admitir é que ella seja remediavel, porque faz nascer da propria
natureza do organismo social esses factos verdadeiros que apontei. Quer
isto dizer que a miseria do trabalhador provém indirectamente de uma lei
natural? Não creio que seja assim. A sociabilidade é que é uma lei. O
organismo social é a manifestação, a fórmula em que ella se traduz. Essa
manifestação, essa fórmula depende forçosamente de quem ha-de realisar a
lei; depende do homem, ente intelligente e livre, e portanto capaz de
aperfeiçoar as suas obras. O organismo social é, por isso, susceptivel
de ser transformado. Os progressos da civilisação constituem uma série
de transformações d'esse organismo. A historia está ahi para o
testificar. Deus me livre de crer na invencibilidade do mal.
Assim, no entender do meu tão benevolo contendor, ainda que a miseria
podesse enumerar-se entre as causas da emigração, cumpriria curvar a
cabeça ante um facto fatalmente necessario. Não crê, porém, que a
insufficiencia do salario rural seja uma causa indiscutivel da emigração
no continente portuguez. Está longe d'isso. Talvez a admitta só nos
districtos insulares, e se, especificando o que os poderes publicos
devem fazer relativamente á emigração, não lhes diz que tentem remediar
a miseria, a qual, ao menos alli, provém de salarios insufficientes, é
que os dolorosos effeitos d'essa insufficiencia são inevitaveis e
irremediaveis.
Qual é pois a causa supereminente, omnimoda, quasi exclusiva, da
emigração? É a indole aventureira e cubiçosa do homem. Esta indole
exaggera-se pela acção das idéas de um povo sobre as idéas de outro. A
idéa moderna das raças germanicas é o emigrarem os que tem alguma cousa,
e os proletarios morrerem abraçados com a terra da patria. As raças
celto-romanas, a que de ordinario chamamos povos latinos, são actuadas
hoje pela idéa germanica: isto sem livros, sem jornaes, sem
missionarios, sem nenhuma especie de propaganda, e só pela força
sympathica da idéa. Os que possuem vão-se, os que nada possuem ficam. Se
esta theoria é verdadeira, os lamentos dos agricultores são um perfeito
engano. Podem rarear as fileiras dos patrões; as dos simples jornaleiros
não. Quanto mais a emigração crescer, mais provavel é a baixa dos
salarios ruraes.
Procede a theoria do sr. P. de M. de duas fontes: 1.^a a propria
observação; 2.^a os factos que se dão em Allemanha. Para mim, o primeiro
seria decisivo, se as observações do sr. P. de M. fossem, não digo
completas, mas assás extensas. Limitam-se a um tracto maior ou menor das
costas do oceano. Sabe de casos numerosos em que a idéa germanica se
reproduz entre nós; isto é, em que, associando-se ás indoles
aventureiras e cubiçosas, essa idéa arrasta homens remediados a
liquidarem seus haveres e a demandarem as regiões da America. Não era
preciso o testemunho irrecusavel do meu honrado contendor para eu crer
esses factos. Ainda dispensando a intervenção da idéa germanica, estou
convencido de que os espiritos aventurosos, audazes, desejosos de
melhorar de fortuna, proletarios ou não proletarios, terão mais de uma
vez trocado a patria pela America. Para isso tem-se a si; e é o que lhes
basta. Ambos nós, embora por motivos em parte diversos, julgamos que não
convem obstar a esta emigração, e que para o fazer a auctoridade não tem
nenhum meio liberal e legitimo. Mas esses factos das orlas do mar serão
applicaveis ao complexo total da emigração do reino? O sr. P. de M.
conhece 50, 100, 200 casos de tal ordem: mais; muitos mais, se quizer. O
algarismo que os representa ha-de ser sempre grandemente inferior ao de
50:000 emigrados que, por exemplo, abandonaram o paiz só n'um dos
ultimos quinquennios. O mais que o meu bom amigo pode fazer é tirar
illações. Ora, illações de 50, de 100, de 1:000 para 50:000, não me
parece que tenham grande valor, sobretudo n'esta questão.
A idéa germanica, em que se funda a theoria do sr. P. de M., resulta de
um inquerito ordenado recentemente pelo chanceller do imperio allemão.
Segundo esse inquerito estatistico, relativo aos ultimos cincoenta annos
(se em Portugal apparecesse uma estatistica d'estas, o que se diria, meu
Deus!), a emigração allemã até 1840 foi constituida _exclusivamente_
pelos proletarios: _nem um_ só individuo de classes mais felizes buscou
fortuna na America. Repentinamente, por uma especie de mutação á vista,
o proletariado lança raízes na _Vaterland_, na terra d'Arminio. O
espirito aventureiro, a cubica da riqueza surgem n'aquelle anno. É uma
cholera moral que invade a Allemanha. A enorme torrente da emigração não
pára, não se attenua; cresce. O proletariado, porém, não lhe cede _um_
só individuo. O _maltrapilho_ emigrante passa a tradição. Todos os que
emigram tem de seu: liquidam e vão levar os capitaes da opulenta
Allemanha á pobrissima America. O paiz exhaure-se. Esses capitaes
representam nada menos do que uma somma equivalente á contribuição de
guerra imposta á França. Propriamente, o que os francezes pagaram foi um
saldo de contas entre a Allemanha e a America.
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