Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 04

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abolindo-se os vinculos, ou a propriedade que se quiz fazer allodial
ficará forçadamente censitica, ou serão espoliados os institutos de
caridade.
Embora os jurisconsultos considerem ou não os bens vinculados como
hypotheca dos alimentos dos irmãos do administrador, o que é certo
economicamente é que esses alimentos constituem uma renda, e que essa
renda é representada necessariamente por um capital incluido na somma
dos bens vinculados, porque as subtilezas juridicas não alteram a
essencia das cousas. Desvinculados aquelles bens, ficarão as pensões dos
segundo-genitos consideradas como onus e seguindo os bens atravez de
todas as phases de venda, emphyteuticação e hypotheca? Qual será o valor
de troca dos predios gravados por pensões cuja duração é indeterminada?
Serão os segundo-genitos espoliados dos alimentos para tornar a
propriedade inteiramente livre?
Á luz economica, a utilidade real do administrador era poder, em quanto
vivo, consummir a renda liquida do vinculo, excepto a parte destinada
aos encargos. Rigorosamente, ao menos em grande numero de hypotheses, as
pensões dos segundo-genitos representando uma renda e correspondendo a
um capital estavam no caso da renda fruida pelo administrador. Porque,
pois, não entregar aos segundo-genitos como allodiaes porções de bens ao
menos equivalentes ao capital das respectivas pensões? Porque ha-de a
lei favorecer desegualmente o mais velho convertendo-o só a elle em
proprietario? Não repugna esse facto a um dos motivos que se invocam
para a abolição--a desegualdade de direitos entre os irmãos? Desde que a
lei reconhece que essa desegualdade é uma injustiça pode reservar a
reparação d'ella para a geração seguinte?
Mas juncto a este direito ha outro direito antinomico, inconciliavel com
elle. É o do immediato successor. Salvos os raros casos da lenta
devolução ao Estado, o vinculo sempre tem um successor immediato, porque
a successão vai até o millesimo gráu de parentesco. O nascimento deu a
esse individuo, quem quer que seja, o direito de succeder integralmente
no morgado, embora onerado com alimentos. Desde que a obrigação de os
solver cessar, por morte dos pensionistas ou por outra qualquer
circumstancia, a fruição d'essa parte da renda liquida será sua. Se,
reduzidos os bens vinculados a allodiaes, uma parte d'esses bens tiver
passado aos irmãos do antecedente administrador, elle será espoliado do
seu direito n'essa parte pela lei.
Estatuindo-se, porém, que a applicação d'esta sómente se verificasse por
morte do administrador actual, evitar-se-hiam esses inconvenientes? Não
por certo. O direito do successor existe já durante a vida do
administrador. Como pois serão partiveis os bens entre elle e seus
irmãos sem offensa grave do anterior direito, sem uma espoliação? Na
verdade, em relação á sua legitima elle passa a possuir com pleno
dominio; mas servir-lhe-ha isso de compensação ao que perde? Estribado
n'um direito que as leis lhe garantiam, achou-se collocado n'uma
situação social accorde com os seus futuros recursos. Educação, habitos,
profissão, relações de familia, tudo foi calculado para elle ou por elle
á luz d'esse direito. Sem culpa sua, a sociedade retira-lhe, digamos
assim, a base da sua vida civil. Será isto justo? A lei que proclamou
como iniqua a indivisibilidade dos vinculos, e que todavia a manteve em
beneneficio do administrador, no momento em que a morte d'este chama o
successor a uma situação perfeitamente identica cessa de tolerar a
iniquidade que tolerou até ahi.
Removendo o facto da abolição para a epocha da morte do immediato
successor, uma parte d'estes inconvenientes da ordem moral poderiam
evitar-se; mas nem se evitariam todos, nem a abrogação do principio
vincular teria grande importancia. Apenas indicámos aqui uma parte das
difficuldades que cumpria resolver, conforme á consciencia e á justiça,
em relação á familia. Muitas se apresentariam ainda quando a
transformação do direito e do facto houvessem de verificar-se n'uma
epocha mais remota. Legislar, porém, sobre factos economicos, que só
poderiam realizar-se depois de quarenta ou cincoenta annos, parece-nos
absurdo. Suppondo a media da vida humana de 30 annos, e portanto a media
da vida que resta aos administradores actuaes de 15, pode tambem
calcular-se a media da extincção de todos os administradores e
immediatos successores em 45 annos. O que é incalculavel é o progresso
que terão feito n'este periodo as idéas politicas e economicas, e a
relação em que estaria uma lei actual de desvinculação com essas idéas e
com o estado da sociedade: podendo-se affirmar, sem receio de erro, que
no fim de tão largo periodo uma tal lei seria obsoleta antes de ser
applicada.
Depois, a solução da questão dos vinculos é uma instante necessidade.
Este modo de ser da propriedade, conservado sem modificação, embaraça
profundamente o progresso economico, ao menos n'uma parte do reino.
Veremos adiante como a nossa situação exige que se pense attentamente na
maneira por que a população está distribuida pela superficie do paiz, e
o movimento que cumpre dar á translação e divisão da propriedade
rustica. Os vinculos são um grande obstaculo á satisfação d'essa
necessidade, e o unico modo legal de desvincular a propriedade--a
subrogação--não corresponde ás exigencias da situação presente, antes a
contraría como teremos occasião de observar.
Mas a jurisprudencia que regula as subrogações é sobretudo immoral e
antieconomica. A subrogacão faz-se, em regra, por inscripcões ou
apolices de divida fundada, e o que se exige n'esse contracto é o
equivalente não do capital mas da renda. A renda media da propriedade
territorial não excede a tres por cento, em quanto a das inscripções é,
ainda hoje depois de reduzido o juro, de seis a sete por cento, visto
que o valor nominal das apolices é mais que duplo do seu valor de
mercado. Assim 47$000 réis em dinheiro, convertidos n'uma apolice de cem
mil réis, crearão uma renda de 3$000 réis; em quanto, convertidos em
propriedade territorial, apenas darão 1$410 reis. Trocado por
inscripções o predio, resta portanto um capital de mais de metade do
valor d'esse predio, de que o administrador de vinculo parece poder
livremente dispor. Como, porém, taes actos para serem válidos necessitam
da acquiescencia do successor do vinculo, cumpre repartir com elle: e se
o successor é menor, recorre-se não raro á corrupção para obter o
consentimento dos seus tutores e curadores; porque a subrogação por
inscripções é sempre para elle um mal. O remanescente divide-se de
ordinario entre o novo proprietario e o administrador; porque, em regra,
semelhantes transacções são feitas debaixo da pressão de necessidades
urgentes: o luxo, o jogo, as devassidões, a miseria são as mais das
vezes os conselheiros d'estes deploraveis negocios, e a situação mais ou
menos apurada do possuidor do vinculo determina as deducções mais ou
menos fortes a favor do capitalista. Raras vezes acontece reverter
integralmente o agio da transacção em beneficio do primeiro.
A lei em que se estriba esta especie de contractos não pertence á nossa
epocha. É o alvará de 13 de maio 1797, que permitte a subrogação por
apolices. Semelhante meio de aggredir as instituições vinculares não é
uma transacção entre o passado e o futuro, porque estas podem e devem
fazer-se quando grandes e radicados interesses se oppõem a uteis
innovações: é apenas uma astucia indigna de figurar na jurisprudencia de
nações livres. Se entendeis que não existe outro meio de libertar a
terra vinculada se não destruindo absolutamente os vinculos, matae-os,
mas não os _assassineis_. Os expedientes da timidez são os peiores de
todos. N'este meio capcioso não ha, porém, só isso: ha outros
inconvenientes não menos graves. É o primeiro o jogo de bolsa, a
agiotagem dos fundos publicos feita pela lei; é a creação de um elemento
de falso credito. Milhares de contos de inscripções, procurados
successivamente no mercado, e procurados para se amortisarem, para não
voltarem a elle, tem contribuido e contribuem de certo para a elevação
do preço dos titulos de divida fundada. Mas essa elevação, que em regra
é um indicio de credito, deixa de o ser n'este caso, porque a procura
significa, não a confiança, mas a necessidade creada pela lei. Na compra
pelo capitalista e na venda immediata que este faz ao administrador de
vinculo a troco da propriedade territorial, ao primeiro não importa o
que lhe custam os titulos que compra, nem a sua futura depreciação, em
quanto o segundo, indifferente até certo ponto a isso, visto que só lhe
interessa a manutenção do juro e a regularidade do pagamento d'este,
considera como uma vantagem o trocar a propriedade por titulos o mais
depreciados que for possivel, porque maior será o seu lucro individual
n'aquella operação, operação que desmente as leis do mercado, por isso
que é essencialmente viciosa.
A procura dos fundos publicos, resultado de especulações livres,
podendo, em resultado de outras especulações, converter-se brevemente em
offerta, não incita os governos a abusarem do credito; ao passo que a
procura das apolices para subrogações é um incitamento para novas
emissões, e portanto um meio de facilitar o augmento da divida do
Estado. Averbadas nos titulos dos vinculos, essas inscripções
immobilisaram-se, e o governo pode ir substituindo-as gradualmente com
diversos pretextos, sem que o mercado se resinta, ao menos de um modo
facil de appreciar, do augmento da divida publica. Por ventura esse
unico pensamento explica o alvará de 1797.
Não são os administradores de moderados vinculos, que os cultivam por si
proprios em todo ou em parte, e a quem o modico rendimento d'elles
obriga a viver longe dos grandes centros da população e do luxo, os que
de ordinario recorrem a estas transacções deploraveis. São, por via de
regra, os donos de grandes casas, os cortesãos, os titulares, os homens
para quem os habitos de uma vida dissipada ou luxuaria se converteram em
segunda natureza, os opulentos possuidores dos vastos predios do sul,
incapazes não raro de se dedicarem a uma administração complicada e
trabalhosa, que mal se accommoda com a sua educação; são de ordinario
estes, quando a desordem dos seus negocios os tem collocado em
difficuldades insoluveis, que se precipitam na voragem das subrogações.
Não faltam exemplos de ser o lavrador abastado, o proprio rendeiro do
predio destinado á subrogação, quem se aproveita das circumstancias para
se apoderar do solo onde exerce a sua industria. Succede isto quando
elle casualmente vem, n'uma conjunctura de angustia, tentar com o cumulo
das suas lentas economias a miseria ostentosa do administrador
arruinado. 'Nesta hypothese o mal das subrogações é menor. Na verdade
aquelle capital, accumulado por privações, por honestos e longos
esforços, seria mais utilmente empregado em augmentar as forças
productivas do solo; mas ao menos o industrial agricola consolida a
propriedade com o trabalho, e as novas economias irão d'ahi ávante
preencher fins mais positivos para a sociedade. É, todavia, commum esta
hypothese? Não por certo. O desperdicio, o luxo, as noites febris do
jogo, os affectos de bastidor, as vãs ambições da vaidade, os extravios
de um sensualismo que a saciedade leva até o delirio; as paixões ruins
em summa, que arruinam tantas familias das classes mais elevadas, só
raramente consentem que nos cataclysmos das grandes fortunas vinculares
aquella hypothese se verifique. É o cabedal monetario do especulador, a
quem, não sabemos se com justiça, se dá o nome insultuoso de agiota, o
que vai de ordinario trocar-se pela propriedade territorial. A razão é
obvia. O capitalista está sempre prompto para empregar dinheiro n'uma
transacção vantajosa, e elle sabe que o desleixo, a incapacidade, ou os
vicios dos administradores dos vinculos são campos feracissimos para a
especulação.
Mas posto que a abolição completa dos morgados, ainda que fosse em
virtude de uma lei irreflectida e imprevidente, valesse mais que a
existencia d'elles com o systema da destruição lenta pelo meio indirecto
das subrogações, é certo que a abolição traria tambem, em muitos casos,
ou uma difficuldade insoluvel, ou uma vantagem para os mutuantes de
capitaes, que não seria menos immoral do que as subrogações, porque
equivaleria a uma espoliação dos mutuarios. Fallamos do que succederia a
respeito dos vinculos, cujos administradores contrahiram dividas mais ou
menos avultadas, ficando hypothecados á divida os rendimentos dos bens
vinculares durante a vida d'elles, ou d'elles e dos immediatos
successores, se os ultimos intervieram no contracto com o seu
assentimento.
Diz-se que a agiotagem mais infrene preside commummiente a esta especie
de negocios. Cremos que nisto ha pelo menos exaggeração. De certo que o
juro de ura emprestimo de tal ordem deve ser avultado; mas pode ser
avultado sem ser excessivo. Não ha ahi só a renda do capital mutuado: ha
um juro de risco. É evidente que a restricção legal de passarem livres
aos successores os bens vinculados pode modificar de mil modos as
condições do mutuo. Na hypothese de intervir no contracto o immediato
successor, o risco é menor mas não deixa de ser grandissimo. A garantia
é dupla, mas egualmente incerta: é a instabilidade de duas vidas em
logar da de uma. Depois, a idade mais ou menos avançada do administrador
do vinculo, ou d'este e do successor quando o successor intervem, os
seus habitos de maior ou menor dissipação, a existencia de outras
dividas, a deterioração dos bens vinculados e por consequencia a
diminuição gradativa do rendimento; esses factos e dezenas de outros
analogos determinam a maior ou menor elevação do juro em contractos que,
considerados de um modo absoluto, seriam altamente usurarios, mas que as
poucas probabilidades do pagamento integral talvez plenamente
justifiquem.
Mas como se representa esse juro de risco? Uma lei inepta, impotente
sempre para impedir a usura, e que, taxando o lucro do capital, não
discrimina as circumstancias que o devem fazer variar, fixa ao dinheiro
determinado preço para todas as hypotheses. A necessidade, porém, e o
capital são astutos: o capitalista e o administrador do morgado sabem
como se illude a lei. O juro de risco representa-se no capital e no juro
da parte nominal d'este. Quando se recebe uma somma, o contracto
refere-se ao duplo; a mais ou menos, conforme o valor do dinheiro, a
gravidade do risco, a necessidade do mutuario e a consciencia do
mutuante. A transacção, respeitando na apparencia a lei, ludibria-a na
essencia: sorte de todas as leis civis, que radicalmente contradizem as
economicas.
Qual é, porém, a consequencia d'estes factos, que constituem a historia
da avultadissima divida que grava os vinculos? É que uma parte d'essa
divida representa apenas um juro e juro de risco. No contracto que lhe
deu existencia houve um verdadeiro jogo sobre um calculo de
probabilidades. O capitalista arriscou-se a perder a somma que realmente
emprestou, recebendo como premio no caso de amortisação o capital
nominal, além dos juros legaes; a eventualidade d'esse premio
equilibrou-se portanto com a possibilidade da não amortisação. Entre as
vantagens e as desvantagens deu-se a mutua compensação.
Desvinculae, porém, a propriedade vincular e sujeitae-a ao direito
commum. Em relação ás dividas que pesam sobre ella violaes um contracto,
irregular na verdade, mas irregular porque as leis que sanctificavam a
exempção hereditaria dos vinculos, e as que fixavam o juro do
emprestimo, o tornavam tal forçadamente. Supponde illicitas, criminosas
as transacções d'esta especie: considerae, se quizerdes, o mutuante como
usurario e o mutuario como prodigo. A desvinculação pune este e premeia
aquelle. A divida nominal, escripta no contracto, é uma; a real é outra.
O mutuante receberá, porém, ou por execução ou por outro qualquer modo,
o valor expresso. O que terá desapparecido é a desvantagem do risco.
A iniquidade é flagrante, e tem-se reconhecido que o é. Como meio de a
evitar lembram-se varios arbitrios para restringir a acção do credor
sobre os bens desvinculados. De todos esses arbitrios o mais simples e o
que parece mais justo e exequivel é o de considerar taes bens como ainda
vinculados em relação ás dividas contrahidas, limitando-se o direito do
credor á percepção da renda, durante a vida d'aquelle ou d'aquelles que
contrahiram o encargo, se n'este periodo não se verificar a amortisacão
completa. Mas qual será o resultado d'esta nova situação d'aquella
especie de propriedade? A quasi impossibilidade da alienação. Ninguem
compraria um predio cuja renda está hypothecada por um periodo
indeterminado (e a que, portanto, não se pode fixar o valor) senão por
um preço infimo, que salvasse todas as eventualidades, e que o vendedor
não acceitaria. A transacção só poderá effeituar-se com o proprio
credor; mas este, certo de que é impossivel a competencia, ha-de levar
as suas pretensões até onde chegar a possibilidade de se realisarem as
vantagens que aliás lhe dá o proprio direito. Assim a transacção tem de
ser forçosamente lesiva para o vendedor; lesiva a ponto de impedir a
alienação, ou de se realisar a expoliação que se pretendera evitar.
A consequencia ordinaria de tal arbitrio seria, pois, a immobilidade dos
bens ainda depois de desvinculados; ou, por outra, a desvinculação pelo
que respeita aos grandes morgados, sobre cujos redditos pesam
avultadissimos encargos e que são os mais numerosos, não alteraria as
principaes condições da sua existencia actual que justificam a abolição.
O livre movimento do dominio territorial, a subdivisão da propriedade, o
desenvolvimento da população e da cultura, o augmento das sizas; tudo
isso ficaria, em regra, suspenso até á morte dos individuos pessoalmente
responsaveis pelas dividas. É outra vez o adiamento, que parece
tornar-se inevitavel desde que, partindo da idéa da abolição absoluta,
se pretende legislar sobre a propriedade privilegiada, na qual o
interesse publico exige modificações immediatas.

VIII
*Os vinculos considerados em relação á grande e á pequena propriedade, á
grande e á pequena cultura*

Antes de debater em relação a Portugal uma questão ventilada com ardor
na Europa ha mais de um seculo, a da grande e da pequena propriedade,
consideremol-a successivamente como resolvida em favor de um e de outro
systema, e indaguemos que influencia possa exercer no predominio de um
ou de outro a conservação ou a abolição dos vinculos. Vendo-os a esta
luz, os que defendem a sua manutenção presuppõem a grande propriedade
como ligada á grande cultura, e a grande cultura como preferivel á
pequena. Os que sustentam a abolição presuppõem vantajosa a divisão
indefinita da propriedade, embora acompanhada da pequena cultura, que em
regra é a consequencia da subdivisão illimitada do solo, e ácerca de
cujas vantagens variam as opiniões d'aquelles mesmos que mais
ardentemente desejam a suppressão de todas as instituições tendentes a
impedir a livre divisão do solo.
Os que, preferindo os vastos predios e a grande lavoura aos pequenos
casaes, cuja cultura principalmente se caracterisa pelo trabalho braçal,
vêem nos vinculos um meio poderoso de manter o systema agricola que
suppõem mais vantajoso, podem acaso invocar em seu abono os factos?
Podem invocal-os os que pensam de modo contrario? Comecemos pelos
exemplos do nosso paiz, que são os primeiros que nos importa estudar.
Já n'outra parte nos referimos á differença profunda que se dá entre os
vinculos das provincias septemtrionaes e os das provincias meridionaes
do reino. Nos districtos do norte a constituição moral dos vinculos é a
mesma dos vinculos situados nos districtos do sul; mas a sua
constituição material é diversa. Em geral os vinculos do norte são
constituidos, em relação á propriedade territorial, n'um maior ou menor
numero de predios de dimensões taes que a designação de latifundios lhes
seria inteiramente inapplicavel. São quintas, casaes, bouças, campos;
nunca ou raramente uma granja, uma herdade analoga áquillo a que damos
estes nomes nos districtos do sul. O senhorio directo de predios
emphyteuticos e os censos completam para o administrador do morgado o
cumulo da renda territorial. Todas as fórmas de exploração agricola se
manifestam n'aquella multidão de propriedades vinculadas: a cultura
directa, a parçaria, o arrendamento, o colonato. Discorrei pelo Minho.
Certos edificios nas villas, nas aldeias, mais grandiosos, ornados de
pedras-d'armas, hão-de revelar-vos a existencia de centenares de
morgados: mas os campos e a sua cultura, as quintas e as suas dimensões
não vos dirão nada; porque a allodialidade, a emphyteuse, o vinculo na
sua influencia sobre a agricultura não imprimem aos campos caracteres
especiaes que distingam estas diversas especies de propriedade, ou
diversifiquem as culturas.
Penetremos agora no Alemtejo, sobretudo no Alemtejo central e
meridional. Como o Minho é o typo da propriedade e da cultura
septemtrionaes do reino, o Alemtejo é o typo mais acabado da propriedade
e da cultura meridionaes. As outras provincias são a transição entre os
dous extremos. Como o Minho é a terra classica da subdivisão
territorial, o Alemtejo é a terra classica dos latifundios. Grande parte
d'estes latifundios pertencem a importantes morgados; mas o resto
constitue geralmente propriedades allodiaes, sendo os prasos n'aquella
provincia, em contradicção com o que succede no Minho, apenas uma
excepção rara, e ainda assim caracterisados ás vezes pela indole geral
da propriedade no Alemtejo--a extensão demasiada. Um systema de cultura
uniforme é applicado ahi sem distincção aos predios livres e aos
vinculados.
Na Extremadura e na Beira occidental, mas principalmente na Extremadura,
predomina a cultura media e a propriedade media, se exceptuarmos as
margens do Tejo desde a Barquinha até perto de Lisboa, onde a extensão
da propriedade, como na Beira-baixa, annuncia, por assim nos
exprimirmos, a aproximação do Alemtejo. Mas, no meio de todos estes
cambiantes nas dimensões dos predios rusticos, vemos os vinculos
amoldarem-se a todas as fórmas de propriedade e de cultura, e
amortizarem em si a quinta, o casal, a granja, o praso, a horta, o
pinhal, o montado, a charneca interminavel; com a mesma facilidade com
que se amoldam ás manifestações extremas da grande e da pequena
propriedade e da pequena cultura.
Que se infere d'estes factos? Que outras causas alheias á instituição
vincular determinam a maior ou menor vastidão dos predios rusticos e o
seu systema de grangeio. Umas são puramente historicas, outras
juridicas, outras agronomicas, outras economicas. Não queremos dizer com
isto que a instituição não influa, n'um ou n'outro caso, no facto de
maior ou menor dimensão dos predios, e na sua situação agricola; mas
cremos que de todas as causas esta é a menos importante. Desejariamos
que os defensores da manutenção dos vinculos como garantia de grande
propriedade nos explicassem a existencia dos vastos allodios do
Alemtejo, a sua força de cohesão contra os effeitos do direito commum da
successão, pelo engenhoso expediente dos _quinhões_, de que n'outra
parte teremos de falar. Esses predios estão provando que não é
necessario o principio vincular para impedir a disgregação das grandes
propriedades rusticas; que o interesse individual bem ou mal avaliado,
as condições do solo e clima, a natureza das culturas dependentes
d'essas condições, o estado economico do respectivo districto, e, até,
os habitos e preconceitos, podem assegurar a união de amplos tractos de
terra, embora deixe de existir uma instituição que o espirito publico
reprova, por motivos que, posto sejam especiosos ás vezes, são em grande
parte subejamente justificados.
Mas tambem quizeramos que os fautores da pequena propriedade allodial e
da subdivisão indefinita do solo, que vêem na existencia dos morgados o
principal obstaculo á realisação das suas idéas, nos explicassem como é
que ao norte do reino a pequena propriedade se harmonisa tão facilmente
com a instituição vincular, e ao sul a vasta propriedade passa indivisa
de geração em geração ao lado dos latifundios vinculados: que nos
dissessem se essas innumeraveis subrogações, pelas quaes se tem
libertado a terra para se immobilisarem em logar d'ella titulos de
divida fundada, tem influido na subdivisão do solo; e se, dando-se nos
predios ainda actualmente vinculados as mesmas condições especiaes
agronomicas e economicas que determinam a integridade dos allodios,
elles esperam que pelo facto da desvinculação desappareçam nos bens de
vinculo essas condições especiaes.
A verdade é que, considerada nas suas relações agricolas, a grande
propriedade não presuppõe necessariamente nem a grande nem a pequena
cultura. Em rigor os vastos predios vinculados poderiam associar-se com
ella e, ainda, chegar á extrema exaggeração que a torna um verdadeiro
flagello das populações ruraes. Se o nosso paiz não offerece exemplos
assaz geraes e evidentes d'esse facto, temol-os extranhos, mas
decisivos. É a Irlanda que nos subministra o mais singular. A Irlanda
antes das ultimas reformas, e da revolução produzida pelo _Encumbered
Estates Bill_, era quasi exclusivamente um paiz de substituições (os
morgados inglezes), e, se essa lei previdente de uma immensa liquidação
produziu grandes beneficios, os males antigos ainda subsistem em larga
escala[1]. Em nenhuma parte se acha tão perspicuamente descripta a
associação da grande propriedade com a pequena cultura, e bem assim os
effeitos que pode produzir essa associação, dadas certas circumstancias,
como na passagem que vamos transcrever de um dos lilivros mais notaveis
que se tem publicado na nossa epocha[2]. Posto que algum tanto extensa
transcrevemol-a inteira, porque encerra outras idéas e outros factos que
talvez não nos sejam inuteis na prosecução d'este trabalho.
«Gerava enleio nos fautores exclusivos da vasta propriedade, diz Mr. de
Lavergne, a ponderação do estado da Irlanda. Mais que em Inglaterra,
mais até que em Escocia prevaleciam ahi os vastos predios. Proprietarios
de glebas medianas ou pequenas só os havia nas cercanias das povoações
de vulto, onde limitado trafico commercial ou limitada industria tinham
favorecido a existencia de uma especie de burguezia. Dividia-se o resto
da ilha em latifundios de 1:000 até 100:000 acres ou geiras inglezas.
Quanto maiores eram as propriedades, maior era a decadencia d'ellas. As
de mais extensa área estavam de cavallaria, como, por exemplo, o celebre
districto de Connemara, no Connaught, chamado vulgarmente _Martin's
Estate_. As substituições, mais communs na Irlanda que em Inglaterra,
tornavam estes bens inalienaveis.
O enleio para os que reputam a pequena cultura panacéa universal, não
vinha a ser menor. Se a Irlanda era a terra da vastissima propriedade,
era tambem a terra da pequenissima cultura. Não se contavam ahi menos de
300:000 casaes inferiores a dous hectares; 200:000 de dous a seis;
80:000 de seis a doze, e de doze para cima apenas 50:000. As leis de
successão favoreciam estas divisões, ordenando que as proprias terras de
arrendamento se dividissem entre os filhos do rendeiro, o que não era
uma disposição van como em Inglaterra.
Esta união da grande propriedade com a pequena cultura, que deu optimos
resultados n'alguns pontos da Gran-Bretanha e da Escocia, deu-os
pessimos na Irlanda. Parecia que os proprietarios e os lavradores se
tinham ajustado para a ruina commum, estragando o instrumento da commum
riqueza--o solo. Em vez do fecundo habito de residencia local, que
caracteriza os proprietarios inglezes, os _landlords_ irlandezes, sempre
ausentes dos seus predios, tiravam d'elles quanto rendimento podiam para
o gastarem n'outra parte. Faziam arrendamentos a longo prazo, pelo mais
alto preço possivel, a especuladores residentes em Inglaterra, e que
eram representados por sub-arrendatarios, denominados _middlemen_.
Imprevidentes e gastadores como todos aquelles a quem o dinheiro não
custa a ganhar, e não tendo, por não saberem applicar algum a tempo e
horas nos respectivos predios, senão redditos incertos e precarios,
dispendiam sobre posse, e as dividas absorviam-lhes por fim a maior
parte da sua supposta fortuna.
Do mesmo modo os _middlemen_, só empenhados em accumular lucros sem
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