Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 03

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fórmula dos tempos feudaes.
É uma opinião que vale a pena de se examinar.

V
*Desegualdade e personalidade*

A desegualdade natural entre os homens tem sido negada de um modo
absoluto nos tempos modernos: tem-se empregado todas as subtilezas da
philosophia do direito para demonstrar a possibilidade de destruir um
facto indestructivel. Tudo nasce, em nosso entender, de se confundirem
as idéas de diversa ordem.
A egualdade civil não é só possivel, é necessaria. Deriva do direito
natural que cada um tem de desenvolver a sua actividade até onde não
impede a desenvolução da actividade alheia. Esse direito suppõe deveres
correlativos. A sociedade existe para manter aquelle e estes. É por isso
que o estado social é inseparavel da humanidade, e que o homem da
natureza, sonhado por alguns philosophos do seculo passado como anterior
á sociedade, não passa de uma chimera. Um simples exemplo fará sentir
melhor esta incontestavel doutrina do que longas dissertações. O que,
trabalhando, deu valor a um tracto de terra desoccupado e inculto e o
fez fructificar, desenvolveu legitimamente a propria actividade. Se
outrem quizer colher os fructos ou substituir-se ao primeiro occupador
do campo agricultado exorbitará da esphera legitima da propria
actividade, e deixará de cumprir o dever de respeitar a livre acção
alheia. N'este exemplo se resumem e symbolisam as infinitas relações
civis que a sociedade mantém e que correspondem ás idéas de egualdade.
As instituições que asseguram o livre movimento do individuo dentro da
esphera da propria acção, sejam quaes forem, são instituições de
liberdade, porque mantém a egualdade civil.
Mas a egualdade civil importa a desegualdade social. Outro exemplo
tornará tambem evidente esta doutrina. Se em campina illimitada e
fertil, mas sem dono e inculta, dous individuos occuparam dous tractos
de terra diversos, e um d'elles dotado de maiores forças physicas, de
melhores instrumentos, de maior energia e actividade, assignalou mais
extensa área aos proprios esforços e accumulou maior somma de trabalho
intelligente, e por consequencia maior somma de productos, nem por isso
o menos forte e menos habil pode queixar-se de que elle penetrou na sua
esphera de legitima actividade. Se pretendesse que a sociedade
repartisse com elle uma parte dos valores creados pelo seu vizinho,
pretenderia uma injustiça--a quebra da egualdade civil. Por outro lado,
se o mais robusto e intelligente, pretextando a incapacidade relativa,
physica e moral, do menos energico e menos habil, pretendesse
apoderar-se da terra e dos instrumentos do pequeno cultivador, a
sociedade seria injusta se lhe désse razão; se tolerasse que elle
estendesse a esphera da propria actividade até penetrar na esphera da
acção alheia: toleraria a quebra da egualdade civil, se não mantivesse
cada qual na orbita que lhe fôra assignalada pelo supremo direito da
natureza.
Se a manutenção, porém, do livre exercicio da actividade dos vizinhos
era n'este caso equivalente á manutenção da egualdade e da justiça, as
consequencias que derivassem d'esse facto, e só d'elle, seriam tambem
incontroversamente legitimas. Ora uma d'ellas, a mais importante, havia
de ser forçosamente a desegualdade social; a desegualdade d'aquellas
relações cujas normas se estabelecem, em parte, pelas regras a que
chamamos direito publico, direito que a razão e a historia nos
apresentam como mais cambiante, menos conforme no espaço, e menos
permanente no tempo, do que as regras das relações civis. A desegualdade
social dos dois vizinhos manifestar-se-ia em muitos factos
impreteriveis. O que por excesso de energia e de trabalho tivesse obtido
melhores, mais numerosos, e mais variados productos, gosaria mais, e
necessariamente, pela intelligencia e pelos recursos materiaes,
exerceria maior influxo no animo dos outros homens. A sua generosidade
fora mais ampla, a sua hospitalidade mais opulenta, o seu tracto mais
aprazivel, a sua opinião mais seguida: isto é, elle seria socialmente um
algarismo em relação ao qual o seu vizinho representaria outro bem
inferior. E todavia a desegualdade nascida da egualdade não offenderia o
direito, não seria senão justiça.
O arroteador do grande predio é o symbolo da aristocracia: como emanação
do direito fundamental que virtualmente a gera é que esta se absolve e
legitíma. Mas d'ahi nasce o corollario de que ella é essencialmente
individual, personalissima. A desegualdade não é de gerações, de
linhagens predestinadas: é de individuos. Por isso as suas manifestações
collectivas, para serem naturaes e logicas, devem ter ao mesmo tempo o
sello da individualidade. A aristocracia, como entidade real, é uma
concreção necessaria, mas artificial; é a generalisação da idéa das
desegualdades individuaes; é a incorporação das maximas forças sociaes;
é o reconhecimento e a organisação de um facto impreterivel.
Na verdade, superioridade social herdada e derivando do direito natural
da familia pode em alguns casos ser legitima; mas é accidental, e vem
entrar em ultima analyse na regra da superioridade individual. Se o pae,
que era um membro da aristocracia pela sua riqueza, a legar ao filho,
este o será como seu pae, independentemente de todas as instituições
positivas, do mesmo modo que deixará de o ser na realidade desde o dia
em que perder essa herança, sejam quaes forem as leis que pretendam
manter-lhe um caracter social que lhe desappareceu da fronte.
A fórma por que adquiriu os valores, que o convertem em uma força de
excepção, nada importa, uma vez que seja legitima. É indifferente que
lh'os désse o trabalho, a intelligencia ou o berço. O importante, o
indispensavel é que elle actualmente os possua: que exista um facto que
a força bruta pode destruir, mas que a razão publica não pode deixar de
reconhecer.
O influxo moral de um nome illustre, herdado de antepassados, é tambem
uma força social. Esse influxo constitue a nobreza, a qual, não sendo em
rigor um facto indestructivel, é todavia uma realidade. A democracia,
quando o condemna ou o nega, engana-se. O valor da _aristocracia de
sangue_ assenta n'uma ordem de idéas extranha ao direito; procede do
sentimento, digamos assim, poetico das sociedades, porque todas as
sociedades tem a sua poesia. A esta luz nada mais legitimo do que a
fidalguia; porque o senso esthetico é uma condição natural das
sociedades civilisadas, e o orgulho pelas tradições gloriosas do passado
constitue uma parte da sua vida moral. A nobreza de linhagem é um
monumento do passado. Os que pretendem expungil-a da lista das
manifestações da vida social devem por maioria de razão mandar destruir
os tumulos dos heroes e dos sabios, e dispersar-lhes as cinzas ao vento,
quebrar-lhes os bustos e as estatuas, arrazar os templos, os obeliscos,
os monumentos, sejam quaes forem, que ligam as glorias do passado ao
presente pelas recordações. Aquelle que affirma ser coisa absolutamente
van a herança de um grande nome, não chame vandalo ao que derriba a
quadrella da muralha ou a torre do castello antigo para calçar as ruas.
Este não faz mais do que elle: nega a significação dos monumentos; nega
tudo aquillo que só a poesia nacional sanctifica. N'este systema a unica
maneira de ser rigorosamente logico é ir até aonde foi a revolução
franceza de 1793. É necessario que ao lado das pedras, que desabam,
rolem pelo chão as cabeças.
O facto social, em que se estriba a aristocracia de linhagem, está,
porém, ligado a uma condição que forçadamente dá a esta o mesmo caracter
de personalidade, que é indelevel nas outras especies de aristocracia.
Essa condição deriva do principio de que o poetico é inseparavel do
moral, o bello do bom. Ora o que se eleva acima dos outros, porque
herdou um nome venerado pela opinião, está adstricto a respeitar a
moralidade dos seus actos para não perder essa _força_ herdada, que não
póde existir sem a sua condição philosophica. Esta doutrina é confirmada
plenamente pela observação practica. Os netos degenerados dos homens
grandes, se os depojardes de todas as distincções facticias que servem
de encobrir o vicio e a incapacidade, invocarão debalde o nome de seus
avós como uma _desegualdade_, uma _força_, que os eleva _socialmente_
acima d'aquelles que _civilmente_ são seus iguaes. O sentimento moral,
que exteriormente se traduzia em consideração e respeito, desappareceu
ao passo que a lei esthetica se annullou. Assim a nobreza hereditaria,
dependendo inteiramente da acção do individuo, entra na lei geral da
aristocracia--a personalidade.
O erro dos escriptores democraticos, que entendem ser possivel a
destruição _effectiva_ de uma classe aristocratica, procede de
confundirem a fidalguia hereditaria com a do corpo aristocratico; de
tomarem a especie pelo genero. É possivel que a especie chegue a
desapparecer temporariamente, ou por degeneração moral dos individuos
que representam as velhas linhagens, ou pela extincção d'estas; mas o
tempo sanctificará as novas illustrações que se alevantam, e em quanto
as nações tiverem o sentimento do bom e do bello, isto é, em quanto
tiverem uma condição sem a qual não podem existir, a progenie d'esses
homens summos herdará a força moral de seus nomes, e só a perderá
destruindo-a pela _villania_ pessoal.
Mas extincta ou existente, brilhante ou obumbrada, a fidalguia não é uma
formula essencial da aristocracia. Para ser revalidado o protesto da
desegualdade social em todas as gerações, não é necessaria a assignatura
das castas; não é preciso que esse protesto seja firmado com sellos
blasonados. O genero fica, embora a especie desappareça.
Reflectiram bem os que dizem que as sociedades caminham á completa
egualdade democratica, porque se facilita o caminho das mais elevadas
situações, das mais poderosas influencias, a todas as vontades
energicas, a todos os talentos fecundos, e porque, do fastigio das
grandezas e do poderio, familias e individuos caem facilmente na
obscuridade e na impotencia social? Esta observação, que muitos julgam
profunda, não passa de uma trivialidade sem alcance. A questão é se esse
fastigio, esse poderio, essas influencias, essas manifestações, em
summa, da desegualdade humana desappareceram; se podem desapparecer ou
se ha sempre, ou não ha, sujeitos em quem ellas se personalisem; se,
collocados em situação identica e tendo interesses communs, elles
constituem ou não uma entidade moral juxtaposta ou sobreposta á
democracia. Eis a questão. Que importa se a preeminencia do individuo se
explica por um testamento, por um berço, pelo genio, pelo trabalho, ou
por um acaso feliz? Seja qual for a origem d'essa preeminencia, d'essa
força, a sociedade pode negal-a, combatel-a, annullal-a temporariamente;
o que não pode é impedir a sua reproducção. A desegualdade é a lei: a
aristocracia a sua manifestação indestructivel.
No mosaismo e no brahmismo o sacerdocio foi e é a herança de tribus ou
de castas privilegiadas; no christianismo, porém, o sacerdocio acceitou
sempre homens de todas as condições e hierarchias. Desde a dignidade do
metropolita até ás humildes funcções do ostiario, que situação houve ou
ha na igreja, a que igualmente não houvessem ou não hajam de ser
chamados o nobre, o burguez, o filho da plebe? E todavia o clero foi por
seculos a mais poderosa aristocracia conhecida. As tradições de
influencia e predominio do corpo ecclesiastico perderam-se, alteraram-se
acaso, porque não era a hereditariedade do berço que as mantinha? Não
era e não é o corpo do clero a negação da familia, e por consequencia da
hereditariedade? Houve nunca, especialmente durante a idade media, uma
classe social mais compacta, mais distincta das outras, com interesses
mais exclusivos, com uma acção collectiva mais irresistivel e incessante
na vida das nações? O clero que combatia nos campos, nas conspirações, e
nos parlamentos contra o poder central; que não raro o fazia ceder, e
que o esmagava algumas vezes, valia bem mais do que essa fidalguia
hereditaria dos ultimos seculos, que vivia das migalhas distribuidas
pela côroa, e que, sem iniciativa nem vigor, comprava com genuflexões
nos paços do rei a altanaria que ostentava nas ruas e praças do povo.
Parece-nos evidente que a aristocracia, ao passo que é indestructivel
como elemento social, é no concreto e em relação aos individuos
essencialmente pessoal e por consequencia movel. Assim, na sua
manifestação politica, não pode perder esse caracter que lhe é
essencial.
Pouco tardará a epocha em que a razão triumphe das preoccupações, a
realidade de hoje das tradições de uma sociedade que deixou de existir.
O pariato deve tornar-se em breve simplesmente vitalicio e talvez
amissivel. Dado e não concedido que a existencia dos vinculos fosse uma
condição impreterivel do pariato hereditario, a abolição d'elles não
faria senão apressar n'esta parte convenientemente a reforma das
instituições politicas.

VI
*Os vinculos garantia de liberdade*

Demonstrado, como parece, que nem na abrogação do direito vincular se
offende principio algum de justiça absoluta, nem a manifestação politica
das desegualdades sociaes está ligada á existencia dos vinculos, antes
de entrar nas difficeis questões economicas que este debate suscita,
passemos a examinar o que ha mais grave nas objecções politicas que se
offerecem contra a abolição d'esta fórma especial de propriedade. As
considerações sobre as resistencias, que uma aristocracia territorial
permanente e hereditaria pode oppôr ás demasias de um poder central
excessivamente forte, parecem-nos fundadas, e nunca se poderão
desprezar, em quanto o nosso systema administrativo fôr, como é, uma
copia, mais ou menos mal delineada, do systema administrativo da França.
Na verdade hoje a unica resistencia séria, que os abusos do executivo e
dos seus delegados podem encontrar em certas provincias, é a d'essa
especie de aristocracia rural, que vulgarmente se designa pelo nome de
_cavalheiros_. A illustração e a riqueza, não excessiva mas solida,
consistindo geralmente em bens territoriaes, pertencem principalmente a
esta classe nos districtos do norte do reino, onde predomina quasi
exclusivamente a pequena propriedade. Sem a fundação de municipios assaz
vastos e poderosos, mas organisados de modo que a vastidão do territorio
não faça com que a administração se difficulte aos administrados; sem as
magistraturas municipaes recuperarem a força primitiva que
successivamente perderam; sem um novo methodo de renovação d'essas
magistraturas, que mantenha na administração dos concelhos a sequencia e
unidade de systema e de idéas; sem se lhes restituirem as funcções que
lhes são proprias e que a centralisação lhes traz alheadas; sem, em
summa, restaurar a vida municipal, de que resta apenas um vão simulacro;
o correctivo contra os abusos do poder central só pode consistir nas
resistencias legaes e pacificas dos individuos que, pelo respeito
tradicional do povo ao nome da sua familia, pelos recursos materiaes de
que dispõem, pela maior cultura intellectual, pelos instinctos generosos
que lhes inspira uma educação mais elevada, constituem um elemento
poderoso de equilibrio. Quem tem residido nas provincias do norte ou por
ellas viajado sabe que naquella classe é que principalmente se dão essas
condições de superioridade individual, que suppre até certo ponto nas
relações politicas a falta ou o incompleto das instituições locaes.
É preciso notar aqui um facto, que ao diante havemos de ponderar mais
detidamente. Os vinculos nas provincias do norte não tem em geral os
mesmos caracteres que nas provincias do sul: aproximam-se mais, nas suas
condições economicas, dos bens emphyteuticos, e não é raro achar
individuos que se denominam morgados e que não passam de possuidores de
prazos. Tão facil é neste ponto a confusão das cousas pelos accidentes
externos. Em geral, o vinculo dos districtos do norte ou é instituido em
uma ou mais propriedades de mediocre grandeza, ou em propriedades e em
direitos dominicaes. Mas o que em todo o caso se pode affirmar é que as
grandes fortunas vinculares são raras. Os poucos inconvenientes
economicos dos vinculos mediocres havemos de avalial-os n'outra parte.
Para o intuito presente o que importa é attender ás consequencias
politicas da sua abolição. Ou mediocres em si, ou compostos de diversas
e pouco vastas propriedades, e de censos e pensões senhoriaes, entrando
esses vinculos no direito commum, as leis da successão e os accidentes
da vida, que accumulam ou dissolvem mais rapidamente as pequenas do que
as grandes fortunas, fariam desapparecer em breve a aristocracia
provincial, e por conseguinte um poderoso elemento de resistencia ás
demasias da auctoridade central, e uma importante garantia de liberdade.
Mas, dir-se-ha, assim como a desvinculação, o livre movimento da
propriedade, produziria a dissolução das fortunas e das familias
patricias, tambem esse movimento elevaria, como já eleva, outras
familias, crearia, como já cria, outras fortunas, e uma especie de
aristocracia movel e pessoal substituiria a hereditaria como elemento de
resistencia e equilibrio. Em these a resposta é concludente: o que não
tem é applicação á hypothese.
'Nesta, o argumento a favor dos vinculos estriba-se em factos
transitorios e especiaes, factos que só o tempo e os progressos sempre
lentos da civilisação moral e material podem destruir. De certo os
vinculos não são de um modo absoluto obstaculo ás demasias do poder
nesta especie de organisação plethorica, de apoplexia administrativa
eminente em que vivemos. São-no relativamente. A restauração da vida
municipal, a descentralisação bem caracterisada; seria o remedio natural
e completo contra os excessos do executivo. Com elle, não só a
aristocracia permanente e hereditaria, mas tambem a individual e movel
seriam inuteis como obstaculos ou instrumentos de equilibrio. Mas
tracta-se do presente, e no presente as condições da nossa sociedade dão
todo o valor ás considerações politicas em que os defensores dos
vinculos estribam a manutenção delles.
A riqueza maior ou menor não basta para que o cidadão saiba, queira e
possa defender o seu direito ou erguer a voz a favor do opprimido. É
necessario que a educação o habituasse a uma nobre altivez ou á
independencia moderada mas firme do homem livre, e que a cultura do
intendimento o habilitasse para discernir e apreciar os proprios
direitos e deveres, e os direitos e deveres dos agentes do poder. Ora
esses dotes, nos districtos da Beira, Traz-os-Montes e Minho, dão-se
principalmente entre os cavalheiros, que, alem das idéas que lhes
inculcam na educação domestica, frequentam de ordinario os estudos
juridicos, e que, ainda abandonando a cultura das letras, não perdem
nunca, digamos assim, o verniz litterario e as idéas geraes que
adquiriram na universidade; porque a universidade, com todos os seus
defeitos, ainda é o foco d'onde irradia a luz da civilisação
intellectual para a maxima porção do paiz. Os advogados, os
facultativos, um certo numero de ecclesiasticos, e os administradores de
vinculos, constituem quasi exclusivamente a classe illustrada das
provincias sertanejas. Na verdade, o filho de um ou de outro lavrador
mais abastado, de um ou de outro industrial ou commerciante, recebe a
educação universitaria, e despido de ambições honra-se de seguir a
condição paterna; mas o geral d'estes busca na carreira das letras uma
situação mais elevada ou pelo fôro ou pela medicina ou pelas funcções
publicas. Os possuidores de direitos territoriaes ou de predios assaz
consideraveis para não serem obrigados a cultival-os pelas suas proprias
mãos, e para não procurarem um supprimento de renda pelo exercicio de
uma profissão scientifica, são quasi unicamente os administradores dos
vinculos. 'Nelles reside, por tanto, e residirá por muito tempo a
principal força de resistencia, a quasi unica barreira que encontra uma
centralisação excessiva.
Nos districtos sertanejos, nesses tractos do paiz onde vive a maxima
parte da sua população, só muito excepcionalmente apparecem os grandes
capitaes monetarios, as grandes industrias, o grande commercio, e, como
já dissemos, nos do norte até é rara a vasta propriedade. Não ha, por
consequencia, ahi as poderosas influencias pessoaes que resultam de
factos puramente economicos. As grandes influencias só podem proceder de
se darem no mesmo individuo condições de diversa ordem--a superioridade
da intelligencia, a superioridade da fortuna, a superioridade de um nome
illustre que o povo está costumado a venerar, e a elevação de animo
resultado da educação domestica, elevação de que é consectario o valor
civil indispensavel para defender a liberdade e os outros direitos, ou
proprios ou dos pequenos e humildes. Com a ruina das familias nobres
essas influencias salutares desapparecerão quasi completamente, e o
imperio das portarias e das circulares não achará limites.
O celebre dr. Johnson, fallando das substituições inglezas, dizia que
tinham a vantagem de não produzirem senão um tolo em cada familia. O dr.
Johnson fazia um epigramma de mau gosto, porque era falso. A historia
diplomatica, militar, naval, administrativa e parlamentar da Inglaterra
prova que os primogenitos da aristocracia ingleza podem ser tanto homens
grandes como os segundo-genitos, ou como os filhos da raça puramente
saxonia. Entre nós o epigramma do dr. Johnson é uma preoccupação
popular, preoccupação que invade até espiritos que tinham obrigação de
serem superiores a ella. A idéa da incapacidade dos administradores de
vinculos é tão verdadeira como a da ignorancia e imbecilidade mental dos
cistercienses, que não eram nem mais ignorantes nem mais imbecis do que
outros quaesquer frades. Os que tem visitado os districtos interiores do
reino sabem por experiencia que é no seio das familias aristocraticas
onde se encontram mais vestigios do que o antigo caracter portuguez
tinha generoso, elevado e bom, e onde se acha mais illustração, embora
misturada com os preconceitos nobiliarios. É nessa categoria que
predomina uma benevolencia efficaz e real para com as classes
inferiores, benevolencia muito mais rara entre a duvidosa burguezia
saída d'essas mesmas classes.
Esta burguezia das provincias, considerada em geral, está longe por
emquanto de ser uma forte barreira aos excessos da auctoridade central.
Os seus destinos politicos tem de ser grandes quando existirem no paiz
instituições congenitas com a indole das tradições primitivas d'elle;
quando nos cançarmos de traduzir _ad usum_ administração franceza em
portuguez bastardo. Por emquanto faltam-lhe os principaes elementos dos
que constituem a força da opinião e o espirito publico; falta-lhe a
cultura intellectual, que nos habilita para irmos até ás raias do nosso
direito sem as ultrapassar; falta-lhe o orgulho da independencia, que
está principalmente na consciencia e no caracter. Tudo isto tem
excepções, e excepções notaveis; mas fallamos da regra geral. A
burguezia mais ou menos opulenta das provincias, e sobretudo dos
districtos do centro e do norte, forma-se pela pequena industria, pelo
commercio de retalho, e pelos mediocres grangeios agricolas. Fóra das
duas cidades mais populosas, as grandes fabricas, as vastas emprezas
commerciaes, em summa, as applicações de avultados capitaes e a
existencia d'estes na mão de um individuo, são cousas raras. Mas é acaso
de esperar d'aquelle, que começou obscura e quasi pobremente a edificar
uma fortuna modesta pelo trabalho, pela parcimonia, pelos habitos da
obediencia passiva, quasi da subserviencia, sem educação politica, sem
educação litteraria, sem idéas geraes, e que depois de vinte ou trinta
annos de esforços, de prudencia, de abnegação, de sacrificios moraes e
materiaes, creou uma riqueza, que aliás poderia servir-lhe de esteio, e
inspirar audacia para manter a dignidade e independencia de cidadão de
um paiz livre; é de esperar, dizemos, de tal homem que lhe chegue tão
tarde o sentimento e a convicção profunda do seu direito e o valor
politico para o fazer respeitar do poder? Que o leitor busque a resposta
na sua razão, e, ainda melhor, na sua experiencia.
Para nós é grave, pois, a questão da existencia ou não existencia de uma
especie de aristocracia provinciana, que tenha, em geral, por titulo da
sua preponderancia o nome, a educação, e a fortuna, em quanto o
municipio fôr entre nós pouco mais de que um vão nome, ou de que uma
tapeçaria das salas administrativas. É grave essa questão, porque são
ainda graves, ao menos para nós, as questões da liberdade e da dignidade
humanas. Quando as resistencias d'essa aristocracia aos excessos a que
tende naturalmente uma centralisação exaggerada fossem demasiado
egoistas, e nunca servissem de egide ás classes democraticas
desorganisadas e opprimidas, quereriamos mantel-a como protesto, como
laço entre as tradições do passado e a organisação do futuro. Se a
historia serve para alguma cousa, lembremo-nos de que o absolutismo se
erguia em Portugal á altura de uma instituição quando a um chefe da
aristocracia do paiz rolava a cabeça pelo cadafalso, e outro cahia
apunhalado aos pés d'aquelle monarcha, tão caro a uma democracia
inintelligente, que substituiu a vontade real, como principio politico,
ao rude esboço de monarchia representativa com que a sociedade
portugueza vivera e progredira durante mais de tres seculos. Diminuir as
resistencias individuaes ao absolutismo do executivo, em quanto se não
criam resistencias collectivas, é um erro profundo. Direitos, que não
tem força para se traduzirem em factos, são, por nos servirmos de uma
phrase de Shakespeare, palavras, palavras e mais palavras. São isto, e
nada mais.

VII
*Difficuldades moraes e economicas na abolição dos vinculos*

Se considerações de ordem politica parece aconselharem a manutenção
temporaria dos pequenos mas numerosos vinculos das provincias do norte,
na questão practica da abolição da propriedade vincular suscitam-se
dificuldades de ordem economica e de ordem moral, que tendem
indirectamente a manter uma instituição, a qual, absolutamente
considerada, não tem motivo nenhum racional de existencia. A apreciação
d'essas difficuldades deve influir nas resoluções que se hajam de tomar
sobre tão grave assumpto.
Supponhamos que abolimos os vinculos; que fazemos entrar essa parte de
propriedade territorial no direito commum; que lançamos esse capital
immobilisado no vortice das evoluções economicas, fazendo-o mover
livremente por toda a esphera da sua acção. Foi, em these, um
melhoramento social importante. Falta o modo practico de conseguir esses
resultados salutares.
A lei proclamou que o principio vincular pereceu; que o direito commum
rege toda a propriedade. Mas não basta proclamar a regra geral: é
preciso ver o modo de a applicar aos factos.
Quaes são estes factos?
Até agora havia certa especie de propriedade, em que uma porção de
dominio pertencia não sabemos a quem (porque o considerar como
co-proprietarios os _successores_, entidades contingentes, não passa de
uma subtileza juridica), e outra porção d'esse dominio, que se confunde
quasi com o usofructo, pertencia a um individuo chamado administrador de
morgado. É esta fórmula da propriedade a que deixou de existir.
O administrador do morgado passou a ser proprietario d'aquillo de que
era pouco mais que usufructuario: pode hypothecar, doar, vender,
emprazar, testar, como outro qualquer possuidor de bens allodiaes. Este
facto, porém, deve forçosamente produzir consequencias juridicas e
economicas.
A primeira é para o Estado. O Estado é sempre, ao menos potencialmente,
um dos successores, mas successor que existe já, que não é uma entidade
contingente. Extincta a linha chamada pelo instituidor, o herdeiro
definitivo é o Estado, que não morre, ao passo que as linhas
successorias vem mais tarde ou mais cedo a extinguir-se. Convertendo o
vinculo em bens livres, a sociedade despojou-se de um direito em
beneficio de um homem que não tem motivo nenhum especial para
beneficiar.
Os vinculos tem encargos pios, que, ou pela propria instituição ou por
effeito de providencias legislativas, revertem muitas vezes em beneficio
de instituições, cuja existencia as doutrinas economicas não podem
condemnar. Seja qual for a resolução que se tome a este respeito
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