Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 05

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dispender real e descuidados do futuro, não tendo com a cultura em si
nenhuma relação directa e pessoal tinham sublocado a terra até o
infinito. A população rural multiplicada excessivamente, visto que subia
a 60 almas por hectare proximamente, ao passo que em França sobe apenas
a 40, em Inglaterra a 30, e na Escocia baixa a 12, accommodava-se aos
seus intuitos. Havia-se creado uma concorrencia extraordinaria entre os
cultivadores para obterem porções de terra. Tanto cabedal possuiam uns
como outros, e por isso os meios de lançarem em praça eram eguaes para
todos: o que cada chefe de familia queria era adquirir algumas nesgas de
terra para cultivar com a familia.
Assim se desenvolvera o systema das pequenas locações, a que chamaram o
_cottiers system_, que não será precisamente mau em si se não se
exaggerar. Além de dispensar o capital, quando o não ha, substituindo-o
pelo trabalho braçal, tem a vantagem de supprimir a entidade a que
propriamente se chama jornaleiro, isto é, o individuo que vive só da
procura de trabalho e sujeito ás suas variações. A dizer a verdade, em
Irlanda havia pouquissima gente assalariada: os que n'outras partes
seriam jornaleiros, vivendo do jornal diario, eram alli pequenos
rendeiros. Mas tudo tem limites, e era o que não acontecia na divisão
dos grangeios, em razão do numero sempre maior dos concorrentes. Os
caseiros tinham a principio obtido casaes, onde uma familia podia,
rigorosamente fallando, viver e pagar a renda: dividiram-se estes casaes
primeira, segunda e terceira vez, ale que se chegou ás 600:000 glebas de
menos de 6 hectares, ou, por outra, á extremidade de não ter o
cultivador senão o estrictamente necessario para não morrer de fome, e
de importar a menor quebra no volume da colheita primeiro a
impossibilidade do pagamento da renda, e a final a morte do proprio
rendeiro.»
O exemplo da Irlanda é uma demonstração estrondosa da inutilidade dos
vinculos para manter pela grande propriedade a grande cultura: prova
que, onde se derem causas efficazes para que a pequena cultura
prepondere, os vinculos, longe de lhe pôr obstaculos, a deixarão ir até
á extremidade em que é um verdadeiro mal, mal que egualmente pode
resultar do fraccionamento excessivo da propriedade allodial.
Se os vastos predios vinculados nas provincias meridionaes de Portugal
não nos dão o espectaculo que nos offerece a Irlanda, é porque nas
nossas provincias do sul escaceia a população rural, e falta quem,
impellido pela fome, vá disputar a outro miseravel como elle algumas
nesgas de terra: é que o sul do reino, sobre tudo o Alemtejo, acha-se em
grande parte deserto. Se assim não fosse, a existencia dos vinculos não
obstaria de certo a que a procura excessiva da terra, compensando pela
elevação da renda parcellaria as desvantagens da divisão dos grandes
predios, trouxesse a pequena cultura, não com os seus caracteres
beneficos, mas com aquelles que tornam fatal o seu predominio
illimitado.

IX
*Objecções fundadas contra os vinculos*

As precedentes considerações parece-nos terem provado duas cousas: terem
provado que a abolição dos vinculos nem é facil, nem deixa de trazer
serios inconvenientes; e ao mesmo tempo que as vantagens, attribuidas a
esta instituição pelos seus defensores absolutos, são em grande parte
imaginarias. A aristocracia, a manifestação das desegualdades sociaes,
como ella é possivel n'este seculo, vimos que não precisa d'esse meio
artificial para se manter, porque deriva das condições impreteriveis da
sociedade; mas tambem vimos que a conservação dos pequenos vinculos é o
correctivo temporario a uma organisação administrativa que vicia as
instituições politicas e que attenta pela força da propria indole contra
a liberdade.
Em nosso entender tanto os que combatem os vinculos como os que os
defendem partem, talvez involuntariamente, de preoccupações oppostas que
não os deixam apreciar desapaixonadamente o merito da questão. Tanto uns
como outros cedem mais ao affecto do que aos frios calculos da razão. Os
vinculos representara o passado: são um resto do edificio social
desmoronado, cuja completa demolição julgam commummente indispensavel os
homens das novas idéas. Para estes os vinculos devem desapparecer,
porque são uma tradição, um memento da antiga monarchia e de uma
sociedade affeiçoada por ella. Mas é justamente por isso que os seus
adversarios querem amparar o que resta em pé do edificio, ou que, indo
mais longe na irreflexão da saudade, desejariam não só conservar este,
mas tambem colligir de novo todos os outros materiaes dispersos que
servissem para o reconstruir.
Este modo parcial e indiscreto de apreciar um facto economico e social
conduz forçosamente a conclusões absolutas e extremas; mas as conclusões
absolutas trazem a impossibilidade de uma transacção, e nós não
consideramos nenhuma solução da contenda como util e possivel senão a
que resultar de uma transacção entre idéas oppostas e oppostos
interesses. Não a consideramos como util sem uma transacção, porque a
abolição radical e completa traria os graves inconvenientes que em parte
ficam ponderados, e que aliás estão longe de provar que a existencia dos
vinculos é ou foi proveitosa. Não a consideramos como possível, porque,
ferindo interesses poderosos e preoccupações arreigadas, estes
interesses e preoccupações seriam obstaculo perpetuo a uma lei
definitiva sobre o assumpto. N'uma epocha revolucionaria, como a de 1832
a 1834, a abolição completa teria sido exequivel. As idéas e os
interesses oppostos eram obrigados a calar-se diante da voz omnipotente
da revolução. O tempo teria absolvido as injustiças relativas e os males
parciaes pela importancia dos resultados. N'essa epocha, porém, de
grandes ousadias, não se ousou tanto, e apenas se manifestou a guerra
aos vinculos pela condemnação dos pequenos morgados; d'aquelles a que
menos quadravam as accusações que se podiam fazer contra esta especie de
propriedade. Dir-se-hia que n'essa conjunctura, em que a sociedade e a
monarchia se transformavam, só se tivera presente o pensamento da lei de
3 de agosto de 1770, que consagrava a amortisação dos latifundios como
meio de conservar uma opulenta aristocracia hereditaria que cercasse de
falso brilho o throno de um rei absoluto. Se, porém, os homens gigantes
d'então, ardentes nas suas crenças, implacaveis contra o passado,
capazes de combater energicamente pelas proprias idéas, armados de uma
dictadura erguida em campos de batalha e baptizada em pegos de sangue;
se esses animos feros de uma epocha singular, que provavelmente não
achará tão cedo outra que a offusque ou que sequer a valha, tocaram
apenas timidamente no collosso vincular por um acto de dictadura sem
vigor e sem originalidade, poder-se-hão agora, no meio de uma geração de
estatura politica sobradamente modesta, encetar luctas de idéas
exclusivas e inexoraveis? As fileiras dos antigos pelejadores, cujo
ardor aliás se acha enfraquecido pelo cansaço, rarearam-nas os annos, e
os novos não tem braços assaz robustos para o combate. Hoje chama-se á
tibieza tolerancia, e aos calculos do egoismo e da pusillanimidade
civilisação. Os velhos interesses e as velhas preoccupações tem voz e
voto, preponderante ás vezes, nas cousas publicas. Os tumultos, as
luctas das facções, as guerras civis são ainda possiveis: as revoluções
não. Para isso requer-se que nas veias dos homens haja sangue, no
coração crenças, e na sociedade seiva moral.
D'este estado de cousas deriva a necessidade das transacções entre idéas
e interesses oppostos seja qual for a sua legitimidade. Independente de
quaesquer circumstancias, o que existe tem sempre grande força contra a
innovação; mas tem-na, sobretudo, nas epochas em que a descrença e o
intorpecimento, por assim dizer, epidemicos, invadem os espiritos. Por
mais terminantemente que a opinião condemne os vinculos; por mais
poderosamente que uma ou outra intelligencia os combata, a inercia, o
desanimo, a indifferença hão-de dar uma força de resistencia quasi
invencivel a essa instituição, que aliás podia, não sanctificar-se pela
sua origem ou legitimar-se pela sua indole, mas defender-se com razões
mais ou menos plausiveis na sua manutenção.
Que nos cumpre, pois, fazer, se quizermos chegar a um resultado practico
e exequivel na questão dos vinculos? Não é combater radicalmente a sua
existencia: é combater o que n'elles ha evidentemente nocivo. O facto de
certa qualificação nobiliária ser dada a certos individuos não perturba
a sociedade a que elles pertencem. Sabemos por experiencia o que valem e
o que podem essas qualificações. Mui pouco importa egualmente ao bem
commum que o juro de um determinado capital, a renda ou aluguer de
qualquer instrumento de producção se transmitta por testamento ou _ab
intestato_ a este ou áquelle, a um ou a mais individuos na successão das
gerações. O que importa é que esse capital ou esse instrumento se não
inutilise; que se adapte, ao menos na maior parte dos casos, a todas as
necessidades, a todas as mudanças, a todas as transformações do
progresso economico. Obtido isto, a conservação ou não conservação dos
vinculos é uma questão que perde a maior parte da sua importancia, e que
até se ha-de tornar assaz insignificante para deixarmos sem receio aos
vindouros o encargo da sua solução final.


A EMIGRAÇÃO
1873-1875


I
*Val-de-Lobos, dezembro de 1873.*

Ex.^{mo} sr.--Meu amigo, recebi no dia 9 d'este mez uma carta de v.
ex.^a, acompanhando o questionario que no dia 18 deve servir de assumpto
a uns debates na associação agricola de Lisboa. N'essa carta pede-me v.
ex.^a a minha opinião ácerca dos quesitos especificados n'aquelle papel.
São elles de duas especies: quesitos relativos a factos, quesitos
relativos a doutrina. Quanto aos de facto, sobre a maior parte d'elles
as noções que tenho são incompletas e pouco seguras: quanto aos de
doutrina, e ainda aos de factos em que me reputo melhor instruido, um
voto fundamentado sobre tão espinhosas e complexas questões exigiria um
livro, que mal coubera em razoavel volume. Delineal-o e escrevel-o n'uma
semana excederia as raias do possivel, não digo para a minha capacidade,
mas para a maior capacidade do mundo. É verdade que v. ex.^a pede-me
apenas reflexões ao correr da penna; mas em assumptos tão serios, basta
o amor proprio para nos induzir á circumspecção, e a consciencia
força-nos a tel-a, quando a nossa opinião, por ser nossa, como v. ex.^a
tão benevola como inexactamente pensa a meu respeito, pode exercer certa
influencia em outros espiritos. Assim, desejando por um lado cumprir os
preceitos de v. ex.^a, e por outro evitar, quanto possivel, uma grave
responsabilidade, direi successivamente o que me occorrer sobre o
questionario, se e quando outras occupacões impreteriveis me derem logar
a isso e v. ex.^a tiver animo para malbaratar alguns minutos em decifrar
as minhas rabiscas. A estreiteza do tempo apenas me consente fazer
n'esta carta algumas reflexões sobre o preambulo d'aquelle papel; e
ainda, pelo que a estas respeita, espero que nem v. ex.^a nem ninguem dê
a idéas tão mal elaboradas mais valor do que na realidade tem.
Resulta do preambulo do questionario que o debate, que vai abrir-se na
annunciada reunião, tem por alvo principal considerar o assumpto da
emigração para a America á luz da connexão que tal facto possa ter com
os interesses agricolas. Parece dar-se por provado que as difficuldades,
mais ou menos graves, da nossa agricultura procedem unicamente da falta
de braços, e da elevação dos salarios, elevação que se presuppõe
derivada exclusivamente d'essa falta, e esta, não da _insufficiencia_
dos braços em relação a uma _procura crescente_, mas da sua _diminuição_
por effeito da emigração, que se inculca, talvez por obscuridade de
redacção, como vulgar em todo o reino. A discussão terá, pois, por fim
averiguar quaes os meios de evitar a emigração do homem de trabalho para
fóra do reino, e de fazer com que a torrente d'ella se derive das
provincias mais populosas para as menos populosas, sobretudo para as
solidões do Alemtejo.
Estou plenamente de accordo em que se empreguem todos os meios razoaveis
e liberaes, para promover um movimento da população do norte para as
provincias do sul, especialmente para o Alemtejo, e para reter na patria
as classes trabalhadoras dos districtos insulares. Mas o que não posso é
sentir essa repugnancia absoluta, esses terrores profundos, illimitados,
da emigração, e o desejo de obstar a ella só para obter salarios baratos
para a agricultura. A emigração é um phenomeno complexo nas suas causas,
condições e resultados. Emigram uns por calculos e previsões, ou
proprios ou dos que os dirigem, pela esperança, bem ou mal fundada, de
voltarem algum dia ricos ou abastados á aldeia natal; emigram, não
porque não podessem viver, trabalhando, vida modesta e tranquilla entre
os seus, mas porque aspiram a mais elevada fortuna. Outros ha que
emigram violentados, ou antes que não emigram; que são expulsos pela
miseria; que não calculam, nem esperam, nem deliberam; que tão sómente
se resignam. Entre estas duas situações ha, a meu vêr, um abysmo:
confundil-as quando se tentasse annullar a ultima em beneficio das
victimas, e não em proveito d'estes ou d'aquelles, conduziria
provavelmente a grandes desacertos; confundil-as, porém, para as
destruir com a mira de tirar d'ahi vantagens para certa classe ou certa
industria, parece-me ainda peior. Faça-se tudo para supprimir a
emigração forçada; mas evite-se tambem tudo o que possa coagir, directa
ou indirectamente, aquelle que sente em si ambições e audacia a sopitar
os impulsos da propria actividade; evite-se que a sociedade ponha por
qualquer modo o seu veto (sem aliás abdicar do seu direito de inspecção)
a que a affeição paterna ou a previdencia tutelar busquem, dentro ou
fóra do reino, tornar melhor a sorte futura d'aquelle que a natureza ou
a lei confiou á sua guarda. Nas questões de interesse privado, nos
negocios da vida civil, dou incomparavelmente mais pelos resultados da
sagacidade e do livre arbitrio dos individuos, do que pelos da
intervenção do Estado.
Fallo assim, porque vejo do preambulo do questionario que tambem se quer
obviar aos intuitos dos que aos lucros modestos na patria preferem as
riquezas que lhes promette a America, o que, segundo se affirma, _raras
vezes se realiza_. É isto exacto? Parece-me que os factos affirmam
claramente o contrario. Não possuo aqui livros, documentos officiaes, ou
informações particularisadas sobre a situação economica dos nossos
compatricios residentes no Brazil, em que me possa estribar; mas tenho
ouvido calcular a pessoas que reputo competentes o valor medio annual
dos ingressos monetarios, que nos traz o refluxo da emigração portugueza
na America, em mais de 3:000 contos de réis. Não sei se é verdade: o que
sei é uma coisa, que, se não pertence á estatistica economica, pertence
á estatistica moral, e que não é menos eloquente que os algarismos; sei
um facto de suprema notoriedade. A denominação de _brazileiro_ adquiriu
para nós uma significação singular e desconhecida para o resto do mundo.
Em Portugal, a primeira idéa, talvez, que suscita este vocabulo é a de
um individuo, cujos caracteristicos principaes e quasi exclusivos são
viver com maior ou menor largueza e não ter nascido no Brazil; ser um
homem que saiu de Portugal na puericia ou na mocidade mais ou menos
pobre, e que, annos depois, voltou mais ou menos rico. Esta noção vulgar
da palavra _brazileiro_ não surgiu sem motivo entre o povo. É que
milhares e milhares de factos lh'a gravaram no espirito. O _mineiro_ do
seculo passado converteu-se no _brazileiro_ dos nossos dias. São a
primeira e a ultima palavra da historia de uma evolução politica e
economica altamente instructivas, que poderia acaso resumir-se no
seguinte asserto: «_a nossa melhor colonia é o Brazil, depois que deixou
de ser colonia nossa_.»
Applaudo, meu amigo, o questionario, porque os estudos que promove podem
ser grandemente proficuos ao melhoramento de muitas condições sociaes. O
que não posso applaudir são as suas causas finaes e o modo como é
apresentado. Acho inconvenientissimo confundir-se ahi a emigração
espontanea com a emigração forçada, e infelicissima a idéa de combater
egualmente uma e outra, afim de obter salarios baratos para a
agricultura. Por via de regra, o emigrado espontaneo, aquelle que a
miseria não atira cegamente, brutalmente, para fóra da patria, sabe o
que quer; sabe como vai e para onde vai. Conta com o parente, com o
amigo da familia, com o protector que lhe hão de dar as recommendações
que leva. É pobre, porém não desvalido. Impõem-lhe os seus, ou impõe
elle a si proprio annos e annos de laboriosidade, de sacrificios, de
abstenções; mas, além d'esses annos, nos horizontes da vida, ergue-se
uma luz, uma esperança que o alumia e fortifica. Esta luz e esta
esperança ensinam-lhe a norma do seu proceder, e o seu procedimento
redundará, não direi em toda a especie de proveitos, mas decerto em
proveito economico d'elle e da terra que o viu nascer, e pela qual lhe
vai redobrar o affecto o grande incentivo da ausencia.
V. ex.^a sabe perfeitamente quaes são as applicações possiveis do
producto liquido do trabalho humano. Ou se destina a satisfazer as
necessidades, os commodos e os appetites do productor, ou a accumular-se
e a converter-se em capital reproductivo, ou, finalmente, a dividir-se
entre estas duas applicações. Ambas ellas influem na riqueza publica,
mas com diverso gráu de intensidade. A satisfação das nossas precisões
ou da nossa propensão para gosar tende a manter prosperas centenas de
industrias; mas a accumulacão do capital, quando este chega a
converter-se em instrumento de producção, tem uma influencia, sem
comparação, mais energica no progresso da riqueza social. São verdades
triviaes estas: fôra inutil insistir n'ellas. Qual é, porém, o teor da
vida, em geral, do portuguez do Brazil, do futuro brazileiro de
Portugal? É o forcejar incessante, pertinaz, por accumular capitaes,
reduzindo ao estrictamente indispensavel a satisfação das suas
necessidades. Dedica á prosperidade da industria, da agricultura, ou do
commercio d'aquellas regiões a menor parte que pode do fructo do seu
trabalho. A sua idéa constante, inflexivel, tenaz, é voltar rico, ou
pelo menos abastado, á patria. E volta. Se, cançado de sacrificios e
trabalho, quer gosar, é á industria, á cultura e ao commercio do seu
paiz que atira ás mãos cheias o oiro que ajunctou. Se a sêde do ganho
não se extinguiu n'elle, esse oiro converter-se-ha em capital
productivo. E nós, nós que prégamos aos operarios a abstenção, a
poupança das suas tão modestas sobras para as accumularem nas caixas
economicas, havemos de combater a emigração voluntaria para o Brazil,
emigração que representa uma caixa economica opulentissima, a qual, por
mais que se fizesse, todas as outras junctas nunca poderiam egualar?
No preambulo do questionario allude-se ás esperanças burladas de muitos
emigrados voluntarios, ás illusões desfeitas, o que exaggeradamente se
presuppõe ser a regra geral. Decerto a America illude, e até devora,
muitos d'esses que acreditam ir encontrar n'ella prospero futuro. Mas
então, porque solicitar, pelo favor directo de providencias especiaes, o
homem de trabalho a buscar a fortuna na mineração dos metaes, na marinha
mercante, ou na exploração das nossas colonias de Africa? As minas, o
oceano e a Africa tambem illudem, tambem devoram. Em vez de solicitar,
repelli. Abrireis novos mananciaes de trabalho barato para a agricultura
nacional.
Disse a v. ex.^a que não applaudo as causas finaes do questionario. Digo
mais: deploro-as. São ellas que dão origem á confusão do acto espontaneo
com o forçado, com a emigração que provém da maior das tyrannias--a
tyrannia da miseria. Na emigração voluntaria ha um uso da plenitude da
nossa liberdade, e é por isso que a responsabilidade da sorte futura do
individuo recae inteira sobre elle proprio. O progresso social parece-me
consistir, sobretudo, na ampliação da responsabilidade individual
derivando da liberdade. O absolutismo nada mais é do que a tutela
publica na sua manifestação extrema. Na emigração forçada é que seria
injusto e cruel attribuir ao emigrado, que abandona o seu paiz sem
norte, sem rumo certo, e muitas vezes sem a minima esperança, a
responsabilidade de um facto que em rigor não é seu. A sociedade tem de
acceital-a. Essa secreção de desgraçados, que o corpo politico súa de
si, é anormal. Ha, aqui ou alli, na estructura d'elle um vicio de
conformação ou um estado pathologico que produz o phenomeno. A miseria
de um ou de outro individuo pode derivar de culpa propria: a que expulsa
uma parte notavel da população de um paiz, onde esta, considerada
collectivamente, está longe de superabundar, é sempre resultado de um
defeito ou de uma perturbação nos orgãos da sociedade.
Affligir-me-hia profundamente que o auctor ou auctores do questionario e
do seu preambulo imaginassem que eu duvidava, n'um só ápice, da pureza
das suas intenções, da sua humanidade, da sua justiça, do seu
patriotismo. O que simplesmente me parece é que o problema se poz mal.
Suppõe-se a agricultura do sul, sobretudo a do Alemtejo, collocada em
difficuldades taes que ameaçam a sua existencia. Suppõe-se que estas
difficuldades extremas provêm de uma causa unica--a elevação dos
salarios agricolas--e que essa elevação nasce exclusivamente da falta de
braços. Em tal caso, a resposta ao _quid faciendum_ é simples.
Promova-se o abaixamento dos salarios pela multiplicidade dos braços, e
multipliquem-se os braços combatendo indistinctamente toda a especie de
emigração: a emigração moral e economicamente nociva, e a emigração
socialmente legitima e economicamente boa. A questão reduz-se a achar os
meios de inventar e de reter dentro do paiz, por todos os modos que se
reputem licitos, trabalhadores ruraes.
Supponhamos, porém, que os debates, a que o assumpto vai dar vasto
campo, tornam patente que nem os embaraços da agricultura são tão graves
como se pintam, nem essas difficuldades, maiores ou menores, nascem
exclusivamente, e nem sequer principalmente, da elevação dos salarios,
nem esta deriva da diminuição de braços.
Pergunto: em tal hypothese, que não é mais gratuita do que a do
preambulo; n'esta hypothese, digo, deixar-se-ha de attender á dolorosa
questão da emigração pela miseria? Não! O dever commum é, não direi
resolvel-a, porque não sei se atinaremos com os especificos, mas envidar
os maximos esforços para obstar ao mal.

II
*Val-de-Lobos, janeiro de 1874.*

Amigo e senhor.--Se, como se diz no preambulo do questionario, a
elevação dos salarios, que se reputa effeito exclusivo da falta de
braços produzida pela emigração, ameaça já a existencia da agricultura
do Alemtejo, do nosso granel de cereaes colmiferos, e colloca os
cultivadores, por todo o reino, em circumstancias tão difficeis que os
rendeiros vão abandonando as terras, é claro que o mal ganhou
intensidade e extensão assustadoras, e o paiz, essencialmente agricola,
caminha rapido para profunda decadencia. Supposta sem mais exame esta
situação, haverá desassombro bastante para não ultrapassar os meios
indirectos de obstar ao mal? Não occorrerá facilmente a idéa da
compulsão, de restricções e impedimentos á liberdade? O fatal mote
_salus populi_ não virá ainda uma vez ser o pretexto de coacções mais ou
menos deploraveis?
Felizmente o que se apresenta como certo não passa por ora de hypothese,
hypothese quanto ao facto e hypothese quanto á causa. A meu ver, o
primeiro quesito do questionario deveria consistir em averiguar até que
ponto é real a existencia da enfermidade, e a sua verdadeira correlação
com o motivo a que se attribue. Como addição a esta especie de quesito
preliminar, quizera eu, porém, que se inserisse outro. Suppondo
conhecida a media dos salarios ruraes, o que não sei se é facil,
cumpriria examinar se essa media será sufficiente para o proletario
occorrer ás mais urgentes precisões da vida--ao alimento, ao vestuario,
e á habitação da familia--ainda admittindo que o trabalho d'esta possa
augmentar os recursos domesticos. Se achassemos que a retribuição do
assalariado, embora assim accrescentada, não attingia o alvo, é evidente
que ás difficuldades, em que se provasse laborar a agricultura, haviam
de buscar-se remedios diversos de qualquer reducção artificial de
salarios. A sociedade não pode honestamente sacrificar uma classe a
outra classe, e sobretudo sacrificar o pobre, falto muitas vezes do
necessario, ao comparativamente abastado, a quem, embora em situação
mais ou menos precaria, será raro que falte inteiramente o superfluo.
Achamo-nos assim, talvez sem o pensarmos, no terreno das discussões
ardentes que perturbam profundamente as sociedades modernas.
Encontramo-nos face a face com o socialismo. Era inevitavel. Desde que
se affirma que existe n'este ou n'aquelle ponto, n'esta ou n'aquella
industria, uma desproporção, para mais ou para menos, entre o preço do
trabalho e o valor do producto, affirma-se, no estado economico actual,
uma desharmonia, uma lucta grave, entre o obreiro e o industrial. Buscar
temperamentos á collisão é entrar forpadamente no campo d'essas
discussões, de ordinario tão apaixonadas. Não o reputo grande mal no
caso presente. Pode ser, até, um bem, se tivermos força para subjugar o
que houver excessivo no afferro ao proprio interesse; se debatermos com
placidez, com a luz da imparcialidade e da justiça, que uma consciencia
recta e sincera não deixará de ministrar-nos, o assumpto complexo da
producção agricola e do trabalho rural, buscando ahi remedio á emigração
moralmente forçada.
Nas declamações mais gementes, mais irritadas, contra o socialismo,
parece-me que ha por vezes o que quer que seja do carpir da mulher que
se receia da suppressão de alguns enfeites, ou do resmoninhar colerico
do antigo frade, ao fallar-lhe o guardião em reducção da pitança para
avolumar o caldo da portaria. O socialismo é um perigo serio; mas o
homem deve haver-se perante os perigos com cordura e hombridade: deve
olhar para elles fito, em vez de se pôr a ensartar lastimas ou a
vociferar improperios. Onde e quando o socialismo, com a taboleta de
communismo, de internacionalismo, ou outro qualquer letreiro, recorrer á
violencia, responda-lhe a violencia. São negocios que tem de resolver
entre si o petroleo e a metralha. Os incendios não se discutem:
apagam-se. Mas onde e quando o socialismo nos aggredir com as armas da
razão, ouçamol-o. Se a razão estiver da sua parte, de-mos-lh'a.
Demos-lh'a porém, não com uma confissão esteril, mas com actos
efficazes. Assim, parece me que elle ha-de retrogradar, enfraquecer-se,
desapparecer, como desappareceram as cruzadas ou as inquisições; como
desapparecem todos os desvarios epidemicos de que adoece de seculos a
seculos o espirito humano. Aliás, se, de accordo com o douctor Pangloss,
assentarmos em que somos chegados á melhor das sociedades possiveis, não
me atrevo a perscrutar a sorte que a Providencia prepara ás velhas
nações da Europa.
Meu amigo, no amago dos grandes extravios das multidões, de que a
historia nos subministra terriveis exemplos, ha quasi sempre uma idéa
justa que as paixões viciaram. As resistencias, porém, a esses extravios
não escapam de mácula identica. No ardor do combate, a idéa justa
obscurece-se, condemna-se, involta na proscripção das doutrinas absurdas
e das applicações temerarias. É assim que nenhuma das grandes luctas
entre as orthodoxias e heterodoxias deixa de nos apresentar esse triste
espectaculo. No socialismo ha duas cousas bem distinctas: as
affirmativas e as negações. As mais das vezes as suas doutrinas
constituintes, os seus systemas de reforma social, afiguram-se-me
abstrusos, infundados, inexequiveis, e não raro iniquos; e as apologias
das quinze ou vinte escholas em que elle se divide, e muitas vezes se
contradiz, frequentemente faltas de condescendencia para com o senso
_commum_, o que me parece pouco democratico. Dos seus queixumes contra a
sociedade actual é que me seria difficil dizer outro tanto. É ahi que me
persuado está a sua idéa justa. No meio das exaggerações, das
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