Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 04 - 01

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*OPUSCULOS*
POR
A. HERCULANO
SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA
SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA
SOCIO CORRESPONDENTE DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID DO INSTITUTO
DE FRANÇA (ACADEMIA DAS INSCRIPÇÕES) DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE
TURIM DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC.
*TOMO IV*

QUESTÕES PUBLICAS
TOMO III

LISBOA
*VIUVA BERTRAND & C.^a* SUCCESSORES CARVALHO & C.^a
73, Chiado, 75
M DCCC LXXIX


*COIMBRA--IMPRENSA DA UNIVERSIDADE*


ADVERTENCIA

Propondo-nos continuar a interrompida compilação dos _Opusculos_ do
fallecido escriptor Alexandre Herculano, importa dizermos em breves
palavras qual é o nosso intuito, para que não se tomem á conta de
insensato arrojo as timidas diligencias que fazemos por cumprir um
dever, que reputamos impreterivel.
Quem leu a primorosa _Advertencia previa_ do primeiro volume d'esta
collecção sabe que o auctor resolvera imprimir de novo, de envolta com
alguns trabalhos seus ainda ineditos, os numerosos escriptos que, no
dilatado periodo de quasi quarenta annos, dera á luz, ou em folhetos
avulsos, cujas edições estavam esgotadas, ou em folhas periodicas,
algumas pouco conhecidas hoje, e todas mais ou menos difficeis de reunir
e compulsar. Como elle proprio declara, um dos motivos, se não o
principal, que o levava a «ajunctar os _disjecta membra_ de uma grande
parte do seu passado intellectual», era o desejo de ser um dia julgado,
com imparcialidade e justiça, pelas idéas que emittira e pelas opiniões
que sustentara. E foi para tornar mais justa semelhante apreciação que
assentou em conservar escrupulosamente a parte doutrinal dos opusculos
primitivos, junctando-lhes, apenas, as datas da sua composição; porque,
«sem querer no minimo ponto fugir á responsabilidade das suas opiniões,
entendia que a responsabilidade seria ora maior ora menor, se porventura
se attendesse á epocha em que essas opiniões foram manifestadas.»
Fiel a estes principios, e obedecendo ao plano que traçara, conseguiu
ainda o sabio escriptor dar á luz os tres primeiros volumes da presente
collecção, nos quaes inseriu grande parte dos trabalhos que maior abalo
produziram no animo publico, pela elevação, desassombro e energia com
que ahi são tractados os mais melindrosos assumptos. Muitos outros,
porém, estavam virtualmente destinados a formar novos livros, que por
fim haviam de completar os elementos necessarios do processo, sobre que
tinha de recair a sentença definitiva dos juizes imparciaes, a quem elle
com tamanha confiança entregava o julgamento da sua causa; e são esses
trabalhos dispersos, entre os quaes ha não poucos inteiramente
desconhecidos da geração actual, que diligenciamos reunir e publicar.
É grave, sem duvida, a responsabilidade moral e litteraria que
contrahimos, escasso o tempo de que podemos dispor, debeis as forças,
nulla a competencia. Erraremos, necessariamente, na escolha dos artigos,
na ordem em que os collocarmos, na preferencia que lhes dermos, e acaso,
até, na inserção de algum que o proprio auctor excluiria, O que, porém,
podemos affirmar ao leitor é que empregaremos os maximos esforços para
que seja fidelissima a transcripção d'esses artigos: fidelissima,
dizemos, em quanto ao texto; porque a orthographia deixamol-a ao cuidado
da imprensa. Seria muito moroso, além de sujeito a frequentes
irregularidades, querer reduzir escriptos de tão differentes epochas, e
publicados em desvairadas folhas periodicas, sem unidade orthographica,
ao systema que o auctor ultimamente seguia.
Para este quarto volume da collecção geral dos _Opusculos_, e terceiro
das _Questões publicas_, escolhemos dois trabalhos egualmente
importantes, e que nos parece terem intima correlação.
O primeiro é um largo e consciencioso estudo ácerca da instituição
vincular, onde são maduramente apreciadas as vantagens e os
inconvenientes d'este modo de ser da propriedade, bem como as
difficuldades que offerecia, n'aquella epocha, a sua immediata abolição.
Este estudo, que encontrámos completo e mostra ter sido escripto sem
interrupções, ficou, todavia, inedito na sua maior parte; porque apenas
se imprimiram os tres primeiros capitulos, no jornal _A Patria_ de 8, 17
e 25 de fevereiro de 1856, e o quinto, d'ahi a tres annos, nos numeros 5
e 7 do _Archivo Universal-, a instancias do mallogrado escriptor Rodrigo
Paganino. Quaes foram os motivos que impediram a publicação dos
restantes, n'uma conjunctura em que as luminosas reflexões do auctor
podiam auxiliar a resolução do grave problema, não nos foi possivel
descobril-os; mas, com quanto a abolição dos vinculos fosse, poucos
annos depois, levada a effeito, pelas leis de 30 de junho de 1860 e de
19 de maio de 1863, aos homens competentes pertence o decidir se n'essas
leis foram, ou não, previstas com lucidez, e resolvidas com acerto todas
as diffículdades que faziam vacillar um espirito tão esclarecido e um
animo tão resoluto.
Compõe-se o segundo trabalho de uma serie de cartas, dirigidas ao sr.
conselheiro Carlos Bento da Silva, nas quaes o auctor manifesta, com a
sua habitual lealdade e franqueza, a opinião que tinha ácerca da
emigração para a America, assumpto que então preoccupava muito os
espiritos, e hoje parece não dar excessivo cuidado a ninguem. Publicadas
na _Revista agricola_ e no _Jornal do Commercio_, e sustentando
doutrinas contrarias, em grande parte, às que eram geralmente seguidas,
estas cartas levantaram clamores, que, não só interromperam um estudo
cheio de bom senso e de generosas aspirações, mas arrastaram, em breve,
para o terreno ingrato das luctas politicas a discussão, que só podia
ser proveitosa mantendo-se nas regiões serenas da sciencia. Não é, por
conseguinte, o dezejo de avivar a lembrança de uma controversia
desagradavel, que nos leva a reproduzir, sem a menor alteração, algumas
paginas mais calorosas deste trabalho litterario: fazemol-o, porque era
impossivel mutilar um escripto de tanta importancia, justamente na parte
em que o auctor, além de responder ás objecções do seu antagonista,
desenvolve e reforça com argumentos novos as suas proprias idéas.
Como succede a todos os homens que, súperiores ás preoccupações do seu
tempo e movidos por um sentimento innato de rectidão, não encobrem o seu
modo de pensar, nem sacrificam a verdade, embora tenham de censurar
amigos ou de dar razão a adversarios, Alexandre Herculano foi, por via
de regra, mal avaliado pelo commum dos seus concidadãos, e victima
frequentes vezes de infundadas e contradictorias accusações. Têm,
comtudo, os grandes engenhos e as consciencias immaculadas certa no
futuro a justiça que os contemporaneos lhes negaram; e nós cremos que o
leitor desapaixonado, comparando estes dois opusculos, distanciados até
aqui por um intervallo de cerca de vinte annos e reunidos agora no
presente volume, encontrará n'elles, como em todas as obras do auctor,
os mais claros testemunhos da coherencia das suas idéas, da
imparcialidade dos seus juizos, e da pureza das suas intenções.
_Os legatarios_.


OS VINCULOS
1876


I
*Preliminares*

O caracter mais prominente dos actos legislativos promulgados durante a
dictadura do duque de Bragança, foi a tendencia para alterar na sua
essencia, melhorando-a, a condição das classes laboriosas e productoras,
aquellas em que verdadeiramente reside a força vital da sociedade.
As leis d'essa epocha singular da nossa moderna historia tinham de
ordinario por fim principal desmoronar os alicerces do antigo systema
politico, e tornar impossivel a sua restauração. Era uma idéa grandiosa,
implacavel como o destino, que presidia á redacção de todas ellas; mas,
em quasi todas, ao pensamento da lei ou ás suas provisões ligava-se a
idéa de um allivio ou o de um incitamento á quasi unica industria do
paiz--a agricultura. Assim a lei dos foraes e a abolição dos dizimos,
destruindo os recursos de certas corporações de mão-morta e de certa
aristocracia de berço, em cuja influencia fatal se estribava
principalmente o velho systema, livravam ao mesmo tempo a propriedade e
o trabalho rural dos mais gravosos impostos; e a extincção das milicias,
dos capitães-móres e das ordenanças, ao passo que desorganisava as
resistencias locaes ás novas instituições, restituia ao lavrador e ao
obreiro dos campos o uso integral do fructo do seu suor.
A restauração era grandemente revolucionaria nas suas manifestações
legislativas; mas, como todas as revoluções vivedoiras, ella
representava uma revolução politica e ao mesmo tempo uma revolução
social e economica.
Em quanto Mousinho da Silveira influiu nos conselhos do duque de
Bragança, a restauração conservou os caracteres que lhe imprimira esse
homem singular. Os actos subsequentes da dictadura, sem deixarem de ser
logicos com os que até ahi se haviam practicado, deixaram de ter egual
alcance. A extincção, por exemplo, das ordens monasticas, ao mesmo tempo
que desprezava direitos legitimos, os que os monges tinham ás suas
dotações, e condemnava á miseria muitos individuos innocentes e
respeitaveis, atirava para o mercado ou desbaratava sem tino e sem
previsão um enorme cumulo de propriedade territorial, que, alienada por
um systema sensato e previdente, teria sido dez vezes mais util á
prosperidade geral do que realmente foi.
A suppressão das ordens religiosas e a extincção do papel-moeda
constituem os dois unicos actos de verdadeira audacia revolucionaria
practicados pelos successores de Mousinho. As chagas sociaes em que elle
não puzera o ferro ficaram. Taes foram as complicações do direito
emphyteutico, que tornam absurda essa excellente fórma de transmissão e
conservação de propriedade; taes os vinculos, instituição incompativel
com o espirito da nossa epocha e com o regimen da liberdade; taes as
contribuições municipaes sobre o consumo; taes os pastos communs, que
offerecem embaraços permanentes a uma revolução agricola, que as
circumstancias tornaram indispensavel. Toda essa farragem do passado
teria provavelmente desapparecido, se o genio de Mousinho houvesse
dirigido por mais algum tempo os destinos de Portugal.
O movimento mais ou menos bem regulado d'aquella grandiosa revolução
tinha por principal incentivo a febre de uma guerra civil violenta,
especie de duello gigante entre o passado e o futuro. Quando a lucta
cessou, o impulso reformador foi esmorecendo, e a reacção começou, como
era natural apoz tamanho abalo, a modificar os espiritos. Houve quem
parasse nos limites do justo; mas outros passaram além. Movia á piedade
a situação do clero regular; causava graves apprehensões a
desorganisação do secular; e o systema de administração franceza, cuja
adopção fôra um erro de Mousinho, funccionava mal. Estes lados da
reforma eram os menos defensaveis, e tinham contra si por um lado o
sentimento religioso offendido, e por outro o incommodo dos povos nas
suas relações administrativas. Explorou-se a mina: buscou-se tirar
partido a favor dos velhos abusos das confissões leaes d'aquelles que,
addictos ás doutrinas generosas da dictadura, eram assaz sinceros para
condemnarem os erros que se haviam commettido. Animados por essas
confissões, os interesses illegitimos, que a revolução havia ferido
profundamente, agítaram-se e conspiraram contra ella. No meio das luctas
civis que sobrevieram de novo, posto que menos violentas, e das
incertezas e perturbações publicas, devidas umas aos nossos erros e
paixões, outras a circumstancias independentes da vontade do paiz e das
parcialidades, as tradições do duque de Bragança esqueceram
gradualmente. Os exemplos de tentativas para sophismar ou destruir as
suas leis economicas não foram raros. Houve mais d'um Oza que estendesse
a mão á arca santa, não para a amparar, mas para a derribar, sem que
cahisse fulminado. Nada prova mais esse progresso gradual de reacção do
que os diversos projectos de refórma do decreto de 13 de agosto de 1832,
chamado vulgarmente lei dos foraes, e as respectivas discussões nas duas
camaras, reacção que veiu a formular-se na lei de 22 de junho. A questão
do restabelecimento completo ou incompleto dos dizimos chegou a
agitar-se nas commissões do parlamento. A idéa da reorganisação das
milicias tem passado uma e outra vez pelas cabeças de homens assaz
influentes, e porventura ahi vive ligada á existencia dos denominados
batalhões nacionaes, que successivamente perecem e renascem. O jury,
combatido a principio cora vantagem, como succede a todas as
instituições novas que por via de regra funccionam mal, accusado por
algumas das suas decisões, que a maior parte das vezes procediam e
procedeam de causas alheias à instituição, foi pouco a pouco
restringido, desnaturado, e posto á mercê dos juizes chamados letrados,
designação infelizmente inexacta em relação a muitos. Não se ponderou
que não ha jurados sem segurança publica, e que essa segurança não
existia; que não os ha sem juizes habeis, e que muitos d'elles o não
eram; que não os ha sem ensino primario, amplo na extensão e
intensidade, e que o ensino era entre nós, como ainda é, incompletissimo
em ambas as relações. Reagiu-se, em summa, no que se pôde, desde a
vaidade de ter em Lisboa um patriarcha e um simulacro de patriarchal,
inutilidades dispendiosas que a dictadura annullara, até o imposto sobre
a pesca, vexame intoleravel abolido pelo duque de Bragança em favor de
uma classe e de uma industria, que a humanidade e as boas doutrinas
economicas mandavam proteger com a melhor das protecções, a plena
liberdade.
A reacção manifestada nestes e em outros factos parece incutir já
receios em muitos homens publicos, que reflectem. N'outros uma especie
de instincto politico suppre a falta da intelligencia superior e da
razão esclarecida. Sente-se que é preciso conter o movimento retrogrado.
Em nossa opinião o remedio é simples: é voltar aos bons principios; é
comprehender bem a indole da restauração; é applicar as suas doutrinas,
modificando-as nas applicações pelo que a experiencia de vinte annos nos
deve ter ensinado. A dictadura do duque de Bragança foi demasiado curta
e tempestuosa. Fez muito; mas não podia fazer tudo. Completae a sua
obra; favorecei o augmento e o bem estar das classes productoras; ligae
os seus interesses á manutenção das instituições, e a reacção reduzida á
impotencia de uma vã theoria cessará de se reproduzir nos factos.
As questões de direito publico são graves: o respeito pelas fórmulas e
garantias da liberdade não merecem por certo o desdem com que alguns
escriptores, aliás sinceramente liberaes, as tem às vezes tractado,
desdem de que bem desejamos, por nós e por elles, não tenham ainda de
arrepender-se. Entretanto é indubitavel que o meio mais seguro de
colligir uma força moral que as mantenha é crear interesses de tal modo
ligados com a existencia d'ellas, que toda e qualquer reacção os ameace
collectivamente. É necessario que esses interesses se contraponham á
organisação social, ao modo de ser da propriedade, ao systema de
administração e de impostos, á distribuição das classes, congenitos com
a monarchia absoluta. Não ha evolução completa de progresso sem as duas
condições do melhoramento material e do aperfeiçoamento social. Podem
dar-se factos que realisem a primeira, e que todavia sejam estranhos á
fórmula politica do paiz onde se verificam. Nenhum descobrimento
contribuiu tanto para o augmento da civilisação como o vapor e os
caminhos de ferro, e todavia o vapor e os caminhos de ferro tem-se
estabelecido em maior ou menor extensão, mas com as mesmas facilidades e
vantagens, tanto na Inglaterra e nos Estados-Unidos, como na Austria ou
na Russia, sem que alterem ou devam alterar por em quanto a indole
politica ou social d'esses paizes. O erro deploravel dos adeptos de
certa escola é desprezarem a distincção entre o progresso que influe no
melhoramento social e moral dos povos, e aquelle que só melhora a sua
condição physica. Esses taes não contestam a superioridade do primeiro,
porque isso seria demasiado imprudente; mas julgam ter cumprido com o
que devem ás doutrinas que professam, limitando-se a applaudir quaesquer
tentativas mais ou menos imperfeitas para se obter o ultimo. Dir-se-hia
que para elles o homem interior em relação ao homem physico equivale a
zero á esquerda de qualquer algarismo. E todavia não é assim. Se o povo,
deduzindo as ultimas consequencias de certas maximas que elles ás vezes
proclamam sem reflexão, se entregasse nas mãos do primeiro despota que
lhe promettesse o bem estar material; se essa triste philosophia do luxo
e dos gosos, que dominava no imperio romano sob a tyrannia dos Cesares,
chegasse a gangrenar inteiramente as sociedades modernas, horrorisados
da obra para que teriam contribuido, apressar-se-hiam a renegar a
propria escola e a alistar-se n'aquella, que, sem desprezar o homem
exterior, não esquece que ha n'elle uma coisa interior chamada a
consciencia, que reclama a liberdade e a dignidade como condições
impreteriveis em todo e qualquer progresso das sociedades humanas.
É debaixo da impressão d'estas doutrinas, e convencidos da sua
importancia, que vamos escrever. Os estudos que iremos successivamente
publicando não são um trabalho completo; porque talvez n'elles nenhuma
questão seja considerada sob todos os seus aspectos. São apenas
reflexões soltas que temos lançado ao papel nas diversas epochas em que
circumstancias especiaes nos obrigaram a volver a attenção para os
negocios publicos: são simples apontamentos, posto que coordenados e
ampliados agora. Podem ter erros; mas a intenção que os dictou é leal. O
auctor nunca poz a penna a soldo de partidos ou de escolas; nunca
mercadejou com a sua razão, nem com a sua consciencia. Á falta de outro
merecimento, estes estudos tem o da convicção sincera.

II
*Processo agricola.--Propriedade rural.--Opportunidade da discussão*

Apezar do impulso dado ao desinvolvimento agricola pelas leis da
dictadura de 1832, as consequencias de certos factos historicos, de
certas instituições abusivas, que por seculos haviam esmagado o paiz,
ainda em parte se experimentam. Remover essas instituições; neutralisar
os effeitos d'aquelles factos é completar a revolução politica pelo
complemento da revolução economica.
A extincção dos dizimos, das milicias, das ordenanças, das prestações
foraleiras deram á lavoira uma extensão imprevista, e a situação do
cultivador portuguez melhorou sensivelmente. Se por uma parte os
methodos sempre cambiantes da percepção dos tributos, aliás viciosos na
sua essencia, não houvessem substituido por gravames novos os gravames
antigos, posto que em muito menor escala; se, por outra parte, a grande
propriedade não fosse ainda demasiado preponderante; se a falta de
proporção entre o accrescimo da cultura e o accrescimo da população não
houvesse augmentado, pela subida do salario, o custo das producções,
cujo valor a concorrencia nos mercados tem ido progressivamente
diminuindo; se a falta de instituições de credito agricola e a derivação
dos recursos pecuniarios do paiz para a agiotagem, resultado de uma
pessima administração da fazenda publica, não houvessem tornado o
capital esquivo á agricultura; se o quasi nenhum melhoramento das vias
de communicação não pesasse indirectamente sobre os productos; se o
atrazo da instrucção popular não inhabilitasse o homem do campo para
simplificar os methodos e instrumentos de cultura; se finalmente um
falso systema de protecção não difficultasse indirectamente ao productor
portuguez o accesso aos mercados estrangeiros; a industria agricola
entre nós teria chegado ou chegaria em breve a uma situação brilhante.
Descentralisação administrativa; divisão razoavel de propriedade;
construcção de estradas geraes e caminhos concelhios; simplicidade e
ordem no systema tributario, tanto geral como municipal; meios de crear
o credito rural accommodado aos habitos e necessidades do paiz; impulso
á instrucção popular, ou antes nacional, substituindo o impulso, talvez
excessivo, dado á instrucção litteraria e superior; mudança gradual e
reflectida do systema protector para o systema da livre permutação, a
que só se poderá chegar pela descentralisação administrativa; eis o que,
em nosso intender, constituiria em geral o complemento da revolução de
1832. Por esses meios, desinvolvidas as forças productivas da terra em
toda a sua energia, o accrescimo da população acompanharia o accrescimo
de trabalho; o valor d'este se harmonisaria com o das subsistencias; o
producto liquido guardaria sempre proporcionalidade com o producto
bruto, ou, pelo menos, seria bastante para se accumular em capital e
converter-se em instrumento de producção; e emfim a grande industria
nacional, livre de peias e, ainda melhor, de uma falsa protecção,
influiria poderosamente no progresso da industria fabril e do commercio,
cuja prosperidade é impossivel onde a agricultura definha debaixo do
peso de instituições ou incompletas ou absurdas.
De todas estas questões, cuja solução importa a este grande problema,
nenhuma, se exceptuarmos a da liberdade do commercio, é tão grave,
difficil e importante como a da divisão do sólo, isto é, da fórma e
condições da propriedade territorial em relação á industria agricola.
Debatendo-a, não só se discute uma das principaes materias economicas:
discutem-se, digamos assim, as bases da sociedade civil.
A revolução de 1832, a unica revolução séria que tem havido em Portugal,
occorreu, entre outras coisas, ao damno e á vergonha, a que os erros dos
nossos antepassados nos haviam conduzido, de comprarmos aos
estrangeiros, durante uma parte do anno, a subsistencia de uma população
pouquissimo numerosa em relação ao nosso territorio, e que uma
insignificante industria fabril por certo não distrahia do trabalho
agricola. Mas as grandes providencias d'essa epocha não deram nem podiam
dar á industria e á população rural um impulso de maxima energia.
Deram-lhes apenas o que procede da libertação da terra, da cessação de
certas rapinas senhoriaes e fiscaes, e, consequentemente, o impulso
indirecto que provinha da maior facilidade de produzir subsistencias,
cuja abundancia e barateza, sempre progressivas, nos tem efficazmente
convertido, no fim de quinze ou vinte annos, de importadores em
exportadores. Os outros meios de augmento de população e de industria
agricola, que eram consectarios do largo systema que a revolução
adoptara, não se pozeram por obra desde que os dois elevados espiritos
que tinham encetado a reforma radical do paiz desappareceram, um no
tumulo, outro no esquecimento ingrato dos seus concidadãos.
A redempção da terra pela destruição dos antigos vexames devia
completar-se, de feito, por instituições e leis cujas tendencias fossem
accordes com as da revolução. Desde que pelas providencias da dictadura
de D. Pedro se entrava no caminho da reforma; desde que se fazia sair a
agricultura da immobilidade e somnolencia em que jazera por seculos;
desde que se lhe dizia «caminha!» era necessario acabar de lhe pôr
franca a estrada, removendo todos os obstaculos á sua marcha ulterior.
Não succedeu, porém, assim. Um dos factos mais importantes da historia
da nossa fazenda publica prova que o systema da revolução, ou não foi
comprehendido, ou foi promptamente abandonado por aquelles que deviam
manter as tradições d'essa epocha.
A lei dos foraes e, ainda mais do que ella, a extincção da maior e mais
opulenta parte das corporações de mão morta trouxeram á massa de bens
publicos uma porção avultadissima de propriedade rural. Calcular com
alguma certeza os valores, os capitaes possuidos por essas corporações
abolidas, ou rehavidos pela reversão gradual dos bens da corôa, é
dífficillimo, senão impossivel, pelo pessimo methodo com que taes bens
foram e tem sido incorporados na fazenda e depois alienados. Não será
porém excessivo o algarismo de cincoenta a sessenta mil contos. Mas
esses bens eram na sua maxima parte predios rusticos, ou censos e
pensões sobre elles, symbolo do senhorio directo e portanto equivalentes
de um capital. Tendo-se aberto uma nova era ao progresso da agricultura,
os homens publicos d'então deviam pensar que não seria indifferente e
sem influencia na economia social do paiz o destino que se désse a tão
avultada somma de instrumentos de trabalho rural. N'um paiz de vinculos,
de commendas, de bens de corôa, devia suppôr-se que a grande propriedade
não estava em equilibrio com a pequena. Não era, porém, necessario
suppol-o. Sabia-se que só na provincia do Minho preponderava a ultima, e
que nas outras províincias predominava a primeira, sendo quasi exclusivo
esse predominio na mais extensa de todas, o Alemtejo. Cumpria, portanto,
comparar os resultados económicos e sociaes da grande e da pequena
propriedade. Este exame mostraria, quanto a nós, a necessidade de
favorecer a multiplicação dos pequenos predios, sobretudo no centro e no
sul do reino. Não se fez, porém, isto. A massa enorme de riqueza
territorial possuida então pelo Estado, a qual na maxima parte poderia
ter cabido em mãos laboriosas e humildes por emprasamentos de superficie
limitada, ou que, pelo menos, poderia ser vendida depois de retalhada,
alienou-se por um systema absolutamente contrario. Dividida a
propriedade tornar-se-hia accessivel a todas as condições e fortunas
pelo emprasamento, e pela venda a milhares de pequenos peculios. Em vez
d'isso cahiu geralmente nas mãos de homens opulentos, trocou-se por
capitaes avultados. Em muitos casos foi o rico proprietario que
conglobou nos seus extensos predios vastos predios nacionaes, e isto
n'um mercado onde reinava pela abundancia a depreciação do genero, e
onde a concorrencia era difficil. Outra parte serviu para converter
muitos capitalistas em proprietarios. Assim se annullaram os mais
importantes resultados que se deviam ter tirado da reivindicação parcial
dos bens da corôa para o patrimonio publico, e da extincção das
corporações religiosas.
Foi a ignorancia que produziu o mal? Foi a persuasão de que a grande
propriedade era mais util do que a pequena? Não o cremos. A verdadeira
razão era o interesse pessoal dos homens influentes. Tinham-se inventado
as indemnisações; tinham-se taxado os exilios, as perdas effectivas, os
lucros cessantes, as perseguições que se haviam padecido por causa de
opiniões. A religião do juramento, a fé nos principios, a lealdade á
dynastia legitima deixaram de ser uma herança de honra para se legar
como exemplo a filhos e netos, e converteram-se em capital com juro: os
heroes transformaram-se em chatins. Foi uma abdicação moral quasi
completa, a que a historia fará justiça. Para as indemnisações a
alienação em grande convinha por mais de um modo. O _Ha-de-haver_ da
conta de ganhos e perdas engrossava-se prodigiosamente ao lado do _Deve_
em branco. Os mercadores politicos, que a escripturavam, viam-se no
governo, no parlamento, nos conselhos, nos altos cargos administrativos,
judiciaes, e militares. Olharam para essa mole appetitosa e immensa que
tinham ante si, e talharam a reparação pelo valor da presa cubiçada.
Quanto mais se accumulassem e portanto se depreciassem no mercado os
bens nacionaes, maior porção d'elles seria necessaria para satisfazer
indemnisações exaggeradas. Com o tempo desappareceu tudo. O que não
serviu para se trocar a honra politica por fortuna predial,
desbaratou-se por preços insignificantes. Os capitalistas vieram
substituir-se aos donatarios, aos commendadores e aos frades. Depois os
heroes e os capitalistas foram ao templo dar graças aos deuses. A
republica estava salva.
Então seguiram-se quinze a vinte annos de revoluções tão estrondosas
como insignificantes. Os partidos disputaram o poder, luctaram,
digladiaram-se: houve sangue e desventuras; houve theorias dominantes,
vencidas depois, e vencedoras de novo; houve homens turbulentos e
cubiçosos (os ambiciosos são raros no nosso paiz) que ora se apoderaram
do poder, ora desappareceram na obscuridade, quando não no exilio: houve
todas as convulsões, todas as peripecias dos tempos de politica pessoal,
de politica de odios acerbos e de interesses individuaes feridos. Só
faltaram novos incitamentos para o progresso legitimo. Dentro da acção
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