Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 09

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comsigo a infeliz senhora; que fosse elle para casa, e a deixasse a ella
n'uma estalagem até se lhe arranjar habitação; que o ensejo era
opportuno, por estar na quinta de Montezellos o pae, quasi divorciado da
familia.
Voltou pelo Minho Manoel Botelho, e chegou com a dama ao Porto quinze
dias depois que Simão entrára no carcere.
Já n'outro ponto deixamos dito que nunca os dois irmãos se deram nem
estimaram; mas o infortunio de Simão remia as culpas do genio fatal que
o orphanára de pae e mãe, e só da irmã Rita lhe deixára uma lembrança
saudosa.
Foi Manoel á cadêa, e abrindo os braços ao irmão, teve um glacial
acolhimento.
Perguntou-lhe Manoel a historia do seu desastre.
--Consta do processo--respondeu Simão.
--E tem esperanças de liberdade?--replicou Manoel.
--Não penso n'isso.
--Eu pouco posso offerecer-lhe, porque vou para casa forçado pela falta
de recursos; mas, se precisa de roupa, repartirei comsigo da minha.
--Não preciso nada. Esmolas só as recebo d'aquella mulher.
Já Manoel tinha reparado em Marianna, e da belleza da moça inferira
conclusões para formar falsos juizos.
--E quem é esta menina?--tornou Manoel.
--É um anjo... Não lhe sei dizer mais nada.
Marianna sorriu-se, e disse:
--Sou uma criada do senhor Simão, e de v. s.^a
--É cá do Porto?
--Não, meu senhor, sou dos arrabaldes de Vizeu.
--E tem feito sempre companhia a meu mano?
Simão atalhou assim á resposta balbuciante de Marianna:
--A sua curiosidade incommoda-me, mano Manoel.
--Cuidei que não era offensiva--replicou o outro, tomando o
chapéo.--Quer alguma coisa para a mãe?
--Nada.
Estando Manoel Botelho, na tarde d'esse dia, fechando as malas para
seguir jornada para Villa Real, foi visitado pelo desembargador Mourão
Mosqueira, e pelo corregedor do crime.
--Devemos á espionagem da policia--disse o corregedor--a novidade de
estar n'esta estalagem; um filho do meu antigo amigo, condiscipulo e
collega Domingos Correia Botelho. Aqui vimos dar-lhe um abraço, e
offerecer o nosso prestimo. Esta senhora é sua esposa?--continuou o
magistrado, reparando na açoriana.
--Não é minha esposa...--balbuciou Manoel--é... minha irmã.
--Sua irmã!...--disse Mosqueira--qual das tres? Ha cinco annos que as vi
em Vizeu, e grande mudança fez esta senhora, que não me recordo das suas
feições absolutamente coisa nenhuma! É a senhora D. Anna Amalia?
--Justamente--disse Manoel.
--Bella, lhe affirmo eu que está, minha senhora; mas fez-se um rosto
muito outro do que era!...
--Vieram vêr o infeliz Simão?--atalhou o corregedor.
--Sim, senhor... viemos vêr meu pobre irmão.
--Foi um raio que cahiu na familia aquelle rapaz!...-- ajuntou
Mosqueira--mas póde estar na certeza que a sentença não se executa; diga
a sua mãe que m'o ouviu da minha bôca. O meu tribunal está preparado
para lhe minorar a pena em dez annos de degredo para a India, e seu pae,
segundo me disse na passagem para Villa Real, já preparou as coisas na
supplicação e no desembargo do paço, não obstante o morto lá ter
parentes poderosos nas duas instancias. Quizeramos absolvêl-o, e
restituil-o á sua família; mas tanto é impossível. Simão matou, e
confessa soberbamente que matou. Não consente mesmo que se diga que em
defeza o fez. É um doido desgraçado com sentimentos nobilissimos! Chovem
cartas de empenho a favor do Albuquerque. Pedem a cabeça do pobre rapaz
com uma sem-ceremonia que indigna o animo.
--E essa menina que foi a causa da desgraça?--perguntou Manoel.
--Isso é uma heroina!--respondeu o corregedor do crime--Davam-na já por
morta quando Simão chegou aqui. Desde que soube das probabilidades da
commutação da pena, deu um pontapé na morte, e está salva, segundo me
disse o medico.
--Conhece-a muito bem, minha senhora?--disse o desembargador á dama,
supposta irmã de Manoel.
--Muito bem--respondeu ella, relanceando os olhos ao amante.
--Dizem que é formosissima!
--De certo--acudiu Manoel--é formosissima.
--Muito bem--disse o corregedor, erguendo-se.--Leve este abraço ao pae,
e diga-lhe que o condiscipulo cá está leal e dedicado como sempre. Eu
tenho de lhe escrever brevemente.
--E outro abraço a sua virtuosa mãe--acerescentou o desembargador.
--Vou desconfiado!--disse o Mosqueira ao collega--Manoel Botelho tinha,
ha coisa d'um anno, fugido para Hespanha com uma senhora casada. Aquella
mulher, que vimos, não é irmã d'elle.
--Pois se nos mentiu é mariola, por nos obrigar a cortejar uma
concubina!... Eu me informarei...--disse o corregedor, offendido no seu
austero pundonor.
E no proximo correio, escrevendo a Domingos Botelho, dizia no periodo
final: «Tive o gosto de conhecer teu filho Manoel, e uma de tuas filhas;
por elle te mandei um abraço, e por ella te mandaria outro, se fosse
modo ensinarem velhos a meninas bonitas como se dão os abraços nos
paes.»
Estava já Manoel em casa de seus avós, e cuidava em trastejar uma
modesta casa para a açoriana, auxiliado por sua bondosa e indulgente
mãe. O pae fôra informado da vinda, e dissera que não queria vêr o
filho, avisando-o de que era considerado desertor de cavallaria seis,
desde que abandonára os estudos, onde estava com licença.
Recebeu depois a carta do corregedor do crime, e mandou immediata e
secretamente devassar se em Villa Real estava a senhora que indicava a
carta. A espionagem deu-a como certa na estalagem, em quanto Manoel
Botelho cuidava nos adornos de uma casa. Escreveu o magistrado ao juiz
de fóra, e este mandou chamar á sua presença a mulher suspeita, e ouviu
d'ella a sua historia sincera e lagrimosamente contada. Condoeu-se o
juiz, e revelou ao collega as suas averiguações. Domingos Botelho foi a
Villa Real, e hospedou-se em casa do juiz de fóra, onde a senhora foi
novamente chamada, sendo que ao mesmo tempo o general da provinda
lavrava ordem de prisão para o cadete desertor de cavallaria de
Bragança.
A açoriana, em vez do juiz, encontrou um feio homem, de carrancuda
sombra, e apparencias de intenções sinistras.
--Eu sou pae de Manoel--disse Domingos Botelho--Sei a historia da
senhora. O infame é elle. V. s.^a é a victima. O castigo da senhora
principiou desde o momento em que a sua consciencia lhe disse que
praticou uma acção indigna. Se a consciencia lh'o não disse ainda, ella
lh'o dirá. D'onde é?
--Da ilha do Fayal--respondeu tremula a dama.
--Tem familia?
--Tenho mãe e irmãs.
--Sua mãe aceital-a-ia se a senhora lhe pedisse abrigo?
--Creio que sim.
--Sabe que Manoel é um desertor, que a estas horas está prêso ou
fugitivo?
--Não sabia...
--Quer isto dizer que a senhora não tem protecção de alguem.
A pobre mulher soluçava, abafada por ancias, e debulhada em lagrimas.
--Porque não vai para sua mãe?
--Não tenho recursos alguns--respondeu ella.
--Quer partir hoje mesmo? Á porta da estalagem encontrará uma liteira, e
uma criada para acompanhal-a até ao Porto. Lá entregará uma carta. A
pessoa a quem escrevo lhe cuidará da passagem para Lisboa. Em Lisboa
outra pessoa a levará a bordo da primeira embarcação que sahir para os
Açores. Estamos combinados? Aceita?
--E beijo as mãos de v. s.^a... Uma desgraçada como eu não podia esperar
tanta caridade.
Poucas horas depois a esposa do medico....
--Que tinha morrido de paixão e vergonha, talvez!--exclama uma leitora
sensivel.
Não, minha senhora; o estudante continuava n'esse anno a frequentar a
Universidade; e como tinha já vasta instrucção em pathologia, poupou-se
á morte da vergonha, que é uma morte inventada pelo visconde de A.
Garrett no _Fr. Luiz de Souza_, e á morte de paixão, que é outra morte
inventada pelos namorados nas cartas despeitosas, e que não pega nos
maridos a quem o seculo dotou d'uns longes de philosophia, philosophia
grega e romana, porque bem sabem que os philosophos da antiguidade davam
por mimo as mulheres aos seus amigos, quando os seus amigos por favor
lh'as não tiravam. E esta philosophia, hoje então...[6] Pois o medico
não morreu, nem sequer desmedrou, ou levou _r_ significativo de
preoccupação do animo insensivel ás amenidades da therapeutica.
A esposa, inquestionavelmente muito mais alquebrada e valetudinaria que
seu esposo, lavada em pranto, morta de saudades, sem futuro, sem
esperanças, sem voz humana que a consolasse, entrou na liteira, e chegou
ao Porto, onde procurou o corregedor do crime para entregar-lhe uma
carta do doutor Domingos Botelho. Um periodo d'esta carta dizia assim:
«Déste-me noticia d'uma filha, que eu não conhecia, nem reconheço. A mãe
d'esta senhora está no Fayal, para onde ella vai. Cuida tu, ou manda
cuidar no seu transporte para Lisboa, e encarrega ali alguem de correr
com a passagem d'ella para os Açores no primeiro navio. A mim me darás
conta das despezas. Meu filho Manoel teve ao menos a virtude de não
matar ninguem para se constituir amante. Do modo como correm os tempos,
muito virtuoso é um rapaz que não mata o marido da mulher que ama. Vê se
consegues do general, que está ahi, perdão para o rapaz, que é desertor
de cavallaria seis, e me consta que está escondido em casa de um
parente. Em quanto a Simão, creio que não é possivel salval-o do degredo
temporario... É uma lança em Africa livral-o da forca. Em Lisboa
movem-se grandes potencias contra o desgraçado, e eu estou malvisto do
intendente geral por abandonar o logar... etc.»
Partiu para Lisboa a açoriana, e d'ali para a sua terra, e para o abrigo
de sua mãe, que a julgára morta, e lhe deu annos de vida, se não ditosa,
socegada e desilludida de chimeras.
Manoel Botelho, obtido o perdão pela preponderancia do corregedor do
crime, mudou de regimento para Lisboa, e ahi permaneceu até que,
fallecido seu pae, pediu a baixa, e voltou á provincia.


VII.

João da Cruz, no dia 4 de Agosto de 1805, sentou-se á mesa com triste
aspecto e nenhum appetite do almoço.
--Não comes, João?--disse-lhe a cunhada.
--Não passa d'aqui o bocado--respondeu elle, pondo o dedo nos
gorgomilos.
--Que tens tu?
--Tenho saudades da rapariga... Dava agora tudo quanto tenho para a vêr
aqui ao pé de mim com aquelles olhos que pareciam ir direitos aos
desgostos que um homem tem no seu interior. Mal hajam as desgraças da
minha vida que m'a fizeram perder, Deus sabe se para pouco, se para
sempre!... Se eu não tivesse dado o tiro no almocreve, não vinha a ficar
em obrigação ao corregedor, e não se me dava que o filho vivesse ou
morresse...
--Mas se tens saudades--atalhou a senhora Josefa--manda buscar a
rapariga, tem-l'a cá algum tempo, e torna depois para onde ao senhor
Simão.
--Isso não é d'homem que põe navalha na cara, Josefa. O rapaz, se ella
lhe falta, morre de pasmo dentro d'aquelles ferros. Isto é venêta que me
deu hoje... Sabes que mais? leve a breca o dinheiro: ámanhã vou ao
Porto.
--Pois isso é o que tu deves fazer.
--Está dito! Quem cá ficar que o ganhe. Vão-se os anneis e fiquem os
dedos. Por ora tem-se resistido a tudo com o meu braço. A rapariga, se
ficar com menos, lá se avenha. Assim o quer, assim o tenha.
Reanimou-se a physionomia do mestre ferrador, e como que os impeços da
garganta se iam removendo á medida que planisava a sua ida ao Porto.
Acabára de almoçar, e ficára scismatico, encostado á mesa do escano.
--Ainda estás malucando?!--tornou Josefa.
--Parece coisa do demonio, mulher!... A rapariga estará doente ou morta?
--Anjo bento da Santíssima Trindade!--exclamou a cunhada, erguendo as
mãos--que dizes tu, João!
--Estou cá por dentro negro como aquella sartã!
--Isso é flato, homem! vai tomar ar, trabalha um poucaxinho para
espaireceres.
João da Cruz passou ao coberto onde tinha o armario da ferragem e a
bigorna, e começou a atarracar cravos.
Alguns conhecidos tinham passado, palavreando com elle consoante
costumavam, e achavam-no taciturno e nada para graças.
--Que tens tu, João?--dizia um.
--Não tenho nada. Vai á tua vida, e deixa-me, que não estou para lérias.
Outro parava e dizia:
--Guarde-o Deus, senhor João.
--E a vocemecê tambem. Que novidade ha?
--Não sei nada.
--Pois então vá com nossa Senhora, que eu estou cá de candeias ás
avessas.
O ferrador largava o martello; sentava-se aos poucos no tronco, e coçava
a cabeça com frenesi. Depois recomeçava novamente, e tão alheado o
fazia, que estragava o cravo, ou martellava os dedos.
--Isto é coisa do diabo!--exclamou elle; e foi á cosinha procurar a
pichorra, que emborcou como qualquer elegante de paixões ethereas se
aturde com absyntho--Hei de afogar-te, coisa má, que me estás apertando
a alma!--continuou o ferrador, sacudindo os braços, e batendo o pé no
soalho.
Voltou ao coberto a tempo que um viandante ia passando sobre a sua
possante mula. Envolvia-se o cavalleiro n'um amplo capote á moda
hespanhola, sem embargo da calma que fazia. Viam-se-lhe as botas de
coiro cru com esporas amarellas afiveladas, e o chapéo derrubado sobre
os olhos.
--Ora viva!--disse o passageiro.
--Viva!--respondeu mestre João, relanceando os olhos pelas quatro patas
da mula, a vêr se tinha obra em que entreter o espirito--A mula é de
ropia e chibança!
--Não é má. Vocemecê é que é o senhor João da Cruz?
--Para o servir.
--Venho aqui pagar-lhe uma divida.
--A mim? o senhor não me deve nada que eu saiba.
--Não sou eu que devo; é meu pae, e elle foi que me encarregou de lhe
pagar.
--E quem é seu pae?
--Meu pae era um recoveiro de Garção, chamado Bento Machado.
Proferida metade d'estas palavras, o cavalleiro afastou rapidamente as
bandas do capote, e desfechou um bacamarte no peito do ferrador. O
ferido recuou, exclamando:
--Mataram-me!... Marianna, não te vejo mais!...
O assassino teria dado cincoenta passos a todo o galope da espantada
mula, quando João da Cruz, debruçado sobre o banco, arrancava o ultimo
suspiro com a cara posta no chão, d'onde apontára ao peito do almocreve
dez annos antes.
Os caminheiros, que perpassaram pelo cavalleiro inadvertidamente,
ajuntaram-se em redor do cadaver. Josefa acudiu ao estrondo do tiro e já
não ouviu as ultimas palavras de seu cunhado. Quiz transportal-o para
dentro, e correr a chamar cirurgião; mas um cirurgião estava no
ajuntamento, e declarou morto o homem.
--Quem o matou?--exclamavam trinta vozes a um tempo.
N'esse mesmo dia vieram justiças de Vizeu lavrar auto e devassar: nenhum
indicio lhes deu o fio do mysterioso assassinio. O escrivão dos orphãos
inventariou os objectos encontrados, e fechou as portas quando os sinos
corriam o derradeiro dobre ao cahir da lousa sobre João da Cruz.
Deus terá descontado, nos instinctos sanguinarios do teu temperamento, a
nobreza de tua alma! Pensando nas incoherencias da tua indole, homem que
me explicas a providencia, assombra-me as caprichosas antítheses que a
mão de Deus infunde em alentos na creatura. Dorme o teu somno infinito,
se nenhum outro tribunal te cita a responder pelas vidas que tiraste, e
pelo uso que fizeste da tua. Mas se ha estancia de castigo e de
misericordia, as lagrimas de tua filha terão sido, na presença do Juiz
Supremo, os teus merecimentos.
Fez Josefa escrever a Marianna, noticiando-lhe a morte de seu pae, mas
sobrescriptou a carta a Simão Botelho, para maior segurança. Estava
Marianna no quarto do prêso, quando a carta lhe foi entregue.
--Não conheço a letra, Marianna... E a obreia é preta...
Marianna examinou o sobrescripto, e empallideceu.
--Eu conheço a letra--disse ella--é do Joaquim da loja.
--Abra depressa, senhor Simão... Meu pae morreria?
--Que lembrança! Pois não teve ha tres dias carta d'elle? E não lhe
disse que estava bom?
--Isso que tem?... Veja quem assigna.
Simão buscou a assignatura, e disse:
--_Josefa Maria_... É sua tia que lhe escreve.
--Leia... leia... que diz ella?
O prêso lia mentalmente, e Marianna instou:
--Leia alto, por quem é, senhor Simão, que estou a tremer... e v. s.^a
descora... que é, meu Deus?
Simão deixou cahir a carta, e sentou-se prostrado de animo. Marianna
correu a levantar a carta, e elle, tomando-lhe a mão, murmurou:
--Pobre amigo!... choremol-o ambos... choremol-o, Marianna, que o
amavamos como filhos...
--Pois morreu?--bradou ella.
--Morreu... mataram-no!...
A moça expediu um grito estridulo, e foi com o rosto contra os ferros
das grades. Simão inclinou-a para o seio, e disse-lhe com muita ternura
e vehemencia:
--Marianna, lembre-se que é o meu amparo. Lembre-se de que as ultimas
palavras de seu pae deviam ser a recommendar-lhe o desgraçado que recebe
das suas mãos bemfeitoras o pão da vida. Marianna, minha querida irmã,
vença a dôr que póde matal-a, e vença-a por amor de mim. Ouve-me, amiga
da minha alma?
Marianna exclamou:
--Deixe-me chorar, por caridade!... Ai! meu Deus, se eu torno a
endoidecer!
--Que seria de mim!--atalhou Simão--A quem deixaria Marianna o seu nobre
coração para me suavisar este martyrio? Quem me levaria ao desterro uma
palavra amiga que me animasse a crêr em Deus!... Não ha de enlouquecer,
Marianna, porque eu sei que me estima, que me ama, e que affrontará com
coragem a maior desgraça, que ainda póde suggerir-me o inferno! Chore,
minha irmã, chore; mas veja-me através das suas lagrimas!


VIII.

Marianna, decorridos dias, foi a Vizeu recolher a herança paterna. Em
proporção com o seu nascimento bem dotada a deixára o laborioso
ferrador. Afóra os campos, cujo rendimento bastaria á sustentação
d'ella, Marianna levantou a lage conhecida da lareira, e achou os
quatrocentos mil réis com que João da Cruz contava para alimentar as
regalias da sua decrepitude inerte. Vendeu Marianna as terras, e deixou
a casa a sua tia, que nascêra n'ella, e onde seu pae casára.
Liquidada a herança tornou para o Porto, e depositou o seu cabedal nas
mãos de Simão Botelho, dizendo que receava ser roubada na casinha em que
vivia, fronteira á Relação, na rua de S. Bento.
--Porque vendeu as suas terras, Marianna?--perguntou o prêso.
--Vendi-as, porque não faço tenção de lá voltar.
--Não faz?... Para onde ha de ir Marianna, indo eu degredado? Fica no
Porto?
--Não, senhor, não fico--balbuciou ella como admirada d'esta pergunta, á
qual o seu coração julgava ter respondido de muito.
--Pois então!
--Vou para o degredo, se v. s.^a me quizer na sua companhia.
Fingindo-se surprendido, Simão seria ridiculo aos seus proprios olhos.
--Esperava essa resposta, Marianna, e sabia que me não dava outra. Mas
sabe o que é o degredo, minha amiga?
--Tenho ouvido dizer muitas vezes o que é, senhor Simão... É uma terra
mais quente que a nossa; mas tambem lá ha pão, e vive-se...
--E morre-se abrazado ao sol doentio d'aquelle ceu, morre-se de saudades
da patria, morre-se muitas vezes dos maus tratos dos governadores das
galés, que tem um condemnado na conta de féra.
--Não ha de ser tanto assim. Eu tenho perguntado muito por isso á mulher
d'um prêso que cumpriu dez annos de sentença na India, e viveu muito bem
em uma terra chamada Solor, onde teve uma loja; e, se não fossem as
saudades, diz ella que não vinha, porque lhe corria melhor por lá a vida
que por cá. Eu, se fôr por vontade do senhor Simão, vou pôr uma lojinha
tambem. Verá como eu amenho a vida. Affeita ao calor estou eu; v. s.^a
não está; mas não ha de ter precisão, se Deus quizer, de andar ao tempo.
--E supponha, Marianna, que eu morro apenas chegar ao degredo?
--Não fallemos n'isso, senhor Simão...
--Fallemos, minha amiga, porque eu hei de sentir á hora da morte a
pesar-me na alma a responsabilidade do seu destino... Se eu morrer?
--Se o senhor morrer, eu saberei morrer tambem.
--Ninguem morre quando quer, Marianna...
--Oh! se morre!... e vive tambem quando quer... Não m'o disse já a
senhora D. Thereza?
--Que lhe disse ella?
--Que estava a passar quando v. s.^a chegou ao Porto, e que a sua
chegada lhe dera vida. Pois ha muita gente assim, senhor Simão... E mais
a fidalga é fraquinha, e eu sou mulher do campo, vezada a todos os
trabalhos; e, se fosse preciso metter uma lanceta no braço e deixar
correr o sangue até morrer, fazia-o como quem o diz.
--Oiça-me, Marianna, que espera de mim?
--Que hei de eu esperar!... Porque me diz isso o senhor Simão?
--Os sacrificios que Marianna tem feito e quer fazer por mim só podiam
ter uma paga, embora m'os não faça esperando recompensa. Abre-me o seu
coração, Marianna?
--Que quer que eu lhe diga?
--Conhece a minha vida tão bem como eu, não é verdade?
--Conheço, e que tem isso?
--Sabe que eu estou ligado pela vida e pela morte áquella desgraçada
senhora?
--E d'ahi? quem lhe diz menos d'isso?!
--Os sentimentos do coração só os posso agradecer com amizade.
--E eu já lhe pedi mais alguma coisa, senhor Simão?!
--Nada me pediu, Marianna; mas obriga-me tanto, que me faz mais infeliz
o pêso da obrigação.
Marianna não respondeu, chorou.
--E porque chora?--tornou Simão carinhosamente.
--Isso é ingratidão.... e eu não mereço que me diga que o faço infeliz.
--Não me comprehendeu... Sou infeliz por não poder fazêl-a minha mulher.
Eu queria que Marianna podésse dizer: «Sacrifiquei-me por meu marido; no
dia em que o vi ferido em casa de meu pae, velei as noites ao seu lado;
quando a desgraça o encerrou entre ferros, dei-lhe o pão, que nem seus
ricos paes lhe davam; quando o vi sentenciado á forca, endoideci; quando
a luz da minha razão me tornou n'um raio de compaixão divina, corri ao
segundo carcere, alimentei-o, vesti-o, e adornei-lhe as paredes nuas do
seu antro; quando o desterraram, acompanhei-o, fiz-me a patria d'aquelle
pobre coração, trabalhei á luz do sol homicida para elle se resguardar
do clima, do trabalho, e do desamparo, que o matariam...»
O espirito de Marianna não podia altear-se á expressão do prêso; mas o
coração sinil, esse adivinhava-lhe as ideias. E a pobre moça sorria e
chorava a um tempo. Simão continuou:
--Tem vinte e seis annos, Marianna. Viva, que esta sua existencia não
póde ser senão um supplicio occulto. Viva, que não deve dar tudo a quem
lhe não póde restituir senão as lagrimas que lhe eu tenho custado. O
tempo do meu desterro não póde estar longe; esperar outro melhor destino
seria uma loucura. Se eu ficasse na patria, livre ou prêso, pediria a
minha irmã que completasse a obra generosa da sua compaixão, esperando
que eu lhe désse a ultima palavra da minha vida. Mas não vá comigo á
África ou á India, que sei que voltará sósinha á pátria depois que eu
fechar os olhos. Se o meu degredo fôr temporario, e a morte me guardar
para maiores naufragios, voltarei á patria um dia. E preciso que
Marianna aqui esteja para eu poder dizer que venho para a minha familia,
que tenho aqui uma alma extremosa que me espera. Se a encontrar com
marido e filhos, a sua familia será a a minha. Se a vir livre e só, irei
para a companhia de minha irmã. Que me responde, Marianna?
A filha de João da Cruz, erguendo o olhos do pavimento, disse:
--Eu verei o que hei de fazer quando o senhor Simão partir para o
degredo....
--Pense desde já, Marianna.
--Não tenho que pensar... A minha tenção está feita...
--Falle, minha amiga, diga qual é a sua tenção.
Marianna hesitou alguns segundos, e respondeu serenamente:
--Quando eu vir que não lhe sou precisa, acabo com a vida. Cuida que eu
ponho muito em me matar? Não tenho pae, não tenho ninguem, a minha vida
não faz falta a pessoa nenhuma. O senhor Simão póde viver sem mim?
paciencia!... eu é que não posso...
Sosteve o complemento da ideia como quem se peja d'uma ousadia. O prêso
apertou-a nos braços estremecidamente, e disse:
--Irá, irá comigo, minha irmã. Pense muito no infortunio de nós ambos
d'ora em diante, que elle é commum, é um veneno que havemos de tragar
unidos, e lá teremos uma sepultura de terra tão pesada como a da patria.
Desde este dia, um secreto jubilo endoidecia o coração de Marianna. Não
inventemos maravilhas de abnegação. Era de mulher o coração de Marianna.
Amava como a fantasia se compraz de idear o amor d'uns anjos que batem
as azas de baile em baile, e apenas quedam o tempo preciso para se
fazerem vêr e adorar a um reflexo de poesia apaixonada. Amava, e tinha
ciumes de Thereza, não ciumes que se refrigeram na expansão ou no
despeito, mas infernos surdos, que não rompiam em lavareda aos labios,
porque os olhos se abriam promptos em lagrimas para apagal-a. Sonhava
com as delicias do desterro, porque voz humana alguma não iria lá gemer
á cabeceira do desgraçado. Se a forçassem a resignar a sua ingloria
missão de irmã d'aquelle homem, resignal-a-ia, dizendo: «Ninguem o amará
como eu; ninguém lhe adoçará as penas tão desinteresseiramente como o eu
fiz.»
E, comtudo, nunca vacillou em aceitar da mão de Thereza ou da mendiga as
cartas para Simão. A cada vinco de dôr que a leitura d'aquellas cartas
sulcava na fronte do prêso, Marianna, que o espreitava disfarçada,
tremia em todas as fibras do seu coração, e dizia entre si: «para que ha
de aquella senhora amargurar-lhe a vida!»
E amargurava acerbamente a desditosa menina!
Resurgiram n'aquella alma esperanças, que não deviam durar além do tempo
necessario para que a desillusão lhe acrisolasse o infortunio. Imaginara
ella a liberdade, o perdão, o casamento, a ventura, a corôa do seu
martyrio. As suas amigas matizavam-lhe a tela da fantasia, umas porque
não conheciam a atroz realidade das coisas, outras porque fiavam em
demasia nas orações das virtuosas do mosteiro. Se os vaticinios das
prophetisas se realisassem, Simão sahiria da cadêa, Thadeu de
Albuquerque morreria de velhice e de raiva, o casamento seria um acto
indisputavel, e o ceu dos desgraçados principiaria n'este mundo.
Porém Simão Botelho, ao cabo de cinco mezes de carcere, já sabia o seu
destino, e achára util prevenir Thereza, para não succumbir ao
inevitavel golpe da separação. Bem queria elle alumiar com esperanças a
perspectiva negra do degredo; mas froixos e frios eram os allivios em
que não era parte a convicção nem o sentimento. Thereza não podia sequer
illudir-se, porque tinha no peito um despertador que a estava acordando
sempre para a hora final, embora o semblante enganasse a condolencia dos
estranhos.
E então era o expandir-se em lastimas nas cartas que escrevia ao seu
amigo; invocações a Deus, e sacrilegas apostrophes ao destino; branduras
de paciencia e impetos de cólera contra o pae; o afferro á vida que lhe
foge, e súpplicas á morte, que a não livra das torturas da alma e do
corpo.
No termo de sete mezes o tribunal de segunda instancia commutou a pena
ultima em dez annos de degredo para a India. Thadeu de Albuquerque
acompanhou a Lisboa a appellação, e offereceu a sua casa a quem
mantivesse de pé a forca de Simão Botelho. O pae do condemnado, segundo
o assustador aviso que seu filho Manoel lhe dera, foi para Lisboa luctar
com o dinheiro e as ponderosas influencias que Thadeu de Albuquerque
grangeára na casa da supplicação e no desembargo do paço. Venceu
Domingos Botelho, e instigado mais do seu capricho, que do amor
paternal, alcançou do principe regente a graça de cumprir o condemnado a
sua sentença na prisão de Villa Real.
Quando intimaram a Simão Botelho a decisão do recurso e a graça do
regente, o prêso respondeu que não aceitava a graça; que queria a
liberdade do degredo; que protestaria perante os poderes judiciarios
contra um favor que não implorára, e que reputava mais atroz que a
morte.
Domingos Botelho, avisado da rejeição do filho, respondeu que fizesse
elle a sua vontade; mas que a sua victoria d'elle, sobre os protectores
e os corrompidos pelo ouro do fidalgo de Vizeu, estava plenamente
obtida.
Foi aviso ao intendente geral da policia, e o nome de Simão Botelho foi
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