Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 04

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O perseguido, quando tal ouviu, tirou do maior perigo coragem para
fugir, rompendo a espessura e saltando a parede da tapada para o campo
de restolho em que o arreeiro andava apanhando palha, e Simão esperava o
desfecho da montaria. Correram a um tempo o arreeiro e o academico sobre
elle. O fugitivo, sentindo-se alcançado, lançou-se de joelhos e mãos
erguidas, pedindo perdão, e dizendo que o amo o obrigára áquella
desgraça. Já a coronha do bacamarte do arreeiro lhe ia direita ao peito,
quando Simão lhe reteve o braço.
--Não se bate assim n'um homem!--disse o moço--Levanta-te, rapaz!
--Eu não posso, senhor. Tenho uma perna quebrada, e estou aleijado para
a minha vida.
N'este comenos chegou o ferrador, e exclamou:
--Pois este tratante ainda está vivo!
E correu sobre elle com o podão.
--Não mate o homem, senhor João!--disse o filho do corregedor.
--Que o não mate! essa é de cabo de esquadra! Com que então o fidalgo
quer pagar-me com a forca o favor de o acompanhar... eim?
--Com a forca!?--atalhou Simão.
--Podéra não! Quer que este homem fique para ir contar a historia? Acha
bonito? Lá v. s.^a, como é filho de ministro, não terá perigo; mas eu,
que sou ferrador, posso contar que d'esta vez tenho o baraço no pescoço.
Não me faz geito o negocio. Deixe-me cá com o homem...
--Não o mate, senhor João; peço-lhe eu que o deixe ir. Uma testemunha
não nos póde fazer mal.
--O quê?--redarguiu o ferrador--v. s.^a saberá muito, mas de justiça não
sabe nada, e ha de perdoar o meu atrevimento. Basta uma só testemunha
para guiar a justiça na devassa. Ás duas por tres, uma testemunha de
vista, e quatro de ouvir dizer, com o fidalgo de Castro-d'Aire a mexer
os pausinhos, é forca certa, como dois e dois serem quatro.
--Eu não digo nada; não me matem, que eu nem torno a ir para
Castro-d'Aire--exclamou o homem.
--Deixe-o ficar, João da Cruz... vamos embora...
--Isso!--acudiu o ferrador--chame-me João da Cruz, para este maroto
ficar bem certo de que sou o João da Cruz!... Com effeito, não sei o que
me parece v. s.^a querer deixar com vida um alma do diabo que lhe deu um
tiro para o matar!
--Pois sim, tem você razão; mas eu não sei castigar miseraveis que me
não resistem.
--E se elle o tivesse matado, castigava-o? Responda a isto, senhor
doutor!
--Vamos embora--tornou Simão--deixemos para ahi esse miseravel.
Mestre João scismou alguns momentos, coçando a cabeça, e resmungou com
descontentamento:
--Vamos lá... Quem o seu inimigo poupa, nas mãos lhe morre.
Tinham já sahido do plaino e saltado a tapada, e iam descendo para a
estrada, quando o ferrador exclamou:
--Lá me ficou a minha clavina encostada á sebe. Vão indo, que eu venho
já.
O arreeiro conduzia o cavallo, que pacificamente estivera tozando a
relva das paredes marginaes da estrada, quando Simão ouviu gritos.
Conjecturou com certeza o que era.
--O João lá está a fazer justiça!--disse o arreeiro. Deixál-o lá, meu
amo, que elle é homem que sabe o que faz.
João da Cruz appareceu d'ahi a pouco, limpando com fentos o podão
ensanguentado.
--Você é cruel, senhor João!--disse o academico.
--Não sou cruel--disse o ferrador--o fidalgo está enganado comigo; é que
diz lá o dictado, morrer por morrer, morra meu pae que é mais velho.
Tanto faz matar um como dois. Quando se está com a mão na massa, tanto
faz amassar um alqueire como tres. As obras devem ser acabadas, ou então
o melhor é não se metter a gente n'ellas. Agora, levo a minha
consciencia socegada.
A justiça que prove, se quizer; mas não ha de ser por que lh'o digam
aquelles dois que eu mandei de presente ao diabo.
Simão teve um instante de horror do homicida, e de arrependimento de se
ter ligado com tal homem.


VII.

O ferimento de Simão Botelho era melindroso de mais para obedecer
promptamente ao curativo do ferrador, enfronhado em aphorismos de
alveitaria. A bala passára-lhe de revez a porção muscular do braço
esquerdo; mas algum vaso importante rompêra, que não bastavam compressas
a vedar-lhe o sangue. Horas depois de ferido, o academico deitou-se
febril, deixando-se medicar pelo ferrador. O arreeiro partiu para
Coimbra, encarregado de espalhar a noticia de ter ficado no Porto Simão
Botelho.
Mais que as dôres e os receios da amputação, o mortificava a ancia de
saber novas de Thereza. João da Cruz estava sempre de sobre-rolda,
precavido contra algum procedimento judicial por suspeitas d'elle. As
pessoas que vinham de feirar na cidade contavam todas que dois homens
tinham apparecido mortos, e constava serem criados d'um fidalgo de
Gastro-d'Aire. Ninguem, porém, ouvira imputar o assassinio a
determinadas pessoas.
Na tarde d'esse dia recebeu Simão a seguinte carta de Thereza:
«Deus permitia que tenhas chegado sem perigo a casa d'essa boa gente. Eu
não sei o que se passa, mas ha coisa mysteriosa que eu não posso
adivinhar. Meu pae tem estado toda a manhã fechado com o primo, e a mim
não me deixa sahir do quarto. Mandou-me tirar o tinteiro; mas eu
felizmente estava prevenida com outro. Nossa Senhora quiz que a pobre
viesse pedir esmola debaixo da janella do meu quarto; senão eu nem tinha
modo de lhe dar signal para ella esperar esta carta. Não sei o que ella
me disse. Fallou-me em criados mortos; mas eu não pude entender... Tua
mana Rita está-me acenando por traz dos vidros do teu quarto...
Disse-me tua mana que os moços de meu primo tinham apparecido mortos
perto da estrada. Agora já sei tudo. Estive para lhe dizer que tu ahi
estás; mas não me deram tempo. Meu pae de hora a hora dá passeios no
corredor, e solta uns ais muito altos.
Ó meu querido Simão, que será feito de ti?... Estarás tu ferido? Serei
eu a causa da tua morte?
Diz-me o que souberes. Eu já não peço a Deus senão a tua vida. Foge
d'esses sitios; vai para Coimbra, e espera que o tempo melhore a nossa
situação.
Tem confiança n'esta desgraçada, que é digna da tua dedicação.... Chega
a pobre: não quero demoral-a mais... Perguntei-lhe se se dizia de ti
alguma coisa, e ella respondeu que não. Deus o queira.»
Respondeu Simão a querer tranquillisar o animo de Thereza. Do seu
ferimento fallava tão de passagem, que dava a suppôr que nem o curativo
era necessario. Promettia partir para Coimbra logo que o podesse fazer
sem receio de Thereza soffrer na sua ausencia. Animava-a a chamal-o,
assim que as ameaças de convento passassem a ser realisadas.
Entretanto Balthazar Coutinho, chamado ás authoridades judiciarias para
esclarecer a devassa instaurada, respondeu que effectivamente os homens
mortos eram seus criados, de quem elle e sua familia se acompanhára de
Castro-d'Aire. Accrescentou que não sabia que elles tivessem inimigos em
Vizeu, nem tinha contra alguem as mais leves presumpções.
Os mais proximos visinhos da localidade, onde os cadaveres tinham
apparecido, apenas depunham que, alta noite, tinham ouvido dois tiros ao
mesmo tempo, e outro, pouco depois. Um apenas adiantava coisa que não
podia alumiar a justiça, e vinha a ser que o mato, nas visinhanças do
local, fôra chapotado. N'esta escuridade a justiça não podia dar passo
algum.
Thadeu de Albuquerque era connivente no attentado contra a vida de Simão
Botelho. Fôra seu o alvitre, quando o sobrinho denunciou a causa das
sahidas frequentes de Thereza, na noite do baile. Tanto ao velho como ao
morgado convinha apagar algum indicio que podesse envolvêl-os no
mysterio d'aquellas duas mortes. Os criados não mereciam a pena d'um
desforço que implicasse o desdouro de seus amos. Provas contra Simão
Botelho não podiam adduzil-as. Áquella hora o suppunham elles a caminho
de Coimbra, ou refugiado em casa de seu pae. Restava-lhes ainda a
esperança de que elle tivesse sido ferido, e fosse acabar longe do local
em que o tinham assaltado.
Em quanto a Thereza, resolveu Albuquerque encerral-a n'um convento do
Porto, e escolheu Monchique, onde era prioreza uma sua proxima parenta.
Escreveu á prelada para lhe preparar aposentos, e ao seu procurador para
negociar as licenças ecclesiasticas para a entrada. Todavia, receando o
velho algum incidente no espaço de tempo que medeava até se conseguirem
as licenças, resolveu não ter comsigo Thereza, e solicitou a retenção
temporaria d'ella n'um convento de Vizeu.
Acabára Thereza de lêr e esconder no seio a resposta de Simão Botelho,
que a pobre lhe enviára ao escurecer, pendente de uma linha, quando o
pae entrou no seu quarto, e a mandou vestir-se. A menina obedeceu,
tomando uma capa e um lenço.
--Vista-se como quem é: lembre-se que ainda tem os meus
appellidos--disse com severidade o velho.
--Cuidei que não era preciso vestir-me melhor para sahir á
noite...--disse Thereza.
--E a senhora sabe para onde vai?
--Não sei... meu pae.
--Então vista-se, e não me dê leis.
--Mas, meu pae, attenda-me um momento.
--Diga.
--Se a sua ideia é obrigar-me a casar com meu primo...
--E d'ahi?
--De certo não caso; morro, e morro contente; mas não caso.
--Nem elle a quer. A senhora é indigna de Balthazar Coutinho. Um homem
do meu sangue não aceita para esposa uma mulher que falla de noite aos
amantes nos quintaes. Vista-se depressa, que vai para um convento.
--Promptamente, meu pae. Esse destino lh'o pedi eu muitas vezes.
--Não quero reflexões. D'aqui a pouco appareça-me vestida. Suas primas
esperam-a para a acompanharem.
Quando se viu sósinha, Thereza debulhou-se em lagrimas, e quiz escrever
a Simão. Áquella hora quem lhe levaria a carta? Appellou para o retabulo
da Virgem, que ella fizera confidente do seu amor. Pediu-lhe de joelhos
que a protegesse, e désse forças a Simão para resistir ao golpe, e
guardar-lhe constancia através dos trabalhos que succedessem. Depois
vestiu-se, comprimindo contra o seio um embrulho em que levava o
tinteiro, o papel, e o massête das cartas de Simão. Sahiu do seu quarto,
relanceando os olhos lagrimosos para o painel da Virgem, e encontrando o
pae, pediu-lhe licença para levar comsigo aquella devota imagem.
--Lá irá ter--respondeu elle.--Se tivesse tanta vergonha como devoção,
seria mais feliz do que ha de ser.
Uma das primas, irmãs de Balthazar, chamou-a de parte, e segredou-lhe:
--Ó menina! estava ainda na tua mão dares remedio á desordem d'esta
casa...
--Qual remedio?!--perguntou Thereza com artificial seriedade.
--Diz a teu pae que não duvidas casar com o mano Balthazar.
--O primo Balthazar não me quer--replicou ella, sorrindo.
--Quem te disse isso, Therezinha?
--Disse-m'o meu pae.
--Deixa fallar teu pae, que está desatinado com o amor que te tem.
Queres tu que eu lhe falle?
--Para que?
--Para se remediar d'este modo a desgraça de todos nós.
--Estás a brincar, prima!--redarguiu Thereza.--Eu hei de ser tua
cunhada, quando não tiver coração. Teu mano tem a certeza de que eu amo
outro homem. Queria viver para elle; mas se quizerem que eu morra por
elle, abençoarei todos os meus algozes. Pódes dizer isto ao primo
Balthazar, e diz-lh'o antes que te esqueça.
--Então, vamos?!--disse o velho.
--Estou prompta, meu pae.
Abriu-se a portaria do mosteiro. Thereza entrou sem uma lagrima. Beijou
a mão de seu pae, que elle não ousou recusar-lhe na presença das
freiras. Abraçou suas primas, com semblante de regosijo; e, ao fechar-se
a porta, exclamou, com grande espanto das monjas:
--Estou mais livre que nunca. A liberdade do coração é tudo.
As freiras olharam-se entre si, como se ouvissem na palavra «coração»
uma heresia, uma blasphemia proferida na casa do Senhor.
--Que diz a menina?!--perguntou a prioreza, fitando-a por cima dos
oculos, e apanhando no lenço escarlate a distillação do esturrinho.
--Disse eu que me sentia aqui muito bem, minha senhora.
--Não diga minha senhora--atalhou a escrivã.
--Como hei de dizer?
--Diga «nossa madre prioreza.»
--Pois sim, nossa madre prioreza, disse eu que me sentia aqui muito bem.
--Mas quem vem para estas casas de Deus não vem para se sentir
bem--tornou a nossa madre prioreza.
--Não?!--disse Thereza com sincera admiração.
--Quem para aqui vem, menina, ha de mortificar o espirito, e deixar lá
fóra as paixões mundanas. Ora pois! Aqui está a nossa madre mestra de
noviças, a quem compete encaminhal-a e dirigil-a.
Thereza não redarguiu: fez um gesto de respeito á mestra de noviças, e
seguiu o caminho que a prelada lhe ia indicando.
A nossa madre entrou nos seus aposentos, e disse a Thereza que era sua
hospeda em quanto alli estivesse; e ajuntou que não sabia se seu pae
escolheria aquelle convento ou outro.
--Que importa que seja um ou outro?--disse Thereza.
--É conforme. Seu pae póde querer que a menina professe em ordem rica
das bentas ou bernardas.
--Professe!--exclamou Thereza.--Eu não quero ser freira aqui, nem
n'outra parte.
--A senhora ha de ser o que seu pae quizer que seja.
--Freira!? a isso não póde ninguem obrigar-me!--recalcitrou Thereza.
--Isso assim é--retorquiu a prioreza--mas como a menina tem de noviciado
um anno, sobra-lhe tempo para se habituar a esta vida, e verá que não ha
vida mais descansada para o corpo, nem mais saudavel para a alma.
--Mas a nossa madre--tornou Thereza, sorrindo, como se a ironia lhe
fosse habitual--já disse que a estas casas ninguem vem para se sentir
bem...
--É um modo de fallar, menina. Todos temos as nossas mortificações e
obrigações de côro e de serviços para que nem sempre o espirito está bem
disposto. Ora vês-a-hi. Mas em comparação do que lá vai pelo mundo, o
convento é um paraizo. Aqui não ha paixões nem cuidados que tirem o
somno, nem a vontade de comer, bemdito seja o Senhor! Vivemos umas com
as outras, como Deus com os anjos. O que uma quer, querem todas. Más
linguas é coisa que a menina não ha de achar aqui, nem intriguistas, nem
murmurações de soalheiro. Emfim, Deus fará o que fôr servido. Eu vou á
cosinha buscar a ceia da menina, e já volto. Aqui a deixo com a senhora
madre organista, que é uma pomba, e com a nossa mestra de noviças, que
sabe dizer melhor que eu o que é a virtude n'estas santas casas.
Apenas a prioreza voltou costas, disse a organista á mestra de noviças:
--Que grande impostora!
--E que estupida!--acudiu a outra.--A menina não se fie n'esta
trapalhona, e veja se seu pae lhe dá outra companhia em quanto cá
estiver, que a prioreza é a maior intriguista do convento. Depois que
fez sessenta annos, falla das paixões do mundo como quem as conhece por
dentro e por fóra. Em quanto foi nova, era a freira que mais escandalos
dava na casa; depois de velha era a mais ridicula, porque ainda queria
amar e ser amada; agora, que está decrepita, anda sempre este mostrengo
a fazer missões, e a curar indigestões.
Thereza, apesar de sua dôr, não pôde reprimir uma risada, lembrando-se
da _vida de Deus com anjos_ que as esposas do Senhor alli viviam, no
dizer da madre prioreza.
Pouco depois entrou a prelada com a ceia, e sahiram as duas freiras.
--Que lhe pareceram as duas religiosas que ficaram com a menina?--disse
ella a Thereza.
--Pareceram-me muito bem.
A velha distendeu os beiços matizados de meandros de esturrinho liquido,
e regougou:
--_Hum!_... está feito, está feito!... Ainda não são das peores; mas, se
fossem melhores, não se perdia nada... Ora vamos a isto, menina; aqui
tem duas pernas de gallinha, e um caldo que o podem comer os anjos.
--Eu não cômo nada, minha senhora--disse Thereza.
--Ora essa! não come nada!? Ha de comer; sem comer ninguem resiste.
Paixões!... que as leve o porco-sujo!... As mulheres é que ficam
logradas, e elles não tem que perder!... Que eu cá de mim, até ao
presente, Deus louvado, não sei o que sejam paixões; mas quem tem
cincoenta e cinco annos de convento, tem muita experiencia do que vê
penar ás outras doidibanas. E para não ir mais longe, estas duas, que
d'aqui sahiram, tem pagado bem o seu tributo á asneira, Deus me perdôe
se pécco. A organista tem já os seus quarenta bons, e ainda vai ao
locutorio derreter-se em finezas; a outra, apesar de ser mestra de
noviças á falta d'outra que quizesse sêl-o, se eu lhe não andasse com o
olho em cima, estragava-me as raparigas...
Este edificante discurso de caridade foi interrompido pela madre escrivã
que vinha, palitando os dentes, pedir á prelada um copinho de certo
vinho estomacal com que todas as noites era brindada.
--Estava eu a dizer a esta menina as peças que são a organista e a
mestra--disse a prioreza.
--Oh! são para o que lhe eu prestar! Lá foram ambas para a cella da
porteira. A esta hora está a menina a ser cortada por aquellas linguas,
que não perdoam a ninguem.
--Vaes tu vêr se ouves alguma coisa, minha flôr?--disse a prelada.
A escrivã, contente da missão, foi imperceptivelmente ao longo dos
dormitorios até parar a uma porta que não vedava o ruido estridente das
risadas.
No entanto dizia a prelada a Thereza:
--Esta escrivã não é má rapariga: só tem o defeito de se tomar da
pinguleta; depois não ha quem a ature. Tem uma boa tença, mas gasta tudo
em vinho, e tem occasiões de entrar no côro a fazer _ss_, que é mesmo
uma desgraça. Não tem outro defeito; é uma alma lavada, e amiga da sua
amiga. É verdade que ás vezes... (aqui a prelada ergueu-se a escutar nos
dormitorios, e fechou por dentro a porta) é verdade que, ás vezes,
quando anda azuratada, dá por paus e por pedras, e descobre os defeitos
das suas amigas. A mim já ella me assacou um aleive, dizendo que eu,
quando sahia a ares, não ia só a ares, e andava por lá a fazer o que
fazem as outras. Forte pouca vergonha! Lá que outra fallasse, vá; mas
ella, que tem sempre uns namorados pandilhas que bebem com ella na
grade, isso lá me custa; mas, emfim, não ha ninguem perfeito!... Boa
rapariga é ella... Se não fosse aquelle maldito vicio...
Como tocasse ao côro n'esta occasião, a veneranda prioreza bebeu o
segundo calice do vinho estomacal, e disse a Thereza que a esperasse um
quarto de hora, que ella ia ao côro, e pouco se demoraria. Tinha ella
sahido, quando a escrivã entrou a tempo que Thereza, com as mãos abertas
sobre a face, dizia em si: «Um convento, meu Deus! isto é que é um
convento!»
--Está sósinha?--disse a escrivã.
--Estou, minha senhora.
--Pois aquella grosseira vai-se embora, e deixa uma hospeda sósinha? Bem
se vê que é filha de funileiro!... Pois tinha tempo de ter prática do
mundo, que tem andado por lá que farte... Pois eu havia de ir ao côro;
mas não vou para lhe fazer companhia, menina.
--Vá, vá, minha senhora, que eu fico bem sósinha--disse Thereza, com a
esperança de poder desafogar em lagrimas a sua afflicção.
--Não vou, não!... A menina aqui estarrecia de mêdo; mas a prelada não
tarda ahi. Ella, se póde escapar-se do côro, não pára lá muito tempo. A
apostar que ella lhe esteve a fallar mal de mim?
--Não, minha senhora, pelo contrario...
--Ora diga a verdade, menina! Eu sei que esta cegonha não falla bem de
ninguem. Para ella tudo são libertinas e bebadas.
--Nada, não, minha senhora; nada me disse a respeito d'alguma freira.
--E se disse, deixal-a dizer. Ella o vinho não o bebe, suga-o, é uma
esponja viva. Em quanto a libertinagem, tomára eu tantos mil cruzados
como de amantes ella tem tido! Faz lá uma pequena ideia, menina!...
A escrivã bebeu um calice de vinho da sua prelada, e continuou:
--Faz lá uma pequena ideia! Ella é velhissima como a sé. Quando eu
professei já ella era velha como agora, com pouca differença. Ora, eu
sou freira ha vinte e seis annos; calcule a menina quantas arrobas de
esturrinho ella tem atulhado n'aquelles narizes! Pois olhe, quer me
creia, quer não, tenho-lhe conhecido mais de uma duzia de chichisbeos,
não fallando no padre capellão, que esse ainda agora lhe fornece a
garrafeira, á nossa custa, entende-se. É uma dissipadora dos rendimentos
da casa. Eu, que sou escrivã, é que sei o que ella rouba. Eu tenho
immensa pena de vêr a menina hospedada em casa d'esta hypocrita. Não se
deixe levar das imposturices d'ella, meu anjinho. Eu sei que seu pae lhe
mandou fallar, e a encarregou de a não deixar escrever, nem receber
cartas; mas olhe, minha filha, se quizer escrever, eu dou-lhe tinteiro,
papel, obreias e o meu quarto, se para lá quizer ir escrever. Se tem
alguem que lhe escreva, diga-lhe que mande as cartas em meu nome; eu
chamo-me Dionizia da Immaculada Conceição.
--Muito agradecida, minha senhora--disse Thereza, animada pelo
offerecimento.--Quem me déra poder mandar um recado a uma pobre que mora
no bêcco do...
--O que quizer, menina. Eu mando lá logo que fôr dia. Esteja descansada.
Não se fie de alguem, senão de mim. Olhe que a mestra de noviças e a
organista são duas falsas. Não lhe dê trela, que, se as admitte á sua
confiança, está perdida. Ahi vem a lêsma... Fallemos n'outra coisa...
A prelada vinha entrando, e a escrivã proseguiu assim:
--Não ha, não ha nada mais agradavel que a vida do convento, quando se
tem a fortuna de ter uma prelada como a nossa... Ai! eras tu, menina?
Olha, se estivessemos a fallar mal de ti!
--Eu sei que tu nunca fallas mal de mim--disse a prelada, piscando o
olho a Thereza.--Ahi está essa menina que diga o que eu lhe estive a
dizer das tuas boas qualidades...
--Pois o que eu disse de ti--respondeu soror Dionizia da Immaculada
Conceição--não precisas de perguntar, porque felizmente ouviste o que eu
estava dizendo. Oxalá que se podesse dizer o mesmo das outras que
deshonram a casa, e trazem aqui tudo intrigado n'uma meada, que é mesmo
coisa de peccado.
--Então não vaes ao côro, nini?--tornou a prioreza.
--Já agora é tarde... Tu absolves-me da falta, sim?
--Absolvo, absolvo; mas dou-te como penitencia beberes um copinho...
--Do estomacal?
--Podéra...
Dionizia cumpriu a penitencia, e sahiu para, dizia ella, deixar a
prelada na sua hora de oração.
Não delongaremos esta amostra do evangelico e exemplar viver do
convento, onde Thadeu de Albuquerque mandára sua filha a respirar o
purissimo ar dos anjos, em quanto se lhe preparava crysol, mais
depurador dos sedimentos do vicio, no convento de Monchique.
Encheu-se o coração de Thereza de amargura e nojo n'aquellas duas horas
de vida conventual. Ignorava ella que o mundo tinha d'aquillo. Ouvira
fallar dos mosteiros como de um refugio da virtude, da innocencia e das
esperanças immorredoiras. Algumas cartas lêra de sua tia, prelada em
Monchique, e por ellas formára conceito do que devia ser uma santa.
D'aquellas mesmas dominicanas, em cuja casa estava, ouvira dizer ás
velhas e devotas fidalgas de Vizeu virtudes, maravilhas de caridade, e
até milagres. Que desillusão tão triste e ao mesmo tempo que ancia de
fugir d'alli!
A cama de D. Thereza estava na mesma cella da prioreza em alcova
separada, com cortinas de cassa.
Quando a prelada lhe disse que podia deitar-se querendo, perguntou-lhe a
menina se poderia escrever a seu pae. A freira respondeu que no dia
seguinte o faria, posto que o senhor Albuquerque ordenasse que sua filha
não escrevesse: assim mesmo, ajuntou ella, que lh'o não prohibiria, se
tivesse tinteiro e papel na cella.
Thereza deitou-se, e a prelada ajoelhou diante d'um oratorio, rezando a
corôa a meia voz. Se o murmurio da oração infadasse a hospeda, não teria
ella muita razão de queixa, por que a devota monja ao segundo
_Padre-Nosso_ cabeceava de modo que já não atinou com a primeira
_Áve-Maria_. Levantou-se, cambaleando uma mesura ás imagens do
sanctuario, foi deitar-se, e pegou a ressonar.
Thereza afastou subtilmente as cortinas do seu quarto, e tirou de entre
o seu fato o tinteiro de tarraxa e o papel.
A lampada do oratorio lançava um froixo raio sobre a cadeira, em que
Thereza pozera os seus vestidos. Desceu da cama, ajoelhou ao pé da
cadeira, e escreveu a Simão, relatando-lhe miudamente os successos
d'aquelle dia. A carta rematava assim:
«Não receies nada por mim, Simão. Todos estes trabalhos me parecem
leves, se os comparo ao que tens padecido por amor de mim. A desgraça
não abala a minha firmeza, nem deve intimidar os teus projectos. São
alguns dias de tempestade, e mais nada. Qualquer nova resolução que meu
pae tome, dir-t'a-hei logo podendo, ou quando podér. A falta das minhas
noticias deves attribuil-a sempre ao impossivel. Ama-me assim
desgraçada, porque me parece que os desgraçados são os que mais precisam
de amor e de conforto. Vou vêr se posso esquecer-me dormindo. Como isto
é triste, meu querido amigo!... Adeus.»


VIII.

Marianna, a filha de João da Cruz, quando viu seu pae pensar a chaga do
braço de Simão, perdeu os sentidos. O ferrador riu estrondosamente da
fraqueza da moça, e o academico achou estranha sensibilidade em mulher
affeita a curar as feridas com que seu pae vinha laureado de todas as
feiras e romarias.
--Não ha ainda um anno que me fizeram tres buracos na cabeça, quando eu
fui á Senhora dos Remedios a Lamego, e foi ella que me tosqueou e rapou
o casco á navalha--disse o ferrador.--Pelo que vejo o sangue do fidalgo
deu volta ao estomago da rapariga!... Estamos então bem aviados! Eu
tenho cá a minha vida, e queria que ella fosse a enfermeira do meu
doente.... És ou não és, rapariga?--disse elle á filha, quando ella
abriu os olhos, com rosto de corrida da sua fraqueza.
--Serei com muito gosto, se o pae quizer.
--Pois então, moça, se hás de ir costurar para a varanda, vem aqui para
a beira do senhor Simão. Dá-lhe caldos a miudo; e trata-lhe da ferida;
vinagre e mais vinagre, quando ella estiver assim a modo de roixa.
Conversa com elle, não o deixes estar a malucar, nem escrever muito, que
não é bom quando se está fraco do miôlo. E v. s.^a não tenha aquellas de
ceremonia, nem me diga a Marianna--a menina isto, a menina aquillo.
É--rapariga dá cá um caldo; rapariga, lava-me o braço, dá cá as
compressas--e nada de politicas. Ella está aqui como sua criada, porque
eu já lhe disse que, se não fosse o pae de v. s.^a, já ella ha muito
tempo que andava por ahi ás esmolas, ou peor ainda. É verdade que eu
podia deixar-lhe uns bensinhos, ganhos alli a suar na bigorna ha dez
annos, afóra uns quatrocentos mil reis que herdei de minha mãe, que Deus
haja; mas v. s.^a bem sabe que, se eu fosse á forca ou pela barra fóra,
vinha a justiça, e tomava conta de tudo para as custas.
--Se vocemecê tem uma casinha soffrivel--atalhou Simão--póde, querendo,
casar a sua filha n'uma boa casa de lavoira.
--Assim ella quizesse. Maridos não lhe faltam; até o alferes da igreja a
queria, se eu lhe fizesse doação de tudo, que pouco é, mas ainda vale
quatro mil cruzados bons; o caso é que a moça não tem querido casar, e
eu, a fallar a verdade, sou só e mais ella, e tambem não tenho grande
vontade de ficar sem esta companhia, para quem trabalho como moiro. Se
não fosse ella, fidalgo, muita asneira tinha eu feito! Quando vou ás
feiras ou romarias, se a levo comigo, não bato, nem apanho; indo
sósinho, é desordem certa. A rapariga já conhece quando a pinga me sobe
ao capacete do alambique, pucha-me pela jaqueta, e por bons modos põe-me
fóra do arraial. Se alguem me chama para beber mais um quartilho, ella
não me deixa ir, e eu acho graça á obediencia com que me deixo guiar
pela moça, que me pede que não vá por alma da mãe. Eu cá, em ella me
pedindo por alma da minha santa mulher, já não sei de que freguezia sou.
Marianna ouvia o pae, escondendo meio rosto no seu alvissimo avental de
linho. Simão estava-se gosando na simpleza d'aquelle quadro rustico, mas
sublime de poesia e naturalidade.
João da Cruz foi chamado para ferrar um cavallo, e despediu-se n'estes
termos:
--Tenho dito, rapariga; aqui te entrego o nosso doente: trata-o como
quem é, e como se fosse teu irmão ou marido.
O rosto de Marianna acerejou-se quando aquella ultima palavra sahiu,
natural como todas, da bôca de seu pae.
A moça ficou encostada ao batente da alcova de Simão.
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