Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 11

Total number of words is 1632
Total number of unique words is 766
42.5 of words are in the 2000 most common words
55.2 of words are in the 5000 most common words
62.1 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
--Quer descer ao camarote?--disse ella.
--Não poderei... Ampare-me, minha irmã.
Deu alguns passos para o alçapão, e olhou ainda para o mirante. Desceu a
ingreme escada, apegando-se ás cordas. Lançou-se sobre o colchão, e
pediu agua, que bebeu insaciavelmente. Seguiu-se a febre, o
estorcimento, e as ancias, com intervallos de delirio.
De manhã veio a bordo um facultativo, por convite do capitão. Examinando
o condemnado, disse que era «maligna» a doença, e que bem podia ser que
elle achasse a sepultura no caminho da India.
Marianna ouviu o prognostico, e não chorou.
Ás onze horas sahiu barra fóra a nau. Ás ancias da doença accresceram as
do enjoo. A pedido do commandante, Simão bebia remedios, que bolsava
logo, revoltos pelas contracções do vomito.
Ao segundo dia de viagem Marianna disse a Simão:
--Se o meu irmão morrer, que hei de eu fazer áquellas cartas que vão na
caixa?
Pasmosa serenidade a d'esta pergunta!
--Se eu morrer no mar--disse elle--Marianna atire ao mar todos os meus
papeis; todos; e estas cartas que estão debaixo do meu travesseiro
tambem.
Passada uma ancia, que lhe embargara a voz, Simão continuou:
--Se eu morrer, que tenciona fazer, Marianna!
--Morrerei, senhor Simão.
--Morrerá?!.. Tanta gente desgraçada que eu fiz!...
A febre augmentava. Os symptomas da morte eram visiveis aos olhos do
capitão, que tinha sobeja experiencia de vêr morrerem centenares de
condemnados, feridos da febre no mar, e desprovidos de algum
medicamento.
Ao quarto dia, quando a nau se movia ronceira defronte de Cascaes,
sobreveio tormenta subita. O navio fez-se ao largo muitas milhas, e
perdido o rumo de Lisboa, navegou desnorteado para o sul. Ao sexto dia
de navegação incerta, por entre espêssas brumas, partiu-se o leme
defronte de Gibraltar. E, em seguida ao desastre, aplacaram as refegas,
desencapellaram-se as ondas, e nasceu, com a aurora do dia seguinte, um
formoso dia de primavera. Era o dia 27 de Março, o nono da enfermidade
de Simão Botelho.
Marianna tinha envilhecido. O commandante, encarando n'ella, exclamou:
--Parece que volta da India com os dez annos de trabalhos já
passados!...
--Já acabados... de certo...--disse ella.
Ao anoitecer d'esse dia o condemnado delirou pela ultima vez, e dizia
assim no seu delirio:
«A casinha, defronte de Coimbra, cercada de arvores, flôres e aves.
Passeavas comigo á margem do Mondego, á hora pensativa do escurecer.
Estrellava-se o ceu, e a lua abrilhantava a agua. Eu respondia com a
mudez do coração ao teu silencio, e, animada por teu sorriso, inclinava
a face ao teu seio como se fosse o de minha mãe... De que ceu tão lindo
cahimos... A tua amiga morreu... A tua pobre
Thereza.............................
E que farias tu da vida sem a tua companheira de martyrio?... Onde irás
tu aviventar o coração que a desgraça te esmagou... Rompe a manhã... Vou
vêr a minha ultima aurora... a ultima dos meus dezoitos annos. Offerece
a Deus os teus padecimentos para que eu seja perdoada... Marianna...»
Marianna collou os ouvidos aos labios roixos do moribundo, quando cuidou
ouvir o seu nome.
«Tu virás ter comnosco; ser-te-hemos irmãos no ceu... O mais puro anjo
serás tu... se és d'este mundo, irmã; se és d'este mundo, Marianna...»
A transição do delirio para a lethargia completa era o annuncio
infallivel do trespasse.
Ao romper da manhã apagára-se a lampada. Marianna sahira a pedir luz, e
ouvira um gemido estorturoso. Voltando ás escuras, com os braços
estendidos para tactear a face do agonisante, encontrou a mão convulsa,
que lhe apertou uma das suas, e relaxou de subito a pressão dos dedos.
Entrou o commandante com uma lampada, e approximou-lh'a da respiração,
que não embaciou levemente o vidro.
--Está morto!...-- disse elle.
Marianna curvou-se sobre o cadaver, e beijou-lhe a face. Era o primeiro
beijo. Ajoelhou depois ao pé do camarote com as mãos erguidas, e não
orava nem chorava.
Algumas horas depois, o commandante disse a Marianna:
--Agora é tempo de dar sepultura ao nosso venturoso amigo ... É ventura
morrer quando se vem a este mundo com tal estrella... Passe a senhora
Marianna ali para a camara, que vai ser levado d'aqui o defuncto.
Marianna tirou o masso das cartas debaixo do travesseiro, e foi a uma
caixa buscar os papeis de Simão. Atou o rolo no avental, que elle tinha
d'aquellas lagrimas d'ella choradas no dia da sua demencia, e cingiu o
embrulho á cintura.
Foi o cadaver envolto n'um lençol, e transportado ao convez.
Marianna seguiu-o.
Do porão da nau foi trazida uma pedra, que um marujo lhe atou ás pernas
com um pedaço de cabo. O commandante contemplava a scena triste com os
olhos humidos, e os soldados, que guarneciam a nau, tão funeral respeito
os acurvava, que insensivelmente se descobriram.
Marianna estava, no entanto, encostada ao flanco da nau, e parecia
estupidamente encarar aquelles empuxões, que o marujo dava ao cadaver
para segurar a pedra na cintura.
Dois homens ergueram o cadaver ao alto sobre a amurada. Deram-lhe o
balanço para o arremessarem longe. E antes que o baque do morto se
fizesse ouvir na agua, todos viram, e ninguém já pôde segurar Marianna,
que se atirára ao mar.
Á voz do commandante desamarraram rapidamente o bote, e saltaram homens
para salvar Marianna.
Salval-a!...
Viram-na, um momento, bracejar, não para resistir á morte, mas para
abraçar-se ao cadáver de Simão, que uma onda lhe atirou aos braços. O
commandante olhou para o sitio d'onde Marianna se atirára, e viu,
enleado no cordame, o avental, e á flor d'agua um rolo de papeis que os
marujos recolheram na lancha. Eram, como sabem, a correspondencia de
Thereza e Simão.
* * * * *
Da familia de Simão Botelho vive ainda, em Villa Real de Traz-os-Montes,
a senhora D. Rita Emilia da Veiga Castello Branco, a irmã predilecta
d'elle. A ultima pessoa fallecida, ha vinte e seis annos, foi Manoel
Botelho, pae do author d'este livro.

FIM.
* * * * *
[1] Ha vinte annos que eu ouvi d'um coevo do facto a historia do
assassinio assim contada: Era em quinta Feira santa. Marcos Botelho,
irmão de Domingos, estava na festa de endoenças, em S. Francísco,
defrontando com uma dama, namorada sua, e desleal dama que ella era.
N'outro ponto da igreja estava, apontado em olhos e coração á mesma
mulher, um alferes de infanteria. Marcos enfreou o seu ciume até ao
final do officio da paixão. Á sahida do templo encarou no militar, e
provocou-o. O alferes tirou da espada, e o fidalgo do espadim. Terçaram
as armas longo tempo sem desaire nem sangue. Amigos de ambos tinham
conseguido aplacal-os, quando Luiz Botelho, outro irmão de Marcos,
desfechou uma clavina no peito do alferes, e alli á entrada da «rua do
Jogo da Bola» o derribou morto. O homicida foi livre por graça regia.
[2] É a casa-palacete da «rua da Piedade», hoje pertencente ao doutor
Antonio Girardo Monteiro.
[3] Esclarece este dizer de D. Rita a certidão de idade de Simão, a qual
tenho presente, e é extrahida por Herculano Henrique Garcia Camillo
Galhardo, reitor da real Igreja da Senhora da Ajuda, do livro 14, a
folhas 159 v. Reza assim:
«Aos dois dias do mez de maio de 1784, pôz os santos oleos o reverendo
padre cura João Domingues Chaves a Simão, o qual foi _baptisado em casa
em perigo de vida_ pelo Reverendo Frei Antonio de S. Pelagio, etc.»
[4] N'alguns papeis que possuimos do corregedor de Vizeu achamos esta
carta: «Meu amigo, collega e senhor. Entregará, ao portador d'esta, que
é o senhor padre Manoel de Oliveira, as cincoenta moedas em que lhe
fallei na sua passagem para Lisboa. A appellação de seu filho está a meu
cuidado, e está segura, apesar das grandes forças contrarias. Seu
amigo--O desembargador _Antonio José Dias Mourão Mosqueira_. Porto 11 de
fevereiro de 1805.--Sobrescripto: Ill.^mo Snr. D.^or Domingos José
Correia Botelho de Mesquita e Menezes.--Lisboa.»
(_Nota do auctor_).
[5] Este romance foi escripto n'um dos cubiculos-carceres da Relação do
Porto, a uma luz coada por entre ferros, e abafada pelas sombras das
abobadas. Anno da Graça de 1861.
[6] _Hoje então!..._ Vou-lhes contar um lance memorando d'um philosopho
da actualidade, lance unico pelo qual eu fiquei conhecendo a pessoa.
Hoje (21 de Setembro de 1861) estava eu no escriptorio do illustre
advogado Joaquim Marcellino de Mattos, e um cliente entrou contando o
seguinte:--«Senhor doutor, eu sou um lojista da rua de ***; e fui
roubado em oitocentos mil reis por minha mulher, que fugiu com um amante
para Vianna. Venho saber se posso querelar, e receber o meu dinheiro.»
--Póde querelar, respondeu o advogado, se tiver testemunhas. O senhor
quer querelar por adulterio?--Responde o queixoso: «O que eu quero é o
meu dinheiro.»--Mas, redargue o consultor, o senhor póde querelar de
ambos, d'ella por adultera, e d'elle como receptador do furto.--«E
receberei o meu dinheiro?»--Conforme. Eu sei cá se elle tem o seu
dinheiro?! O que sei é que não póde pronuncial-a a ella como
ladra.--«Mas os meus oitocentos mil reis?!»--Ah! o senhor não se lhe dá
que sua mulher fuja e não volte?--«Não, senhor doutor, que a leve o
diabo; o que eu quero é o meu dinheiro.»--Pois querele d'ambos, o
veremos depois.--«Mas não é certo receber eu o meu dinheiro?!»--Certo
não é; veremos se depois de pronunciado as authoridades administrativas
capturam o ladrão com o seu dinheiro.--«E, se elle o não tiver
já?--redargue o marido consternado.»--Se o não tiver já, o senhor
vinga-se na querela por adulterio.--«E gasta-se alguma coisa?»--Gasta,
sim; mas vinga-se.--«O que eu queria era o meu dinheiro, senhor doutor:
a mulher deixal-a ir, que tem cincoenta annos.»--Cincoenta
annos!--acudiu o doutor--o senhor está vingado do amante. Vá para casa,
deixe-se de querelas, que o mais desgraçado é elle.

Encadernação N.° 2465
FAUSTO FERNANDES
ENCADERNOU
Patio de D. Fradique, 1--LISBOA
You have read 1 text from Portuguese literature.
  • Parts
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 01
    Total number of words is 4658
    Total number of unique words is 1736
    34.1 of words are in the 2000 most common words
    47.6 of words are in the 5000 most common words
    55.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 02
    Total number of words is 4706
    Total number of unique words is 1615
    36.2 of words are in the 2000 most common words
    49.5 of words are in the 5000 most common words
    56.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 03
    Total number of words is 4754
    Total number of unique words is 1569
    36.9 of words are in the 2000 most common words
    49.6 of words are in the 5000 most common words
    56.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 04
    Total number of words is 4771
    Total number of unique words is 1568
    38.4 of words are in the 2000 most common words
    51.4 of words are in the 5000 most common words
    59.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 05
    Total number of words is 4770
    Total number of unique words is 1596
    38.5 of words are in the 2000 most common words
    53.0 of words are in the 5000 most common words
    59.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 06
    Total number of words is 4637
    Total number of unique words is 1591
    37.1 of words are in the 2000 most common words
    49.7 of words are in the 5000 most common words
    56.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 07
    Total number of words is 4729
    Total number of unique words is 1619
    39.4 of words are in the 2000 most common words
    53.4 of words are in the 5000 most common words
    60.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 08
    Total number of words is 4716
    Total number of unique words is 1650
    37.0 of words are in the 2000 most common words
    50.2 of words are in the 5000 most common words
    57.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 09
    Total number of words is 4623
    Total number of unique words is 1628
    37.0 of words are in the 2000 most common words
    51.0 of words are in the 5000 most common words
    57.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 10
    Total number of words is 4663
    Total number of unique words is 1686
    35.1 of words are in the 2000 most common words
    48.0 of words are in the 5000 most common words
    54.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 11
    Total number of words is 1632
    Total number of unique words is 766
    42.5 of words are in the 2000 most common words
    55.2 of words are in the 5000 most common words
    62.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.