Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 08

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«Não me fujas ainda, Thereza. Já não vejo a forca, nem a morte. Meu pae
protege-me, e a salvação é possivel. Prende ao coração os ultimos fios
da tua vida. Prolonga a tua agonia, em quanto eu te disser que espero.
Ámanhã vou para as cadêas do Porto, e hei de ali esperar a absolvição ou
commutação da sentença. A vida é tudo. Posso amar-te no degredo. Em toda
a parte ha ceu, e flores, e Deus. Se viveres, um dia serás livre; a
pedra do sepulcro é que nunca se levanta. Vive, Thereza, vive! Ha dias
lembrava-me que as tuas lagrimas lavariam da minha face as nódoas do
sangue do enforcado. Esse pesadêlo atroz passou. Agora, n'este inferno
respira-se; o esparto do carrasco já me não aperta em sonhos a garganta.
Já fito os olhos no ceu, e reconheço a providencia dos infelizes. Hontem
vi as nossas estrellas, aquellas dos nossos segredos nas noites da
ausencia. Volvi á vida, e tenho o coração cheio de esperanças. Não
morras, filha da minha alma!»
Ia alta a noite, quando Thereza, sentada no seu leito, leu esta carta.
Chamou a criada para ajudal-a a vestir. Mandou abrir a janella do seu
quarto, e encostou a face ás rexas de ferro. Esta janella olhava para o
mar; e o mar era n'essa noite uma immensa flamma de prata; e a lua
esplendidissima eclipsava o fulgor d'umas estrellas, que Thereza
procurava no ceu.
--São aquellas!--exclamou ella.
--Aquellas quê, minha senhora?--disse Constança.
--As minhas estrellas!... pallidas como eu... A vida! ai! a
vida!--clamou ella, erguendo-se, e passando pela fronte as mãos
cadavericas--Quero viver! Deixai-me viver, ó Senhor!
--Ha de viver, menina! ha de viver, que Deus é piedoso!--disse a
criada--mas não tome o ar da noite. Este nevoeiro do rio faz-lhe grande
mal.
--Deixa-me, deixa-me, que tudo isto é viver... Não vejo o ceu ha tanto
tempo! Sinto-me resuscitar aqui, Constança! Porque não tenho eu
respirado todas as noites este ar?! Eu poderei viver alguns annos?
poderei, minha Constança? Pede tu, pede muito á minha Virgem Santissima!
Vamos orar ambas!... Vamos, que o Simão não morre... O meu Simão vive e
quer que eu viva. Está no Porto amanhã; e talvez já esteja...
--Quem, minha senhora?!
--Simão, o Simão vem para o Porto.
A criada julgou que sua ama delirava; mas não a contrariou.
--Teve carta d'elle a fidalga?--tornou ella, cuidando que assim lhe
alimentava aquelle instante de febril contentamento.
--Tive... queres ouvir?... eu leio...
E leu a carta, com grande pasmo de Constança, que se convenceu.
Agora vamos rezar, sim?... Tu não és inimiga d'elle, não? Olha,
Constança, se eu casar com elle, tu vaes para a nossa companhia. Verás
como és feliz. Queres ir, não queres?
--Sim, minha senhora, vou; mas elle conseguirá livrar-se da morte?
--Livra; tu verás que livra; o pae d'elle ha de livral-o... e a Virgem
Santissima é que nos ha de unir. Mas se eu morro... se eu morro, meu
Deus!
E com as mãos convuísamente enlaçadas sobre o seio, Thereza archejava em
pranto.
--Se eu não tenho já forças!... todos dizem que eu morro, e o medico já
nem me receita!... Então melhor me fôra ter acabado antes d'esta hora!
Morrer com esperanças, ó mãe de Deus!...
E ajoelhou ante o retabulo devoto, que trouxera do seu quarto de Vizeu,
ao qual sua mãe e avó já tinham orado, e em cujo rosto compassivo os
olhos das duas senhoras moribundas tinham fixado os seus ultimos raios
de luz.


IV.

Annunciára-se Thadeu de Albuquerque na portaria de Monchique, ao dia
seguinte dos anteriores successos.
Sua prima, primeira senhora que lhe sahiu ao locutorio, vinha enxugando
lagrimas de alegria.
--Não cuide que eu choro de afflicta, meu primo--disse ella--O nosso
anjo, se Deus quizer, pode salvar-se. Logo de manhã a vi a passear por
seu pé nos dormitorios. Que differença de semblante ella tem hoje! Isto,
meu primo, é milagre de duas santas, que temos inteiras na claustra, e
com as quaes algumas perfeitas creaturas d'esta casa se apegaram. Se as
melhoras continuarem assim, temos Thereza; o ceu consente que esteja
entre nós aquelle anjo mais alguns annos...
--Muito folgo com o que me diz, minha boa prima--atalhou o fidalgo--A
minha resolução é leval-a já para Vizeu, e lá se restabelecerá com os
ares patrios, que são muito mais sadios que os do Porto.
--É ainda cêdo para tão longa e custosa jornada, meu primo. Não vá o
senhor cuidar que ella está capaz de se metter ao caminho. Lembre-se que
ainda hontem pensamos em encontral-a hoje morta. Deixe-a estar mais
alguns mezes; e depois não digo que a não leve; mas por em quanto não
consinto semelhante imprudencia.
--Maior imprudencia--replicou o velho--é conserval-a no Porto, onde a
estas horas deve estar o malvado matador de meu sobrinho. Talvez não
saiba a prima?... Pois é verdade: o patife do corregedor sahiu a campo
em defeza d'elle, e conseguiu que o tribunal da Relação lhe aceitasse a
appellação da sentença, passado o prazo da lei; e, não contente com
isto, fez que o filho fosse removido para as cadêas do Porto. Eu agora
trabalho para que a sentença seja confirmada, e espero conseguil-o; mas,
em quanto o assassino aqui estiver, não quero que minha filha esteja no
Porto.
--O primo é pae, e eu sou apenas uma parenta---disse a
abbadessa--cumpra-se a sua vontade. Quer vêr a menina, não é assim?
--Quero, se é possível.
--Pois bem, em quanto eu vou chamal-a, queira entrar na primeira grade á
sua mão direita, que Thereza lá vai ter.
Avisada Thereza de que seu pae a esperava, instantaneamente a côr sadia,
que alegrava as senhoras religiosas, se demudou na lividez costumada.
Quiz a tia, vendo-a assim, que ella não sahisse do seu quarto, e
encarregava-se de espaçar a visita do pae.
--Tem de ser--disse Thereza--Eu vou, minha tia.
O pae, ao vêl-a, estremeceu e enfiou. Esperava mudança, mas não tamanha.
Pensou que a não conheceria, sem o prevenirem de que ia vêr sua filha.
--Como eu te encontro, Thereza!--exclamou elle commovido--Por que me não
disseste ha mais tempo o teu estado?
Thereza sorriu-se, e disse:
--Eu não estou tão mal como as minhas amigas imaginam.
--Terás tu forças para ir comigo para Vizeu?
--Não, meu pae; não tenho mesmo forças para lhe dizer em poucas palavras
que não torno a Vizeu.
--Porque não?! Se a tua saude depender d'isso!...
--A minha saude depende do contrario. Aqui viverei ou morrerei.
--Não é tanto assim, Thereza--replicou Thadeu com simulada brandura--Se
eu entender que estes ares são nocivos á tua saude, has de ir, porque é
obrigação minha conduzir e corrigir a tua má sina.
--Está corrigida, meu pae. A morte emenda todos os erros da vida.
--Bem sei: mas eu quero-te viva, e portanto recobra forças para o
caminho. Logo que tiveres meio dia de jornada, verás como a saude volta
como por milagre.
--Não vou, meu pae.
--Não vaes?!--exclamou irritado o velho, lançando ás grades as mãos
trementes de ira.
--Separam-nos esses ferros a que meu pae se encosta, e para sempre nos
separam.
--E as leis? cuidas tu que eu não tenho direitos legitimos para te
obrigar a sahir do convento? Não sabes que tens apenas dezoito annos?
--Sei que tenho dezoito annos; as leis não sei quaes são, nem me
incommoda a minha ignorancia. Se póde ser que mão violenta venha
arrancar-me d'aqui, convença-se meu pae de que essa mão ha de encontrar
um cadaver. Depois o que quizerem de mim. Em quanto, porém, eu podér
dizer que não vou, juro-lhe que não vou, meu pae.
--Sei o que é!--bramiu o velho--Já sabes que o assassino está no Porto?
--Sei, sim, senhor.
--Ainda o dizes sem vergonha, nem horror de ti mesma! Ainda...
--Meu pae--interrompeu Thereza--não posso continuar a ouvil-o, porque me
sinto mal. Dê-me licença... e vingue-se como podér. A minha gloria
n'este longo martyrio seria uma forca levantada a par da do assassino.
Thereza sahiu da grade, deu alguns passos na direcção da sua cella, e
encostou-se esvaída á parede. Correram a amparal-a sua tia e criada; mas
ella, afastando-as suavemente de si, murmurou:
--Não é preciso... Estou boa... Estes golpes dão vida, minha tia.
E caminhou sósinha a passos vacillantes.
Thadeu batia á porta do mosteiro com irrisorio enfurecimento pancadas,
umas após outras, com grande mêdo da porteira e outras madres,
espantadas do insolito desproposito.
--Que é isso, primo?--disse a prelada com severidade.
--Quero cá fóra Thereza.
--Como fóra? Quem ha de lançal-a fóra?!
--A senhora, que não póde aqui reter uma filha contra a vontade de seu
pae.
--Isso assim é; mas tenha prudencia, primo.
--Não ha prudencia, nem meia prudencia. Quero minha filha cá fóra.
--Pois ella não quer ir?
--Não, senhora.
--Então espere que por bons modos a convençamos a sahir, porque não
havemos trazer-lh'a a rastos.
--Eu vou buscal-a, sendo preciso--redarguiu em crescente
furia.--Abram-me estas portas, que eu a trarei!
--Estas portas não se abrem assim, meu primo, sem licença superior. A
Regra do mosteiro não póde ser quebrantada para servir uma paixão
rancorosa. Tranquillise-se, senhor! Vá descançar d'esse frenesi, e venha
n'outra hora combinar comigo o que fôr digno de todos nós.
--Tenho entendido!--exclamou o velho, gesticulando contra o ralo do
locutorio--Conspiram todas contra mim! Ora descancem, que eu lhes darei
uma boa lição. Fique a senhora abbadessa sabendo que eu não quero que
minha filha receba mais cartas do matador, percebeu?
--Eu creio que Thereza nunca recebeu cartas de matadores, nem supponho
que as receba d'ora em diante.
--Não sei se sabe, nem senão. Eu vigiarei o convento. A criada, que está
com ella, ponham-na fóra, percebeu?
--Porquê?--redarguiu a prelada com enfado.
--Porque a encarreguei de me avisar de tudo, e ella nada me tem contado.
--Se não tinha que lhe dizer, senhor!
--Não me conte historias, prima! A criada quero vêl-a sahir do convento,
e já!
--Eu não lhe posso fazer a vontade, porque não faço injustiças. Se v.
s.^a quizer que sua filha tenha outra criada, mande-lh'a; mas a que ella
tem, logo que deixe de a servir, ha muitas senhoras n'esta casa que a
desejam, e ella mesma deseja aqui ficar.
--Tenho entendido!---bradou elle--querem-me matar! Pois não matam;
primeiro ha de o diabo dar um estoiro!
Thadeu de Albuquerque sahiu em corcovos do atrio do mosteiro. Era
hedionda aquella raiva que lhe contrahia as faces incorreadas, revendo
suor e sangue aos olhos acovados.
Apresentou-se ao intendente da policia, pedindo providencias para que se
lhe entregasse sua filha. O intendente respondeu que não solicitava
competentemente taes providencias. Instou para que o carcereiro da cadêa
não deixasse sahir alguma carta de um assassino, vindo da comarca de
Vizeu, por nome Simão Botelho. O intendente disse que não podia, sem
motivos concernentes a devassas, obstar a que o prêso escrevesse a quem
quer que fosse.
Reduplicada a furia, foi d'ali ao corregedor do Porto, com os mesmos
requerimentos em tom arrogante. O corregedor, particular amigo de
Domingos Botelho, despediu com enfado o importuno, dizendo-lhe que a
velhice sem juizo era coisa tão de riso como de lastima. Esteve então a
pique de perder-se a cabeça de Thadeu de Albuquerque. Andava e desandava
as ruas do Porto, sem atinar com uma sahida digna da sua prosapia e
vingança. No dia seguinte bateu á porta d'alguns desembargadores, e
achava-os mais inclinados á clemencia, que á justiça, a respeito de
Simão Botelho. Um d'elles, amigo de infancia de D. Rita Preciosa, e
implorado por ella, fallou assim ao sanhudo fidalgo:
--Em pouco está o ser homicida, senhor Albuquerque. Quantas mortes teria
v. s.^a hoje feito, se alguns adversarios se oppozessem á sua cólera?
Esse infeliz moço, contra quem o senhor solicita desvariadas violencias,
conserva a honra na altura da sua immensa desgraça. Abandonou-o o pae,
deixando-o condemnar á forca; e elle da sua extrema degradação nunca fez
sahir um grito supplicante de misericordia. Um estranho lhe esmolou a
subsistencia de oito mezes de carcere, e elle aceitou a esmola, que era
honra para si e para quem lh'a dava. Hoje fui eu vêr esse desgraçado
filho de uma senhora que conheci no paço, sentada ao lado dos reis.
Achei-o vestido de baetão e panno pedrez. Perguntei-lhe se assim estava
desprovido de fato. Respondeu-me que se vestira á proporção dos seus
meios, e que devia á caridade d'um ferrador aquellas calças e jaqueta.
Repliquei-lhe eu que escrevesse a seu pae para o vestir decentemente.
Disse-me que não pedia nada a quem consentiu que os delictos de seu
coração e da sua dignidade e do pundonor do seu nome fossem expiados
n'um patibulo. Ha grandeza n'este homem de dezoito annos, senhor
Albuquerque. Se v. s.^a tivesse consentido que sua filha amasse Simão
Botelho Castello-Branco, teria poupado a vida ao homem sem honra que se
lhe atravessou com insultos e offensas corporaes de tal affronta, que
deshonrado ficaria Simão se as não repellisse como homem de alma e
brios. Se v. s.^a se não tivesse opposto ás honestissimas e innocentes
affeições de sua filha, a justiça não teria mandado arvorar uma forca,
nem a vida de seu sobrinho teria sido immolada aos seus caprichos de mau
pae. E se sua filha casasse com o filho do corregedor de Vizeu, pensa
acaso v. s.^a que os seus brasões soffriam desdouro? Não sei de que
seculo data a nobreza do senhor Thadeu de Albuquerque; mas do brasão de
D. Rita Thereza Margarida Preciosa Caldeirão Castello-Branco posso
dar-lhe informações sobre as paginas das mais veridicas e illustres
genealogias do reino. Por parte de seu pae, Simão Botelho tem do melhor
sangue de Traz-os-Montes, e não se temerá de entrar em competencias com
o dos Albuquerques de Vizeu, que não é de certo o dos _Albuquerques
terriveis_ de que resa Luiz de Camões...
Offendido até ao amago pela derradeira ironia, Thadeu ergueu-se de
impeto, tomou o chapéo e a enorme bengala de castão d'ouro, e fez a
cortezia da despedida.
--São amargas as verdades, não é assim?--disse-lhe, sorrindo, o
desembargador Mourão Mosqueira.
--V. ex.^a lá sabe o que diz, e eu cá sei no que hei de ficar--respondeu
com tom ironico o fidalgo, alanceado na sua honra, e na dos seus quinze
avós.
O desembargador retorquiu:
--Fique no que quizer; mas vá na certeza, se isso lhe serve d'alguma
coisa, que Simão Botelho não vai á forca.
--Veremos...--resmoneou o velho.


V.

São treze dias corridos do mez de Março de 1805.
Está Simão n'um quarto de malta das cadêas da Relação. Um catre de
táboas, um colchão de embarque, uma banca e cadeira de pinho, e um
pequeno pacote de roupa, collocado no logar do travesseiro, são a sua
mobilia. Sobre a mesa tem um caixote de pau preto, que contém as cartas
de Thereza, ramilhetes sêccos, os seus manuscriptos do carcere de Vizeu,
e um avental de Marianna, o ultimo com que ella enxugára lagrimas, e
arrancára de si no primeiro instante de demencia.
Simão relê as cartas de Thereza, abre os envoltorios de papel que
encerram as flôres resequidas, contempla o avental de linho, procurando
os visiveis vestigios das lagrimas. Depois encosta a face e o peito aos
ferros da sua janella, e avista os horisontes boleados pelas serras de
Vallongo e Gralheira, e cortados pelas ribas pittorescas de Gaya, do
Candal, de Oliveira, e do mosteiro da serra do Pilar. É um dia lindo.
Reflectem-se do azul do ceu os mil matizes da primavera. Tem aromas o
ar, e a viração, fugitiva dos jardins, derrama no ether as urnas que
roubou aos canteiros. Aquella indefinida alegria, que parece reluzir nas
legiões de espiritos, que se geram ao sol de Março, rejubila a natureza,
que toda pompas de luz e flôres se está namorando do calor que a vai
fecundando.
Dia de amor e de esperanças era aquelle que o Senhor mandava á choça
encravada na garganta da serra, ao palacio esplendoroso que reverberava
ao sol os seus espiraculos, ao opulento que passeava as suas molles
equipagens, bafejado pelo respiro acre das çarças, e ao mendigo que
desentorpecia os membros encostado ás columnas dos templos.
E Simão Botelho, fugindo a claridade da luz, e o voejar das aves,
meditando, chorava e escrevia assim as suas meditações:
«O pão do trabalho de cada dia, e o teu seio para repousar uma hora a
face, pura de manchas. Não pedi mais ao ceu.
Achei-me homem aos dezeseis annos. Vi a virtude á luz do teu amor.
Cuidei que era santa a paixão que absorvia todas as outras, ou as
depurava com o seu fogo sagrado.
Nunca os meus pensamentos foram denegridos por um desejo, que eu não
possa confessar alto diante de todo o mundo. Diz tu, Thereza, se os meus
labios profanaram a pureza de teus ouvidos. Pergunta a Deus quando quiz
eu fazer do meu amor o teu opprobrio.
Nunca, Thereza! Nunca, ó mundo que me condemnas!
Se teu pae quizesse que eu me arrastasse a seus pés para te merecer,
beijar-lh'os-ia. Se tu me mandasses morrer para te não privar de ser
feliz com outro homem, morreria, Thereza!
Mas tu eras sósinha e infeliz, e eu cuidei que o teu algoz não devia
sobreviver-te. Eis-me aqui homicida, e sem remorsos. A insania do crime
aturde a consciencia; não a minha, que se não temia das escadas da
forca, nos dias em que o meu despertar era sempre o estrebuxamento da
suffocação.
Eu esperava a cada hora o chamamento para o oratorio, e dizia comigo:
Fallarei a Jesus Christo.
Sem pavor, premeditava nas setenta horas d'essa agonia moral, e antevia
consolações que o crime não ousa esperar sem injuria da justiça de Deus.
Mas chorava por ti, Thereza! O travor do meu calix tinha sobre a sua
amargura as mil amarguras das tuas lagrimas.
Gemias aos meus ouvidos, martyr! Vêr-me-ias sacudido nas convulsões da
morte, em teus delirios. A mesma morte tem terror da suprema desgraça.
Tarde morrerias. A minha imagem, em vez de te acenar com a sua palma de
martyrio, te seria um fantasma levantado das táboas d'um cadafalso.
Que morte a tua, ó minha santa amiga!»
E proseguiu até ao momento em que João da Cruz, com ordem do intendente
geral da policia, entrou no quarto.
--Aqui!--exclamou Simão, abraçando-o--E Marianna? deixou-a sósinha?!
morta, talvez?!
--Nem sósinha, nem morta, fidalgo! O diabo nem sempre está atraz da
porta... Marianna voltou ao seu juizo.
--Falla a verdade, senhor João?
--Podéra mentir!... Aquillo foi coisa de bruxaria em quanto a mim...
Sangrias, sedenhos, agua fria na cabeça, e exorcismos do missionario,
não lhe digo nada, a rapariga está escorreita, e assim que tiver um
todonada de forças bota-se ao caminho.
--Bemdito seja Deus!--exclamou Simão.
--_Amen_--accrescentou o ferrador--Então que arranjo é este de casa? Que
breca de tarimba é esta?! Quer-se aqui uma cama de gente, e alguma coisa
em que um christão se possa sentar.
--Isto assim está excellente.
--Bem vejo... E de barriga? como vamos nós de barriga?
--Ainda tenho dinheiro, meu amigo.
--Ha de ter muito, não tem duvida: mas eu tenho mais, e v. s.^a tem
ordem franca. Veja lá esse papel.
Simão leu uma carta de D. Rita Preciosa, escripta ao ferrador, em que o
authorisava a soccorrer seu filho com as necessarias despezas,
promptificando-se a pagar todas as ordens que lhe fossem apresentadas
com a sua assignatura.
--É justo--disse Simão, restituindo a carta--porque eu devo ter uma
legitima.
--Então já vê que não tem mais que pedir por bôca. Eu vou comprar-lhe
arranjos...
--Abra-me o seu nobre coração para outro serviço mais valioso--atalhou o
prêso.
--Diga lá, fidalgo.
Simão pediu-lhe a entrega de uma carta em Monchique a Thereza de
Albuquerque.
--O berzabum parece-me que as arma!--disse o ferrador--Venha de lá a
carta. O pae d'ella está cá, já sabia?
--Não.
--Pois está; e, se o diabo o traz á minha beira, não sei se lhe darei
com a cabeça n'uma esquina. Já me lembrou de o esperar no caminho, e
pendural-o pelo gasnete no galho d'um sobreiro... A carta tem resposta?
--Se lh'a derem, meu bom amigo.
Chegou o ferrador a Monehique, a tempo que um official de justiça, dois
medicos, e Thadeu de Albuquerque entravam no páteo do convento.
Fallou o aguazil á prelada, exigindo em nome do juiz de fóra, que dois
medicos entrassem no convento a examinar a doente D. Thereza Clementina
de Albuquerque, a requerimento de seu pae.
Perguntou a prelada aos medicos se elles tinham a necessaria licença
ecclesiastica para entrarem em Monchique. Á resposta negativa redarguiu
a abbadessa que as portas do convento não se abriam. Disseram os medicos
de Thadeu de Albuquerque que era aquelle o estylo dos mosteiros, e não
houve que redarguir á rigorosa prelada.
Sahiram, e o ferrador só então reflectiu no modo de entregar a carta, A
primeira ideia pareceu-lhe a melhor. Chegou ao ralo, e disse:
--Ó senhora freira!
--Que quer vocemecê?--disse a prelada.
--A senhora faz favor de dizer á senhora D. Therezinha de Vizeu, que
está aqui o pae d'aquella rapariga da aldeia, que ella sabe?
--E quem é vocemecê?
--Sou o pae da tal rapariga que ella sabe.
--Já sei!--exclamou de dentro a voz de Thereza, correndo ao locutorio.
A prelada retirou-se a um lado, e disse:
--Vê lá o que fazes, minha filha...
--A sua filha escreveu-me?--disse Thereza a João da Cruz.
--Sim, senhora, aqui está a carta.
E depositou na roda a carta, em que a abbadessa reparou, e disse
sorrindo:
--Muito engenhoso é o amor, Therezinha... Permitta Deus que as noticias
da rapariga da aldeia te alegrem o coração; mas olha, filhinha, não
cuides que a tua velha tia é menos esperta que o _pae da rapariga da
aldeia_.
Thereza respondeu com beijos ás jovialidades carinhosas da santa
senhora, e sumiu-se a lêr a carta, e a responder-lhe. Entregando a
resposta, disse ella ao ferrador:
--Não vê ahi sentada n'aquella escadinha uma pobre?
--Vejo, sim, senhora, e conheço-a. Como diabo veio aqui parar esta
mulher? Cuidei que depois da esfrega, que lhe deu o hortelão, a
pobresita não tinha pernas que a cá trouxessem! A mulher pelos modos tem
fibras d'aquella casta!
--Falle baixo--tornou Thereza--Pois olhe... quando trouxer as cartas,
entregue-lh'as a ella, sim? Eu já a mandei á cadêa; mas não a deixaram
lá entrar.
--Bem está, e o arranjo não é mau assim. Fique com Deus, menina.
Esta boa nova alegrou Simão. A Providencia divina apiedára-se d'elle
n'aquelle dia. O restaurar-se o juizo de Marianna, e a possibilidade de
corresponder-se com Thereza, eram as maximas alegrias, que podiam baixar
do ceu ao seu cerrado infortunio.
Exaltára-se Simão em graças a Deus, na presença de João da Cruz, que
arrumava no quarto uns moveis que comprára em segunda mão, quando este,
suspendendo o trabalho, exclamou:
--Então vou-lhe dizer outra coisa, que não tinha tenção de lhe dizer,
para o apanhar de _súpeto_.
--Que é?
--A minha Marianna veio comigo, e ficou na estalagem, porque não se
podia bolir com dôres; mas ámanhã ella cá está para lhe fazer a cozinha
e varrer a casa.
Simão, reconcentrando o indefinivel sentimento que esta noticia lhe
causára, disse com melancolica pausa:
--É pois certo que a minha má estrella arrasta a sua desgraçada filha a
todos os meus abysmos! Pobre anjo de caridade, que digna tu és do ceu!
--Que está o senhor ahi a prégar?--interrompeu o ferrador--Parece que
ficou a modo de tristonho com a noticia!...
--Senhor João--tornou solemnemente o prêso--não deixe aqui a sua querida
filha, Deixe-m'a vêr, traga-a comsigo uma vez a esta casa; mas não a
deixe cá, porque eu não posso tolher o destino de Marianna. Como ha de
ella viver no Porto, sósinha, sem conhecer ninguem, bella como ella é, e
perseguida como tem de ser!?...
--Perseguida! _Tó carocha_! Não que ella é mesmo de se lhe dar de que a
persigam!... Que vão para lá, mas que deixem as ventas em casa. Meu
amigo, as mulheres são como as pêras verdes; um homem apalpa-as, e, se o
dedo acha duro, deixa-as, e não as come. É como é. A rapariga sáe á mãe.
Minha mulher, que Deus haja, quando eu lhe andava rentando, dei-lhe um
dia um beliscão n'uma perna. E vai ella põe-se direita comigo, e deu-me
dois cascudos nas trombas, que ainda agora os sinto. A Marianna!...
aquillo é da pelle de satanaz! Pergunte o senhor, se algum dia fallar
com aquelle fidalguinho Mendes de Vizeu, a troçada que elle levou com as
rédeas da egua, só por lhe bolir na chinela, quando ella estava em cima
da burra!
Simão sorriu ao rasgado panegyrico da bravura da moça, e orgulhou-se
secretamente dos brandos affagos com que o ella desvelára em oito mezes
de quasi continuada convivencia.
--E vocemecê ha de privar-se da companhia de sua filha?--insistiu o
prêso.
--Eu lá me arranjarei como podér. Tenho um cunhada velha, e levo-a para
mim para me arranjar o caldo. E v. s.^a pouco tempo aqui estará.... O
senhor corregedor lá anda a tratar de o pôr na rua, e que o senhor sáe
cá para mim são favas contadas. E assim com'assim, vou dizer-lhe tudo
d'uma feita: a rapariga, se eu a não deixasse vir para o Porto, dava um
estoiro como uma castanha. Olhe que eu não sou tolo, fidalgo. Que ella
tem paixão d'alma por v. s.^a isso é tão certo como eu ser; João. É a
sua sina; que hei de eu fazer-lhe? Deixál-a, que pelo senhor Simão não
lhe ha de vir mal, ou então já não ha honra n'este mundo.
Simão lançou-se aos braços do ferrador, exclamando:
--Podésse eu ser o marido de sua filha, meu nobre amigo!
--Qual marido!...--disse o ferrador com os olhos vidrados das primeiras
lagrimas que Simão lhe vira--Eu nunca me lembrei d'isso, nem ella!... Eu
sei que sou um ferrador, e ella sabe que póde ser sua criada, e mais
nada, senhor Simão; mas, sabe que mais, eu não desejo que os meus amigos
sejam desgraçados como havia de ser o senhor se casasse com a pobre
rapariga! Não fallemos n'isto, que eu por milagre choro; mas quando pego
a chorar sou um chafariz... Vamos ao arranjo: a mesa deve aqui ficar; a
commoda ali; duas cadeiras d'este lado, e duas d'aquelle. A barra acolá.
O bahu debaixo da cama. A bacia e a bilha da agua sobre esta coisa, que
não sei como se chama. Os lençoes e o mais bragal tem-os lá a rapariga.
Ámanhã é que o quarto ha de ficar que nem uma capella. Olhe que a
Marianna já me disse que comprasse duas aquellas... como se chamam
aquellas invasilhas de pôr ramos?
--Jarras.
--É como diz, duas jarras para flôres; mas eu não sei onde se vende
isso. Agora vou buscar o jantar, que a moça ha de cuidar que me não
deixam sahir da cadêa. Ainda lhe não disse que não me deixaram cá entrar
hontem á tarde; mas eu, como trouxe uma cartinha de sua mãe para um
senhor desembargador, fui onde a elle, e hoje de manhã já lá tinha na
estalagem a ordem do senhor intendente geral da policia. Até logo.


VI.

Um incidente agora me occorre, não muito concertado com o seguimento da
historia, mas a proposito vindo para demonstrar uma face da indole do
ex-corregedor de Vizeu, já então exonerado do cargo.
Sabido é que Manoel Botelho, o primogenito, voltando a frequentar
mathematicas em Coimbra, fugira d'ali para Hespanha com uma dama desleal
a seu marido, estudante açoriano que cursava medicina.
Um anno demorára na Corunha Manoel Botelho com a fugitiva,
alimentando-se dos recursos que sua mãe, extremosa por elle, lhe
remettia vendendo a pouco e pouco as suas joias, e privando as filhas
dos adornos proprios dos annos e da qualidade.
Seccaram-se estas fontes, e não restavam outras. D. Rita disse a final
ao filho que deixára de soccorrer Simão por não ter meios; e agora das
escassas economias que fazia, nada podia enviar-lhe, porque estava em
obrigação de pagar os alimentos de Simão á pessoa que por compaixão
lh'os déra em Vizeu, e lh'os estava dando no Porto. Ajuntava ella, para
consolação do filho, que viesse elle para Villa Real, e trouxesse
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