Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 05

Total number of words is 4770
Total number of unique words is 1596
38.5 of words are in the 2000 most common words
53.0 of words are in the 5000 most common words
59.8 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
--Não foi nada boa esta praga que lhe cahiu em casa, Marianna!--disse o
academico--Fazerem-na enfermeira d'um doente, e privarem-na talvez de ir
costurar na sua varanda, e conversar com as pessoas que passam....
--Que se me dá a mim d'isso!--respondeu ella, sacudindo o avental, e
baixando o coz ao logar da cintura com infantil graça.
--Sente-se, Marianna; seu pae disse-lhe que se sentasse... Vá buscar a
sua costura, e dê-me d'alli uma folha de papel e um lapis que está na
carteira.
--Mas o pae tambem me disse que o não deixasse escrever...--replicou
ella, sorrindo.
--Pouco, não faz mal. Eu escrevo apenas algumas linhas.
--Veja lá o que faz...--tornou ella, dando-lhe o papel e o lapis--Olhe
se alguma carta se perde, e se descobre tudo...
--Tudo, o quê, Marianna? Pois sabe alguma coisa?!
--Era preciso que eu fosse tola. Eu não lhe disse já que sabia da sua
amizade a uma menina fidalga da cidade?
--Disse; mas que tem isso?
--Aconteceu o que eu receava. V. s.^a está ahi ferido, e toda a gente
falla n'uns homens que appareceram mortos.
--Que tenho eu com os homens que appareceram mortos?
--Para que está a fingir-se de novas?! Pois eu não sei que esses homens
eram criados do primo da tal senhora? Parece que v. s.^a desconfia de
mim, e está a querer guardar um segredo que eu tomára que ninguem
soubesse, para que meu pae e o senhor Simão não tenham alguns maiores
trabalhos...
--Tem razão, Marianna, eu não devia esconder de si o mau encontro que
tivemos...
--E Deus queira que seja o ultimo!... Tanto tenho pedido ao Senhor dos
Passos que lhe dê remedio a essa paixão!... O peor futuro eu que ainda
está por passar...
--Não, menina, isto acaba assim: eu vou para Coimbra, logo que esteja
bom, e a menina da cidade fica em sua casa.
--Se assim fôr, já prometti dois arrateis de cêra ao Senhor dos Passos;
mas não me diz o coração que v. s.^a faça o que diz...
-Muito agradecido lhe estou-disse Simão commovido--pelo bem que me
deseja. Não sei o que lhe fiz para lhe merecer a sua amizade.
--Basta vêr o que seu paesinho fez pelo meu--disse ella, limpando as
lagrimas.--O que seria de mim, se me elle faltasse, e se fosse á forca
como toda a gente dizia!... Eu era ainda muito nova quando elle estava
na enxovia. Teria treze annos; mas estava resolvida a atirar-me ao poço,
se elle fosse condemnado á morte. Se o degradassem, então ia com elle,
ia morrer onde elle fosse morrer. Não ha dia nenhum que eu não peça a
Deus que dê a seu pae tantos prazeres como estrellas tem o ceo. Fui de
proposito á cidade para beijar os pés a sua mãesinha, e vi suas manas, e
uma, que era a mais nova, deu-me uma saia de lapim, que eu ainda alli
tenho guardada como uma reliquia. Depois, cada vez que ia á feira, dava
uma grande volta para vêr se acertava de encontrar a senhora D. Ritinha
á janella; e muitas vezes vi o senhor Simão. E talvez não saiba que eu
estava a beber na fonte, quando v. s.^a, ha dois para tres annos, deu
muita pancada nos criados, que era mesmo um reboliço que parecia o fim
do mundo. Eu vim contar ao pae, e elle até cahiu ao chão a dar risadas
como um doido... Depois nunca mais o vi senão quando v. s.^a entrou com
o tio de Coimbra; mas já sabia que vinha para esta desgraça, porque
tinha tido um sonho, em que via muito sangue, e eu estava a chorar,
porque via uma pessoa muito minha amiga a cahir n'uma cova muito
funda...
--Isso são sonhos, Marianna...
--São sonhos, são; mas eu nunca sonhei nada que não acontecesse. Quando
meu pae matou o almocreve, tinha eu sonhado que o via a dar um tiro
n'outro homem; antes de minha mãe morrer, acordei eu a chorar por ella,
e mais ainda viveu dois mezes... A gente da cidade ri-se dos sonhos; mas
Deus sabe o que isto é... Ahi vem meu pae... Senhor dos Passos! não vá
ser alguma má nova!...
João da Cruz entrou com uma carta que recebêra da pobre do costume. Em
quanto Simão leu a carta escripta do convento, Marianna fitou os seus
grandes olhos azues no rosto do academico, e a cada contracção da fronte
d'elle, angustiava-se-lhe a ella o coração. Não teve mão da sua ancia, e
perguntou:
--É noticia má!
--Tu és muito atrevida, rapariga!--disse João da Cruz.
--Não é, não--atalhou o estudante.--Não é má a noticia, Marianna. Senhor
João, deixe-me ter na sua filha uma amiga, que os desgraçados é que
sabem avaliar os amigos.
--Isso é verdade; mas eu não me atrevia a perguntar o que a carta diz.
--Nem eu perguntei, meu pae; foi porque me pareceu que o senhor Simão
estava afflicto quando lia.
--E não se enganou--tornou o doente, voltando-se para o ferrador.--O pae
arrastou Thereza ao convento.
--Sempre é patife d'uma vez!--disse o ferrador, fazendo com os braços
instinctivamente um movimento de quem aperta entre as mãos um pescoço.
N'este lance um observador perspicaz veria luzir nos olhos de Marianna
um clarão de innocente alegria.
Simão sentou-se, e escreveu sobre uma cadeira, que Thereza
espontaneamente lhe chegou, dizendo:
--Em quanto escreve, vou olhar pelo caldinho, que está a ferver.
«É necessário arrancar-te d'ahi--dizia a carta de Simão.--Esse convento
ha de ter uma evasiva. Procura-a, e diz-me a noite e a hora em que devo
esperar-te. Se não podéres fugir, essas portas hão de abrir-se diante da
minha cólera. Se d'ahi te mandarem para outro convento mais longe,
avisa-me, que eu irei sósinho, ou acompanhado, roubar-te ao caminho. É
indispensavel que te refaças de animo para te não assustarem os arrojos
da minha paixão. És minha; não sei de que me serve a vida se a não
sacrificar a salvar-te. Creio em ti, Thereza, creio. Ser-me-has fiel na
vida e na morte. Não soffras com paciencia; lucta com heroismo. A
submissão é uma ignominia, quando o poder paternal é uma affronta.
Escreve-me a toda a hora que possas. Eu estou quasi bom. Diz-me uma
palavra, chama-me, e eu sentirei que a perda do sangue não diminue as
forças do coração.»
Simão pediu a sua carteira, tirou dinheiro em prata, deu-o ao ferrador,
e recommendou-lhe que o entregasse á pobre com a carta.
Depois ficou relendo a de Thereza, e recordando-se da resposta que déra.
Mestre João foi á cosinha, e disse a Marianna:
--Desconfio d'uma coisa, rapariga.
--Que é, meu pae?
--O nosso doente está sem dinheiro.
--Porquê? o pae como sabe isso?
--É que elle pediu-me a carteira para tirar dinheiro, e ella pezava
tanto como uma bexiga de porco cheia de vento. Isto bole-me cá por
dentro! Queria offerecer-lhe dinheiro, e não sei como ha de ser...
--Eu pensarei n'isso, meu pae--disse Marianna reflectindo.
--Pois sim; cogita lá tu, que tens melhores ideias que eu.
--E se o pae não quizer bolir nos seus quatrocentos, eu tenho aquelle
dinheiro dos meus bezerros; são onze moedas d'ouro menos um quarto.
--Pois fallaremos: pensa tu no modo de elle aceitar sem _remorsos_.
Remorsos, na linguagem pouco castigada de mestre João, era synonimo de
_escrupulos_ ou _repugnancia_.
Foi Marianna levar o caldo a Simão, que lh'o rejeitou como distrahido em
profundo scismar.
--Pois não toma o caldinho?--disse ella com tristeza.
--Não posso, não tenho vontade, menina; será logo. Deixe-me sósinho
algum tempo; vá, vá; não passe o seu tempo ao pé d'um doente aborrecido.
--Não me quer aqui? irei, e voltarei quando v. s.^a chamar.
Dissera isto Marianna com os olhos a reverem lagrimas.
Simão notou as lagrimas, e pensou um momento na dedicação da môça; mas
não lhe disse palavra alguma.
E ficou pensando na sua espinhosa situação. Deviam de occorrer-lhe
ideias afflictivas, que os romancistas raras vezes attribuem aos seus
heroes. No romance todas as crises se explicam, menos a crise ignobil da
falta de dinheiro. Entendem os novellistas que a materia é baixa e
plebea. O estylo vai de má vontade para coisas razas. Balzac falla muito
em dinheiro; mas dinheiro a milhões: não conheço, nos cincoenta livros
que tenho d'elle, um galã n'um entre-acto da sua tragedia a scismar no
modo de arranjar uma quantia com que pague ao alfaiate, ou se
desembarace das rêdes que um usurario lhe lança, desde a casa do juiz de
paz a todas as esquinas, d'onde o assaltam o capital e juro de oitenta
por cento. D'isto é que os mestres em romances se escapam sempre. Bem
sabem elles que o interesse do leitor se gela a passo igual que o heroe
se encolhe nas proporções d'estes heroesinhos de botequim, de quem o
leitor dinheiroso foge por instincto, e o outro foge tambem, porque não
tem que fazer com elle. A coisa é vilmente prosaica, de todo o meu
coração o confesso. Não é bonito o deixar a gente vulgarisar-se o seu
heroe a ponto de pensar na falta de dinheiro, um momento depois que
escreveu á mulher estremecida uma carta, como aquella de Simão Botelho.
Quem a lêsse diria que o rapaz tinha postadas, em differentes estações
das estradas do paiz, carroças e folgadas parelhas de mulas, para
transportarem a Paris, a Veneza, ou ao Japão a bella fugitiva! As
estradas, n'aquelle tempo, deviam ser boas para isso; mas não tenho a
certeza de que houvessem estradas para o Japão. Agora creio que ha,
porque me dizem que ha tudo.
Pois eu já lhes fiz saber, leitores, pela bôca de mestre João, que o
filho do corregedor não tinha dinheiro. Agora lhes digo que era em
dinheiro que elle scismava quando Marianna lhe trouxe o caldo rejeitado.
A meu vêr, deviam attribulal-o estes pensamentos:
Como pagaria a hospitalidade de João da Cruz?
Com que agradeceria os desvelos de Marianna?
Se Thereza fugisse, com que recursos proveria á subsistencia de ambos!
Ora, Simão Botelho sahira de Coimbra com a sua mesada, que não era
grande, e quasi lh'a absorvêra o aluguel da cavalgadura, e a groseta
generosa que déra ao arreeiro, a quem devia o conhecimento do prestante
ferrador.
As reliquias d'esse dinheiro déra-as elle á portadora da carta n'aquelle
dia. Má situação!
Lembrou-se de escrever á mãe. Que lhe diria elle? Como explicaria a sua
residencia n'aquella casa? D'este modo não iria elle dar indicios da
morte mysteriosa dos dois criados de Balthazar Coutinho?
Além de que, sobejamente sabia elle que sua mãe o não amava; e, a
mandar-lhe algum dinheiro em segredo, seria escassamente o necessario
para a jornada até Coimbra. Péssima situação!
Cansado de pensar, favoreceu-o a providencia dos infelizes com um somno
profundo.
E Marianna entrára pé ante pé na sala, e ouvindo-lhe a respiração alta,
aventurou-se a entrar na alcova. Lançou-lhe um lenço de cassa sobre o
rosto, em roda do qual zumbia um enxame de moscas. Viu a carteira sobre
uma banqueta que adornava o quarto, pegou d'ella, e sahiu pé ante pé.
Abriu a carteira, viu papeis, que não soube lêr, e n'um dos
repartimentos duas moedas de seis vintens. Foi restituir a carteira ao
seu logar, e tomou d'um cabide as calças, collête, e jaqueta á
hespanhola, do hospede. Examinou os bolsos, e não encontrou um ceitil.
Retirou-se para um canto escuro do sobrado, e meditou. Esteve meia hora
assim, e meditava angustiada a nobre rapariga. Depois ergueu-se de
golpe, e conversou longo tempo com o pae. João da Cruz escutou-a,
contrariou-a; mas ia de vencida sempre pelas replicas da filha; até que,
a final, disse:
--Farei o que dizes, Marianna. Dá-me cá o teu dinheiro, que não vou
agora levantar a pedra da lareira para bolir no caixote dos quatrocentos
mil reis. Tanto faz um como outro: teu é elle todo.
Marianna deu-se pressa em ir á arca, d'onde tirou uma bolsa de linho com
dinheiro em prata, e alguns cordões, anneis e arrecadas. Guardou o seu
oiro n'uma boceta, e deu a bolsa ao pae.
João da Cruz apparelhou a egoa, e sahiu. Marianna foi para a sala do
doente.
Acordou Simão.
--Não sabe!?--exclamou ella com semblante entre alegre e assustado,
perfeitamente contrafeito.
--Que é, Marianna?
--Sua mãesinha sabe que v. s.^a aqui está.
--Sabe?! isso é impossivel! quem lh'o disse?
--Não sei; o que sei é que ella mandou chamar meu pae.
--Isso espanta-me!... E não me escreveu?
--Não, senhor!... Agora me lembro que talvez ella soubesse que o senhor
aqui esteve, e cuide que já não está, e por isso lhe não escreveu...
Poderá ser?
--Poderá; mas quem lh'o diria!? Se isto se sabe, então podem suspeitar
da morte dos homens.
--Póde ser que não; e ainda que desconfiem, não ha testemunhas. O pae
disse que não tinha mêdo nenhum. O que fôr, soará. Não esteja agora a
scismar n'isso... Vou-lhe buscar o caldinho, sim?
--Vá, se quer, Marianna. O ceu deparou-me em si a amizade de uma irmã.
Não achou a moça na sua alegre alma palavras em resposta á doçura que o
rosto do mancebo exprimira.
Veio com o «caldinho» diminuitivo que a rhetorica d'uma linguagem meiga
approva; mas contra o qual protestava a larga e funda malga branca, a
par da travessa com meia gallinha loira de gorda.
--Tanta coisa!--exclamou, sorrindo, Simão.
--Coma o que podér--disse ella córando.--Eu bem sei que os senhores da
cidade não comem em malgas tamanhas, mas eu não tinha outra mais
pequena, e coma sem nojo, que esta nunca serviu, que a fui eu comprar á
loja, por pensar que v. s.^a não quizera hontem comer por se atrigar da
outra.
--Não, Marianna, não seja injusta, eu não comi hontem pela mesma razão
que não cômo agora: não tinha, nem tenho vontade.
--Mas coma por eu lhe pedir... Perdôe o meu atrevimento... Faça de conta
que é uma sua irmã que lhe pede. Ainda agora me disse...
--Que o ceu me dava em si a amizade d'uma irmã...
--Pois ahi está...
Simão achou tão necessario á sua conservação o sacrificio, como ao
contentamento da carinhosa Marianna. Passou-lhe na mente, sem sombra de
vaidade, a conjectura de que era amado d'aquella dôce creatura. Entre si
disse que seria uma crueza mostrar-se conhecedor de tal affeição, quando
não tinha alma para lh'a premiar, nem para lhe mentir. Assim mesmo, bem
longe de se affligir, lisongeavam-o os desvelos da gentil moça. Ninguem
sente em si o pêso do amor que inspira e não comparte. Nas maximas
afflicções, nas derradeiras horas do coração e da vida, é grato ainda
sentir-se amado quem já não póde achar no amor diversão das penas, nem
soldar o ultimo fio que se está partindo. Orgulho ou insaciabilidade do
coração humano, seja o que fôr, no amor, que nos dão, é que nós
graduamos o que valemos em nossa consciencia.
Não desprazia, portanto, o amor de Marianna ao amante apaixonado de
Thereza. Isto será culpa no severo tribunal das minhas leitoras; mas, se
me deixam ter opinião, a culpa de Simão Botelho está na fraca natureza,
que é toda galas no ceu, no mar, e na terra, é toda incoherencias,
absurdezas, e vicios no homem, rei da creação chamado!


IX.

Duas horas se detivera João da Cruz fóra de casa. Chegou quando a
curiosidade do estudante era já soffrimento.
--Estará seu pae prêso?!--dissera elle a Marianna.
--Não m'o diz o coração, e o meu coração nunca me engana--respondêra
ella.
E Simão replicára:
--E que lhe diz o coração a meu respeito, Marianna? Os meus trabalhos
ficarão aqui?
--Vou-lhe dizer a verdade, senhor Simão... mas não digo...
--Diga, que lh'o peço, porque tenho fé no bom anjo que falla em sua
alma. Diga...
--Pois sim... O meu coração diz-me que os seus trabalhos ainda estão no
comêço...
Simão ouviu-a attentamente, e não respondeu. Assombrou-lhe o animo esta
ideia torva, e affrontosa á singela rapariga:--«Pensará ella em me
desviar de Thereza para se fazer amar?»
Pensava assim, quando chegou o ferrador.
--Aqui estou de volta--disse elle com semblante festivo--Sua mãe
mandou-me chamar...
--Já sei... E como soube ella que eu estava aqui?
--Ella sabia que o fidalgo estivera cá; mas cuidava que v. s.^a já tinha
ido para Coimbra. Quem lh'o disse não sei, nem perguntei; porque a uma
pessoa de respeito não se fazem perguntas, dizia meu pae. Dizia ella que
sabia o fim a que o senhor viera esconder-se aqui. Ralhou alguma coisa;
mas eu, cá como pude, accommodei-a, e não ha novidade. Perguntou-me o
que estava o menino fazendo aqui depois que a fidalguinha fôra para o
convento. Disse-lhe que v. s.^a estava adoentado d'uma quéda que dera do
cavallo abaixo. Tornou ella a perguntar se o senhor tinha dinheiro; e eu
disse que não sabia. E vai ella foi dentro, e voltou d'ahi a pouco com
este embrulho, para eu lhe entregar. Ahi o tem tal e qual; não sei
quanto é.
--E não me escreveu?
--Disse que não podia ir á escrivaninha, porque estava lá o senhor
corregedor--respondeu com firmeza mestre João--e tambem me recommendou
que não lhe escrevesse v. s.^a, senão de Coimbra, porque, se seu pae
soubesse que o menino cá estava, ia tudo razo lá em casa. Ora ahi está.
--E não lhe fallou nos criados de Balthazar?
--Nem um pio!.. Lá na cidade ninguem já fallava n'isso hoje.
--E que lhe disse da senhora D. Thereza?
--Nada, senão que ella fôra para o convento. Agora, deixe-me ir amantar
a egua, que está a escorrer em fio. Ó rapariga, traz-me cá a manta.
Em quanto Simão contava onze moedas menos um quartinho, maravilhado da
estranha liberalidade, Marianna, abraçando o pae no repartimento visinho
da casa, exclamava:
--Arranjou muito bem a mentira!...
--Ó rapariga, quem mentiu foste tu! Aquillo lá o arranjaste tu com essa
tua cabecinha! Mas a coisa sahiu ao pintar, heim? Elle comeu-a que nem
confeitos! Anda lá, que ficaste sem os bezerros; mas lá virá tempo em
que elle te dê bois a troco dos bezerros.
--Eu não fiz isto por interesse, meu pae...--atalhou ella resentida.
--Olha o milagre! isso sei eu; mas, como diz lá o dictado, quem semeia
colhe.
Marianna quedou pensativa, e dizendo entre si:--Ainda bem, que elle não
póde pensar de mim o que meu pae pensa. Deus sabe que não tenho
esperanças nenhumas interesseiras no que fiz.
Simão chamou o ferrador, e disse-lhe:
--Meu caro João, se eu não tivesse dinheiro, aceitava sem repugnancia os
seus favores, e creio que vocemecê m'os faria sem esperança de ganhar
com elles; mas como recebi esta quantia, ha de consentir que eu lhe dê
parte d'ella para os meus alimentos. Motivos de gratidão a dividas, que
se não pagam, ainda me ficam muitos para nunca me esquecer de si, e da
sua boa filha. Tome este dinheiro.
--As contas fazem-se no fim--respondeu o ferrador, retirando a mão--e
ninguem nos ha de ouvir, se Deus quizer. Precisando eu de dinheiro cá
venho. Por ora, ainda está a capoeira cheia de gallinhas, e o pão
coze-se todas as semanas.
--Mas aceite--instou Simão--e dê-lhe a applicação que quizer.
--Em minha casa ninguem dá leis senão eu--replicou o mestre João, com
simulado enfadamento--Guarde lá o seu dinheiro, fidalgo, e não fallemos
mais n'isso, se quer que o negocio vá direito até ao fim. _E
victo-serio_!
Nos cinco subsequentes dias recebeu Simão regularmente cartas de
Thereza, umas resignadas e confortadoras, outras escriptas na violencia
exasperada da saudade. Em uma dizia:
«Meu pae deve saber que estás ahi, e em quanto ahi estiveres, de certo
me não tira do convento. Seria bom que fosses para Coimbra, e
deixassemos esquecer a meu pae os ultimos acontecimentos. Senão, meu
querido esposo, nem elle me dá liberdade, nem eu sei como hei de fugir
d'este inferno. Não fazes ideia do que é um convento! Se eu podesse
fazer do meu coração sacrificio a Deus, teria de procurar uma atmosphera
menos viciosa que esta. Creio que em toda a parte se póde orar e ser
virtuosa, menos n'este convento.»
N'outra carta exprimia-se assim: «Não me desampares, Simão, não vás para
Coimbra. Eu receio que meu pae me queira mudar d'este convento para
outro mais rigoroso. Uma freira me disse que eu não ficava aqui; outra
positivamente me affirmou que o pae diligenceia a minha ida para um
convento do Porto. Sobre tudo, o que me aterra, mas não me dobra, é
saber eu que o intento do pae é fazer-me professar. Por mais que imagine
violencias e tyrannias, nenhuma vejo capaz de me arrancar os votos. Eu
não posso professar sem ser noviça um anno, e ir a perguntas tres vezes;
hei de responder sempre que não. Se eu podesse fugir d'aqui!... Hontem
fui á cêrca, e vi lá uma porta de carro que dá para o caminho. Soube que
algumas vezes aquella porta se abre para entrarem carros de lenha; mas
infelizmente não se torna a abrir até ao principio do inverno. Se não
poder antes, meu Simão, fugirei n'esse tempo.»
Tiveram entretanto bom e prompto exito as diligencias de Thadeu de
Albuquerque. A prelada de Monchique, religiosa de summas virtudes,
cuidando que a filha de seu primo muito de sua devoção e amor a Deus, se
recolhia ao mosteiro, preparou-lhe casa e congratulou-se com a sobrinha
de tão piedosa resolução. A carta congratulatoria não a recebeu Thereza,
porque viera á mão de seu pae. Continha ella reflexões tendentes a
desvanecêl-a do proposito, se algum desgosto passageiro a impellia á
imprudencia de procurar um refugio onde as paixões se exacerbavam mais.
Tomadas todas as precauções, Thadeu de Albuquerque fez avisar sua filha
de que sua tia de Monchique a queria ter em sua companhia algum tempo, e
que a partida teria logar na madrugada do seguinte dia.
Thereza, quando recebeu a surprendente nova, já tinha enviado a carta
d'aquelle dia a Simão. Em sua afflictiva perplexidade, resolveu fazer-se
doente, e tão febril estava das commoções, que dispensava o artificio. O
velho não queria transigir com a doença; mas o medico do mosteiro reagiu
contra a deshumanidade do pae e da prioreza interessada na violencia.
Quiz Thereza n'essa noite escrever a Simão; mas a criada da prelada,
obedecendo ás suspeitas da ama, não desamparou a cabeceira do leito da
enferma. Era causa a esta espionagem ter dito a escrivã, n'nma hora de
má digestão d'aquelle vinho estomacal, que Thereza passava as noites em
oração mental, e tinha correspondencia com um anjo do céu por
intervenção d'uma mendiga. Algumas religiosas tinham visto a mendiga no
páteo do convento esperando a esmola de Thereza; mas cuidaram que era
aquella pobre uma devoção da menina. As palavras ironicas da escrivã
foram commentadas, e a mendiga recebeu ordem de sahir da portaria.
Thereza, n'um impeto de angustia, quando tal soube, correu a uma
janella, e chamou a pobre, que se retirava assustada, e lançou-lhe ao
pateo um bilhete com estas palavras: «É impossivel a nossa
correspondencia. Vou ser tirada d'aqui para outro convento. Espera em
Coimbra noticias minhas.» Isto foi rapidamente ao conhecimento da
prioreza, e logo, ás ordens d'ella, partiu o hortelão no encalço da
pobre. O hortelão seguiu-a até fóra de portas, espancou-a, tirou-lhe o
bilhete, e foi do convento apresental-o a Thadeu de Albuquerque. A
mendiga não retrocedeu; caminhou a casa do ferrador, e contou a Simão o
acontecido.
Simão lançou-se fóra do leito, e chamou João da Cruz. N'aquelle aperto
queria ouvir uma voz, queria poder chamar amigo a um homem, que lhe
estendesse mão capaz de apertar o cabo d'um punhal. O ferrador ouviu a
historia, e deu o seu voto: «esperar até vêr». Simão repelliu a
prudencial frieza do confidente, e disse que partia para Vizeu
immediatamente.
Marianna estava alli; ouvira a confidencia, e achára acertada a opinião
de seu pae. Vendo, porém, a impaciencia do hospede, pediu licença para
fallar onde não era chamada, e disse:
--Se o senhor Simão quer, eu vou á cidade, e procuro no convento a
Brito, que é uma rapariga minha conhecida, moça d'uma freira, e dou-lhe
uma carta sua para entregar á fidalga.
--Isso é possivel, Marianna?!--exclamou Simão, a ponto de abraçar a
moça.
--Pois então!--disse o ferrador--o que póde fazer-se, faz-se. Vai-te
vestir, rapariga, que eu vou botar o albardão á égua.
Simão sentou-se a escrever. Tão embaralhadas lhe acudiam as ideias, que
não atinava a formar o designio mais proveitoso á situação de ambos. Ao
cabo de longa vacillação, disse a Thereza que fugisse á hora do dia,
quando a porta estivesse aberta, ou violentasse a porteira a abrir-lh'a.
Dizia-lhe que marcasse ella a hora do dia seguinte em que elle a devia
esperar, com cavalgaduras para a fuga. Em recurso extremo, promettia
assaltar com homens armados o mosteiro, ou incendial-o para se abrirem
as portas. Este programma era o mais parecido com o espirito do
academico: em vivo fogo estava aquella pobre cabeça! Fechada a carta,
começou a passear em torcicolos, como se obedecesse a desencontrados
impulsos. Encravava as unhas na cabeça, e arrancava os cabellos n'ellas.
Marrava como cego contra as paredes, e sentava-se um momento para
erguer-se de mais furioso impeto. Machinalmente aferrava das pistolas, e
sacudia os braços vertiginosos. Abria a carta para relêl-a, e estava a
ponto de rasgal-a, cuidando que iria tarde, ou não lhe chegaria ás mãos.
N'este conflicto de contrarios projectos, entrou Marianna, e muito
allucinado devia de estar Simão para lhe não dar fé das lagrimas.
O que tu soffrias, nobre coração de mulher pura! Se o que fazes por esse
moço é gratidão ao homem que salvou a vida de teu pae, que rara virtude
a tua! Se o amas, se por lhe dar allivio ás dôres, tu mesma lhe
desempeces o caminho por onde te elle ha de fugir para sempre, que nome
darei á tua virtude! que anjo te fadou o coração para a santidade d'um
obscuro martyrio!
--Estou prompta, disse Marianna.
--Aqui tem a carta, minha boa amiga. Faça muito por não vir sem
resposta--disse Simão, dando-lhe com a carta um embrulho de dinheiro.
--E o dinheiro também é para a senhora?--disse ella.
--Não, é para si, Marianna: compre um annel.
Marianna tomou a carta, e voltou rapidamente as costas, para que Simão
lhe não visse o gesto de despeito, se não desprêso.
O academico não ousou insistir, vendo-a apressar-se na descida para o
quinteiro, onde o ferrador enfreava a egua.
--Não lhe chegues muito com a vara--disse João da Cruz a Marianna, que,
d'um pulo, se assentou no albardão, coberto d'uma colxa escarlate.--Tu
vaes amarella como cidra, moça!--exclamou elle reparando na pallidez da
moça--Tu que tens?
--Nada; que hei de eu ter?! dê-me cá a vara, meu pae.
A egua partiu a galope, e o ferrador, no meio da estrada, a rever-se na
filha e na egua, dizia em soliloquio, que Simão ouvira:
--Vales tu mais, rapariga, que quantas fidalgas tem Vizeu! Pela mais
pintada não dava eu a minha egua; e, se cá viesse o Mira-Molim de
Marrocos pedir-me a filha, os diabos me levem se eu lh'a dava! Isto é
que são mulheres, e o mais é uma historia!


X.

Apeou Marianna defronte do mosteiro, e foi á portaria chamar a sua amiga
Brito.
--Que boa moça!--disse o padre capellão, que estava no raro lateral da
porta, praticando com a prioreza, ácerca da salvação das almas, e d'umas
ancoretas de vinho do Pinhão, que elle recebêra n'aquelle dia, e do qual
já tinha engarrafado um almude para tonisar o estomago da prelada.
--Que boa moça!--tornou elle, com um olho n'ella e outro no raro, onde a
ciumosa prioreza se estava remordendo.
--Deixe lá a moça, e diga quando ha de ir a servente buscar o vinho.
--Quando quizer, senhora prioreza; mas repare bem nos olhos, no feitio,
n'aquelle todo da rapariga!
--Pois repare o senhor padre João--replicou a freira--que eu tenho mais
que fazer.
E retirou-se com o coração mal-ferido, e o queixo superior escorrendo
lagrimas... de simonte.
--D'onde é vocemecê?--disse brandamente o padre capellão.
--Sou da aldeia--respondeu Marianna.
--Isso vejo eu; mas de que aldeia é?
--Não me confesso agora.
--Mas não faria mal se se confessasse a mim, menina, que sou padre.
--Bem vejo.
--Que mau genio tem!...
--É isto que vê.
--Quem procura cá no convento?
--Já disse lá para dentro quem procuro.
--Marianna! és tu?! Anda cá!
A moça fez uma cortezia de cabeça ao padre capellão, e foi ao locutorio
d'onde vinha aquella voz.
--Eu queria fallar comtigo em particular, Joaquina--disse Marianna.
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 06
  • Parts
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 01
    Total number of words is 4658
    Total number of unique words is 1736
    34.1 of words are in the 2000 most common words
    47.6 of words are in the 5000 most common words
    55.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 02
    Total number of words is 4706
    Total number of unique words is 1615
    36.2 of words are in the 2000 most common words
    49.5 of words are in the 5000 most common words
    56.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 03
    Total number of words is 4754
    Total number of unique words is 1569
    36.9 of words are in the 2000 most common words
    49.6 of words are in the 5000 most common words
    56.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 04
    Total number of words is 4771
    Total number of unique words is 1568
    38.4 of words are in the 2000 most common words
    51.4 of words are in the 5000 most common words
    59.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 05
    Total number of words is 4770
    Total number of unique words is 1596
    38.5 of words are in the 2000 most common words
    53.0 of words are in the 5000 most common words
    59.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 06
    Total number of words is 4637
    Total number of unique words is 1591
    37.1 of words are in the 2000 most common words
    49.7 of words are in the 5000 most common words
    56.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 07
    Total number of words is 4729
    Total number of unique words is 1619
    39.4 of words are in the 2000 most common words
    53.4 of words are in the 5000 most common words
    60.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 08
    Total number of words is 4716
    Total number of unique words is 1650
    37.0 of words are in the 2000 most common words
    50.2 of words are in the 5000 most common words
    57.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 09
    Total number of words is 4623
    Total number of unique words is 1628
    37.0 of words are in the 2000 most common words
    51.0 of words are in the 5000 most common words
    57.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 10
    Total number of words is 4663
    Total number of unique words is 1686
    35.1 of words are in the 2000 most common words
    48.0 of words are in the 5000 most common words
    54.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 11
    Total number of words is 1632
    Total number of unique words is 766
    42.5 of words are in the 2000 most common words
    55.2 of words are in the 5000 most common words
    62.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.