Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 01

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AMOR DE PERDIÇÃO.


AMOR DE PERDIÇÃO

(MEMORIAS D'UMA FAMILIA).

ROMANCE
POR
CAMILLO CASTELLO BRANCO.
* * * * *
Quem viu jámais vida amorosa, que não a visse afogada nas lagrimas do
desastre ou do arrependimento?
D. Francisco Manoel, (_Epanaphora amorosa_).
* * * * *
PORTO
EM CASA DE N. MORÉ--EDITOR,
PRAÇA DE D. PEDRO.
A mesma casa em Coimbra, Rua da Calçada.
Casa de Commissões em Paris, 2 bis, Rua d'Arcole.
1862.


PORTO: 1862--TYP. DE SEBASTIÃO JOSÉ PEREIRA.
Rua do Almada, 641.


AO ILLUSTRISSIMO E EXCELENTISSIMO SENHOR

*ANTONIO MARIA DE FONTES PEREIRA DE MELLO*
DEDICA
O Author.


_Ill.^mo e Ex.^mo Snr.
Ha de pensar muita gente que V. Ex.^a não dá valor algum a este livro,
que a minha gratidão lhe dedica, porque muita gente está persuadida que
ministros do estado não lêem novellas. É um engano. Uma vez ouvi eu um
collega de V. Ex.^a discorrer no parlamento ácerca de caminhos de ferro.
Com tanto engenho o fazia, de tantas flôres matizára aquella árida
materia, que me deleitou ouvil-o. Na noite d'esse dia encontrei o
collega de V. Ex.^a a lêr a Fanny, aquella Fanny, que sabia tanto de
caminhos de ferro como eu.
Que V. Ex.^a tem romances na sua bibliotheca, é convicção minha. Que lá
tem alguns, que não leu porque o tempo lhe falece, e outros porque não
merecem tempo, também o creio. Dê V. Ex.^a, no lote dos segundos, um
logar a este livro, e terá assim V. Ex.^a significado que o recebe e
aprecia, por levar em si o nome do mais agradecido e respeitador criado
de V. Ex.^a
Na cadêa da Relação do Porto,
aos 26 de Setembro de 1861.
Camillo Castello Branco_.


PREFACIO.

Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartorio das cadêas da
Relação do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, a
folhas 232, o seguinte:
_Simão Antonio Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e
estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa,
e assistente na occasião de sua prisão na cidade de Vizeu, idade de
dezoito annos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita
Preciosa Caldeirão Castello-Branco, estatura ordinaria, cara
redonda, olhos castanhos, cabello e barba preta, vestido com
jaqueta de baetão azul, collête de fustão pintado e calça de panno
pedrez. E fiz este assento, que assignei.
Filippe Moreira Dias_.
Á margem esquerda d'este assento está escripto:
_Foi para a India em 17 de Março de 1807_.
Não será fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o
degredo de um moço de dezoito annos lhe havia de fazer dó.
Dezoito annos! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida! As
louçanias do coração que ainda não sonha em fructos, e todo se embalsama
no perfume das flôres! Dezoito annos! O amor d'aquella idade! A passagem
do seio da familia, dos braços de mãe, dos beijos das irmãs para as
caricias mais dôces da virgem, que se lhe abre ao lado como flôr da
mesma sazão e dos mesmos aromas, e á mesma hora da vida! Dezoito
annos!... E degradado da patria, do amor, e da familia! Nunca mais o ceo
de Portugal, nem liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem rehabilitação, nem
dignidade, nem um amigo!... É triste!
O leitor de certo se compungia; e a leitora se lhe dissessem, em menos
de uma linha, a historia d'aquelles dezoito annos, choraria! Pois não? A
olhos enchutos poderia ouvil-a a mulher, a creatura mais bem formada das
branduras da piedade, a que por vezes traz comsigo do ceo um reflexo da
divina misericordia, essa, a minha leitora, a carinhosa amiga de todos
os infelizes não choraria se lhe dissessem que o pobre moço perdêra
honra, rehabilitação, patria, liberdade, irmãs, mãe, tudo, por amor da
primeira mulher que o despertou do seu dormir de innocentes desejos?!
Chorava, chorava! Assim eu lhe soubesse dizer o doloroso sobresalto que
me causaram aquellas linhas, de proposito procuradas, e lidas com
amargura e respeito e, ao mesmo tempo, odio. Odio, sim... A tempo verão
se é perdoavel o odio, ou se antes me não fôra melhor abrir mão desde já
de uma historia que me póde acarear enojos dos frios julgadores do
coração, e das sentenças que eu aqui lavrar contra a falsa virtude de
homens, feitos barbaros, em nome de sua honra.
* * * * *


AMOR DE PERDIÇÃO.

PRIMEIRA PARTE.


I.

Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Menezes, fidalgo de
linhagem, e um dos mais antigos solarengos de Villa Real de
Traz-os-Montes, era, em 1779, juiz de fóra de Cascaes, e n'esse mesmo
anno casara com uma dama do paço, D. Rita Thereza Margarida Preciosa da
Veiga Caldeirão Castello-Branco, filha d'um capitão de cavallos, e neta
de outro, Antonio de Azevedo Castello-Branco Pereira da Silva, tão
notavel por sua jerarchia, como por um, n'aquelle tempo, precioso livro
ácerca da Arte da Guerra.
Dez annos de enamorado mal succedido consumira em Lisboa o bacharel
provinciano. Para se fazer amar da formosa dama de D. Maria I
minguavam-lhe dotes physicos: Domingos Botelho era extremamente feio.
Para se inculcar como partido conveniente a uma filha segunda,
faltavam-lhe bens de fortuna: os haveres d'elle não excediam a trinta
mil cruzados em propriedades no Douro. Os dotes de espirito não o
recommendavam tambem: era alcançadissimo de intelligencia, e grangeara
entre os seus condiscipulos da universidade o epitheto de «brocas» com
que ainda hoje os seus descendentes em Villa Real são conhecidos. Bem ou
mal derivado, o epitheto _brocas_ vem de _brôa_. Entenderam os
academicos que a rudeza do seu condiscipulo procedia do muito pão de
milho que elle digeria na sua terra.
Domingos Botelho devia ter uma vocação qualquer; e tinha: era excellenle
flautista; foi a primeira flauta do seu tempo; e a tocar flauta se
sustentou dois annos em Coimbra, durante os quaes seu pae lhe suspendeu
as mesadas, porque os rendimentos da casa não bastavam a livrar outro
filho de um crime de morte[1].
Formara-se Domingos Botelho em 1767, e fôra para Lisboa lêr no
desembargo do paço, iniciação banal dos que aspiravam á carreira da
magistratura. Já Fernão Botelho, pae do bacharel, fôra bem acceite em
Lisboa, e mórmente ao duque de Aveiro, cuja estima lhe teve a cabeça em
risco, na tentativa regicida de 1758. O provinciano sahiu das masmorras
da Junqueira illibado da infamante nodoa, e bem-quisto mesmo do conde de
Oeiras, porque tomara parte na prova que este fizera do primor de sua
genealogia sobre a dos Pintos Coelhos do Bomjardim do Porto: pleito
ridiculo, mas estrondoso, movido pela recusa que o fidalgo portuense
fizera de sua filha ao filho de Sebastião José de Carvalho.
As artes com que o bacharel flautista vingou insinuar-se na estima de D.
Maria I e Pedro III não as sei eu. É tradição que o homem fazia rir a
rainha com as suas facecias, e por ventura com os tregeitos de que
tirava o melhor do seu espirito. O certo é que Domingos Botelho
frequentava o paço, e recebia do bolsinho da soberana uma farta pensão,
com a qual o aspirante a juiz de fóra se esqueceu de si, do futuro, e do
ministro da justiça, que muito rogado fiara das suas letras o encargo de
juiz de fóra de Cascaes.
Já está dito que elle se atreveu aos amores do paço, não poetando como
Luiz de Camões ou Bernardim Ribeiro; mas namorando na sua prosa
provinciana, e captando a bem-querença da rainha para amollecer as
durezas da dama. Devia de ser, a final, feliz o «doutor bexiga»--que
assim era na côrte conhecido--para se não desconcertar a discordia em
que andam rixados o talento e a felicidade. Domingos Botelho casou com
D. Rita Preciosa. Rita era uma formosura que ainda aos cincoenta annos
se podia presar de o ser. E não tinha outro dote, se não é dote uma
serie de avoengos, uns bispos, outros generaes, e entre estes o que
morrêra frigido em caldeirão de não sei que terra da mourisma; gloria,
na verdade, um pouco ardente; mas de tal monta que os descendentes do
general frito se assignaram _Caldeirões_.
A dama do paço não foi ditosa com o marido. Molestavam-na saudades da
côrte, das pompas das camaras reaes, e dos amores de sua feição e molde,
que immolou ao capricho da rainha. Este desgostoso viver, porém, não
impeceu a reproduzirem-se em dois filhos e quatro meninas. O mais velho
era Manoel, o segundo Simão; das meninas uma era Maria, a segunda Anna,
e a ultima tinha o nome de sua mãe, e alguns traços da belleza d'ella.
O juiz de fóra de Cascaes, solicitando logar de mais graduado banco,
demorava em Lisboa, na freguezia da Ajuda em 1784. N'este anno é que
nasceu Simão, o penultimo de seus filhos. Conseguiu elle, sempre
blandiciado da fortuna, transferencia para Villa Real, sua ambição
suprema.
A distancia de uma legua de Villa Real estava a nobreza da villa
esperando o seu conterraneo. Cada familia tinha a sua liteira com o
brasão da casa. A dos Correias de Mesquita era a mais antiquada no
feitio, e as librés dos criados as mais surradas e traçadas que
figuravam na comitiva.
D. Rita, avistando o prestito das liteiras, ajustou ao olho direito a
sua grande luneta de oiro, e disse:
--Ó Menezes, aquillo que é?!
--São os nossos amigos e parentes que veem esperar-nos.
--Em que seculo estamos nós n'esta montanha?--tornou a dama do paço.
--Em que seculo?! o seculo tanto é dezoito aqui como em Lisboa.
--Ah! sim? Cuidei que o tempo parára aqui no seculo doze.
O marido achou que devia rir-se do chiste, que o não lisonjeára
grandemente.
Fernão Botelho, pae do juiz de fóra, sahiu á frente do prestito para dar
a mão á nora, que apeava da liteira, e conduzil-a á de casa. D. Rita,
antes de vêr a cara de seu sogro, contemplou-lhe a olho armado as
fivelas de aço, e a bolsa do rabicho. Dizia ella depois que os fidalgos
de Villa Real eram muito menos limpos que os carvoeiros de Lisboa. Antes
de entrar na liteira avoenga de seu marido, perguntou, com a mais
refalsada seriedade, se não haveria risco em ir dentro d'aquella
antiguidade. Fernão Botelho asseverou a sua nora que a sua liteira não
tinha ainda cem annos, e que os machos não excediam a trinta.
O modo altivo como ella recebeu as cortezias da nobreza--velha nobreza
que para alli viera em tempo de D. Diniz, fundador da villa--fez que o
mais novo do prestito, que ainda vivia ha doze annos, me dissesse a mim:
«Sabiamos que ella era dama da Senhora D. Maria I; porém, da soberba com
que nos tractou, ficamos pensando que seria ella a propria rainha.»
Repicaram os sinos da terra quando a comitiva assomou á Senhora de
Almudena. D. Rita disse ao marido que a recepção dos sinos era a mais
estrondosa e barata.
Apearam á porta da velha casa de Fernão Botelho. A aia do paço relanceou
os olhos pela fachada do edificio, e disse de si para si: «É uma bonita
vivenda para quem foi criada em Mafra e Cintra, na Bemposta e Queluz.»
Decorridos alguns dias, D. Rita disse ao marido que tinha mêdo de ser
devorada das ratasanas; que aquella casa era um covil de feras; que os
tectos estavam a desabar; que as paredes não resistiriam ao inverno; que
os preceitos de uniformidade conjugal não obrigavam a morrer de frio uma
esposa delicada e affeita ás almofadas do palacio dos reis.
Domingos Botelho conformou-se com a estremecida consorte, e começou a
fabrica de um palacete. Escassamente lhe chegavam os recursos para os
alicerces: escreveu á rainha, e obteve generoso subsidio com que ultimou
a casa. As varandas das janellas foram a ultima dadiva que a real viuva
fez á sua dama. Quer-nos parecer que a dadiva é um testemunho até agora
inedito da demencia de D. Maria I.
Domingos Botelho mandara esculpir em Lisboa a pedra de armas; D. Rita,
porém, teimara que no escudo se abrisse um emblema das suas; mas era
tarde, porque já a obra tinha vindo do esculptor, e o magistrado não
podia com segunda despeza, nem queria desgostar seu pae, orgulhoso de
seu brasão. Resultou d'aqui ficar a casa sem armas, e D. Rita
victoriosa[2].
O juiz de fóra tinha alli parentella illustre. O aprumo da fidalga
dobrou-se até aos grandes da provincia, ou antes houve por bem
levantal-os até ella. D. Rita tinha uma côrte de primos, uns que se
contentavam de serem primos, outros que invejavam a sorte do marido. O
mais audacioso não ousava fital-a de rosto, quando o ella remirava com a
luneta em geito de tanta altivez e zombaria, que não será estranha
figura dizer que a luneta de Rita Preciosa era a mais vigilante
sentinella da sua virtude.
Domingos Botelho desconfiava da efficacia dos merecimentos proprios para
cabalmente encher o coração de sua mulher. Inquietava-o o ciume; mas
suffocava os suspiros, receando que Rita se désse por injuriada da
suspeita. E razão era que se offendesse. A neta do general frigido no
caldeirão sarraceno ria dos primos, que, por amor d'ella, arriçavam e
empoavam as cabelleiras com um desgracioso esmero, ou cavalleavam
estrepitosamente na calçada os seus ginetes, fingindo que os picadores
da provincia não desconheciam as graças hippicas do marquez de Marialva.
Não o cuidava assim, porém, o juiz de fóra. O intriguista que lhe trazia
o espirito em ancias era o seu espelho. Via-se sinceramente feio, e
conhecia Rita cada vez mais em flôr, e mais enfadada no trato intimo.
Nenhum exemplo da historia antiga, exemplo de amor sem quebra entre o
esposo deforme e a esposa linda, lhe occorria. Um só lhe mortificava a
memoria, e esse, com quanto fosse da fabula, era-lhe avêsso, e vinha a
ser o casamento de Venus e Vulcano. Lembravam-lhe as rêdes que o
ferreiro coixo fabricára para apanhar os deuses adulteros, e
assombrava-se da paciencia d'aquelle marido. Entre si, dizia elle, que,
erguido o véo da perfidia, nem se queixaria a Jupiter, nem armaria
ratoeiras aos primos. A par do bacamarte de Luiz Botelho, que varára em
terra o alferes, estava uma fileira de bacamartes em que o juiz de fóra
era entendido com muito superior intelligencia á que revelava na
comprehensão do Digesto e das Ordenações do Reino.
Este viver de sobresaltos durou seis annos, ou mais seria. O juiz de
fóra empenhára os seus amigos na transferencia, e conseguiu mais do que
ambicionava: foi nomeado provedor para Lamego. Rita Preciosa deixou
saudades em Villa Real, e duradoura memoria da sua soberba, formosura e
graças de espirito. O marido tambem deixou anecdotas que ainda agora se
repetem. Duas contarei sómente para não enfadar. Acontecèra um lavrador
mandar-lhe o presenle de uma vitella, e mandar com ella a vacca para se
não desgarrar a filha. Domingos Botelho mandou recolher á loja a vitella
e a vacca, dizendo que quem dava a filha dava a mãe. Outra vez, deu-se o
caso de lhe mandarem um presente de pasteis em rica salva de prata. O
juiz de fóra repartiu os pasteis pelos meninos, e mandou guardar a
salva, dizendo que receberia como escarneo um presente de dôces, que
valiam dez patacões, sendo que naturalmente os pasteis tinham vindo como
ornato da bandeja. E assim é que ainda hoje, em Villa Real, quando se dá
um caso analogo de ficar alguem com o conteúdo e continente, diz a gente
da terra: «Aquelle é como o doutor brocas.»
Não tenho assumpto de tradição com que possa deter-me em miudezas da
vida do provedor em Lamego. Escassamente sei que D. Rita aborrecia a
comarca, e ameaçava o marido de ir com os seus cinco filhos para Lisboa,
se elle não sahisse d'aquella intratavel terra. Parece que a fidalguia
de Lamego, em todo o tempo orgulhosa d'uma antiguidade, que principia na
acclamação de Almacave, desdenhou a philaucia da dama do paço, e
esmerilhou certas vergonteas pôdres do tronco dos Botelhos Correias de
Mesquita, desprimorando-lhe as sãs com o facto de elle ter vivido dois
annos em Coimbra tocando flauta.
Em 1801 achamos Domingos José Correia Botelho de Mesquita corregedor em
Vizeu.
Manoel, o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois annos, e frequenta
o segundo anno juridico. Simão, que tem quinze, estuda humanidades em
Coimbra. As tres meninas são o prazer e a vida toda do coração de sua
mãe.
O filho mais velho escreveu a seu pae queixando-se de não poder viver
com seu irmão, temeroso do genio sanguinario d'elle. Conta que a cada
passo se vê ameaçado na vida, porque Simão emprega em pistolas o
dinheiro dos livros, e convive com os mais famosos perturbadores da
academia, e corre de noite as ruas insultando os habitantes e
provocando-os á luta com assuadas. O corregedor admira a bravura de seu
filho Simão, e diz á consternada mãe que o rapaz é a figura e o genio de
seu bisavô Paulo Botelho Correia, o mais valente fidalgo que déra
Traz-os-Montes.
Manoel, cada vez mais aterrado das arremettidas de Simão, sáe de Coimbra
antes de ferias, e vai a Vizeu queixar-se, e pedir que lhe dê seu pae
outro destino. D. Rita quer que seu filho seja cadete de cavallaria. De
Vizeu parte para Bragança Manoel Botelho, e justifica-se nobre dos
quatro costados para ser cadete.
No entanto Simão recolhe a Vizeu com os seus exames feitos e approvados.
O pae maravilha-se do talento do filho, e desculpa-o da extravagancia
por amor do talento. Pede-lhe explicações do seu mau viver com Manoel, e
elle responde que seu irmão o quer forçar a viver monasticamente.
Os quinze annos de Simão tem apparencias de vinte. É forte de
compleição; bello homem com as feições de sua mãe, e a corpolencia
d'ella; mas de todo avêsso em genio. Na plebe de Vizeu é que elle
escolhe amigos e companheiros. Se D. Rita lhe censura a indigna eleição
que faz, Simão zomba das genealogias, e mórmente do general Caldeirão
que morreu frito. Isto bastou para elle grangear a mal-querença de sua
mãe. O corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou parte
no desgosto d'ella, e na aversão ao filho. As irmãs temiam-no, tirante
Rita, a mais nova, com quem elle brincava puerilmente, e a quem
obedecia, se lhe ella pedia, com meiguices de criança, que não andasse
com pessoas mecanicas.
Finalisavam as ferias, quando o corregedor teve um grave dissabor. Um de
seus criados tinha ido levar a beber os machos, e por descuido ou
proposito deixou quebrar algumas vasilhas que estavam á vez no parapeito
do chafariz. Os donos das vazilhas conjuraram contra o criado, e
espancaram-no. Simão passava n'esse ensejo; e, armado d'um fueiro que
descravou d'um carro, partiu muitas cabeças, e rematou o tragico
espectaculo pela farça de quebrar todos os cantaros. O povoleu intacto
fugira espavorido, que ninguem se atrevia ao filho do corregedor; os
feridos, porém, incorporaram-se e foram clamar justiça á porta do
magistrado.
Domingos Botelho bramia contra o filho, e ordenava ao meirinho geral que
o prendesse á sua ordem. D. Rita, não menos irritada, mas irritada como
mãe, mandou, por portas travessas, dinheiro ao filho para que, sem
detença, fugisse para Coimbra, e esperasse lá o perdão do pae.
O corregedor, quando soube o expediente de sua mulher, fingiu-se
zangado, e prometteu fazel-o capturar em Coimbra. Como, porém, D. Rita
lhe chamasse brutal nas suas vinganças, e estupido juiz d'uma rapaziada,
o magistrado desenrugou a severidade postiça da testa, e confessou
tacitamente que era brutal e estupido juiz.


II.

Simão Botelho levou de Vizeu para Coimbra as arrogantes convicções da
sua valentia. Se recordava os chibantes pormenores da derrota em que
pozera trinta aguadeiros, o som cavo das pancadas, a queda atordoada
d'este, o levantar-se d'aquelle ensanguentado, a bordoada que abrangia
tres a um tempo, a que afocinhava dois, a gritaria de todos, e o
estrepito dos cantaros a final, Simão deliciava-se n'estas lembranças,
como ainda não vi n'algum drama, em que o veterano de cem batalhas
relembra os lourós de cada uma, e esmorece, a final, estafado de
espantar, quando não é de estafar, os ouvintes.
O academico, porém, com os seus enthusiasmos era incomparavelmente muito
mais prejudicial e perigoso que o mata-mouros de tragedia. As
recordações esporeavam-no a façanhas novas, e n'aquelle tempo a academia
dava azo a ellas. A mocidade estudiosa, em grande parte, sympathisava
com as balbuciantes theorias da liberdade, mais por presentimento que
por estudo. Os apostolos da revolução franceza não tinham podido fazer
reboar o trovão dos seus clamores n'este canto do mundo; mas os livros
dos encyclopedistas, as fontes onde a geração seguinte bebêra a peçonha
que sahiu no sangue de noventa e tres, não eram de todo ignorados. As
doutrinas da regeneração social pela guilhotina tinham alguns timidos
sectarios em Portugal, e esses de vêr é que deviam pertencer á geração
nova. Além de que, o rancor a Inglaterra lavrava nas entranhas das
classes manufactureiras, e o desprender-se do jugo aviltador de
estranhos, apertado, desde o principio do seculo anterior, com as sôgas
de ruinosos e perfidos tractados, estava no animo de muitos e bons
portuguezes que se queriam antes alliançados com a França, Estes eram os
pensadores reflexivos; os sectarios da academia, porém, exprimiam mais a
paixão da novidade que as doutrinas do raciocinio.
No anno anterior de 1800 sahira Antonio de Araujo de Azevedo, depois
conde da Barca, a negociar em Madrid e Paris a neutralidade de Portugal.
Rejeitaram-lhe as potencias alliadas as propostas, tendo-lhe em conta de
nada os dezeseis milhões que o diplomata offerecia ao primeiro consul.
Sem delongas, foi o territorio portuguez infestado pelos exercitos de
Hespanha e França. As nossas tropas, commandadas pelo duque de Lafões,
não chegaram a travar a lucta desigual, porque, a esse tempo, Luiz Pinto
de Sousa, mais tarde visconde de Balsemão, negociara ignominiosa paz em
Badajoz, com cedencia de Olivença á Hespanha, exclusão de inglezes dos
nossos portos, e indemnisação de alguns milhões á França.
Estes successos tinham irritado contra Napoleão os animos d'aquelles que
odiavam o aventureiro, e para outros deram causa a congratularem-se do
rompimento com Inglaterra. Entre os d'esta parcialidade, na convulsiva e
irriquieta academia, era voto de grande monta Simão Botelho, apesar dos
seus imberbes dezeseis annos. Mirabeau, Danton, Robespierre, Desmoulins,
e muitos outros algozes e martyres do grande açougue, eram nomes de
soada musical aos ouvidos de Simão. Diffamal-os na sua presença era
affrontarem-no a elle, e bofetada certa, e pistolas engatilhadas á cara
do diffamador. O filho do corregedor de Vizeu defendia que Portugal
devia regenerar-se n'um baptismo de sangue, para que a hydra dos
tyrannos não erguesse mais uma das suas mil cabeças sob a clava do
Hercules popular.
Estes discursos, arremêdo d'alguma clandestina objurgatoria de
Saint-Just, afugentavam da sua communhão aquelles mesmos que o tinham
applaudido em mais racionaes principios de liberdade. Simão Botelho
tornou-se odioso aos condiscipulos que, para se salvarem pela infamia, o
delataram ao bispo-conde, reitor da universidade.
Um dia proclamava o demagogo academico na praça de Sansão aos poucos
ouvintes que lhe restaram fieis, uns por mêdo, outros por analogia de
boças. O discurso ia no mais acrisolado da ideia regicida, quando uma
escolta de verdeaes lhe aguou a escandecencia. Quiz o orador resistir,
aperrando as pistolas, mas de sobra sabiam os braços musculosos da
cohorte do bispo-conde com quem as haviam. O jacobino, desarmado e
cerrado entre a escolta dos archeiros, foi levado ao carcere academico,
d'onde sahiu, seis mezes depois, a grandes instancias dos amigos de seu
pae e dos parentes de D. Rita Preciosa.
Perdido o anno lectivo, foi para Vizeu Simão. O corregedor repelliu-o da
sua presença com ameaças de o expulsar de casa. A mãe, mais levada do
dever que do coração, intercedeu pelo filho, e conseguiu sental-o á mesa
commum.
No espaço de tres mezes fez-se maravilhosa mudança nos costumes de
Simão. As companhias da ralé despresou-as. Sahia de casa raras vezes, ou
só, ou com a irmã mais nova, sua predilecta. O campo, as arvores, e os
sitios mais sombrios e êrmos eram o seu recreio. Nas dôces noites de
estio demorava-se por fora até ao repontar da alva; e aquelles que assim
o viam admiravam-lhe o ar scismador e o recolhimento que o sequestrava
da vida vulgar. Em casa encerrava-se no seu quarto, e sahia quando o
chamavam para a mesa.
D. Rita pasmava da transfiguração, e o marido, bem convencido d'ella, ao
fim de cinco mezes consentiu que seu filho lhe dirigisse a palavra.
Simão Botelho amava. Ahi está uma palavra unica, explicando o que
parecia absurda reforma aos dezesete annos.
Amava Simão uma sua visinha, menina de quinze annos, rica herdeira,
regularmente bonita e bem nascida. Da janella do seu quarto é que elle a
vira a primeira vez para amal-a sempre. Não ficara ella incolume da
ferida que fizera no coração do visinho: amou-o tambem, e com mais
seriedade que a usual nos seus annos.
Os poetas cansam-nos a paciencia a fallarem do amor da mulher aos quinze
annos, como paixão perigosa, unica, e inflexivel. Alguns prosadores de
romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos. O amor dos quinze annos é uma
brincadeira; é a ultima manifestação do amor ás bonecas; é a tentativa
da avesinha que ensaia o vôo fóra do ninho, sempre com os olhos fitos na
ave mãe que a está da fronde proxima chamando: tanto sabe a primeira o
que é amar muito, como a segunda o que é voar para longe.
Thereza de Albuquerque devia ser, por ventura, uma excepção no seu amor.
O magistrado e sua familia eram odiosos ao pae de Thereza, por motivos
de litigios em que Domingos Botelho lhe deu sentenças contra. Afóra
isso, ainda no anno anterior dois criados de Thadeu de Albuquerque
tinham sido feridos na celebrada pancadaria da fonte. Salta aos olhos
que o amor de Thereza, declinando de si o dever de obtemperar e
sacrificar-se ao justo azedume de seu pae, era verdadeiro e forte.
E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e
fallaram-se tres mezes, sem darem rebate á visinhança, e nem sequer
suspeitas ás duas familias. O destino, que ambos se promettiam, era o
mais honesto: elle ia formar-se para poder sustental-a, se não tivessem
outros recursos; ella esperava que seu velho pae fallecesse para,
senhora sua, lhe dar com o coração o seu grande patrimonio. Espanta
discrição tamanha na indole de Simão Botelho, e na presumivel ignorancia
de Thereza em coisas materiaes da vida, como são um patrimonio!
Na vespera da sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho despedindo-se
da suspirosa menina, quando subitamente ella foi arrancada da janella. O
allucinado moço ouviu gemidos d'aquella voz que, um momento antes,
soluçava commovida por lagrimas de saudade. Subiu-lhe o sangue á cabeça;
contorceu-se no seu quarto como o tigre contra as grades inflexiveis da
jaula. Teve tentações de se matar, na impotencia de soccorrêl-a. As
restantes horas d'aquella noite passou-as em raivas e projectos de
vingança. Com o amanhecer esfriou-lhe o sangue, e renasceu a esperança
com os calculos.
Quando o chamaram para partir para Coimbra, lançou-se do leito de tal
modo desfigurado, que sua mãe, avisada do rosto amargurado d'elle, foi
ao quarto interrogal-o e despersuadil-o de ir era quanto assim estivesse
febril. Simão, porém, entre mil projectos, achara melhor o de ir para
Coimbra, e esperar lá noticias de Thereza, e vir a Vizeu occultamente
fallar com ella. Ajuizadamente discorrêra elle, que a sua demora
aggravaria a situação de Thereza.
Descêra o academico ao páteo, depois de abraçar a mãe e irmãs, e beijar
a mão do pae, que para esta hora reservara uma admoestação severa, a
ponto de lhe asseverar que de todo o abandonaria se elle recahisse em
novas extravagancias. Quando mettia o pé no estribo, viu a seu lado uma
velha mendiga, estendendo-lhe a mão aberta, como quem pede esmola, e, na
palma da mão, um pequeno papel. Sobresaltou-se o moço; e, a poucos
passos distante de sua casa, leu estas linhas:
«Meu pae diz que me vai encerrar n'um convento, por tua causa. Soffrerei
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