Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 02

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tudo por amor de ti. Não me esqueças tu, e achar-me-has no convento, ou
no ceo, sempre tua do coração, e sempre leal. Parte para Coimbra. Lá
irão dar as minhas cartas; e na primeira te direi em que nome has de
responder á tua pobre Thereza.»
A mudança do estudante maravilhou a academia. Se o não viam nas aulas,
em parte nenhuma o viam. Das antigas relações restavam-lhe apenas as dos
condiscipulos sensatos que o aconselhavam para bem, e o visitaram no
carcere de seis mezes, dando-lhe alentos e recursos, que seu pae lhe não
dava, e sua mãe escassamente suppria. Estudava com fervor, como quem já
d'alli formava as bases do futuro renome e da posição por elle merecida,
bastante a sustentar dignamente a esposa. A ninguem confiava o seu
segredo, senão ás cartas que enviava a Thereza, longas cartas em que
folgava o espirito da canceira da sciencia. A apaixonada menina
escrevia-lhe a miudo, e já dizia que a ameaça do convento fôra mero
terror de que já não tinha mêdo, porque seu pae não podia viver sem
ella.
Isto afervorou-lhe para mais o amor ao estudo. Simão, chamado em pontos
difficeis das materias do primeiro anno, tal conta deu de si, que os
lentes e os condiscipulos o houveram como primeiro premiado.
A este tempo, Manoel Botelho, cadete em Bragança, destacado no Porto,
licenciou-se para estudar na universidade as mathematicas. Animou-o a
noticia do reviramento que se déra em seu irmão. Foi viver com elle;
achou-o quieto; mas alheado n'uma ideia que o tornava misanthropo e
intratavel n'outro genero. Pouco tempo conviveram, sendo a causa da
separação um desgraçado amor de Manoel Botelho a uma açoriana casada com
um academico. A esposa apaixonada perdeu-se nas illusões do cego amante.
Deixou o marido, e fugiu com elle para Lisboa, e d'ahi para Hespanha. Em
outro relanço d'esta narrativa darei conta do remate d'este episodio.
No mez de Fevereiro de 1803 recebeu Simão Botelho uma carta de Thereza.
No seguinte capitulo se diz minuciosamente a peripecia que forçára a
filha de Thadeu de Albuquerque a escrever aquella carta de pungentissima
surpreza para o academico, convertido aos deveres, á honra, á sociedade
e a Deus pelo amor.


III.

O pae de Thereza não embicaria na impureza do sangue do corregedor, se o
ajustarem-se os dois filhos em casamento se compadecesse com o odio de
um e o desprêso do outro. O magistrado mofava do rancor do seu visinho,
e o visinho malsinava de venalidade a reputação do magistrado. Este
sabia da injuriosa vingança em que o outro se ia despicando; fingia-se
invulneravel á detracção; mas de dia para dia se lhe azedava a bilis; e
é de crêr que, se o não contivessem considerações de familia, soffreria
menos, desabafando pela bôca d'um bacamarte, arma da predilecção dos
Botelhos Correias de Mesquita. Era obra sobrehumana o reconciliarem-se.
Rita, a filha mais nova, estava um dia na janella do quarto de Simão, e
viu a visinha rente com os vidros e a testa apoiada nas mãos. Sabia
Thereza que era aquella menina a mais querida irmã de Simão, e a que
mais semelhança de parecer tinha com elle. Sahiu da sua artificial
indifferença, e respondeu ao reparo de Rita, fazendo-lhe com a mão um
gesto e sorrindo para ella. A filha do corregedor sorriu tambem, mas
fugiu logo da janella, porque sua mãe tinha prohibido ás filhas de
trocarem vistas com pessoa d'aquella casa.
No dia seguinte á mesma hora, levada da sympathia que lhe causára
aquelle sorriso e aceno, tornou Rita á janella, e lá viu Thereza com os
olhos fitos na sua, como se a estivesse esperando. Sorriram-se com
resguardo, afastando-se, a um tempo, do peitoril das janellas; e assim,
ambas de pé, no interior dos quartos, se estavam contemplando. Como a
rua era estreita, podiam ouvir-se fallando baixo. Thereza, mais pelo
movimento dos labios que por palavras, perguntou a Rita se era sua
amiga. A menina respondeu com um gesto affirmativo, e fugiu,
acenando-lhe um adeus. Estes rapidos instantes de se vêrem repetiram-se
successivos dias, até que, perdido o maior mêdo de ambas, ousaram
demorar-se em palestras a meia voz. Thereza fallava de Simão, contava á
menina de onze annos o segredo do seu amor, e dizia-lhe que ella havia
de ser ainda sua irmã, recommendando-lhe muito que não dissesse nada á
sua familia.
N'uma d'essas conversações, Rita descuidara-se, e levantou de modo a voz
que foi ouvida d'uma irmã, que a foi logo accusar ao pae. O corregedor
chamou Rita, e forçou-a pelo terror a contar tudo que ouvira á visinha.
Tanta foi sua cólera, que, sem attender ás razões da esposa, que viera
espavorida dos gritos d'elle, correu ao quarto de Simão, e viu ainda
Thereza á janella.
Ólé!--disse elle á pállida menina--Não tenha a confiança de pôr olhos em
pessoa de minha casa. Se quer casar, case com um sapateiro, que é um
digno genro de seu pae.
Thereza não ouviu o remate da brutal apostrophe: tinha fugido aturdida e
envergonhada. Porém, como o desabrido ministro ficasse bramindo no
quarto, e Thadeu de Albuquerque sahisse a uma janella, a cólera
d'aquelle redobrou, e a torrente das injurias, longo tempo represada,
bateu no rosto do visinho, que não ousou replicar-lhe.
Thadeu interrogou sua fllha, e acreditou que foi causa á sanha de
Domingos Botelho estarem as duas meninas praticando innocentemente, por
tregeitos, em coisas de sua idade. Desculpou o velho a criancice de
Thereza, admoestando-a a que não voltasse áquella janella.
Esta mansidão do fidalgo, cujo natural era bravio, tem a sua explicação
no projecto de casar em breve a filha com seu primo Balthazar Coutinho,
de Castro-d'Aire, senhor de casa, e egualmenle nobre da mesma prosapia.
Cuidava o velho, presumpçoso conhecedor do coração das mulheres, que a
brandura seria o mais seguro expediente para levar a filha ao
esquecimento d'aquelle pueril amor a Simão. Era maxima sua que o amor,
aos quinze annos, carece de consistencia para sobreviver a uma ausencia
de seis mezes. Não pensava errado o fidalgo, mas o erro existia. As
excepções tem sido o ludibrio dos mais assizados pensadores, tanto no
especulativo como na sciencia positiva. Não era muito que Thadeu de
Albuquerque fosse enganado em coisas de amor e coração de mulher, cujas
variantes são tantas e tão caprichosas, que eu não sei se alguma maxima
póde ser-nos guia, a não ser esta: «Em cada mulher, quatro mulheres
incomprehensiveis, pensando alternadamente como se hão de desmentir umas
ás outras.» Isto é o mais seguro; mas não é infallivel. Ahi está Thereza
que parece ser unica em si. Dir-se-ha que as tres da conta, que diz a
sentença, não podem coexistir com a quarta, aos quinze annos? Tambem o
penso assim, posto que a fixidez, a constancia d'aquelle amor, funda em
causa independente do coração: é porque Thereza não vai á sociedade, não
tem um altar em cada noite na sala, não provou o incenso d'outros
galans, nem teve ainda uma hora de comparar a imagem amada, desluzida
pela ausencia, com a imagem amante, amor nos olhos que a fitam, e amor
nas palavras que a convencem de que ha um coração para cada homem, e uma
só mocidade para cada mulher. Quem me diz a mim que Thereza teria em si
as quatro mulheres da maxima, se o vapor de quatro incensorios lhe
estonteasse o espirito? Não é facil, nem preciso decidir; e vamos ao
conto.
Ácerca de Simão Botelho, nunca diante de sua filha Thadeu de Albuquerque
proferiu palavra, nem antes nem depois do disparate do corregedor. O que
elle fez logo foi chamar a Vizeu o sobrinho de Castro d'Aire, e
prevenil-o do seu designio, para que elle em face de Thereza procedesse
como convinha a um enamorado de feição, que mutuamente se apaixonassem e
promettessem auspicioso futuro ao casamento.
Por parte de Balthazar Coutinho a paixão inflammou-se tão depressa,
quanto o coração de Thereza se congelou de terror e repugnancia. O
morgado de Castro-d'Aire, attribuindo a frieza de sua prima a modestia,
a innocencia e acanhamento, lisonjeou-se do virginal melindre d'aquella
alma, e saboreou de antemão o prazer de uma lenta, mas segura conquista.
Verdade é que Balthazar nunca se explicara de modo que Thereza lhe désse
resposta decisiva; um dia, porém, instigado por seu tio, affoitou-se o
ditoso noivo a fallar assim á melancólica menina:
--É tempo de lhe abrir o meu coração, prima. Está bem disposta a
ouvir-me?
---Eu estou sempre bem disposta a ouvil-o, primo Balthazar.
A desplicencia enfadosa d'esta resposta abalou algum tanto as convicções
do fidalgo, respeito á innocencia, modestia e acanhamento de sua prima.
Ainda assim quiz elle no momento persuadir-se que a boa vontade não
poderia exprimir-se d'outro modo, e continuou:
--Os nossos corações penso eu que estão unidos; agora é preciso que as
nossas casas se unam.
Thereza impallideceu, e baixou os olhos.
--Acaso lhe diria eu alguma coisa desagradavel?!--proseguiu Balthazar,
rebatido pela desfiguração de Thereza.
--Disse-me o que é impossível fazer-se--respondeu ella sem turvação--O
primo engana-se: os nossos corações não estão unidos. Sou muito sua
amiga, mas nunca pensei em ser sua esposa, nem me lembrou que o primo
pensava em tal.
--Quer dizer que me aborrece, prima Thereza?--atalhou corrido o morgado.
--Não, senhor: já lhe disse que o estimava muito, e por isso mesmo não
devo ser esposa d'um amigo a quem não posso amar. A infelicidade não
seria só minha...
--Muito bem... Posso eu saber--tornou com refalsado sorriso o
primo--quem é que me disputa o coração de minha prima?
--Que lucra em o saber?
--Lucro saber, pelo menos, que a minha prima ama outro homem... é
exacto?
--É.
--E com tamanha paixão que desobedece a seu pae?
--Não desobedeço: o coração é mais forte que a submissa vontade de uma
filha. Desobedeceria, se casasse contra a vontade de meu pae; mas eu não
disse ao primo Balthazar que casava; disse-lhe unicamente que amava.
--Sabe a prima que eu estou espantado do seu modo de dizer!... quem
pensaria que os seus dezeseis annos estavam tão abundantes de
palavras!...
--Não são só palavras, primo--retorquiu Thereza com gravidade--são
sentimentos que merecem a sua estima, por serem verdadeiros. Se lhe eu
mentisse ficaria mais bem vista de meu primo?
--Não, prima Thereza; fez bem em dizer a verdade, e de a dizer em tudo.
Ora, olhe, não duvída declarar quem é o ditoso mortal da sua
preferencia?
--Que lhe faz saber isso?
--Muito, prima: todos temos a nossa vaidade, e eu folgaria muito de me
vêr vencido por quem tivesse merecimentos que eu não tenho aos seus
olhos. Tem a bondade de me dizer o seu segredo, como o diria a seu primo
Balthazar, se o tivesse em conta do seu amigo intimo?
--N'essa conta é que eu o não posso já ter...--respondeu Thereza,
sorrindo e contando, como elle, as syllabas das palavras.
--Pois nem para amigo me quer?!
--O primo não me perdoa a sinceridade que eu tive, e será de hoje em
diante meu inimigo.
--Pelo contrario...--tornou elle com mal rebuçada ironia--muito pelo
contrario... Eu lhe provarei que sou seu amigo, se alguma vez a vir
casada com algum miseravel indigno de si.
--Casada!...--interrompeu ella; mas Balthazar cortou-lhe logo a réplica
d'este modo:
--Casada com algum famoso ébrio ou jogador de páo, valentão de
aguadeiros, e distincto cavalheiro que passa os annos lectivos
encarcerado nas cadêas de Coimbra...
Visivel é que Balthazar Coutinho estava senhor do segredo de Thereza.
Seu tio, naturalmente, lhe communicara a criancice da prima, talvez
antes de destinar-lh'a esposa.
Ouvira Thereza o tom sarcastico d'aquellas palavras, e erguêra-se
respondendo assim com altivez:
--Não tem mais que me diga, primo Balthazar?
--Tenho, prima: queira sentar-se algum tempo mais. Não cuide agora que
está fallando com o namorado infeliz: convença-se de que falla com o seu
mais proximo parente e mais sincero amigo, e mais decidido guarda da sua
dignidade e fortuna. Eu sabia que minha prima, contra a expressa vontade
de seu pae, uma ou outra vez conversára da janella com o filho do
corregedor. Não dei valor ao successo, e tomei-o como criancice. Como eu
frequentasse o meu ultimo anno em Coimbra, ha dois annos conheci de
sobra Simão Botelho. Quando vim e me contaram a sua affeição ao
academico, pasmei da boa fé da priminha; depois entendi que a sua mesma
innocencia devia ser o seu anjo custodio. Agora, como seu amigo,
cumpunjo-me de a vêr ainda fascinada pela perversidade do seu visinho.
Não se recorda de ter visto Simão Botelho sociando com a infima
vilanagem d'esta terra? Não viu os seus criados com as cabeças quebradas
pelo tal varredor de feiras? Não lhe constou que elle, em Coimbra,
abarrotado de vinho, andava pelas ruas armado como um salteador de
estradas, proclamando á canalha a guerra aos nobres, e aos reis, e á
religião de nossos paes? A prima ignoraria isto por ventura?
--Ignorava parte d'isso, e não me afflige o sabêl-o. Desde que conheci
Simão, não me consta que elle tenha dado o menor desgosto á sua familia,
nem ouço fallar mal d'elle.
--E está por isso persuadida de que Simão deve ao seu amor a reforma de
costumes?
--Não sei, nem penso n'isso--replicou com enfado Thereza.
--Não se zangue, prima. Vou-lhe dizer as minhas ultimas palavras: eu hei
de, em quanto viver, trabalhar para salval-a das garras de Simão
Botelho. Se seu pae lhe faltar, fico eu. Se as leis a não defenderem dos
ataques do seu demonio, eu farei vêr ao valentão que a victoria sobre os
aguadeiros não o poupa ao desgosto de ser levado a pontapés para fóra da
casa de meu tio Thadeu d'Albuquerque.
--Então o primo quer-me governar?--atalhou ella com desabrida irritação.
--Quero-a dirigir em quanto a sua razão precisar de auxilio. Tenha
juizo, e eu serei indifferente ao seu destino. Não a enfado mais, prima
Thereza.
Balthazar Coutinho foi d'ali procurar seu tio, e contou-lhe o essencial
do dialogo. Thadeu, atonito da coragem da filha, e ferido no coração e
direitos paternaes, correu ao quarto d'ella, disposto a espancal-a.
Reteve-o Balthazar, reflexionando-lhe que a violencia prejudicaria muito
a crise, sendo coisa de esperar que Thereza fugisse de casa. Refreou o
pae a sua ira, e meditou. Horas depois chamou sua filha, mandou-a sentar
ao pé de si, e em termos serenos e gesto bem composto, lhe disse que era
sua vontade casal-a com o primo; porém que elle já sabia que a vontade
de sua filha não era essa. Ajuntou que a não violentaria; mas tambem não
consentiria que ella, sovando aos pés o pundonor de seu pae, se désse de
coração ao filho do seu maior inimigo. Disse mais que estava a resvalar
na sepultura, e mais depressa desceria a ella, perdendo o amor da filha,
que elle já considerava morta. Terminou perguntando a Thereza, se ella
duvidava entrar n'um convento, e ahi esperar que seu pae morresse, para
depois ser desgraçada á sua vontade.
Thereza respondeu, chorando, que entraria n'um convento, se essa era a
vontade de seu pae; porém que se não privasse elle de a ter em sua
companhia, nem a privasse a ella dos seus affectos, por mèdo de que sua
filha praticasse alguma acção indigna, ou lhe desobedecesse no que era
virtude obedecer. Prometteu-lhe julgar-se morta para todos os homens,
menos para seu pae.
Thadeu ouviu-a, e não lhe replicou.


IV.

O coração de Thereza estava mentindo. Vão lá pedir sinceridade ao
coração!
Para finos entendedores, o dialogo do anterior capitulo definiu a filha
de Thadeu de Albuquerque. É mulher varonil, tem força de caracter,
orgulho fortalecido pelo amor, despêgo das vulgares apprehensões, se são
apprehensões a renuncia que uma filha faz de sua vontade ás
imprevidentes e caprichosas vontades de seu pae. Diz boa gente que não,
e eu abundo sempre no voto da gente boa. Não será aleive attribuir-lhe
uma pouca de astucia, ou hypocrisia, se quizerem; perspicacia seria mais
correcto dizer. Thereza adivinha que a lealdade tropeça a cada passo na
estrada real da vida, e que os melhores fins se attingem por atalhos
onde não cabem a franqueza e a sinceridade. Estes ardis são raros na
idade inexperta de Thereza; mas a mulher do romance quasi nunca é
trivial, e esta, de que resam os meus apontamentos, não o era. A mim me
basta para crêr em sua distincção a celebridade que ella veio a ganhar á
conta da desgraça.
Da carta que ella escreveu a Simão Botelho, contando as scenas
descriptas, a critica deduz que a menina de Vizeu contemporisava com o
pae, pondo a mira no futuro, sem passar pelo dissabor do convento, nem
romper com o velho em manifesta desobediencia. Na narrativa que fez ao
academico omittiu ella as ameaças do primo Balthazar, clausula que, a
ser transmittida, arrebataria de Coimbra o moço, em que sobejavam brios
e ferocidade para mantêl-os.
Mas não é esta ainda a carta que surprendeu Simão Botelho.
Parecia bonançoso o ceo de Thereza. Seu pae não fallava em claustro, nem
em casamento. Balthazar Coutinho voltára ao seu solar de Castro-d'Aire.
A tranquilla menina dava semanalmente estas boas novas a Simão, e este,
alliando ás venturas do coração as riquezas do espirito, estudava
incessantemente, e desvelava as noites arquitectando o seu edifício de
futura gloria.
Ao romper d'alva, d'um domingo de Junho de 1803, foi Thereza chamada
para ir com seu pae á primeira missa da igreja parochial. Vestiu-se a
menina assustada, e encontrou o velho na ante-camara a recebêl-a com
muito agrado, perguntando-lhe se ella se erguia de bons humores para dar
ao author de seus dias um resto de velhice feliz. O silencio de Thereza
era interrogador.
--Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Ballhazar, minha filha. É
preciso que te deixes cegamente levar pela mão de teu pae. Logo que
déres este passo difficil, conhecerás que a tua felicidade é d'aquellas
que precisam ser impostas pela violencia. Mas repara, minha querida
filha, que a violencia de um pae é sempre amor. Amor tem sido a minha
condescendencia e brandura para comtigo. Outro teria subjugado a tua
desobediencia com maus tractos, com os rigores do convento, e talvez com
o desfalque do teu grande patrimonio. Eu, não. Esperei que o tempo te
aclarasse a razão, e felicito-me de te julgar desassombrada do diabolico
prestigio do maldito, que acordou o teu innocente coração. Não te
consultei outra vez sobre este casamento, por temer que a reflexão
fizesse mal ao fervor de boa filha com que tu vais abraçar teu pae, e
agradecer-lhe a sisudez com que elle respeitou o teu genio, velando
sempre a hora de te encontrar digna do seu amor.
Thereza não desfitou os olhos do pae; mas tão abstrahida estava, que
escassamente lhe ouviu as primeiras palavras, e nada das ultimas.
--Não me respondes, Thereza?!- tornou Thadeu, tomando-lhe caridosamente
as mãos.
--Que hei-de eu responder-lhe, meu pae?--balbuciou ella.
--Dás-me o que te peço? enches de contentamento os poucos dias que me
restam?
--E será o pae feliz com o meu sacrificio?
--Não digas sacrificio, Thereza... A'manhã a estas horas verás que
transfiguração se fez na tua alma. Teu primo é um composto de todas as
virtudes; nem a qualidade de ser um gentil moço lhe falta, como se a
riqueza, a sciencia e as virtudes não bastassem a formar um marido
excellente.
--E elle quer-me, depois de eu me ter negado?--disse ella com amargura
ironica.
--Se elle está apaixonado, filha!... e tem bastante confiança em si para
crêr que tu has de amal-o muito!...
--E não será mais certo odial-o eu sempre!? Eu agora mesmo o abomino
como nunca pensei que se podesse abominar! Meu pae...--continuou ella,
chorando, com as mãos erguidas--mate-me; mas não me force a casar com
meu primo! E' escusada a violencia, porque eu não caso!..
Thadeu mudou de aspecto, e disse irado:
--Hás de casar! Quero que cases! Quero!... Quando não, amaldiçoada serás
para sempre, Thereza! Morrerás n'um convento! Esta casa irá para teu
primo! Nenhum infame ha de aqui pôr um pé nas alcatifas de meus avós. Se
és uma alma vil, não me pertences, não és minha filha, não podes herdar
appellidos honrosos, que foram pela primeira vez insultados pelo pae
d'esse miseravel que tu amas! Maldita sejas! Entra n'esse quarto, e
espera que d'ahi te arranquem para outro, onde não verás um raio de sol.
Thereza ergueu-se sem lagrimas, e entrou serenamente no seu quarto.
Thadeu de Albuquerque foi encontrar seu sobrinho, e disse-lhe:
--Não te posso dar minha filha, porque já não tenho filha. A miseravel,
a quem dei este nome, perdeu-se para nós e para ella.
Balthazar, que, a juizo de seu tio, era um composto de excellencias,
tinha apenas uma quebra: a absoluta carencia de brios. Malograda a
tentativa do seu amor de emboscada, tornou para a terra o primo de
Thereza, dizendo ao velho que elle o livraria do assedio em que Simão
Botelho lhe tinha o coração da filha. Não approvou a reclusão no
convento, discorrendo sobre as hypotheses infamantes que a opinião
publica inventaria. Aconselhou que a deixasse estar em casa, e esperasse
que o filho do corregedor viesse de Coimbra.
Ponderaram no animo do velho as razões de Balthazar. Thereza
maravilhou-se da quietação inesperada de seu pae, e desconfiou da
incoherencia. Escreveu a Simão. Nada lhe escondeu do succedido; nem as
ameaças de Balthazar por delicadeza supprimiu. Rematava communicando-lhe
as suas suspeitas de alguma nova traça de violencia melhor agourada.
O academico, chegando ao periodo das ameaças, já não tinha clara luz nos
olhos para decifrar o restante da carta. Tremia sezões, e as artérias
frontaes arfavam-lhe entumecidas. Não era sobresalto do coração
apaixonado: era a indole soberba que lhe escaldava o sangue. Ir d'ali a
Castro-d'Aire, e apunhalar o primo de Thereza na sua propria casa, foi o
primeiro conselho, que lhe segredou a furia do odio. N'este proposito
sahiu, alugou cavallo, e recolheu a vestir-se de jornada. Já preparado,
a cada minuto de espera assomava-se em frenesis. O cavallo demorou-se
meia hora, e o seu bom anjo, n'este espaço, vestido com as galas com que
elle vestia na imaginação Thereza, deu-lhe rebates de saudade d'aquelles
tempos e ainda das horas d'aquelle mesmo dia, em que scismava na
felicidade que o amor lhe promettia, se a elle procurasse no caminho do
trabalho e da honra. Contemplou os seus livros com tanto affecto, como
se em cada um estivesse uma pagina da historia do seu coração. Nenhuma
d'aquellas paginas tinha elle lido, sem que a imagem de Thereza lhe
apparecesse a fortalecêl-o para vencer os tédios da continuada
applicaçao, e os impetos d'um natural inquieto e ancioso de commoções
desusadas. «E ha de tudo acabar assim?»--pensava elle, com a face entre
as mãos, encostado á sua banca de estudo.--«Ainda ha pouco eu era tão
feliz!...»--«Feliz!»--repetiu elle erguendo-se de golpe--«quem póde ser
feliz com a deshonra d'uma ameaça impune!... Mas eu perco-a! Nunca mais
hei de vêl-a... Fugirei como um assassino, e meu pae será o meu primeiro
inimigo, e ella mesma ha de horrorisar-se da minha vingança... A ameaça
só ella a ouviu; e, se eu tivesse sido aviltado no conceito de Thereza,
pelos insultos do miseravel, talvez que ella os não repetisse...»
Simão Botelho releu a carta duas vezes, e á terceira leitura achou menos
affrontosas as bravatas do fidalgo cioso. As linhas finaes desmentiam
formalmente a suspeita do aviltamento, com que o seu orgulho o
atormentava: eram expressões ternas, supplicas ao seu amor como
recompensa dos passados e futuros desgostos, visões encantadoras do
futuro, novos juramentos de constancia, e sentidas phrases de saudade.
Quando o arreeiro bateu á porta, Simão Botelho já não pensava em matar o
homem de Castro-d'Aire; mas resolvêra ir a Vizeu, entrar de noite,
esconder-se e vêr Thereza. Faltava-lhe, porém, casa de confiança onde se
occultasse. Nas estalagens, seria logo descoberto. Perguntou ao arreeiro
se conhecia alguma casa em Vizeu onde elle podesse estar escondido uma
noite ou duas, sem receio de ser denunciado. O arreeiro respondeu que
tinha a um quarto de legua de Vizeu um primo ferrador; e não conhecia em
Vizeu senão os estalajadeiros. Simão achou de aproveitar o parentesco do
homem, e logo d'alli o presenteou com uma jaqueta de pelles e uma faxa
de sêda escarlate, á conta de maiores valores promettidos, se elle o bem
servisse n'uma empreza amorosa.
No dia seguinte chegou o academico a casa do ferrador. O arreeiro deu
conta ao seu parente do que vinha tratado com o estudante.
Foi Simão Botelho cautelosamente hospedado, e o arreeiro abalou no mesmo
ponto para Vizeu, com uma carta destinada a uma mendiga, que morava no
mais impraticavel bêcco da terra. A mendiga informou-se miudamente da
pessoa que enviava a carta, e sahiu, mandando esperar o caminheiro.
Pouco depois, voltou ella com a resposta, e o arreeiro partiu a galope.
Era a resposta um grito de alegria. Thereza não reflectiu, respondendo a
Simão, que n'aquella noite se festejavam os annos de seu pae, e se
reuniam em casa os parentes. Disse-lhe que ás onze horas em ponto ella
iria ao quintal, e lhe abriria a porta.
Não esperava tanto o academico. O que elle pedia era fallar-lhe da rua
para a janella do seu quarto, e receava impossivel este prazer, que elle
avaliava o maximo. Apertar-lhe a mão, sentir-lhe o halito, abraçal-a
talvez, commetter a ousadia de um beijo, estas esperanças, tão além de
suas modestas e honestas ambições, egualmente o enlevavam e assustavam.
Enlevo e susto em corações que se estreiam na comedia humana, são
sentimentos congeniaes.
Á hora da partida, Simão tremia, e a si mesmo pedia contas da timidez,
sem saber que os encantos da vida, os mais angelicos momentos da alma,
são esses lances de mysterioso alvoroço que aos mais ricos de coração
succedem em todas as sasões da vida, e a todos os homens, uma vez ao
menos.
Ás onze horas em ponto estava Simão encostado á porta do quintal, e a
distancia convencionada o arreeiro com o cavallo á rédea. A toada da
musica, que vinha das salas remotas alvoroçava-o, porque a festa em casa
de Thadeu de Albuquerque o surprendêra. No longo termo de tres annos
nunca elle ouvira musica n'aquella casa. Se elle soubesse o dia
natalicio de Thereza, espantára-se menos da estranha alegria d'aquellas
salas, sempre fechadas, como em dias de mortuorio. Simão imaginou
desvairadaraente as chimeras que voejam, ora negras, ora translucidas em
redor da phantasia apaixonada. Não ha balisa racional para as bellas,
nem para as horrorosas ilusões, quando o amor as inventa. Simão Botelho,
com o ouvido collado á fechadura, ouvia apenas o som das flautas, e as
pancadas do coração sobresaltado.


V

Balthazar Cominho estava na sala, simulando vingativa indifferença por
sua prima. As irmãs do fidalgo e a de mais parentela da casa não
deixavam respirar Thereza. Moças e velhas, todas á uma, se repetiam,
aconselhando-a a reconciliar-se com seu primo, e dar a seu pae a alegria
que o pobre velho tanto rogava a Deus, antes de fechar os olhos.
Replicava Thereza que não queria mal a seu primo, nem sequer eslava
sentida d'elle; que era sua amiga, e sêl-o-ia sempre em quanto lhe elle
deixasse livre o coração.
O velho esperava muito d'aquella noitada de festa. Alguns parentes,
presumidos de prudentes, lhe tinham dito que seria proveitoso regalar a
filha com os prazeres congruentes á sua idade, dando-lhe ensejo a que
ella repartisse o espirito, concentrado n'um só ponto, por diversões em
que a natural vaidade se preoccupa, e a força do amor contrariado se vai
a pouco e pouco quebrantando. Aconselharam-lhe as reuniões amiudadas, já
em sua casa, já na dos seus parentes, para d'este modo Thereza se
mostrar a muitos, ser cortejada de todos, e ter em opinião de menos
valia o unico homem com quem fallava, e a quem julgava superior a todos.
O fidalgo accedeu, mas com difficuldade; porque tinha lá um systema seu
de ajuizar das mulheres, e porque vivêra trinta annos de vida libertina
e dispendiosa, e se estava agora saboreando na economia e na quietação.
Os annos de Thereza eram pela primeira vez festejados com estrondo. A
morgada viu então o que era o minuete da côrte, e certos jogos de
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