Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 10

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inscripto no catalogo dos degredados para a India.


IX.

A verdade é algumas vezes o escolho de um romance.
Na vida real, recebemol-a como ella sáe dos encontrados acasos, ou da
logica implacavel das coisas; mas, na novella, custa-nos a soffrer que o
author, se inventa, não invente melhor; e, se copía, não minta por amor
da arte.
Um romance, que estriba na verdade o seu merecimento, é frio, é
impertinente, é uma coisa que não sacode os nervos, nem tira a gente,
sequer uma temporada, em quanto elle nos lembra, d'este jogo de nora,
cujos alcatruzes somos, uns a subir, outros a descer, movidos pela
manivella do egoismo.
A verdade! se ella é feia, para que offerecêl-a em paineis ao publico!?
A verdade do coração humano! Se o coração humano tem filamentos de
ferro, que o prendem ao barro d'onde sahiu, ou pezam n'elle e o
submergem no charco da culpa primitiva, para que é emergil-o,
retratal-o, e dal-o á venda!?
Os reparos são de quem tem o juizo no seu logar; mas eu que perdi o meu
a estudar a verdade, já agora a desforra que tenho é pintal-a, como ella
é, feia e repugnante.
A desgraça afervora ou quebranta o amor?
Isso é que eu submetto á decisão do leitor intelligente. Factos e não
theses é que eu trago para aqui. O pintor retrata uns olhos, e não
explica as funcções opticas do apparelho visual.
Ao cabo de dezenove mezes de carcere, Simão Botelho almejava um raio de
sol, uma lufada de ar não coada por ferros, o pavimento do ceu, que o da
abobada do seu cubiculo pesava-lhe sobre o peito.
Ancia de viver era a sua; não era já ancia de amar.
Seis mezes de sobresaltos diante da forca deviam distender-lhe as fibras
do coração; e o coração, para o amor, quer-se forte e tenso de uma certa
rijeza, que se ganha com o bom sangue, com os anceios das esperanças, e
com as alegrias que o enchem e reforçam para os revezes.
Cahiu a forca pavorosa aos olhas de Simão; mas os pulsos ficaram em
ferros, o pulmão ao ar mortal das cadêas, o espirito intanguido na
glacial estupidez d'umas paredes salitrosas, e d'um pavimento, que resôa
os derradeiros passos do ultimo padecente, e d'um tecto que filtra a
morte a gottas d'agua.
O que é o coração, o coração dos dezoito annos, o coração sem remorsos,
o espirito anhelante de glorias, ao cabo de dezoito mezes de estagnação
da vida?
O coração é a viscera, ferida de paralysia, a primeira que fallece
suffocada pelas rebelliões da alma que se identifica á natureza, e a
quer, e se devora na ancia d'ella, e se estorce nas agonias da
amputação, para as quaes a saudade da felicidade extincta é um cauterio
em braza, e o amor que leva ao abysmo pelo caminho da sonhada
felicidade, não é sequer um refrigerio.
Ao deslaçar da garganta a corda da justiça, Simão Botelho teve uma hora
de desafôgo, como que sentia o patibulo lascar entre os seus braços, e
então convidou o coração da mulher, que o perdêra, a assistir ás
segundas nupcias da sua vida com a esperança.
Depois, a passo igual, a esperança fugia-lhe para as areias da Asia, e o
coração intumecia-se de fel, o amor afogava-se n'elle, morte inevitavel,
quando não ha abertura por onde a esperança entre a luzir na escuridão
intima.
Esperança, para Simão Botelho, qual?
A India, a humilhação, a miseria, a indigencia.
E os anhelos d'aquella alma tinham mirado a ambições de um nome. Para a
felicidade do amor invidava as forças do talento; mas, além do amor,
estava a gloria, o renome, e a vã immortalidade, que só não é demencia
nas grandes almas, e nos genios que se presentem viver nas gerações
vindouras, e se preluzem n'ellas. Mas grinaldas de amor a escorrerem
sangue dos espinhos, essas instillam veneno corrosivo no pensamento,
apagam no seio a faisca das nobres affoitezas, apoucam a ideia que
abrangêra mundos, e paralysam de mortal spasmo os estos do coração.
Assim te sentias tu, infeliz, quando dezoito mezes de carcere, com o
patibulo ou o degredo na linha do teu porvir, te haviam matado o melhor
da alma.
A ti mesmo perguntavas pelo teu passado, e o coração, se ousava
responder, retrahia-se recriminado pelos dictames da razão.
D'além, d'aquelle convento onde outra existencia agonisava, gementes
queixas te vinham espremer fel na chaga; e tu, que não sabias, nem
podias consolar, pedias palavras ao anjo da compaixão para ella, e
recebias as do demonio do desespêro para ti.
Os dez annos de ferros, era que lhe quizeram minorar a pena, eram-lhe
mais horrorosos que o patibulo. E aceital-o-ias, por ventura, se amasse
o ceu, onde Thereza bebia o ar, que nos pulmões se lhe formava em
peçonha? Creio:--antes a masmorra, onde póde ouvir-se o som abafado de
uma voz amiga; antes os paroxismos de dez annos sobre as lages humidas
d'uma enxovia, se, na hora extrema, a ultima faisca da paixão, ao
bruxolear para morrer, nos alumia o caminho do ceu por onde o anjo do
amor desditoso se levantou a dar conta de si a Deus, e a pedir a alma do
que ficou.
Thereza pedira a Simão Botelho que aceitasse dez annos de cadêa, e
esperasse ahi a sua redempção por ella.
«Dez annos!--dizia-lhe a inclausurada de Monchique--Em dez annos terá
morrido meu pae, e eu serei tua esposa, e irei pedir ao rei que te
perdôe, se não tiveres cumprido a sentença. Se vaes ao degredo, para
sempre te perdi, Simão, porque morrerás, ou não acharás memoria de mim
quando voltares.»
Como a pobre se illudia nas horas em que as debeis forças de sua vida se
lhe concentravam no coração!
As ancias, a lividez, o deperecimento tinham voltado. O sangue, que
creára novo, já lhe sahia em golfadas com a tosse.
Se por amor ou piedade o condemnado aceitasse os ferrolhos tres mil
seiscentas e cincoenta vezes corridos sobre as suas longas noites
solitarias, nem assim Thereza sosteria a pedra sepulcral que a vergava
d'hora a hora.
«Não esperes nada, martyr--escrevia-lhe elle.--A lucta com a desgraça é
inutil, e eu não posso já luctar. Foi um atroz engano o nosso encontro.
Não temos nada n'este mundo. Caminhemos ao encontro da morte... Ha um
segredo que só no sepulcro se sabe. Vêr-nos-hemos?
Vou. Abomino a patria, abomino a minha familia, todo este solo está aos
meus olhos coberto de forcas, e quantos homens fallam a minha lingua,
creio que os ouço vociferar as imprecações do carrasco. Em Portugal, nem
a liberdade com a opulencia; nem já agora a realisação da esperanças que
me dava o teu amor, Thereza!
Esquece-te de mim, e adormece no seio do nada. Eu quero morrer, mas não
aqui. Apague-se a luz de meus olhos; mas a luz do ceu, quero-a! quero
vêr o ceu no meu ultimo olhar.
Não me peças que aceite dez annos de prisão. Tu não sabes o que é a
liberdade captiva dez annos! Não comprehendes a tortura dos meus vinte
mezes. A voz unica que tenho ouvido é a da mulher piedosa que me esmola
o pão de cada dia, e a do aguazil que veio dar-me a sarcastica boa-nova
de uma graça real que me commuta o morrer instantaneo da forca pelas
agonias de dez annos de carcere.
Salva-te, se pódes, Thereza. Renuncia ao prestigio d'um grande
desgraçado. Se teu pae te chama, vai. Se tem de renascer para ti uma
aurora de paz, vive para a felicidade d'esse dia. E senão, morre,
Thereza, morre, que a felicidade é a morte, é o desfazerem-se em pó as
fibras laceradas pela dôr, é o esquecimento que salva das injurias a
memoria dos padecentes.»
As palavras unicas de Thereza, em resposta áquella carta, significativa
da turvação do infeliz, foram estas: «Morrerei, Simão, morrerei. Perdôa
tu ao meu destino... Perdi-te... bem sabes que sorte eu queria dar-te...
e morro, porque não posso, nem poderei jámais resgatar-te. Se pódes,
vive; não te peço que morras, Simão; quero que vivas para me chorares.
Consolar-te-ha o meu espirito... Estou tranquilla... Vejo a aurora da
paz... Adeus até ao ceu, Simão.»
Seguiram-se a esta carta muitos dias de terrível taciturnidade. Simão
Botelho não respondia ás perguntas de Marianna. Dil-o-ieis arrobado nas
voluptuosas angustias do seu proprio aniquilamento. A creatura, posta
por Deus ao lado d'aquelles dezoito annos tão attribulados, chorava; mas
as lagrimas, se Simão as via, tiravam-no da mudez socegada para impetos
de afflicção, que a final o extenuavam á força de convulsões.
Decorreram seis mezes ainda.
E Thereza vivia, dizendo ás suas consternadas companheiras, que sabia ao
certo o dia do seu trespasse.
Duas primaveras vira Simão Botelho pelas grades do seu carcere. A
terceira já inflorava as hortas, e esverdeava as florestas do Candal.
Era em Março de 1807.
No dia 10 d'esse mez recebeu o condemnado intimação para sahir na
primeira embarcação que levava ancora do Douro para a India. N'esse
tempo vinham aqui os navios buscar os degredados, e recebiam em Lisboa
os que tinham igual destino.
Nenhum estorvo impedia o embarque de Marianna, que se apresentou ao
corregedor do crime como criada do degredado, com passagem paga por seu
amo.
--E a passagem vale-a bem!--disse o galhofeiro magistrado.
Simão assistiu no encaixotar de sua bagagem, n'uma quietação terrivel,
como se ignorasse o seu destino.
Quiz muitas vezes escrever a derradeira carta á moribunda Thereza, e nem
signaes de lagrimas podia já enviar-lhe no papel.
--Que trevas, meu Deus!--exclamava elle, e arrancava a mãos cheias os
cabellos--Dai-me lagrimas, Senhor! deixai-me chorar, ou matai-me, que
este soffrimento é insupportavel!
Marianna contemplava estarrecida estes e outros lances de loucura, ou os
não menos medonhos da lethargia.
--E Thereza!--bradava elle, surgindo subitamente do seu spasmo--E
aquella infeliz menina, que eu matei! Não hei de vêl-a mais, nunca mais!
Ninguem me levará ao degredo a noticia da sua morte! E quando a eu
chamar para que me veja morrer digno d'ella, quem te dirá que eu morri,
ó martyr!


X.

A 17 de Março de 1807 sahiu dos carceres da Relação Simão Antonio
Botelho, e embarcou no caes da Ribeira, com setenta e cinco
companheiros. O filho do ex-corregedor de Vizeu, a pedido do
desembargador Mourão Mosqueira, e por ordem do regedor das justiças, não
ia amarrado com cordas ao braço d'algum companheiro. Desceu da cadêa ao
embarque, ao lado de um meirinho, e seguido de Marianna, que vigiava os
caixões da bagagem. O magistrado, fiel amigo de D. Rita Preciosa, foi a
bordo da nau, e recommendou ao commandante que distinguisse o degredado
Simão, consentindo-o na tolda, e sentando-o á sua mesa. Chamou Simão de
parte, e deu-lhe um cartuxo de dinheiro em ouro, que sua mãe lhe
enviava. Simão Botelho aceitou o dinheiro, e na presença de Mourão
Mosqueira pediu ao commandante que fizesse distribuir pelos seus
companheiros de degredo o dinheiro que lhe dava.
--É demente o senhor Simão?!--disse o desembargador.
--Tenho a demencia da dignidade: por amor da minha dignidade me perdi:
quero agora vêr a que extremo de infortunio ella póde levar os seus
amantes. A caridade só me não humilha, quando parte do coração e não do
dever. Não conheço a pessoa, que me remetteu este dinheiro.
--É sua mãe--tornou Mosqueira.
--Não tenho mãe. Quer v. ex.^a remetter-lhe esta esmola rejeitada?
--Não, senhor.
--Então, senhor commandante, cumpra o que lhe peço, ou eu atiro com isto
ao rio.
O commandante aceitou o dinheiro, e o desembargador sahiu de bordo como
espantado da sinistra condição do moço.
--Onde é Monchique?--pergutou Simão a Marianna.
--É acolá, senhor Simão--respondeu, indicando-lhe o mosteiro, que se
debruça sobre a margem do Douro, em Miragaya.
Cruzou os braços Simão, e viu através do gradeamento do mirante um
vulto.
Era Thereza.
Na vespera recebêra ella o adeus de Simão, e respondêra enviando-lhe a
trança dos seus cabellos.
Ao anoitecer d'aquelle dia, pediu Thereza os sacramentos, e commungou á
grade do côro, onde se foi amparando á sua criada. Parte das horas da
noite passou-as sentada ao pé do sanctuario de sua tia, que toda a noite
orou. Algumas vezes pediu que a levassem á janella que se abria para o
mar, e não sentia ali a frialdade da viração. Conversava serenamente com
as freiras, e despedira-se de todas, uma a uma, indo, por seu pé, ás
cellas das senhoras entrevadas, para lhes dar o beijo da despedida.
Todas cuidavam em reanimal-a, e Thereza sorria, sem responder aos
piedosos artificios com que as boas almas a si mesmas queriam simular
esperanças. Ao abrir da manhã, Thereza leu uma a uma as cartas de Simão
Botelho. As que tinham sido escriptas nas margens do Mondego,
enterneciam-na a copiosas lagrimas. Eram hymnos á felicidade prevista:
eram tudo que mais formoso póde dar o coração humano, quando a poesia da
paixão dá côr ao pensamento, e uma formosa e inspirativa natureza lhe
empresta os seus esmaltes. Então lhe acudiam vivas reminiscencias
d'aquelles dias: a sua alegria doida, as suas dôces tristezas,
esperanças a desvanecerem saudades, os mudos colloquios com a irmã
querida de Simão, o ceu aromatico que se lhe ampliava á aspiração
sôfrega de vagos desejos, tudo, emfim, que lembra a desgraçados.
Emmassou depois as cartas, e cintou-as com fitas de sêda desenlaçadas de
raminhos de flôres murchas, que Simão, dois annos antes, lhe atirára da
sua janella ao quarto d'ella.
As petalas das flôres soltas quasi todas se desfizeram, e Thereza,
contemplando-as, disse: «Como a minha vida...» e chorou, beijando os
calices desfolhados das primeiras que recebêra.
Deu as cartas a Constança, e encarregou-a de uma ordem, a respeito
d'ellas, que logo veremos cumprida.
Depois foi orar, e esteve ajoelhada meia hora, com meio corpo reclinado
sobre uma cadeira. Erguendo-se, quasi tirada pela violencia, aceitou uma
chicara de caldo, e murmurou com um sorriso: «Para a viagem...»
Ás nove horas da manhã pediu a Constança que a acompanhasse ao mirante
e, sentando-se em ancias mortaes, nunca mais desfitou os olhos da nau,
que já estava de verga alta, esperando a leva dos degredados.
Quando viu, a dois a dois, entrarem amarrados, no tombadilho, os
condemnados, Thereza teve um breve accidente, em que a já froixa
claridade dos olhos se lhe apagou, e as mãos convulsas pareciam querer
aferrar a luz fugitiva.
Foi então que Simão Botelho a viu.
E ao mesmo tempo atracou á nau um bote, em que vinha a pobre de Vizeu
chamando Simão. Foi elle ao portaló, e estendendo o braço á mendiga,
recebeu o pacotinho das suas cartas. Reconheceu elle que a primeira não
era sua, pela lizura do papel; mas não a abriu.
Ouviu-se a voz de levar ancora, e largar amarras. Simão encostou-se á
amurada da nau, com os olhos fitos no mirante.
Viu agitar-se um lenço, e elle respondeu com o seu áquelle aceno. Desceu
a nau ao mar, e passou fronteira ao convento. Distinctamente Simão viu
um rosto e uns braços suspensos das rêxas de ferro; mas não era de
Thereza aquelle rosto: seria antes um cadaver que subiu da claustra ao
mirante, com os ossos da cara inçados ainda das herpes da sepultura.
--É Thereza?--perguntou Simão a Marianna.
--É, senhor, é ella--disse n'um afogado gemido a generosa creatura,
ouvindo o seu coração dizer-lhe que a alma do condemnado iria breve no
seguimento d'aquella por quem se perdêra.
De repente aquietou o lenço que se agitava no mirante, e avistou Simão
um movimento impetuoso de alguns braços, e o desapparecimento de Thereza
e do vulto de Constança, que elle entre-vira mais tarde.
A nau parou de fronte de Sobreiras. Uma nuvem no horisonte da barra, e o
subito encapellamento das ondas, causára a suspensão por ordem do
commandante. Em seguida, velejou da Foz uma catraia, com o piloto mór,
que mandava lançar ferro, até novas ordens. Mais tarde, deferiu-se a
sahida para o dia seguinte.
E, no entanto, Simão Botelho, como o cadaver embalsamado, cujos olhos
reluzentes se cravam n'um ponto immoveis, lá tinha os seus immersos na
interior escuridade do miradouro. Nenhum signal de vida, e as horas
passaram até que o derradeiro raio do sol se apagou nas grades do
mosteiro.
Ao escurecer voltou de terra o commandante, e contemplou, com os olhos
embaciados de lagrimas, o desterrado, que contemplava as primeiras
estrellas, eminentes ao mirante.
--Procura-a no ceu?--disse o nauta.
--Se a procuro no ceu!--repetiu machinalmente Simão.
--Sim!... no ceu deve ella estar.
--Quem, senhor?
--Thereza.
--Thereza!... Morreu?!
--Morreu, álem, no mirante, d'onde lhe estava acenando.
Simão curvou-se sobre a amurada, e fitou os olhos na torrente. O
commandante lançou-lhe os braços e disse:
--Coragem, grande desgraçado, coragem! os homens do mar crêem em Deus!
Espere que o ceu se abra para si pelas supplicas d'aquelle anjo!
Marianna estava um passo atraz de Simão, e tinha as mãos erguidas.
--Acabou-se tudo!...--murmurou Simão-- Eis-me livre... para a morte...
Senhor commandante--continuou elie energicamente--eu não me suicido.
Póde deixar-me.
--Peço-lhe que se recolha á camara. O seu beliche está ao pé do meu.
--É obrigatorio recolher-me?
--Para v. s.^a não ha obrigações; ha rogos: peço-lh'o não mando.
--Vou, e agradeço a compaixão.
Marianna seguiu-o com aquelle olhar quebrado e mavioso do jáo, quando o
poeta desembarcava, segundo a ideia apaixonada do cantor de Camões.
Encarou n'ella Simão, e disse ao commandante:
--E esta infeliz?
--Que o siga...--respondeu o compassivo homem do mar, que cria em Deus.
Simão recolheu-se ao beliche, e o commandante sentou-se em frente
d'elle, e Marianna ficou no escuro da camera a chorar.
--Falle, senhor Simão!--disse o commandante--desafogue e chore.
--Chorei, senhor!
--Eu não tinha imaginado uma angustia igual á sua. A invenção humana não
creou ainda um quadro tão atroz. Arripiam-se-me os cabellos, e tenho
visto espectaculos horriveis na terra e no mar.
Acintemente, o commandante estava provocando Simão ao desabafo. Não
respondia o degredado. Ouvia os soluços de Marianna, e tinha os olhos
postos no masso das cartas, que pozera sobre uma banqueta.
O capitão proseguiu:
--Quando em Miragaya me contaram a morte d'aquella senhora, pedi a uma
pessoa relacionada no convento, que me levasse a ouvir d'alguma freira a
triste historia. Uma religiosa m'a contou; mas eram mais os gemidos que
as palavras. Soube que ella, quando desciamos na altura do Oiro,
proferira em alta voz: «Simão, adeus até á eternidade!» e cahiu nos
braços d'uma criada. A criada gritou, e outras foram ao mirante, e a
trouxeram meia-morta para baixo, ou morta, melhor direi, que nenhuma
palavra mais lhe ouviram. Depois contaram-me o que ella penára em dois
annos e nove mezes n'aquelle mosteiro. O amor que ella lhe tinha, e as
mil mortes que ella ali padeceu, de cada vez que a esperança lhe morria,
Que desgraçada menina, e que desgraçado moço o senhor é!
--Por pouco tempo...-- disse Simão, como se o dissesse a si proprio, ou
a propria imaginação o estivesse dialogando comsigo.
--Creio, creio, por pouco tempo--proseguiu o capitão;--mas se os amigos
podessem salval-o, senhor, eu dar-lh'os-ia na India mais fieis que em
Portugal. Prometto-lhe, sob minha palavra de honra, alcançar do visorei
a sua residência em Gôa. Prometto segurar-lhe um decente principio de
vida, e as commodidades que fazem a existencia tão saudavel como ella é
na Asia. Não o intimide a ideia do degredo, senhor Simão. Viva, faça por
vencer-se, e será feliz!
--O seu silencio, por piedade, senhor...--atalhou o degredado.
--Bem sei que é cêdo ainda para planisar futuros. Desculpe á sympathia,
que me inspira, a indiscrição. Mas aceite um amigo n'esta hora
atribulada.
--Aceito, e preciso d'elle.... Marianna!--chamou Simão--Venha aqui, se
este cavalheiro o permitte.
Marianna entrou no quarto.
--Esta mulher tem sido a minha providencia--disse Simão--Porque ella me
valeu, não senti a fome em dois annos e nove mezes de carcere. Tudo que
tinha vendeu para me sustentar e vestir. Aqui vai comigo esta creatura.
Seja respeitavel aos seus olhos, senhor, porque ella é tão pura como a
verdade o deve ser nos labios d'um moribundo. Se eu morrer, senhor
commandante, aceite o legado de a amparar com a sua caridade como se
ella fosse minha irmã. Se ella quizer voltar á patria, seja o seu
protector na passagem.--E estendendo-lhe a mão, disse com
transporte:--Promette-me isto, senhor?
--Juro-lh'o.
O commandante, obrigado a subir ao tombadilho, deixou Simão com
Marianna.
--Estou tranquillo pelo seu futuro, minha amiga.
--Eu já o estava, senhor Simão--respondeu ella.
Não se trocaram palavra por largo espaço. Simão apoiou a face sobre a
mesa, e apertou com as mãos as fontes archejantes. Marianna, de pé, ao
lado d'elle, fitava os olhos na luz mortiça da lampada oscillante, e
scismava, como elle, na morte.
E o nordeste sibilava, como um gemido, nas gáveas da nau.


CONCLUSÃO.

Ás onze horas da noite o commandante recolhêra-se n'um beliche de
passageiro, e Marianna, sentada no pavimento, com o rosto sobre os
joelhos, parecia sucumbir ao quebranto das trabalhosas e afflictivas
horas d'aquelle dia.
Simão Botelho velava prostrado no camarote, com os braços cruzados sobre
o peito, e os olhos fitos na luz que balançava, pendente d'um arame. O
ouvido têl-o-ia talvez attento ao assovio da ventania: devia de soar-lhe
como um ai plangente aquelle silvo agudo, voz unica no silencio da terra
e do ceu.
Á meia noite estendeu Simão o braço tremulo ao masso das cartas que
Thereza lhe enviára, e contemplou um pouco a que estava ao de cima, que
era d'ella. Rompeu a obreia, e dispôz-se no camarote para alcançar o
baço clarão da lampada.
Dizia assim a carta:
«É já o meu espirito que te falla, Simão. A tua amiga morreu. A tua
pobre Thereza, á hora em que leres esta carta, se me Deus não engana,
está em descanso.
Eu devia poupar-te a esta ultima tortura; não devia escrever-te; mas
perdôa á tua esposa do ceu a culpa pela consolação que sinto em
conversar comtigo a esta hora, hora final da noite da minha vida.
Quem te diria que eu morri, se não fosse eu mesma, Simão? D'aqui a pouco
perderás da vista este mosteiro; correrás milhares de leguas, e não
acharás, em parte alguma do mundo, voz humana que te diga: «A infeliz
espera-te n'outro mundo, e pede ao Senhor que te resgate.»
Se te podesses illudir, meu amigo, quererias antes pensar que eu ficava
com vida e com esperança de vêr-te na volta do degredo? Assim póde ser,
mas ainda agora, n'este solemne momento, me domina a vontade de fazer-te
sentir que eu não podia viver. Parece que a mesma infelicidade tem ás
vezes vaidade de mostrar que o é, até não podêl-o ser mais! Quero que
digas: Está morta, e morreu quando lhe eu tirei a ultima esperança.
Isto não é queixar-me, Simão, não é. Talvez que eu podesse alguns dias
resistir á morte, se tu ficasses; mas, d'um modo ou d'outro, era
inevitavel fechar os olhos quando se rompesse o ultimo fio, este ultimo
que se está partindo, e eu mesma o oiço partir.
Não vão estas palavras accrescentar a tua pena. Deus me livre de ajuntar
um remorso injusto á tua saudade.
Se eu podesse ainda vêr-te feliz n'este mundo; se Deus permittisse á
minha alma esta visão!... _Feliz_, tu, meu pobre condemnado!... Sem o
querer, o meu amor agora te fazia injuria, julgando-te capaz de
felicidade! Tu morrerás de saudade, se o clima do desterro te não matar
ainda antes de succumbires á dôr do espirito.
A vida era bella, era, Simão, se a tivessemos como tu m'a pintavas nas
tuas cartas, que li ha pouco. Estou vendo a casinha que tu descrevias
defronte de Coimbra, cercada de arvores, flôres e aves. A tua imaginação
passeava comigo ás margens do Mondego, á hora pensativa do escurecer.
Estrellava-se o ceu, e a lua abrilhantava a agua. Eu respondia com a
mudez do coração ao teu silencio, e animada por teu sorriso inclinava a
face ao teu seio, como se fosse ao de minha mãe. Tudo isto li nas tuas
cartas; e parece que cessa o despedaçar da agonia em quanto a alma se
esta recordando. N'outra carta me fallavas em triumphos e glorias e
immortalidade do teu nome. Também eu ia após da tua aspiração, ou
adiante d'ella, porque o maior quinhão dos teus prazeres de espirito
queria eu que fosse meu. Era criança ha tres annos, Simão, e já entendia
os teus anhelos de gloria, e imaginava-os realisados como obra minha, se
me tu dizias, como disseste muitas vezes, que não serias nada sem o
estimulo do meu amor.
Ó Simão, de que ceu tão lindo cahimos! Á hora que te escrevo estás tu
para entrar na nau dos degredados, e eu na sepultura.
Que importa morrer, se não podemos jámais ter n'esta vida a nossa
esperança de ha tres annos?! Poderias tu com a desesperança e com a
vida, Simão? Eu não podia. Os instantes do dormir eram os escassos
beneficios que Deus me concedia; a morte é mais que uma necessidade, é
uma misericordia divina, uma bemaventurança para mim.
E que farias tu da vida sem a tua companheira de martyrio? Onde irás tu
aviventar o coração que a desgraça te esmagou, sem poder esmagar a
imagem d'esta docil mulher, que seguiu cegamente a estrella da tua
malfadada sorte?
Tu nunca hás de amar, não, meu esposo? Terias pejo de ti mesmo, se uma
vez visses passar rapidamente a minha imagem por diante dos teus olhos
enxutos? Soffre, soffre ao coração da tua amiga estas derradeiras
perguntas, a que tu responderás, no alto mar, quando esta carta lêres.
Rompe a manhã. Vou vêr a minha ultima aurora... a ultima dos meus
dezoito annos!
Abençoado sejas, Simão! Deus te proteja, e te livre d'uma agonia longa.
Todas as minhas angustias lhe offereço em desconto das tuas culpas. Se
algumas impaciencias a justiça divina me condemna, offerece tu a Deus,
meu amigo, os teus padecimentos para que eu seja perdoada.
Adeus; á luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão.»
Erguei-se Simão Botelho, olhou em redor de si, e fitou com spasmo
Marianna, que levantava a cabeça ao menor movimento d'elle.
--Que tem, senhor Simão?--disse ella, erguendo-se.
--Estava aqui, Marianna?... não se vai deitar?!
--Não vou: o commandante deu-me licença de ficar aqui.
--Mas ha de assim passar a noite?! Rogo-lhe que vá, porque não é
necessario o seu sacrificio.
--Se o não incommodo, deixe-me aqui estar, senhor Simão.
--Esteja, minha amiga, esteja... Poderei subir ao convez?
--Quer ir ao convez, senhor Botelho?--disse o commandante lançando-se do
beliche.
--Queria, senhor commandante.
--Iremos juntos.
Simão ajuntou a carta de Thereza ao maço das suas, e subiu cambaleando.
No convéz sentou-se n'um monte de cordame, e contemplou o mirante de
Monchique, que avultava negro ao sopé da serra penhascosa em que
actualmente vai a rua da Restauração.
O capitão passeava da prôa á ré; mas com o ouvido fito aos movimentos do
degredado. Receára elle o proposito do suicidio, porque Marianna lhe
incutira semelhante suspeita. Queria o maritimo fallar-lhe palavras
consoladoras, mas pensava comsigo: «O que ha de dizer-se a um homem que
soffre assim?» E parava junto d'elle algumas vezes, como para
desviar-lhe o espirito d'aquelle mirante.
--Eu não me suicido!--exclamou abruptamente Simão Botelho--Se a sua
generosidade, senhor capitão, se interessa em que eu viva, póde dormir
descansado a sua noite, que eu não me suicido.
--Mas mereço-lhe eu a condescendencia de descer comigo á camara?
--Irei; mas eu lá soffro mais, senhor.
Não replicou o commandante, e continuou a passear no convez, apesar das
rajadas de vento.
Marianna estava agachada, entre os pacotes da carga, a pouca distancia
de Simão. O commandante viu-a, fallou-lhe, e retirou-se.
Ás tres horas da manhã Simão Botelho segurou entre as mãos a testa que
se lhe abria abrazada pela febre.
Não pôde ter-se sentado, e deixou cahir meio corpo. A cabeça, ao
declinar, pousou no seio de Marianna.
--O anjo da compaixão sempre comigo!--murmurou elle--Thereza foi muito
mais desgraçada...
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