Amor de Perdição: Memorias d'uma familia - 03

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prendas com que os intervallos n'aquelles tempos, se aligeiravam em
delicias, sem fadiga do corpo, nem desagrado da moral.
Mas, de agitada que estava, Thereza não compartia do gôso dos seus
hospedes. Desde que soaram as dez horas d'aquella noite, a rainha da
festa parecia tão alheada das finezas com que senhoras e homens á
competência a lisonjeavam, que Balthazar Coutinho deu fé do dessocêgo de
sua prima, e teve a modestia de imaginar que ella se offendêra da
indifferença d'elle. Generoso até ao perdão, o morgado de Castro-d'Aire,
compondo o rosto com gesto grave e melancolico, dirigiu-se a Thereza, e
pediu-lhe desculpa da frieza que elle disse ser como a das montanhas,
que tem vulcões por dentro e neve por fóra. Thereza teve a sinceridade
de responder que não tinha reparado na frieza de seu primo, e chamou
para junto d'ella uma menina, para evitar que a montanha se abrisse em
vulcões. Pouco depois ergueu-se, e sahiu da sala.
Eram dez horas e tres quartos. Thereza corrêra ao fundo do quintal,
abrira a porta, e, como não visse alguem, tornou de corrida para a sala.
No momento, porém, de subir a escada que ligava o jardim á casa,
Balthazar Coutinho, que a espiava desde que ella sahiu da sala, chegou a
uma das janellas sobre o jardim, bem longe de imaginar que a via.
Retirou-se, e entrou com Thereza na sala, ao mesmo tempo, por diversas
portas. Decorridos alguns minutos, a menina sahiu outra vez, e o primo
tambem. Thereza ouviu, a distancia, o estrepito d'um cavallo, quando
passou ao patamar da escada. Balthazar tambem o ouviu, e notou que sua
prima, receosa de ser vista e conhecida pela alvura do vestido, levava
uma capa ou chaile que a envolvia toda. O de Castro-d'Aire fez pé atraz
para não ser visto. Thereza, porém, n'um relance de olhar temeroso,
ainda víra um vulto retirar-se. Teve mêdo, e retrocedeu a largar a capa,
e entrou na sala, offegante de cansaço e pallida de mêdo.
--Que tens, minha filha?--disse-lhe o pae--Já duas vezes sahisteda sala,
e vens tão alvoroçada! Tens algum incommodo, Thereza?
--Tenho uma dôr: preciso de ir respirar de vez em quando... Nada é, meu
pae.
Thadeu acreditou, e disse a toda a gente que a sua filha tinha uma dôr;
só o não disse a seu sobrinho, porque o não encontrou, e soube que elle
tinha sahido.
Tambem Thereza dera pela ausencia do primo, e fingiu que o ia procurar,
resolução de que o velho gostou muito. Desceu ella ao jardim, correu á
porta, onde a esperava Simão, abriu-a, e com a voz cortada pela
anciedade, apenas disse:
--Vai-te embora: vem ámanhã ás mesmas horas... Vai, vai!
Simão, quando isto ouvia, tinha os olhos, fitos n'um vulto, que se
approximava d'elle, rente com o muro do quintal. O arreeiro, que
primeiro o vira, dera um signal, e entalara as rédeas do cavallo entre
umas pedras, para ficar desembaraçado, se o estudante se não podésse
haver com o inimigo.
Simão Botelho não se moveu do local, e Balthazar Coutinho parou na
distancia de seis passos. O arreeiro tinha lentamente avançado a meio
caminho do patrão, quando lhe este disse que não se aproximasse. E,
caminhando para o vulto, aperrou duas pistolas, e disse-lhe:
--Isto aqui não é caminho. Que quer?
O fidalgo não respondeu.
--Parece-me que lhe abro a bôca com uma bala!--tornou Simão.
--Que lhe importa o senhor quem está?!--disse Balthazar--Se eu tiver um
segredo, como o senhor parece que tem o seu n'estes sitios, sou obrigado
a confessar-lh'o?!
Simão reflectiu, e replicou:
--Este muro pertence a uma casa onde mora uma só família, e uma só
mulher.
--Estão n'essa casa mais de quarenta mulheres esta noite--redarguiu o
primo de Thereza--Se o cavalheiro espera uma, eu posso esperar outra.
--Quem é o senhor?--tornou com arrogancia o filho do corregedor.
--Não conheço a pessoa que me interroga, nem quero conhecer. Fiquemos
cada um com o nosso incognito. Boas noites.
Balthazar Coutinho retrocedeu, dizendo entre si: «que partido tem uma
espada contra dois homens e duas pistolas?»
Simão Botelho cavalgou, e partiu para casa do hospitaleiro ferrador.
O sobrinho de Thadeu de Albuquerque entrou na sala, sem denunciar
levemente alteração de animo. Viu que Thereza o observava de revez, e
soube dissimular-se de modo que a socegou. A pobre menina, cansada de
commoções, viu com prazer erguer-se para sahir a primeira familia, que
deu rebate ás outras, menos ao de Castro-d'Aire e suas irmãs, que
ficaram hospedados em casa de seu tio, com tenção de se demorarem oito
dias em Vizeu.
Velou Thereza o restante da noite, escrevendo a Simao a detida historia
dos seus terrores, e pedindo-lhe perdão de o ella não ter advertido do
baile, por fcar doida de alegria com a sua vinda. No tocante ao plano de
se encontrarem na seguinte noite não havia alteração na carta. Isto
espantou o academico. A seu vêr, o vulto era Balthazar Coutinho, e o pae
de Thereza devia ser avisado n'aquella mesma noite.
Respondeu elle contando a historia do incidente com o encapelado;
receando, porém, assustar Thereza e gorar a entrevista, escreveu nova
carta, em que não transluzia mêdo de ser atacado, nem sequer receio de
marear-lhe a fama. Quiz parecer a Simão Botelho que este era o digno
porte de um amante corajoso.
Passou o estudante aquelíe dia contando as longas horas, e meditando
instantes nos funestos resultados que podia ter a sua temeraria ida, se
Balthazar Coutinho era aquelle homem, que reservára para melhor relance
a vingança da provocação insolente. Mas de si para si tinha elle que
pensar em tal era mais covardia que prudencia.
O ferrador tinha uma filha, moça de vinte e quatro annos, e formas
bonitas, e um rosto bello e triste. Notou Simão os reparos em que ella
se demorava a contemplal-o, e perguntou-lhe a causa d'aquelle olhar
melancolico com que ella o fitava. Marianna corou, abriu um sorriso
triste, o respondeu:
--Não sei o que me adivinha o coração a respeito de v. s.^a Alguma
desgraça está para lhe succeder.
--A menina não dizia isso--replicou Simão--sem saber alguma coisa da
minha vida.
--Alguma coisa sei...--tornou ella.
--Ouviu contar ao arreeiro?
--Não, senhor. E' que meu pae conhece o paesinho de v. s.^a, e tambem
conhece o senhor. E ha bocadinho que eu ouvi estar meu pae a dizer a meu
tio, que é o arreeiro que veio com v. s.^a, que tinha suas razões para
saber que alguma desgraça lhe estava para acontecer...
--Porque?
--Pr'amor d'uma fidalga de Vizeu, que tem um primo em Castro-d'Aire.
Simão espantou-se da publicidade do seu segredo, e ia colher pormenores
do que elle julgava mysterio entre duas familias, quando o mestre
ferrador João da Cruz entrou no sobrado, onde o precedente dialogo se
passára. A môça, como ouvisse os passos do pae, sahira lestamente por
outra porta.
--Com sua licença--disse mestre João.
Dizendo, fechou por dentro ambas as portas, e sentou-se sobre uma arca.
--Ora, meu fidalgo--continuou elle, descendo as mangas arregaçadas da
camiza, e apertando-as com difficuldade nos grossos pulsos, como quem
sabe as exigencias da ceremonia--ha de desculpar que eu viesse assim em
mangas de camiza; mas não dei com a jaqueta...
--Está muito bem, senhor João--atalhou o academico.
--Pois, senhor, eu devo um favor a seu pae, e um favor d'aquella casta.
Uma vez armou-se aqui á minha porta uma desordem, a trôco d'um couce que
um macho d'um almocreve deu n'uma egua, que eu estava ferrando, e em tão
hoa hora foi, que lhe partiu rente o jarrête por aqui, salvo tal logar.
João da Cruz mostrou na sua perna o ponto por onde fôra fracturada a da
egua, e continuou:
--Eu tinha alli á mão o martello, e não me tive que não pregasse com
elle na cabeça do macho, que foi logo para a terra. O recoveiro de
Carção, que era chibante, deitou as unhas a um bacamarte, que trazia
entre uma carga, e desfechou comigo, sem mais tirte, nem garte. O' alma
damnada!--disse-lhe eu--pois tu vês que o teu macho me aleijou esta
egua, que custou vinte peças a seu dono, e que eu tenho de pagar, e
dás-me um tiro por eu te atordoar o macho!?
--E o tiro acertou-lhe?--atalhou Simão.
--Acertou; mas saberá v. s.^a que me não matou; deu-me aqui por este
braço esquerdo com dois quartos. E vai eu, entro em casa, vou á
cabeceira da cama, e trago uma clavina, e desfecho-lh'a na táboa do
peito. O almocreve cahiu como um tôrdo, e não tugiu nem mugiu.
Prenderam-me, e fui para Vizeu e já lá estava ha tres annos, no anno em
que o paesinho de v. s.^a veio corregedor. Andava muita gente a
trabalhar contra mim, e todos me diziam que eu ia pernear na forca.
Estava lá na enxovia comigo um prêso a cumprir sentença, e disse-me elle
que o senhor corregedor tinha muita devoção com as sete dôres de Nossa
Senhora. Uma vez que elle ia passando com a familia para a missa,
disse-lhe eu «senhor Corregedor, peço a v. s.^a pelas sete dôres de
Maria Santissima, que me mande ir á sua presença, para eu explicar a
minha culpa a v.s.^a». O paesinho de v. s.^a chamou o meirinho geral, e
mandou tomar o meu nome. Ao outro dia fui chamado ao senhor Corregedor,
e contei-lhe tudo, mostrando-lhe ainda as cicatrizes do braço. Seu pae
ouviu-me, e disse-me. «Vai-te embora, que eu farei o que podér.» O caso
é, meu fidalgo, que eu sahi absolvido, quando muita gente dizia que eu
havia de ser inforcado á minha porta. Faz favor de me dizer se eu não
devo andar com a cara onde o seu paesinho põe os pés!?
--Tem o senhor João motivo para lhe ser grato, não ha duvida nenhuma.
--Agora faz favor de ouvir o mais. Eu antes de ser ferrador, fui criado
de farda em casa do fidalgo de Castro-d'Aire, que é o senhor Balthazar.
Conhece-o v. s.^a? Ora, se conhece!...
--Conheço de nome.
--Foi elle que me abonou dez moedas de ouro para me estabelecer; mas
paguei-lh'as, Deus louvado. Ha de haver seis mezes que elle me mandou
chamar a Vizeu, e me disse que tinha trinta peças para me dar, se eu lhe
fizesse um serviço. «O que v. s.^a quizer, fidalgo.» E vai elle disse-me
que queria que eu tirasse a vida a um homem. Isto boliu cá por dentro
comigo, porque, a fallar a verdade, um homem que mata outro n'um apêrto
não é um matador de officio, acho eu, não é assim?
--De certo...--respondeu Simão, adivinhando o remate da historia--quem
era o homem que elle queria morto?
--Era v. s.^a... Ó homem!--disse o ferrador com espanto--O senhor nem
sequer mudou de côr!
--Eu não mudo nunca de côr, senhor João--disse o academico.
--Estou pasmado!
--E vm.^ce não acceitou a incumbencia, pelo que vejo--tornou Simão.
--Não, senhor; e então logo que elle me disse quem era, a minha vontade
era pregar-lhe com a cabeça n'uma esquina.
--E elle disse-lhe a razão porque me mandava matar?
--Não, meu fidalgo; eu lhe conto. Na semana adiante, quando soube que o
senhor Balthazar (raios o partam!) tinha sabido de Vizeu, fui fallar com
o senhor Corregedor, e contei-lhe tudo o que se passára. O senhor
corregedor esteve a scismar um pouquinho, e disse-me, e v. s.^a ha de
perdoar por eu lhe dizer o que seu pae me disse tal e qual.
--Diga.
--Seu pae começou a esfregar o nariz, e disse-me: «Eu sei o que é isso.
Se aquelle bréjeiro de meu filho Simão tivesse honra, não olharia para a
prima d'esse assassino. Cuida o patife que eu consentia que meu filho se
ligasse a uma filha de Thadeu de Albuquerque!..» Ainda disse mais coisas
que me não lembram; mas eu fiquei sabendo tudo. Ora aqui tem o que
houve. Agora, appareceu-me aqui v. s.^a, e a noite passada foi a Vizeu.
Perdoará a minha confiança; mas v. s.^a foi fallar com a tal menina: e
eu estive vai não vai a seguil-o; mas como ia meu cunhado, que é homem
para tres, fiquei descançado. Elle contou-me um encontro que v. s.^a
teve á porta do quintal da menina. Se lá torna, senhor Simão, vá
preparado para alguma coisa de maior. Eu bem sei que v. s.^a não é
medroso; mas d'uma traição ninguem se livra. Se quer que eu vá também,
estou ás suas ordens; e a clavina que deu policia ao almocreve ainda
alli está, e dá fogo debaixo d'agua, como diz o outro. Mas, se v. s.^a
dá licença que eu lhe diga a minha opinião, o melhor é não andar n'essas
encamizadas. Se quer casar com ella, vá pedir a seu pae licença, e deixe
o resto cá por minha conta; ponto é que ella queira, que eu, n'um abrir
e fechar d'olhos, atiro com ella para cima d'uma égua de chupêta, que
alli tenho, e o pae e mais o primo ficam a vêr navios.
--Obrigado, meu amigo--disse Simão--Aproveitarei os seus bons serviços,
quando me forem necessarios. Á noite hei de ir, como fui a noite
passada, a Vizeu. Se houver novidade, então veremos o que se ha de
fazer. Conto comsigo, e creia que tem em mim um amigo.
Mestre João da Cruz não replicou. D'alli foi examinar miudamente a
fecharia da clavina, e entender-se com o cunhado sobre cautelas
necessarias, em quanto descarregava a arma, e a carregava de novo com
uns balotes especiaes que elle denominava «amendoas de pimpões».
N'este intervallo, Marianna, a filha do ferrador, entrou no sobrado, e
disse com meiguice a Simão Botelho:
--Então sempre é certo ir?
--Vou, porque não hei de ir?
--Pois Nossa Senhora vá na sua companhia--tornou ella, sahindo logo para
esconder as lagrimas.


VI.

Ás dez horas e meia da noite d'aquelle dia, tres vultos convergiram para
o local, raro frequentado, em que se abria a porta do quintal de Thadeu
de Albuquerque. Alli se detiveram alguns minutos discutindo e
gesticulando. Dos tres havia um, cujas palavras eram ouvidas em silencio
e sem replica pelos outros: Dizia elle a um dos dois:
--Não convém que estejas perto d'esta porta. Se o homem apparecesse aqui
morto, as suspeitas cahiam logo sobre mim ou meu tio. Afastem-se um do
outro, e tenham o ouvido applicado ao tropel do cavallo. Depois apressem
o passo, até o encontrarem de modo que os tiros sejam dados longe
d'aqui.
--Mas...--atalhou um--quem nos diz que elle veio hontem a cavallo, e
hoje vem a pé?
--E' verdade! - accrescentou o outro.
--Se elle vier a pé, eu lhes darei aviso para o seguirem depois até o
terem a geito de tiro, mas longe d'aqui, percebem vocês?--disse
Balthazar Coutinho.
--Sim, senhor; mas se elle sáe de casa do pae, e entra sem nos dar
tempo?
--Tenho a certeza de que não está em casa do pae, já lh'o disse. Basta
de palavriado. Vão esconder-se atraz da igreja, e não adormeçam.
Debandou o grupo, e Balthazar ficou alguns momentos encostado ao muro.
Soaram os tres quartos depois das dez. O de Castro-d'Aire collou o
ouvido á porta, e retirou-se acceleradamente, ouvindo o rumor da
folhagem sêcca que Thereza vinha pizando.
Apenas Balthazar, cosido com o muro, desapparecêra, um vulto assomou do
outro lado a passo rapido. Não parou: foi direito a todos os pontos onde
uma sombra podia figurar um homem. Rodeou a igreja que estava a duzentos
passos de distancia. Viu os dois vultos direitos com o recanto que
formava a juncção da capella mór, e sobre o qual cabiam as sombras da
torre. Fitou-os de passagem, e suspeitou; não os conheceu; mas elles
disseram entre si, depois que elle desapparecêra:
--É o João da Cruz, ferrador, ou o diabo por elle!...
--Que fará a esta hora por aqui?!
--Eu sei!
--Não desconfias que elle entre n'isto?
--Ágora! Se entrasse, era por nós. Não sabes que elle foi mochila do
nosso amo?
--E tambem sei que pôz a loja com dinheiro do nosso amo.
--Pois então que mêdo tens?
--Não ha mêdo; mas tambem sei que foi o corregedor que o livrou da
forca...
--Isso que tem! O corregedor não se importa com isto, nem sabe que o
filho cá está...
--Assim será; mas não estou muito contente... Elle é homem dos diabos...
--Deixal-o ser... tanto entram as balas n'elle como n'outro...
A discussão continuou sobre varias conjecturas. De tudo o que elles
disseram uma coisa era certissima: ser o vulto o João da Cruz, ferrador.
Teria este dado trezentos passos, quando os criados de Balthazar ouviram
o remoto tropel de cavalgadura. Ao tempo que elles sahiam do seu
escondrijo, sabia João da Cruz á frente do cavalleiro. Simão aperrou as
pistolas, e o arreeiro uma clavina.
--Não ha novidade--disse o ferrador--mas saiba v. s.^a que já podia
estar em baixo do cavallo com quatro zagalotes no peito.
O arreeiro reconheceu o cunhado, e disse:
--És tu, João?
--Sou eu. Vim primeiro que tu.
Simão estendeu a mão ao ferrador, e disse commovido:
---Dê cá a sua mão; quero sentir na minha a mão de urn homem honrado.
--Nas occasiões é que se conhecem os homens--redarguiu o ferrador.--Ora
vamos... não ha tempo para fallatorio. O senhor doutor tem uma espera.
--Tenho?--disse Simão.
--Atraz da igreja estão dois homens que eu não pude conhecer; mas não se
me dava de jurar que são criados do senhor Balthazar. Salte abaixo do
cavallo, que ha de haver mostarda. Eu disse-lhe que não viesse; mas v.
s.^a veio, e agora é andar com a cara para a frente.
--Olhe que eu não tremo, mestre João--disse o filho do corregedor.
--Bem sei que não; mas, á vista do inimigo, veremos.
Simão tinha apeado. O ferrador tomou as rédeas do cavallo, recuou alguns
passos na rua, e foi prendêl-o á argola da parede de uma estalagem.
Voltou, e disse a Simão que o seguisse a elle e ao cunhado na distancia
de vinte passos; e que, se os visse parar perto do quintal de
Albuquerque, não passasse do ponto d'onde os visse.
Quiz o academico protestar contra um plano, que o humilhava como
protegido pela defeza dos dois homens; o ferrador, porém, não admittiu a
réplica.
--Faça o que eu lhe digo, fidalgo--disse elle com energia.
João da Cruz e o cunhado, espiando todas as esquinas, chegaram de fronte
do quintal de Thereza, e viram um vulto a sumir-se no angulo da parede.
--Vamos sobre elles--disse o ferrador--que lá passaram para o adro da
igreja; n'este entrementes, o doutor chega á porta do quintal e entra;
depois voltaremos para lhe guardar a sahida.
N'este proposito, moveram-se apressados, e Simão Botelho caminhou com as
pistolas aperradas na direcção da porta.
Em frente do muro do jardim de Thereza havia uma cascalheira escarpada,
que se esplainava depois n'uma alamêda sombria.
Os dois criados de Balthazar, quando o tropel do cavallo parou,
recordaram as ordens do amo, no caso de vir a pé Simão. Buscaram sitio
azado para o espreitarem na sahida, e entraram na alamêda quando o
academico chegava á porta do quintal.
--Agora está seguro--disse um.
--Se lá não ficar dentro....--respondeu o outro, vendo-o entrar, e
fechar-se a porta.
--Mas além vem dois homens...--disse o mais assustado, olhando para a
outra entrada da alamêda.
--E vem direitos a nós... aperra lá a clavina...
O melhor é retirarmos. Nós estamos á espera de outro, e não d'estes.
Vamos embora d'aqui...
Este não esperou convencer o companheiro: desceu a ribanceira do
cascalho. O mais intrepido teve tambem a prudencia de todos os
assassinos assalariados: seguiu o assustadiço, e deu-lhe razão, quando
ouviu após de si os passos velozes dos perseguidores. Sahiu-lhes o amo
de frente, quando dobravam a esquina do quintal, e disse-lhes:
--Vocês a que fogem, seus poltrões?
Os homens pararam de envergonhados, aperrando os bacamartes.
João da Cruz e o arreeiro appareceram, e Balthazar caminhou para elles,
bradando:
--Alto ahi!
O ferrador disse ao cunhado:
--Falla-lhe tu, que eu não quero que elle me conheça.
--Quem manda fazer alto?--disse o arreeiro.
--São tres clavinas--respondeu Balthazar.
--Olha se os demoras a dar tempo que o doutor saia--disse João da Cruz
ao ouvido do arreeiro.
--Pois nós cá estamos parados--replicou o criado de Simão.--Que nos
querem vocês?
--Quero saber o que tem que fazer n'este sitio.
--E vocês que fazem por cá?
--Não admitto perguntas--disse o de Castro-d'Aire, aventurando alguns
passos vacilantes para a frente.--Quero saber quem são.
Mestre João disse ao ouvido do cunhado:
--Diz-lhe que se dá mais um passo que o arrebentas.
O arreeiro repetiu a clausula, e Balthazar parou.
Um dos criados d'este chamou-o ao lado para lhe dizer que aquelle dos
dois, que não fallava, parecia ser o João da Cruz. O morgado duvidou, e
quiz esclarecer-se; mas o ferrador ouvira as palavras do criado, e disse
ao cunhado:
--Vem comigo, que elles conhecem-me.
Dizendo, voltou as costas ao grupo, e caminhou ao longo do quintal de
Thadeu de Albuquerque. Os criados de Balthazar, gloriosos da retirada,
como de uma derrota certa, apressaram o passo na cola dos suppostos
fugitivos. O morgado ainda lhes disse que os não seguissem; mas elles,
momentos antes covardes, queriam desforrar-se agora, correndo após o
inimigo tanto quanto lhe tinham fugido antes.
Simão Botelho ouvira os passos ligeiros dos seus homens, e, compellido
pelo susto de Thereza, abrira a porta do quintal, sem saber ainda quem
elles fossem. João da Cruz, com ar galhofeiro, já quando os
perseguidores se viam, disse ao filho do corregedor, se estava ajustado
o casamento, que não havia panno para mangas.
Simão entendeu o perigo, apertou convulsamente a mão de Thereza, e
retirou-se. Queria elle reconhecer os dois vultos parados a distancia;
mas João da Cruz, com o tom imperioso de quem obriga á submissão, disse
ao filho do corregedor:
--Vá por onde veio, e não olhe para traz.
Simão foi indo até encontrar o cavallo. Montou, e esperou os dois
inalteraveis guardas que o seguiam a passo vagaroso. Maravilhara-os o
subito desapparecimento dos criados de Balthazar, e recearam-se de
alguma espera fóra da cidade. O ferrador conhecia o atalho que podia
levar os da emboscada ao caminho, e revelou o seu receio a Simão,
dizendo-lhe que picasse a toda a brida, que elle e o cunhado lá iriam
ter. O academico recebeu com enfado a advertencia, admoestando-os a que
o não tivessem em tão vil preço. E acintemente soffreou as rédeas, para
não forçar os homens a aligeirar o passo.
--Vá como quizer--disse mestre João--que nós vamos por fóra do caminho.
E subiram a uma rampa de olivaes, para tornarem a descer encubertos por
moitas de giestas, cozendo-se aos torcicolos d'uma parede parallela com
a estrada.
--O atalho vai acolá onde a serra faz aquelle cotovêllo--disse o
ferrador ao cunhado--hão de alli passar, ou já passaram. A estrada vai
mesmo na quebrada d'aquelle outeirinho. Os homens é d'alli que lhe vão
atirar, encobertos pelos sobreiros. Vamos depressa...
E um pouco descobertos, e outro curvados á sombra das devêzas, chegaram
a um vallado d'onde ouviram os passos dos dois homens que atravessavam o
pontilhão de um córrego.
--Já não vamos a tempo--disse afflicto o João da Cruz--os homens vão
atirar-lhe, porque o cavallo trupa cá muito atraz.
E corriam já sem temor de serem vistos, porque os outros tinham dobrado
o outeiro, em cujo valle corria a estrada.
--Os homens vão atirar-lhe...--disse o ferrador.
--Gritemos d'aqui ao doutor que não vá p'ra diante.
--Já não é tempo... Ou o matem ou não matem, quando voltarem são nossos.
Tinham já passado o pontilhão, e subiam a ladeira, quando ouviram dois
tiros.
--Arriba!--exclamou João da Cruz--que não vão elles metter-se á estrada,
se mataram o fidalgo.
Tinham vencido a chã, esbofados e anciados, com as clavinas aperradas.
Os criados de Balthazar, ao invez da conjectura do ferrador, retrocediam
pelo mesmo atalho, suppondo que os companheiros de Simão iam adiante
batendo os pontos azados á emboscada, ou se tinham retardado.
--Elles ahi vem!--disse o arreeiro.
--Nós cá estamos--respondeu o ferrador, sentando-se, a coberto de um
cômoro.--Senta-te também que eu não estou p'ra correr atraz d'elles.
Os assassinos, a dez passos, viram de frente erguerem-se os dois vultos,
e ladearam cada qual para seu lado, um galgando os sucalcos de uma
vinha, o outro atirando-se a uns silveiraes.
--Atira ao da esquerda!--disse João da Cruz.
Foram simultaneas as explosões. A pontaria do ferrador fez logo um
cadaver. Os balotes do arreeiro não estremaram o outro entre o carrascal
onde se embrenhára.
A este tempo assomava Simão no tezo d'onde lhe tinham atirado, e corria
ao ponto onde ouvira os segundos tiros.
--É v. s.^a, fidalgo?--bradou o ferrador.
--Sou.
--Não o mataram?
--Creio que não--respondeu Simão.
--Este desalmado deixou fugir o melro--tornou João da Cruz--mas o meu lá
está a pernear na vinha. Sempre lhe quero vêr as trombas...
O ferrador desceu os três socalcos da vinha, e curvou-se sobre o
cadaver, dizendo:
--Alma de cantaro, se eu tivesse duas clavinas não ias sósinho para o
inferno!
--Anda d'ahi!--disse o arreeiro--deixa lá esse diabo, que o senhor
doutor está ferido n'um hombro. Vamos depressa, que está o sangue a
escorrer-lhe.
--Eu vi duas cabeças a espreitarem-me de cima de uma ribanceira, e
cuidei que eram vocês--disse Simão, em quanto o ferrador, com a destreza
de habil cirurgião, lho enfaixava o braço ferido com lenços.--Parei o
cavallo, e disse: «Ólé! ha novidade?» Logo que me não responderam,
saltei para terra; mas ainda eu tinha um pé no estribo quando me fizeram
fogo. Quiz saltar á ribanceira, mas não pude romper o matto. Dei uma
volta grande para achar subida, e foi então que dei fé de estar
ferido...
--Isto é uma arranhadura--disse João da Cruz--olhe que eu sei d'isto,
fidalgo! Estou affeito a curar muitas feridas.
--Nos burros, mestre João?--disse o ferido, sorrindo.
--E nos christãos tambem, senhor doutor. Olhe que houve em Portugal um
rei que não queria outro medico senão um alveitar. Hei de mostrar-lhe o
meu corpo que está uma rêde de facadas, e nunca fui ao cirurgião. Com
ceroto e vinagre sou capaz de ir resuscitar aquelle alma do diabo que
alli está a escutar a cavallaria.
N'isto ouviu-se um leve rumor de folhagem no matagal para onde tinha
saltado o companheiro do morto.
João da Cruz, como galgo de fino olfacto, fitou a orelha e resmungou:
--Querem vocês vêr que ellas se armam!... Dar-se-ha caso que o outro
ainda esteja por alli a tremer maleitas!...
O rumor continuou, e logo um bando de passaros rompeu d'entre a folhagem
chilreando.
--O homem está alli!--tornou o ferrador.--Passe-me cá uma pistola,
senhor Simão!
Correu mestre João, e ao mesmo tempo uma grande rostilhada se fez entre
as moitas de codêços e urzes.
--Elle estrinça lenha como um porco do monte!--exclamou o ferrador.--Ó
cunhado, bate este matto com alguns penedos; quero vêr sahir o javali da
moita!...
Para o outro lado da bouça estava um plaino cultivado. Simão, rodeando a
sebe, conseguira saltar ao campo por sobre a pedra d'um agueiro.
--Tenha lá mão, mestre; não vá você atirar-me!--bradou Simão ao
ferrador.
--Pois o fidalgo já ahi anda!?. Então está fechado o cêrco. Eu cá vou
fazer de furão. Se este nos escapa, não ha nada seguro n'este mundo!
Não se enganaram. O criado de Balthazar Coutinho, quando se atirára
desamparado á brenha, desnocára um joelho, e cahira atordoado. O
arreeiro não examinou o effeito do tiro, porque atirara á ventura, e
achava natural que o fugitivo se não molestasse. Quando volveu a si do
aturdimento da queda, o homem arrastou-se lentamente até encontrar um
cerrado de arvores silvestres, em que pernoitava a passarinhada. Como os
melros cacarejassem esvoaçando, o criado de Balthazar retrocedeu para o
mato, cuidando que ahi escaparia; mas o arreeiro jogava enormes calhaus
em todas as direcções, e alguns acertavam mais que as balas do seu
bacamarte. João da Cruz tirou do bolço da jaqueta um podão, e começou a
cortar a selva de carvalhas novas e giestaes que se emmaranhavam em
redor do escondrijo. Já cansado, porém, e vendo o pouco luzimento do
trabalho, disse ao arreeiro:
--Petisca lume, vai alli dentro buscar um pouco de restolho sêcco, e
vamos pegar fogo ao mato, que este ladrão ha de morrer assado.
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